Outro dia compareci a uma entrevista de emprego para a vaga de assistente administrativo. O prédio ficava no centro da cidade, perto de uma antiga catedral. Na sala de espera, sentado à minha frente, estava um possível concorrente de terno e gravata, carregando uma mala preta e um nervosismo visível. O rosto dele me era familiar, mas achei que não o conhecia. Ele sorriu, um pouco sem graça porque sabia que um dos dois deveria continuar desempregado, e começou a falar sem saber se eu estava a fim de escutar.
- Quando ouvimos a palavra de Deus, não estamos ouvindo o que Deus disse textualmente - e deu-se início a um monólogo sem interrupção, até porque ele teve uma assessoria de comunicação que revisava seus textos antes de serem publicados. Quem é esse tal de Deus? Talvez seja uma criatura que perde espaço na mídia no dia da cerimônia da entrega do Oscar. Talvez seja esquecido no pico de audiência da novela das oito. Que conglomerado de cordeiros sem resposta a essa forma de domínio!
Levantei para pegar um cafezinho, que também lhe ofereci. Ele não quis, mas continuou a filosofar.
- Uma raça pobre como a nossa criou o primeiro esquema falido da globalização há séculos, e o perpetuou até a agonia da humanidade. A massificação na sua forma mais inexpressiva. O modelo foi imposto pelo medo, perseguições e derramamento de sangue. Os profetas falaram em nome de Deus sem nenhuma procuração assinada. Os assessores de imprensa se remeteram a um chefe chamado Jesus, que nunca leu os textos sobre ele publicados. Até aí está tudo errado! E ainda pior: qual foi o último contato com o homem? Há dois mil anos? Estamos lendo o mesmo livro e tentamos adaptá-lo às realidades contemporâneas. Ora, se o Deus é tão perfeito, como poderia acompanhar as mudanças sem sugerir nenhuma? É uma falta de senso comum, né? - Por vezes parecia um pouco enfadado, por outras se mostrava sorridente e um pouco irônico, mas o problema de verdade começou quando um local chamado de igreja, inicialmente contratado para tomar conta dos assuntos administrativos de Deus, quis crescer até se transformar numa empresa independente, com advogados, contadores. E mais uma série de coisas parecidas ao marketing do Mc Donalds: o merchandising, os palhaços, a exploração, a reprodução em formato padrão, a formação do conglomerado, a marca registrada. Até a carne, tanto num como no outro, é de mentira. Pode? E depois de uma breve pausa para tomar ar, continuou: Estou desempregado há dois mil anos...
- Desculpem - interrompeu a secretária, o diretor de recursos humanos está chamando o senhor Deus.
- Bom, a hora da entrevista chegou. Foi um prazer - ele se despediu e me desejou sorte. |
