O Bacanal do Bandeira
Dr. Luiz Eduardo Rodrigues Amaro
Bacanal
QUERO BEBER!
Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
O alfanje rútilo da lua
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!
Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!
Observa-se na poesia que a expressão do sentimento é, na verdade, secundária em relação à expressão do querer. O sujeito actante tem seu ato intensificado pelo “querer”, como podemos observar já na introdução do poema em caixa alta: “QUERO BEBER!”, e também na quarta estrofe, primeiro verso: “Se perguntarem: que mais queres”.
Os objetos de busca do sujeito são o canto obsceno, o amor das mulheres e a embriaguês. Tais objetos do querer estão explicitados na quarta estrofe: “Se perguntarem: Que mais queres, // Além de verso e mulheres? // Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...”
Todas as estrofes, exceto a transcrita acima, possuem no último verso o termo Evoé, seguido de um deus mitológico, nessa ordem: Baco, Momo, Vênus, Momo, Vênus.
Analisemos o significado temático desses deuses, pois eles fazem referencia aos objetos de busca do sujeito.
Na Roma Antiga, evocava-se Dionísio[1] durante as festas de orgias, pela expressão “Evoé, Baco![2]”. Esta evocação é estendida aos outros deuses, de forma a depreendermos que é por meio da embriaguez que o sujeito tenta subverter a ordem de valores, para assim entrar no universo carnavalizado, evocando Momo[3].
Entrando no universo da carne liberta, é possível, ao sujeito actante, almejar o terceiro objeto do seu querer: o amor das mulheres. Para tanto, evoca Vênus[4].
É importante ressaltar a adjetivação que existe no querer da embriaguez (1ª estrofe), pois esse sentido retorna e concretiza-se na 5º estrofe.
“No esto” é uma expressão que foi resgatada do latim (aestus, us. Sm. 1º: grande calor, ardor, fervor, fogo). Dessa maneira, tal fogo, tal ardor é caracterizado pela qualidade animal da brutalidade, e estes termos referem-se às bebedeiras. O terceiro verso tematiza a destruição (Que tudo emborca[5] e faz em caco...).
Por esse motivo, temos o amor homicida na quinta estrofe: um amor tão exaltado a ponto de ser passional[6].
O alfanje[7] rútilo da Lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!
Evoé Momo!
Atentemo-nos para o terceiro verso da presente estrofe. O sujeito confessa não poder controlar o desejo e que este o alucina. Isso significa, no nível profundo, que o sujeito já viveu tais experiências, pois sabe a respeito das sensações que elas provocariam.
O sujeito não supõe as sensações, ele as afirma, antecipando a performance. Temos um programa virtual, onde a sanção está subentendida nessa anterioridade/posterioridade vivida e possível de se reviver pelo sujeito, descrita no parágrafo anterior.
A última estrofe é o prenúncio da sanção. O “querer” está implícito no primeiro verso; o sujeito quer a “Lira eterna”, reiterando o canto (Lira) e o plano onírico (etérea); ele deseja possuir uma espada curva (alfanje), o que nos evoca a espada da morte, para degolar o pescoço (nuca nua) da mulher amada, ou seja, uma paixão de caráter demoníaco que destrói a fidelidade e, uma vez concretizada, causa a frustração.
Observe bem:
(eu quero) A Lira etérea, a grande Lira!...
Porque eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé, Vênus!
No nível profundo, podemos depreender que tal criatura amada seja uma mulher ligada ao prazer carnal, a embriaguez e à festa da carne. Em outras palavras, uma prostituta: ser que inspira desejos angustiantes e que o sujeito não pode “domar”, não pode possuir, pois ela é uma mulher “sem dono”, que pertence ao mundo, a quem possa pagar.
Por esse motivo, o amor que o sujeito busca não é o amor típico do gênero lírico, o amor idealizado, platônico, camoniano. É, por outro lado, o amor carnal e passageiro, que necessita sempre de novas buscas para saciar-se, o amor que se encontra no bacanal, título da poesia.
Para finalizar a presente análise, temos, de modo geral, um plano narrativo virtual, com um sujeito actante que busca o objeto-valor “prazer” (sectável em canto obsceno, amor das mulheres e embriaguez), desafiado por este “querer”, o sujeito é automanipulado a adquirir o objeto que o desafia, a buscar o que lhe falta para estar novamente em conjunção.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. 20 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
[1] Deus do vinho. Filho de Zeus e de Semele, filha de Cadmos. Foi educado pelas ninfas de Nisa, teve uma infância selvagem em plena natureza e cedo imaginou plantar e cultivar a vinha. Em sua honra eram realizadas as festas dionisíacas, verdadeiras orgias em reverência a Dionísio.
[2] Deus do vinho para os latinos. O mesmo que Dionísio para os gregos.
[3] Filho do Sono e da Noite, personificação do sarcasmo; o “deus dos palhaços”.
[4] Filha do Céu e da Terra: nascida da escuma do mar, por obra de Saturno. Tinha um cinto que inspirava infalivelmente o amor. Presidia a todos os prazeres amorosos. Mãe de Cupido.
[5] Entornar na boca, bebendo; beber com sofreguidão.
[6] Entendendo-se passional no sentido grego, proveniente de “pathos” – doença; amor doentio.
[7] Sabre de folha curva e larga.
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