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Cronicas-->14. TRILHOS E TRILHAS -- 23/09/2002 - 07:40 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Existem profissões que demarcam sensivelmente o destino das pessoas após a morte. A minha foi bem assim por razões que passo a expor.

Desde criança, entusiasta das máquinas, admirava o rigor com que as locomotivas seguiam impávidas, rompendo a atmosfera, galgando o espaço, abrindo o futuro.

Claro que tais termos não empregava eu, mísero estafermo estacionado na quarta série primária, sem jamais ter adquirido o diploma do ensino fundamental.

Quer dizer que me tornei maquinista? Quase. Tornei-me motorneiro, que era como se denominava aquele que manobrava os veículos na ferrovia urbana, ou seja, os bondes ou elétricos, como diziam em minha pátria natal.

Cheguei ao Brasil aos dois anos de idade. Contava minha mãe que enjoei a viagem toda, como se não aceitasse aquele meio de transporte solto por sobre o elemento líquido.

Foi aqui que adquiri o vezo das coisas certas e definidas. Mantive o sotaque da família e passava perfeitamente como imigrante da última leva. Em suma, era lusitano da gema, ainda que me corresse grande quantidade de sangue formado na América.

Tudo isto para dizer que me entediavam os estudos e me sentia muito bem quando ouvia a sineta comandada pelo condutor (aquele que tinha a obrigação de avaliar se todos haviam descido ou subido do coletivo, bem como a quem cabia cobrar as passagens). Assim, dava partida, badalava com o sino batido com o pé os transeuntes desatentos, diminuía a marcha quando algum veículo estacionava com perigo para os que se mantinham nos estribos segurando os balaústres e parava, quando havia passageiros no ponto ou quando recebia o comando sonoro acionado pelos que desejavam descer.

Esforço-me para consignar um costume social que se perdeu, já que hoje se desenvolveu o meio viário dos ónibus, o qual começava a existir ainda quando estava vivo, porém, aposentado.

Foi por essa época que me tornei filósofo. Religioso sempre fora, mas desses que esperam de Deus os milagres de cada dia, repetidos nas festas de todo ano, julgando que Jesus, Maria e José constituíam uma trindade bem mais compreensível do que santíssima do Pai, Filho e Espírito Santo.

Queria as coisas bem definidas, como os trilhos sobre os quais viajei durante mais de quarenta anos de profissão. Eram trilhos sem trilhas, que o destino sabia-o eu de cor e salteado.

Nos últimos tempos, comecei a desconfiar de que a vida não pode ser regulada com tanta firmeza, primeiro porque meus filhos se saíam muito bem em profissões honestas, mas sem trilhos; depois, porque não atinava mais com a necessidade de me deslocar para obter os prazeres simples da mudança de paisagem, vivendo em cidade praiana onde os bondes meramente decoravam o ambiente com seu ar vetusto de saudade morrinhenta.

Essa mudança de perspectiva me auxiliou a aceitar a carrancuda fisionomia da natureza "extrafísica". No etéreo, ao arribar aqui, vim enjoado, como se tivesse atravessado o Atlàntico de volta à Santa Terrinha. Queria ainda a segurança dos carris, por onde sabia que chegaria a porto seguro.

Não vejam a confusão da travessia nas palavras do parágrafo anterior. Era essa a trapalhada que vigorava em minha mente, misturando a direção que imprimia ao veículo sob meu comando, à tormentosa jornada sob o guante de outrem.

Não satisfeito com a penumbra nem com o fato de caminhar a pé, curvado sob o peso dos anos, tentei construir um caminho de ferro sobre os quais faria passar o bonde de minhas recordações mais felizes.

Devo dizer que não me foi difícil estabelecer toda uma intrincada linha de trilhos, nem de montar veículos de diversos tipos e aspectos, inclusive os fechados pintados de vermelho apelidados de "camarões", os com reboque simples ou duplo e os de socorro mecànico com seu alto guindaste. Não me atemorizei em criar também os postes de sustentação dos cabos eletrificados, de sorte que pude manter-me ocupado por cerca de vinte anos ou mais, caso tivesse oportunidade de contá-los de acordo com a passagem do tempo na Terra.

Mas, quando mais entusiasmado estava com minha obra de engenharia, ouvi uma voz conhecida chamar-me pelo nome:

- Joaquim, querido, vamos para casa.

Só então percebi que minha vida também deveria ser coroada no seio da família. Era meu filho mais velho quem me chamava, mas seu aspecto era de meu avó materno, cuja recordação mantivera através de fotografia descolorida e manchada presa a uma das paredes do corredor entre a sala e o quarto.

Antes que levantasse qualquer hipótese, esclareceu-me, amoravelmente:

- Somos a mesma pessoa. Reencarnei como filho seu, para continuarmos presos um ao outro, para confirmarmos a necessidade de resgate de antigas diferenças. A sua memória está temporariamente apagada, mas você irá lembrar-se de mim, acredito, sem ódio ou prevenção, tantas foram as alegrias que nos proporcionamos em vida. Devo-lhe ainda esta assistência, para conduzi-lo com tranquilidade para a colónia que o receberá como filho de Deus, bem-vindo por ter sido sempre honesto...

- Pare por aí, por favor! De honestidade e de virtudes não estou com vontade de falar, pois quer parecer-me que estou em débito para com aquele cujo nome não se deve dizer em vão.

- Pois saiba que, nestes últimos tempos, você póde interagir com sua consciência profunda, terminando por compreender que precisa superar as crises de identidade cuja existência o manteve arredio e distante para a realidade de sua nova contextura orgànica.

As palavras não repercutiram em meu cérebro e pude lamentar muito o fato de não me haver dado aos estudos. Mas seria culpa minha não ter capacidade suficiente para buscar os cursos mais adiantados?

Perguntei naquela hora mas só respondo neste instante:

- Terei sempre de construir trilhas sem trilhos, para poder assegurar-me de que estarei adquirindo asas para galgar as alturas da sabedoria.

Com perdão da ousadia, ainda me restou fólego para demonstrar que a gente consegue aqui adiantar-se nos conhecimentos, evoluindo naturalmente em todos os setores da composição psíquica do ser. Hoje me sinto muito mais cidadão das galáxias do que simples imigrante europeu.

Que seja esta uma mensagem de esperança para quantos carregam consigo os pecados herdados das civilizações que se julgaram melhor que as outras, mas que descarrilaram na ànsia de transformar em bens definitivos os meros ganhos materiais de um momento efêmero de superioridade.

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