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Contos-->Miniatura de mulher -- 21/12/2002 - 17:12 (Danna D.) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Cizinha, aos dois anos, era uma bonequinha de carne. Roliça, de pernas grossas e bracinhos torneados, com as dobrinhas de pele macia perfumadas, mais parecia uma miniatura de mulher. O cabelo castanho claro encacheado lhe cobria o pescoço e seus olhos, da mesma tonalidade, eram grandes, vivos e brilhantes. Vaidosa ao extremo beijava sua própria imagem refletida no grande espelho redondo, encravado na penteadeira de mogno, do quarto de sua mãe. Inúmeras vezes D. Camila a surpreendeu assim, de pé, encarapitada no móvel baixo, a se namorar.

Interessante como as crianças desde a mais tenra idade já mostram a que vieram. Cizinha adorava ser fotografada, fazia poses, ajeitava o cabelo e pedia à mãe para diariamente trocar de penteado. Adorava vestidos de organdi e os possuía em várias cores, embora preferisse o azul claro que lembrava a cor do céu. Tinha o maior orgulho do seu cabelo, que D. Camila lavava com shampoo de camomila para que permanecesse claro. Essa vaidade lhe custava muitas lágrimas pois o líquido freqüentemente escorria para seus olhos, irritando-os. Nesses momentos, a mamãe procurava distraí-la lembrando que seu choro espantaria o grilo que habitava o aquecedor do banheiro. Verdade, não se sabe como, mas por inúmeras vezes durante o banho se ouvia nitidamente o bichinho cantar. Depois cessou. Teria morrido queimado?

No carnaval, D.Camila a fantasiou de bailarina russa e ela, pequena e graciosa, saracoteava nos braços do pai com seu kit carnavalesco: confete, serpentina e lança perfume. Todos paravam para admirar a beleza e a vivacidade da criança que acompanhava a folia com seus olhos curiosos enquanto o pai, ciumento, não se desgrudava da sua preciosidade.
Cizinha adorava sua família mas nutria verdadeira paixão pelo pai. Era a primeira a abraçá-lo quando chegava do trabalho e no alto dos seus ombros lhe cheirava o rosto, o pescoço, a roupa toda. Seu Antonio ria, divertido, enquanto sua mulher lhe explicava que a filha estava, na realidade, o investigando sobre uma possível mudança do perfume habitual.
- Mas que filha ciumenta eu fui arranjar, ein benzinho? A quem será que ela puxou?
D. Camila, que era ciumentíssima, limitava-se a sorrir.

Em seu terceiro aniversário Cizinha ganhou da tia uma bolsinha de pelúcia, em forma de pato, em cujo interior havia um fino lenço de cambraia. Daquele dia em diante passou a usá-lo com freqüência, como se estivesse a se empoar. Sua mãe, curiosa, lhe perguntava:
- O que está fazendo, minha filha?
- Calor mamãe, calor! E continuava, sofisticada, a fingir que estava enxugando o rosto imitando uma adulta.
Gostava especialmente de acompanhar a mãe à costureira onde folheava as revistas estrangeiras de moda. Em sua imaginação precoce projetava a figura da sua mãe naquelas modelos e ficava sentada quietinha, sonhadora.
- Mas que gracinha a sua filha, D. Camila. Tão educada!
Nos dias ensolarados quando saía com a mãe para passear fazia questão, toda faceira, de carregar a sombrinha cor de rosa, que o pai lhe dera de presente. O detalhe, que a diferenciava das demais, era o cabo emoldurado que reproduzia as feições de uma boneca. E por falar em boneca, sabe-se lá porquê motivo, Cizinha tinha a mania de lhes arrancar o cabelo. Começava por desfazer as tranças com curiosidade, querendo vê-las com o cabelo solto e tanto fazia que as belas figuras de porcelana acabavam sempre carecas.

Aos quatro anos ganhou no Natal uma bicicleta, muito grande para ela. Ao invés de se amedrontar ficou toda orgulhosa pois gostava, obviamente, de chamar atenção. Seu Antonio fez questão, ele próprio, de lhe ensinar a se equilibrar naquele sonho de consumo infantil. Levou-a à praça, próxima de sua casa, para as pedaladas iniciais, dispensando as rodinhas acessórias. Não foi fácil. Muitos tombos, joelhos ralados e braços roxos marcaram por semanas o corpinho da menina, porém Cizinha se mantinha firme, teimosa como ela só. Era dotada de uma tenacidade de fazer inveja a qualquer adulto e acabou aprendendo, a duras penas, a andar de bicicleta. Dali para frente se tornou comum vê-la passando, veloz, pedalando pelas calçadas do bairro toda feliz e radiante.
Era muito invejada e não tinha amigas, pois D. Camila não achava as crianças da vizinhança recomendáveis para brincarem com sua filha. Daí que Cizinha, dotada de uma capacidade notória para devanear, resolveu o problema do seu isolamento criando em sua fértil imaginação uma família de cem irmãos, com quem conversava em voz alta e, também, em pensamentos.

Tempos depois seus pais se tornaram sócios de um clube em outro bairro, distante da sua moradia. Mais uma vez D.Camila queria evitar, ao máximo, o convívio da sua princesinha com os vizinhos indesejáveis.
Certa feita, visitando o clube à tarde, acompanhada da mãe, assistiu pela primeira vez à uma aula de balé. A professora era uma renomada bailarina russa que fugindo do comunismo viera parar no Brasil. Assessorava-a uma jovem loura que segurando as alunas pela cintura lhes dava o impulso necessário para saltarem. As meninas estavam uniformizadas à moda do Bolshoi: uma vestimenta simples e curta de cor branca, cabelos presos e sapatilhas negras. Cizinha ficou petrificada admirando-as. Nunca ouvira falar de balé em sua curta vida. D. Camila percebeu de imediato seu interesse e a incentivou:
- Vai, minha filha. Tira os sapatos e entra na fila para pular.
- Mas mamãe eu tô assim, murmurou a menina apontando para seu vestidinho amarelo.
- Não faz mal, filha. Nós somos sócias do clube, pode ir.
Frente a tal argumento Cizinha se empertigou, descalçou rapidamente os sapatos e se alinhou junto às garotas de saiote branco. Ao longe, com seu vestido amarelo, se destacava como um raio de sol. Quando chegou sua vez, a moça loura gentilmente se aproximou para levantá-la. Sem dizer uma só palavra, mas com ares de prima ballerina, Cizinha com um único gesto dispensou a ajuda e saltando sem parar percorreu o grande salão até chegar bem próxima da professora. Esta, do alto de sua imponência eslava tomou a criança pela mão e disse em um português meio atravessado:
- Você é a primeira que dá um “jetée” sozinha. Onde está sua mãe?
D. Camila, prestimosa, já estava ao lado da filha, ouvindo o comentário invejoso das outras mães:
- Mas quem é esta menina? Por que está sem uniforme?
A professora, impressionada com seu fulgor, queria porque queria que Cizinha aprendesse a dançar. D. Camila ficou de falar com o marido e mais tarde, lhe contou entusiasmada:
- Você precisava ver, Antonio. Todo mundo emudeceu. Só a música tocando e nossa filha saltando cada vez mais alto, sem tropeçar.
Ficou acertado que Cizinha aprenderia balé. A menina toda orgulhosa pulava, incansável, pela casa inteira e a mãe a seguia, preocupada:
- Pára, Cizinha. Você vai acabar se machucando.

No ano seguinte, D. Camila matriculou a filha de cinco anos em um conceituado colégio de freiras próximo à sua casa. A primeira providência, antes do início das aulas, foi cortar-lhe os belos cachos louros que à essa altura chegavam aos ombros. A explicação, prática, é que na escola ela poderia contaminar-se com piolho e o tratamento preconizado à época, com querosene, lhe danificaria a cabeleira. Este fato entristeceu demais a criança, que aos seus próprios olhos deixara de ser uma boneca para ficar exatamente igual às outras meninas. Sentia tanto a falta dos seus cabelos que quando estava em casa tomava emprestado um lenço comprido da mãe e o amarrava à cabeça. Só assim se sentia bem. Por mais que D. Camila lhe explicasse que aquele fora um ato saudável e que ela continuava tão bonita quanto antes, a pequena não aceitava. Sentia-se no íntimo mutilada.

Cizinha odiou o colégio, detestou as companheiras e tomou verdadeiro horror pelas freiras, cujo hábito desprendia um odor fétido e morno. Nas aulas de catecismo só se falava do demônio que viria à noite, sob a forma de um cordeiro, levar as crianças para o inferno. Apavorada, Cizinha não dormia mais. Temia que o diabo disfarçado a surpreendesse em pleno sono. Passou a pedir para não ir à escola. Chorava. Implorava. Seus pais, abalados com essa reação inusitada, não compreendiam o que estava acontecendo. Indagavam o porquê do súbito pavor contra o colégio mas a menina se calava. Temia que ao citar o diabólico cordeiro fosse levada diretamente para o inferno. Ficou doente. Teve que deixar o balé que tanto amava. Tornou-se nostálgica. Sensível demais, não entendia as comédias pastelão às quais seus pais levavam-na tentando alegrá-la. Chorava ao invés de rir.
Só se sentia feliz dançando ao som do Danúbio Azul e saltando cada vez mais alto, em elaborados “jetées e grand jetées”.

Começou a adoecer de propósito, só para ficar em casa. Os pais notaram e tentaram obrigá-la a voltar ao colégio. Tudo em vão. A criança se tornou nervosa e adquiriu um tique nervoso que fazia com que piscasse os olhos sem parar. Vários médicos foram consultados. Nenhum conseguiu alcançar a psique da menina, que a essa altura estava doente de fato. Cizinha tomou especial pavor contra um deles, que tentou pincelar à força suas amígdalas supuradas. Quase teve uma síncope.
A situação chegou a tal ponto que seu Antonio, horrorizado com a transformação da filha querida, optou por uma atitude drástica. Combinou com a mulher de vender a casa e se mudarem para um local distante, na tentativa de fazer a criança esquecer os traumas sofridos. Assim foi feito.
Nunca mais se ouviu falar de Cizinha. Aliás, qual era mesmo seu nome? Ninguém sabia. Só conheciam o apelido e se recordavam, com freqüência, da sua pequena figura alegremente faceira e do seu jeitinho de boneca.

Uma miniatura de mulher - isso é o que ela era.


06/10/02

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