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Ensaios-->A representação da realidade em Dostoièvski - parte 1 -- 02/05/2009 - 19:09 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A representação da realidade em Dostoièvski: as relações ético-ideológicas de fins do século XIX, mimetizadas no homem do subsolo, e sua representação caótica intrínseca - Parte 1

O narrador-personagem de Memórias do Subsolo, anônimo, mora em um modesto apartamento em Petersburgo. Traços desta personagem levam-nos a conceber a mente de fins do século XIX, pois nela se concentra a ideologia – transmitida pelo discurso, muitas vezes, irônico e dissonante – que provoca a revolta na consciência do homem do subsolo, pois este não pactua com as verdades racionais que se impõem ao pensamento por si mesmas. Oprimido pelos dois e dois são quatro, este homem de pensamento vai, invariavelmente, de encontro ao muro que, para eles (homens de ação), não é causa de desvio (...) e que, por conseguinte, nada fazemos; não é um pretexto para arrepiar carreira, pretexto em que nós outros costumamos não acreditar, mas que recebemos sempre com grande alegria. Esta criatura subterrânea digladia-se freneticamente em idéias e divagações; seu pensamento complexo chega ao leitor como uma necessária confissão, uma vez que a cumplicidade inerente ao pacto narrativo exigida por este texto é altíssima.
Uma das 'teses' discursadas pelo narrador é sobre o egoísmo racional, ou ético, uma espécie de negação de uma tese ética em que o homem deve perseguir os próprios interesses e objetivos, muitas vezes, privando-se da felicidade pessoal, em busca do bem comum, sem considerar, por exemplo, sentimentos como bondade, compaixão e altruísmo.
Aponta-se, como percebemos, para uma distorção dO Príncipe maquiavélico e para um refluxo à visão romantizada e utópica sobre a mútua colaboração em prol do bem comum, levando-se em consideração a doutrina do unitário, a capitalização do bem material como forma de realização pessoal. Aqui, a realização do indivíduo pauta-se no ideário burguês; lá, tal sentimento pode ser sacrificado pelo bem-estar dos indivíduos circundantes. A colaboração entre as partes, caso haja, será involuntária e incidental e, se não houver o benefício para o meio social, acidental.
O que sustenta esta hipótese? Como podemos afirmar que esta visão habita a mente do homem do subterrâneo? Ele mesmo faz inferência a Tchernichèvski, autor de Que fazer? (1863), um dos responsáveis por este modo de pensar, quando menciona o termo palácio de cristal.
Comprove:

'Então – sois vós que o dizeis ainda – surgirão novas relações econômicas, plenamente acabadas e também calculadas com precisão matemática, de modo que desaparecerá num instante toda espécie de perguntas, precisamente porque haverá para elas toda espécie de respostas. Erguer-se-á então um palácio de cristal.(...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.38)

O exemplar da Editora 34, com notas de Boris Schnaiderman, contido na bibliografia do presente trabalho, explica que no romance Que fazer? Existe a imagem de um palácio de ferro e cristal, descrito em sonho como a futura sociedade socialista. Alude, ainda, ao Palácio de Cristal -real-, construído no Hyde Park de Londres, no ano de 1851- mais extensamente descrito em outro livro de Dostoievski, Notas de inverno sobre impressões de verão, como a inspiração para o Palácio literário.
O racional impera para o egoísta ético, da mesma forma que para o naturalista. Depois de escolhidas as metas, os objetivos finais já são preestabelecidos (conhecidos), pois o desencadear das causas e conseqüências (efeitos) é matemática, a razão deve explicar a vontade sobre o verdadeiro interesse, o qual é utilitarista, busca o melhor para si e para a sociedade, simultaneamente. O bem-fazer é oriundo da coação, não da virtude do ser. Ou seja, o egoísta racional busca o bem-estar por necessidade exigida pela doutrina em que acredita, e não por sua vontade própria que, por ser livre, pode aceitar ou rejeitar os preceitos que lhe aprouver.
Por este motivo, o servido público de Petersburgo questiona esta 'liberdade'. A razão, sobre a vontade, ao invés de libertar, encarcera. Como ter vontade própria se as leis naturais são inquestionáveis? Se dois e dois são quatro?

'Realmente, eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda sensatez futura, surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombeteira, e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade? Isto ainda não seria nada, mas lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: assim é o homem. E tudo isso devido a mais fútil das causas, à qual, parece, quase nem valeria a pena referir-se: tudo precisamente porque o homem, seja ele quem for, sempre e em toda parte gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo lhe ordenam a razão e o interesse; pode-se desejar ir contra a própria vantagem e, às vezes, decididamente se deve (isto já é uma idéia minha). Uma vontade que seja nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dois mais absurdos, nossa própria imaginação, mesmo quando excitada até a loucura – tudo isto constitui aquela vantagem das vantagens que deixei de citar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de um vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade...' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p. 39)

'De fato, se a vontade se combinar um dia completamente com a razão, passaremos a raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos, por exemplo, conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste modo, ir conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós próprios...(...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.40)

O narrador de Memórias polemiza com o autor de Que fazer, pois o primeiro não acredita piamente na teoria corrente divulgada pelo segundo, em fins do XIX na Rússia, a qual prega o mudar o querer como dependente do esclarecer a vontade, por meio da educação e instrução, a respeito dos verdadeiros interesses, o bem-comum.

'Mas tudo isso são sonhos dourados. Oh, dizei-me, quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem comete ignomínias unicamente por desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente deixasse de cometer essas ignomínias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade, ele passaria a praticar o bem? Oh, criancinha de peito! Oh, inocente e pura criatura! Mas, em primeiro lugar, quando foi que aconteceu ao homem, em todos estes milênios, agir unicamente em prol de sua própria vantagem? E que fazer então dos milhões de fatos que testemunham terem os homens, com conhecimento de causa, isto é, compreendendo plenamente as suas reais vantagens, relegado estas a um plano secundário e se atirado a um outro caminho, em busca do risco, ao acaso, sem serem obrigados a isto por nada e por ninguém, mas como que não desejando justamente o caminho indicado, e aberto a custo um outro, com teimosia, a seu bel-prazer, procurando quase nas trevas esse caminho árduo, absurdo? Quer dizer, realmente, que essa teimosia e a ação a seu bel-prazer lhes eram mais agradáveis que qualquer vantagem... A vantagem! Mas o que é a vantagem? (...) '(DOSTOIÈVSKI, 2004, p. 38-39)

Por volta da última década do século XIX, a consciência intelectual era regida pela razão determinista. O Homem acreditava nas 'leis da natureza', matemáticas, exatas, constantes, predestinadas, pautadas em séries causais que se intercalam, metodicamente, de forma sucessiva. O homem do subsolo reluta e se questiona a respeito destas leis, muros em que a vontade humana não consegue transpor. Pela incapacidade de ser contrário à lógica determinista que as molda, este ser subterrâneo entra em conflito consigo próprio, seus valores intrínsecos e com a consciência social daquela época.
Se, em um pensamento regido por causas e conseqüências, para cada conseqüência existe uma causa, o inverso também é plausível. A regência é dada pela cadeia, não pela certeza no começo da ação. Por este motivo, a metáfora do bofetão. A conseqüência (bofetão) tem como causa a ofensa prévia, por exemplo, pois nesta visão – atual, inclusive – para cada ação existe uma relação serial anterior de eventos que a justifique, portanto, torna-se possível antever, pela lógica, o efeito de uma causa e, desta forma, o bofetão seria uma conseqüência também da colaboração, por parte do agredido, em aceitá-lo e o provocar, uma vez que foi uma ação do agredido que provocou a reação do agressor – ato de esbofetear. Em outras palavras: a dupla culpa – um por agredir, outro por desencadear e permitir a agressão – e a culpa sem culpa, porque se não houvesse, por parte do agredido, uma coação que possibilitasse aquela atitude violenta, o ato conseqüente não seria concretizado.

'Tenho, por exemplo, um terrível amor-próprio. Sou desconfiado e me ofendo com facilidade, como um corcunda ou um anão, mas, realmente, tive momentos tais que, se me acontecesse receber um bofetão, talvez até me alegrasse com o fato. Falo a sério: com certeza, eu saberia encontrar também nisso uma espécie de prazer – naturalmente o prazer do desespero, mas é justamente no desespero que ocorrem os prazeres mais ardentes, sobretudo quando já se tem uma consciência muito forte do inevitável da própria condição. E, no caso do bofetão... sim, fica-se comprimido pela consciência do mingau a que nos reduziram. E o principal, por mais que se rumine o caso, está em que sou o primeiro culpado de tudo e, o que é mais ofensivo, culpado sem culpa e, por assim dizer, segundo as leis da natureza. Pois, em primeiro lugar, tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta. (Considerei-me, continuamente, mais inteligente que todos à minha volta, e às vezes – acreditam? – tinha até vergonha disso. Pelo menos, a vida toda olhei de certo modo para o lado e nunca pude fitar as pessoas nos olhos.) Finalmente, sou culpado porque, mesmo que houvesse em mim generosidade, eu teria com isso apenas mais sofrimento devido à consciência de toda a sua inutilidade. Certamente eu não saberia fazer nada com a minha generosidade: nem perdoar, pois o ofensor talvez me tivesse batido segundo as leis da natureza, e não se pode perdoar as leis da natureza nem esquecer, pois, ainda que se trate das leis da natureza, sempre é ofensivo. Finalmente, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e, ao contrário, quisesse vingar-me do ofensor, de nada poderia vingar-me nem de ninguém, pois, certamente, não ousaria fazer algo, mesmo que pudesse. (...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.20-21)

Isto significa que se perde a noção exata para explicar o mecanismo da ação. A vontade, encarcerada nas jaulas da razão, bate, inevitavelmente, no muro. Uma vez que não é possível descobrir o culpado pela ofensa, por não determinar a causa primeira, resta apenas a dedução racional da dupla culpa o que, em teoria, seria o equivalente a nenhuma culpa – a vontade de esbofetear ou revidar ao bofetão não se aplica ao pensamento de causa e conseqüência, é mero fato: '(...) O meu rancor, em virtude mais uma vez dessas execráveis leis da consciência, está sujeito à decomposição química. Quando se repara, o objeto volatiza-se, as razões se evaporam, não se encontra o culpado, a ofensa não é mais ofensa, mas fatum, algo semelhante à dor de dentes, da qual ninguém é culpado, e, por conseguinte, resta mais uma vez a mesma saída, isto é, bater no muro, do modo mais doloroso. Assim, desiste-se, por não se ter encontrado a causa primeira. (...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.30)

A força resultante destas leis seria, para o homem do subsolo, a consciência hipertrofiada dos indivíduos. Observe este pensamento: '(...) E o principal, o fim derradeiro, está em que tudo isto ocorre segundo leis normais e básicas da consciência hipertrofiada, de acordo com a inércia, decorrência direta dessas leis, e, por conseguinte, não é o caso de se transformar; simplesmente não á nada a fazer. Resulta o seguinte, por exemplo, da consciência hipertrofiada: tu tens razão em ser um canalha, como se fosse consolo para um canalha perceber que é realmente um canalha.(...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.20)
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