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Artigos-->O VIGÁRIO DA CAMPANHA: PADRE REINALDO -- 14/02/2013 - 19:02 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


 



O VIGÁRIO DA CAMPANHA: PADRE REINALDO



 



L. C. Vinholes



 



Todos nós temos lembranças da infância, umas mais nítidas do que outras, com detalhes que ficaram gravados em nossas memórias, com significados que nem sempre entendemos, mas que, de qualquer maneira, voltam ao presente em momentos que às vezes se justificam, mas que em outros não são fáceis de explicar.



 



Providenciando o destino a dar em mais um lote de livros da minha biblioteca encontrei um pequeno volume de 90 páginas, de autoria do padre Carlos Johannes, intitulado O Vigário da Campanha - Padre Reinando Wiest, publicado em 1994, que, recém-saído do prelo, me foi presenteado, em dezembro daquele ano, por uma das primas mais queridas, a advogada Elisa Lessa da Rosa, com uma dedicatória com cara de convite que, ao mesmo tempo, parecia criar um compromisso que, só agora, decidi atender: “Para o Caio, um somatório de dados sobre o nosso Pe. Reinaldo, na expectativa de que te ajude a escrever algo sobre ele”. Há muitos anos, Elisa está envolvida no movimento de uns poucos que conheceram o referido sacerdote da Companhia de Jesus buscando vencer as etapas que, se vitoriosas, culminam com a almejada beatificação rumo à sua santificação.



 



Na minha infância foram inúmeras as férias de fim de ano que passei na Fazenda Boa Esperança, dos meus tios Orestina e Germano Vieira da Rosa, situada a poucos quilômetros de Piratini. Elisa, a caçula dos meus nove primos daquele ramo da família de minha mãe, era a parceira da qual me sentia mais próximo, embora fosse querido por todos. E isto ainda é assim nos dias de hoje. Era exatamente naqueles meses de dezembro a fevereiro que tive os primeiros contatos com padre Reinaldo de quem me tornei amigo, atraído pela sua figura de bonachão, com voz de barítono aveludada e mansa, com sua estatura forte escondida na batina surrada, de tez queimada pelo sol, embora permanentemente protegida por um chapéu preto de aba curta  e sempre suando e passando no rosto um grande lenço branco que guardava no bolso da batina que fiava estufado.



 



Recentemente reli a obra do padre Carlos a quem conheci quando ele trabalhava na Catedral de Pelotas, padre que parecia ter poucos amigos pelo sua sisudez e pouca conversa bem diferente do padre Firmino Dalcin, da mesma época, amável, de sorriso farto e atencioso com todos. Muitas das histórias e estórias que lembro e que poderia contar a respeito da vida e do comportamento do sacerdote Reinaldo estão minuciosamente registradas no texto do padre Carlos e, na transcrição de dois parágrafos de artigo da lavra de Barbosa Lessa[i]. Padre Carlos faz comentários sobre procedimentos litúrgicos e festas religiosas na gestão do padre Reinaldo; registra dados biográficos do seu confrade, suas origens, sua formação religiosa; salienta as atitudes caridosas reconhecidas por todos, seu zelo pelos paroquianos, menciona nomes de pessoas com as quais se relacionou e de lugarejos distantes da sede paroquial de Piratini por onde solitariamente viajava; faz referência a três eventos que são citados como milagres devidos à interseção do religioso. Dos nomes citados tenho alguns presentes na memória: Juliné da Costa Siqueira, advogado, promotor público e poeta que, em meados dos anos de 1940, tinha casa em Pelotas perto da de meus pais e que, nas idas e vindas ao centro, passava pela nossa calçada; Dorvalino, primeiro farmacêutico de Piratini, primo da tia Orestina e de minha mãe, dono da única farmácia da cidade; o “prefeito Lessa”, médico e meu tio[ii]; Rene[iii], agricultor, e Osvaldo[iv], advogado, irmãos de Elisa; e, finalmente Clayr[v], advogado,  grande figura humana o “mais antigo jornalista em atividade no Rio Grande do Sul”, carismático e empreendedor que dedicou 68 anos de sua vida ao jornal Diário Popular de Pelotas.



 



Na época das minhas lembranças eu tinha uns oito anos de idade, mas algumas passagens da convivência com a figura de padre Reinaldo parece que ocorreram há dias.



 



Padre Reinaldo tinha dedos manchados pela nicotina e cheiro forte do fumo que trazia no bolso e preparava somente durante seus momentos desocupados durante visitas aos paroquianos. Lembro-me dele sentado embaixo dos cinamomos da frente da casa da Fazenda da Boa Esperança com um pedaço de fumo em rama, pedindo emprestada a faca que meu tio Germano trazia na cintura, pois seu canivete estava sem fio. Meu pai fumava cigarro feito, principalmente o da marca Colomy, pois Hollywood e Continental eram raros e mais caros, e, até aquela data, eu não conhecia cigarro enrolado na palha de milho. Curioso, saí daquele encontro amassando folhinhas de cinamomo entre as palmas das mãos, imitando os gestos de padre Reinaldo preparando o fumo do seu pito.



 



Certa vez, perto da porteira da saída do piquete[vi] para a estrada que levava à cidade, estava apanhando jabuticabas no único pé que conheci naquela época, quando ao longe vi alguém se aproximando cabrestiando[vii] um cavalo. Fui até a porteira, subi no seu madeiramento para ter uma vista mais privilegiada, e logo me dei conta de quem lá vinha: era o padre Reinaldo. Chegando foi logo me saudando com um “como vai guri?”. Respondi como era costume e ofereci as jabuticabas maduras que, gentilmente, não foram aceitas. Abri a porteira. Apertamos as mãos um do outro. Logo perguntei: porque o senhor não estava montado no seu cavalo? Padre Reinaldo respondeu: “o Sereno também está cansado, pois estou vindo do Cancelão[viii] e o sol esta muito forte”. Confesso que naquele dia foi a primeira e última vez que vi alguém cabrestiar seu cavalo por achar que ele estava cansado. Com gesto generoso, entregou-me as rédeas do seu Sereno que, acompanhando o vigário, conduzi até o palanque na entrada do terreiro da casa. Hoje estou seguro de que padre Reinaldo, que tinha em São Francisco de Assis um dos seus modelos e guia espiritual, foi, certamente, precursor da figura moderna dos protetores dos animais e inspirador remoto das instituições que, hodiernamente, tem como objetivo proteger à vida animal e punir os que lhe maltratam.



 



O livro do padre Carlos menciona também diálogo entre o padre e Venâncio o “dono de cinema, inteligente, mas boêmio”, “uma boa pessoa, só que é um espírito errante, em mau caminho”. Venâncio era um homem prestativo, um faz-tudo que consertava rádios, vitrolas, automóveis e ventiladores de teto, entre outras coisas. À pergunta de Venâncio dirigido ao padre “mas que vou fazer?” teve resposta imediata “reze e seja um bom cristão.” Lembro-me de que eram comentadas duas passagens positivas no relacionamento do padre com Venâncio. Esse tinha uma modesta rádio comunitária com autofalante na janela da casa assobradada situada na esquina da quadra à direita da igreja. Atendendo ao pedido do vigário Venâncio parava as transmissões no horário da Missa Solene das 10 horas de domingo e, solícito, passou a transmitir, no horário das 18 horas, uma Ave Maria cantada por conhecidas vozes solistas, prejudicadas pelo chiar dos velhos discos de cera. Em certa ocasião, quando a missa ia começar um pouco mais cedo e a rádio ainda transmitia seu programa costumeiro, de música e anúncios, presenciei padre Reinaldo chegar à porta lateral da igreja e fazer sinal para Venâncio, sendo prontamente atendido. Prova de mais um coração conquistado.



 



Tenho ainda outras lembranças, mas a maior parte delas está presente no livro do padre Carlos. Aqui, meu desejo é, simplesmente, ratificar algumas delas à giza de apoio à desejada beatificação do Vigário da Campanha: conheci a famosa e enorme gaveta da cômoda da sacristia da igreja Nossa Senhora da Conceição que, em muitas ocasiões, serviu de cama quando a sua fora doada ou cedida a um enfermo sem recursos; inúmeras vezes vi a bem cuidada Horta da Vitória como eram chamados os canteiros de verdura e batatas onde antes era o jardim ao redor da igreja, colhidas para distribuir aos necessitados ou preparar sopas aos indigentes; curioso, entrei na sala da frente da casa paroquial onde só vi camas modestas para doentes, ambiente que encontrei modificado para melhor em recente passagem por Piratini.



 



O livro do padre Carlos serviu para ajudar-me a escrever algo sobre o padre que Piratini nunca esqueceu e logo vai para as estantes da Biblioteca Pública de Pelotas para que outros conheçam um pouco sobre aquele que ficou conhecido como o Vigário da Campanha. Os que conheceram padre Reinaldo e que batalhavam pelo sua beatificação já são muito poucos e a campanha parece ter perdido o vigor inicial.









[i] Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), escritor e regionalista que com Paixão Cortes fundou o movimento dos Centros de Tradição Gaúcha (CTGs), hoje espalhados pelo Brasil e pelo mundo.





[ii] Luiz de Oliveira Lessa (1897-1972)





[iii] Renê Lessa da Rosa (1922-1982)





[iv] Oswaldo Lessa da Rosa (1925-





[v] Clayr Lobo Rochefort (1929-2012)





[vi] Aurélio: pequeno potreiro, próximo das propriedades onde se recolhem os animais para serviços diários.





[vii] Conduzir o cavalo pelo cabresto, espécie de buçal, sem embocadura, preso à cabeça do animal.





[viii] Vilarejo na RS 702 que liga Piratini à Canguçu, RS.




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