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Cronicas-->16. A ARMADURA -- 25/09/2002 - 06:34 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Estabelecido na vida, gozava de riqueza considerável. Nada havia de que me privasse. Entretanto, ouvia as palavras prudentes e sábias dos sacerdotes e lhes dava tudo quanto pediam.

Aí me veio à cabeça que estava vestindo, peça a peça, rica armadura que iria impedir-me de ser acutilado pelos inimigos, ainda que provindos das masmorras infernais.

De fato, quando arribei deste lado, logo me senti inteiramente protegido pela carapaça de ferro, com elmo, guantes e tudo o mais a que tinha direito, inclusive com grande e pesado escudo e longa e pontiaguda lança.

Totalmente vestido, comecei a caminhar em meio à escuridão, sem medo, crente de que em breve iria encontrar a saída da caverna.

Entrementes, repassei todos os acontecimentos da vida, considerando-me pessoa de bem, já que a todos os fàmulos tratei com magnanimidade, dando-lhes o conforto de boas dependências em minha mansão. Revi as propriedades e em todas encontrei pessoas felizes, pessoas que não oravam por mim, segundo concluí, porque tinham a certeza de que estaria já na companhia de Jesus.

Mas ninguém me pedia nada, nem a mínima intervenção para a cura de alguma doença de seus filhinhos ou ajuda no sentido de minorar-lhes os sofrimentos morais de algum distúrbio psíquico ou social.

Houve tremendo embate, certa vez, quando me vi atacado por ferozes criaturas, gente de muito má catadura, cujas fisionomias mal distingui iluminadas pobremente por alguns archotes que traziam consigo. Desencadearam o ataque em silêncio. Eu é que lhes rogava por uma palavra que me revelasse a razão daquele inesperado ódio contra alguém que nenhum mal lhes causara.

O pior de tudo é que não me animei a revidar, muito embora brandisse a lança como que a me defender das investidas furiosas. Não sei quanto durou a batalha, mas, quando se retiraram, notei que estava exausto, incapaz de avançar um passo, arfante e alagado de suor dentro daquela tremenda couraça.

Agradeci a Deus pela proteção e pelo facho largado aceso ali no chão. Com todo o cuidado, procurei mantê-lo no alto, fixando-o na parede para receber alguma luz. Foi assim que pude avaliar os estragos na minha armadura. Não havia um mínimo risco ou amassado. Aliás, reluzia nas trevas como aço polido.

Verificada a situação da defesa, pus-me a considerar o porquê do ataque. Gostaria de reproduzir todos os pensamentos desencontrados que me ocorreram, mas não teria mais fim esta comunicação. Basta dizer que, pela primeira vez, suspeitei de que foram apenas protocolares as contribuições caritativas, já que a riqueza acumulada no momento do trespasse excedia em muito a que obtivera como herança.

Enquanto refletia, sem perceber, desatarraxei os calçados, podendo avaliar o quanto me causavam sofrimento, pois estavam fortemente apertados e meus pés completamente inchados. Lembrei-me das frequentes caminhadas que realizava pela fazenda, ainda em plena juventude, e desejei pisar novamente sobre a alfombra sedosa da grama aparada. Mas, naquele lugar, havia um piso duro e poeirento, como se do chão subisse forte magnetismo a atrair o que me sobrava da armadura de ferro.

Tentei retirar as luvas, porém, não consegui. Estavam firmemente ajustadas aos dedos e presas à munheca. Também não me atrevia a soltar nem o escudo nem a arma. De que tinha medo? Recordei-me dos cães soltos no pátio das fábricas, mastins treinados para combater os invasores, guardiães fiéis que, certa ocasião, despedaçaram uma criança que pulara o muro atrás da bola.

Ainda uma vez senti que me escorriam lágrimas pela face, não pela criança, que julgava ser um dos anjinhos que enfeitavam o paraíso, mas pelos pais, que se desesperaram e insuflaram o poder judiciário contra mim e meus advogados. Paguei-lhes o que me determinaram, muito mais do que pretendiam, mas precisei rogar ao Senhor que lhes perdoasse a maldade do coração, caso contrário iriam cair diretamente nas chamas infernais.

Quando percebi, estava sem as luvas, o escudo e a lança, esfregando as mãos para provocar-lhes saudável fluxo sanguíneo.

Na parede, o archote criara novo brilho, de forma que pude verificar que a abertura de saída estava próxima, tanto que havia um facho de luz naquela direção.

Elevei o pensamento a Deus em agradecimento pelo alívio do momento e prometi-lhe que iria tentar convencer as forças malignas a não se interessarem pelo casal que ainda vivia. Achei que era inútil manter o elmo, mas não logrei retirá-lo. Somente depois de orar pela criança morta, solicitando-lhe intervenção junto ao Pai, é que descobri a cabeça, deixando cair a pesada proteção.

Não havia notado ainda que a armadura se desfazia aos poucos, sempre como resultado de algum pensamento positivo. Contudo, achei que precisava proteger o peito, porque fora a região que me causou a suprema dor do desenlace. Achava que o coração estava deteriorado. Não encontrava em mim suficiente amor por meus pais, por meus filhos e demais parentela. Da querida esposa nunca ouvi queixume algum. Teria ficado chorando quando parti? Não sabia. Tentei localizá-la pelo pensamento e recebi a informação, que atribuí ao meu poder de imaginação, de que ela estava casada novamente. Aos setenta e dois anos?

Fiz a íntima pergunta mas tive medo de responder a ela. Ao contrário, revi as minhas próprias aventuras de cavalheiro em meio às raparigas da periferia social e me consolei. Em suma, para abreviar, após desejar telepaticamente a ela que fosse feliz no restante de seus dias, dei com as últimas peças ali no chão.

Pensam que tentei sair correndo, deixando tudo para trás? De maneira alguma. A primeira idéia que me veio pus em prática, qual seja, a de reunir o conjunto do pesado vestuário, pensando que poderia servir para mais alguém na obscura cavidade.

Não sei se desmaiei com o esforço, se fui arrebatado por mãos amigas, a verdade é que despertei envolto em alvos lençóis, entre enfermeiros e médicos. Ao rodear o olhar pela sala, dei com a armadura reluzente guardada em armário de vidro.

Meu pai logo me explicou:

- Trata-se da mesma armadura que usei ao chegar. Espero que não sirva para ninguém mais da família, muito embora seu filho mais velho esteja correndo sérios riscos de necessitar dela.

Meio tonto, argumentei:

- Pelo menos irá servir para protegê-lo dos ataques...

- Não, Tomás. A função da armadura é lembrar-nos de que estamos presos em nós mesmos, pelos laços dos vícios, da imprudência, do egoísmo, do orgulho e de uma caterva imensa de outros defeitos morais. Você irá ter uma idéia mais precisa disto que estou dizendo quando refletir a respeito da sorte que aqueles pais construíram através da lição que passaram aos outros.

- Eles se revoltaram contra a justiça de Deus, quando investiram contra mim.

- Eles lhe deram a oportunidade de resgatar terrível débito. Mas você ainda não está em condições de compreender. Espere pelo dia em que terá de relatar a sua experiência no Umbral.

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