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Contos-->A FILA -- 27/07/2000 - 10:32 (Leonardo Almeida Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Há horas ele está naquela fila, rostos estranhos e tão cansados quanto o dele mastigam os segundos calmamente. Ainda há pouco uma mulher sentiu-se mal e desabou sua gordura e seus planos - que certamente eram muito semelhantes ao dele - sobre a calçada molhada pela chuva que os castigara pela madrugada. Sente no estômago a ardência familiar de uma úlcera em formação e sabe que não é apenas a úlcera ou gastrite o que o incomoda, há fome, simples e torturante necessidade de colocar algo guela a baixo. A última coisa que comera, na manhã do dia anterior, foi um pedaço de pão e uma caneca cheia de café ralo e requentado. O leite deixara para a mulher grávida que o acompanhava nessa labuta infernal. Ela precisava mais do leite que ele, marmanjo feito, cara espetada de barba malfeita e olhar calejado. Além disso havia José, Maria e João, era pouco leite para tanta boca e tanta fome, e ele ali, calculando as horas de espera pela dor nos pés, doía menos do que se acostumara a esperar e um pouco mais do que quando a mulher gorda estrebuchou na calçada, e nem saíra sol nem sinal de movimentação na guarita. De onde estava podia ver alguns poucos carros madrugando, o portão se abrindo, os guardinhas uniformizados tomando café e comendo pão. Ai fome desgraçada. Muito tempo nessa rotina de filas e filas e filas, e gente desmaiando, empurrando-se, olhando-se nos olhos e entendendo-se, e por entenderem-se certamente rezando para que não obtivessem êxito pois significaria com certeza o seu fracasso, e consequentemente mais filas e filas e madrugadas frias e cheias de esperanças. Não tinha condições de sentir ódio naquele momento, apenas apreensão e expectativa. Se pudesse odiar não saberia para onde focalizar sua ira, não faria como Severino que voltou de mala e cuia e cinco filhos e mulher prenha para a fome familiar da Paraíba, isso não faria, de jeito algum. Aqui era menos pior, pensava. Não faria como Zeca, cunhado de sua mulher, que preferiu matar-se de morte bem doída como se tivesse culpa pela miséria toda, isso não, ele não era homem de fugir da briga e por isso estava ali, havia horas, o dedão do pé esquerdo latejando, em pé, observando seus companheiros de fila: um rapaz novo, magro, bigode ralo e olhar espesso, duas moças gordas conversando alegremente, onde arranjavam alegria naquela hora? Se perguntava e trocava o pé de apoio. Não dava mais para enxergar o fim da fila, como uma jararaca enorme ela serpenteava na escuridão da madrugada e lá nos quintos virava o muro e sumia, gente a dar com pau, todos eles eu, pensava ele, todos nós aqui, na esperança que abrissem o portão. Tentou dar uma espiadela no jornal que o moço de bigode ralo tentava ler, viu apenas a manchete que dizia que o governo estudava um aumento do salário mínimo e que os empresários estavam muito preocupados com a situação social do país. O presidente visitava os Estados Unidos e falava inglês, e ele se orgulhou de seu país, de seu presidente e dos grandes homens do Brasil, dos empresários que iriam dar um jeito nessa situação. Ele sempre soube que um dia tudo ia mudar e começava mesmo a acreditar que tudo mudaria agora, para melhor. A mulher pensava diferente, chegaram mesmo a discutir várias vezes pois ela não acreditava nessa tal democracia. Dizia que isso era coisa do cão, conversa pra boi dormir, papo para enganar otário, tu é um grande trouxa, foi o que ela disse um dia, antes de levar um tabefe que a pôs no devido lugar. Pois se foi justamente a democracia que trouxe esse grande homem que agora está na Casa Branca falando inglês tão bonito, ora, ora, ele se justificava falando baixinho. O Brasil tinha homens de bem tomando conta de tudo, eram homens estudados, sábios, preocupados com todos aqueles que, como ele, estavam em filas e mais filas por todo o Brasilzão maravilhoso. Ouvira falar que o presidente era um homem que tinha uma história de amor ao povo brasileiro, que estudara muito esse povo, que escrevera livros, e que por isso mesmo tinha esse povo como seu objetivo de vida. É o homem certo no lugar certo, pensou ele, e tudo graças à democracia. Já pensou se aquele outro homem ganhasse a eleição? Questionou-se com firmeza, convencendo-se, Aquele outro era como ele, não tinha escola, não tinha currículo, não falava inglês. Deus me livre se aquele outro ganhasse a eleição. Que queria um homem como ele no governo do Brasil? Ele não entendia nada de Brasil, de coisas grandes, importantes. Ele entendia de fila, ah sim, com certeza aquele outro entendia de fila, de fome, de marmita, de barriga vazia e carnê de prestação, de desemprego, de vida dura. Era um como ele, jactava-se arrogante, trocando o pé de apoio pela milésima vez, e por isso não podia estar tomando conta desse país enorme. Viva a democracia. Ele respirou fundo, estava convencido de que tudo estaria melhor em breve. Ouviu quando os guardinhas pediram atenção e explicaram que dentro de alguns minutos começariam a distribuir as senhas e as fichas para preenchimento de cadastro. Sua barriga roncou de novo, mas agora era um ronco diferente, de orgulho e esperança, nosso presidente falava inglês, era homem ilustrado, inteligente e estava nos Estados Unidos, e ele, um joão-ninguém, mesmo com fome e dor no estômago, iria até o fim daquela jornada e, com fé em Deus, ainda conseguiria um emprego.



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