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Cronicas-->19. ALGODÃO-DOCE -- 28/09/2002 - 07:43 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Vivi até a idade de quinze anos numa roça de algodão. Era esperto para realizar todos os serviços da terra, mas a cabeça tinha dura como as rochas ao sopé das montanhas. Claro está que minha mente bucólica oferecia certas vantagens para a aprendizagem prática de quem está sempre disposto a cooperar com o plantio, já que a renda propiciava a todos melhores condições de vida.

Certa feita, não tinha mais do que oito anos, ouvi o filho do patrão dizer que havia comido algodão-doce ainda mais branquinho que as ramas da colheita. Aquela idéia de se poder comer algo tão áspero para a boca, como às vezes experimentei os pêlos do fruto, guardei-a presente na memória, havendo jurado para mim mesmo que haveria um dia, antes de morrer, que iria provar a mesma guloseima.

Com a decadência da plantação, minha família se deslocou para o sul do país, aventurando-se na cidade grande.

Aos quinze anos, estava meio perdido entre os prédios elevados e a gente apressada das ruas. Mas ia aonde me conduziam meus pais, eles mesmos meio perdidos, até que encontramos quem nos medisse a força de trabalho e nos propusesse emprego numa obra em construção.

Foi assim que comecei a lidar com areia, cal e cimento, misturando o reboco, conforme me instruíam. Tinha força nos braços e necessidade no estómago, de sorte que me empenhava com vontade, no auxílio ao ganho da família.

Num fim de semana, após termos ido ao culto evangélico, tomei-me de amores por uma máquina que produzia fios de açúcar finíssimos. Fiquei a observar como é que o homem apanhava aqueles tufos que se aglomeravam no palito, admirado e submisso à tecnologia desconhecida.

Para dizer a verdade, fiquei com medo de provar e me decepcionar, porque a minha fantasia havia desenvolvido outra forma para a guloseima. Em todo o caso, criei coragem e dividi com meus irmãos uma daquelas ramas, gozando a delícia que se desfazia em calda no meio da saliva.

Era uma pequena felicidade, porque me senti crescer em poder, equiparando-me ao filho do fazendeiro, pensando que aquela vantagem ele já não tinha sobre mim.

Acho que narrei o que de mais importante me sucedeu na vida. Quanto ao mais, tudo o que me aconteceu recebi com absoluta naturalidade, já que provinha dos desejos do instinto, como o casamento, a paternidade, o sentimento de defesa e de proteção da família, a obediência cega aos desígnios de Deus descritos com fluência e sensatez pelos pastores no templo.

Quando algo saía dos trilhos e me agradava, logo comparava ao doce algodão com que me distraíra; o contrário, era aquele triste dia em que tivemos de abandonar o sítio pelo imperativo da desgraça da população.

Não tinha mais do que quarenta e oito anos quando deixei a convivência terrena e me vi despojado da carne, espírito errante pela extensão do espaço etéreo. Não me sentia pesado, não me arrastava, não sofria nem acusava ninguém, consciente de que Deus iria dar-me de novo a oportunidade de provar a delícia do paraíso, da mesma forma que me deu a de saborear a gulodice. Afinal de contas, paguei o dízimo regularmente e merecia a recompensa prometida.

Essa impressão fugidia do bem com preço marcado foi que me sobrecarregou, quando achei que estava demorando muito encontrar a fabriqueta com seu dono, que figurava como alguém da estatura de um São Pedro, dono da chave e oficial maior de Jesus. Não me esquecia da espada e da orelha que rolou pelo chão, de sorte que temia não estar agindo direito, ou melhor, não estar raciocinando corretamente ao cobrar o ressarcimento dos sacrifícios de minha vida de trabalho.

Custou-me entender que as coisas não se passavam exatamente daquela maneira e que eu, de certa forma, queria impor-me sobre os desígnios de Deus, estabelecendo-lhe os limites de sua vontade suprema. Sempre que me via forçado a recriminar-me, elaborava uma saída psicológica, recordando-me dos dias de trabalho sob o jugo dos capatazes, no campo e na cidade. Cotejava a minha honestidade e fraqueza intelectual com a ganància dos que me exploraram a vida toda e dizia ser injusto estarem tais pessoas em lugares mais formosos e felizes.

Era como reagia, sem me lembrar dos cantos e das preces que repetia durante as funções religiosas. Foi por essa época que senti forte saudade da esposa e dos filhos. Também meus pais vieram habitar-me a mente, com certeza para comprovarem-me que passara a vida sob tetos cristãos de boa estirpe. Acreditei-me no inferno, já que o isolamento me pareceu o pior dos castigos para quem sempre estivera na companhia dos parentes e dos amigos.

Quando me assopraram que não precisava ser assim, acreditei piamente, porque qualquer coisa achava que seria melhor do que a condição de minha existência naquele deserto.

Tantas, porém, eram as lembranças da vida a que agora dava valor, que criei um algodoal, onde me situei e para onde transportei todas as pessoas da minha infància, não fazendo questão nenhuma de que o filho do dono se recusasse a pór mãos à obra.

Aos poucos, fui percebendo que aquelas criaturas existiam mesmo, todas elas me ajudando a manter a ilusão, todas trabalhando com denodo para satisfazerem plenamente a necessidade de afirmação de algo positivo.

Certa vez me vi sentado à beira da estrada, que tacitamente me convidava para caminhar em busca da cidade, com o engodo do algodão-doce que ali não existia.

Desta feita, logo me achei carregando sacas de cimento, pilhas de tijolos, empurrando carrinhos cheios de concreto, cantando os hinos da igreja, na esperança sensata de voltar para casa na hora certa, para encontrar minha esposa e meus filhos. Mas essas criaturas não fui capaz de criar. O que me acabou aborrecendo é que jamais chegava o sinal do término da jornada, sempre havendo trabalho e mais trabalho.

Olhei para minhas mãos, buscando os calos e as esfoladuras, mas estavam lisas, como se o serviço não as afetasse mais.

Passou por ali o homem do algodão-doce, dizendo que tinha terminado o açúcar e que iria em busca de mais. Se eu quisesse, poderia segui-lo, assim seria o primeiro a provar a gostosura. No caminho, encontramos mais meia dúzia de amigos que seguiram conosco, até que chegamos ao portal desta colónia. O mais é a história natural de quem está aprendendo que a felicidade toma variadas formas e que só existe, se existir a esperança do reencontro dos amores, a fé em que a verdade está ao alcance da inteligência e a caridade libertadora, que deve exercer-se sem condições.

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