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Cartas-->CARTAS PARA NINGUÉM-1 -- 09/11/2002 - 18:17 (ROSAPIA (veja página 2)) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CARTAS PARA NINGUÉM-1

20 de abril de 2001

Esta data, e os dias que a precedem, são memoráveis. Num país em que quase ninguém mais acredita, que a maioria julga perdido e irremediavelmente acabado, uma mulher faz renascer a esperança. Pode não ser muito próprio, mas o primeiro pensamento que me veio à mente vou registrar aqui, com todas as letras: "da merda nasce a esperança".

Estou falando do episódio da quebra de sigilo do painel de votação do Senado na sessão em que foi cassado o Senador Luiz Estevão. E estou falando da mulher que se chama Regina Célia Borges, ex-diretora do Prodasen, que, num ato de coragem, declarou que foi ela quem manipulou a máquina e quebrou o sigilo. Os homens envolvidos fizeram discursos inflamados na tentativa de defesa, tão inflamados que conseguiram deixar a população em dúvida. Pois Regina Célia, contra todos os argumentos do secular machismo vigente, optou pela verdade, argumentou que um funcionário subalterno seu, que não a delatou, ficaria com a culpa e isso ela jamais poderia admitir. E Regina Célia estava falando diante de um país inteiro! Chorou, teve também essa coragem. Não precisou muito tempo para botar todos os pingos nos is. Tudo muito simples: "Errei. Assumo. Peço desculpas." Observei um detalhe: ouvindo-a e dando-lhe forças, o marido e o filho, presentes, olhando-a com ternura e carinho. O amor, que depende muito do caráter de cada um para vingar, fazia seu papel. De toda essa sujeira, o amor fez brotar, mais uma vez, uma esperança no coração de um povo combalido e desesperançado.

Não faz muito tempo outra mulher nos impressionou pela determinação e coragem ao ir a público e lavar a roupa suja que fora armazenada em sua casa mas era roupa de toda uma nação. Nicéia Pitta denunciava as fraudes e falcatruas de seu marido, prefeito de São Paulo, do ex-prefeito e de toda uma corja eleita pelo próprio povo e comprometida consigo mesma e com sua desmedida ganância, falcatruas das quais ela mesma participara e com as quais fora no mínimo conivente, até o dia do basta. Lembro-me dos momentos em que um susto bailava em seus olhos, ela quase vacilava, engasgava, retomava. O que ela fez foi ainda mais difícil, pois não contava com a base de uma família unida, não tinha o amparo daquele que se propusera a construir, com ela, o amor. Ela era a própria imagem da mulher frágil, embora corajosa, não muito preparada para um embate daquele tamanho. Foi muito criticada, teve suas afirmações postas em dúvida (ao contrário do que ocorreu agora com Regina Célia Borges, que foi convincente e admirada), mas nada disso anulou o ato heróico.

Ambos os fatos me trouxeram à lembrança uma passagem de minha vida que jamais será esquecida, embora, hoje, adormecida. Eu trabalhava numa escola. Era orientadora e mantinha ótimo relacionamento com direção, professores e alunos. A uma altura, fui chamada à diretoria e avisada de que havia uma denúncia de que eu mantinha uma relação amorosa com um rapaz. Vejam bem: era minha vida íntima ali exposta, ninguém sabia, o que eu fazia dizia respeito apenas a mim e ao meu parceiro e se desenrolava em minha casa e em meu quarto. Ninguém nos vira juntos em qualquer circunstância nem fora testemunha de qualquer atitude, comprometedora ou não. Ao ouvir a acusação, não neguei absolutamente, apenas exigi saber de quem viera a denúncia e como fora conseguida, pois apenas um amigo distante sabia do fato através de cartas que trocávamos. E esse amigo era de inteira confiança, não podia ser o suspeito. A direção, corretamente, deu-me todas as informações pedidas: minha correspondência fora violada e me foi revelado o nome de quem o fizera.

Estávamos em plena ditadura e uma ordem "de cima" (algo vago e suspeito) mandava que as escolas vigiassem seus mestres e orientadores para que nenhum subversivo se infiltrasse em suas fileiras. Com isso, o violador, que já tinha um comprovado passado de fofoqueiro, sentiu-se no direito, como bom patriota, de violar minha correspondência. A ditadura dava mesmo uma enganosa sensação de poder absoluto aos que a aprovavam e aplaudiam.

Apesar da atitude correta, a direção me acusava, não conseguindo esconder seu moralismo absurdo, nem mesmo percebendo que meus direitos à privacidade tinham sido sordidamente desrespeitados. Quando descobriram que eu tinha o que eles chamavam pejorativamente de "um caso", prenderam-se a isso, mostrando que seu objetivo primeiro não era o patriotismo. A proposta é que eu comparecesse a uma reunião marcada com presidência, direção e conselho da entidade mantenedora da escola. Aceitei prontamente com a condição de que meu acusador estivesse presente, o que foi acordado. Foi tudo terrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Eu me vi numa sala grande, era o centro das atenções de homens e mulheres muito mais velhos que eu, revestidos de uma autoridade que lhes conferia poder, cônscios de que estavam ali para julgar e condenar, parecendo ávidos por assistir a um tombo memorável de uma vítima indefesa transformada em ré. O presidente deu a palavra ao acusador que, tentando falar, gaguejou, disse uma série de "entãos" e "pois és", deu voltas e não conseguiu chegar, baixou os olhos e acabou confessando que não sabia por onde começar. Tomei a palavra e pedi licença ao presidente para relatar eu mesma os fatos, devendo ser corrigida se mentisse ou distorcesse algum. Falei por quase duas horas seguidas, forte e firmemente, apesar da surpresa de ter que praticamente iniciar a sessão de minha própria tortura. Ninguém me interrompeu, ninguém tirou os olhos de mim, e eu falei de olhos bem abertos, fitando cada um nos momentos certos. Nem eu sabia o quanto estava preparada para colocar de forma tão inteira a minha verdade. Não me defendi, nem tinha de que me defender. Deixei claro que eu tinha sido colocada na condição de ré enquanto não passava de vítima de uma sordidez desenfreada. Também declarei preferir assim: eu não tinha vergonha de ser considerada ré, mas teria muita vergonha se fosse eu a violadora de qualquer correspondência. Mostrei com todos os detalhes que o fato descoberto indicava apenas que eu buscava minha realização pessoal, realização que não dependia de cartórios nem igrejas, sendo meu direito inalienável. Mesmo a contra-gosto de muitos, senti a admiração de cada um. Eu apenas colocava como realização de vida o que eles julgavam pecado ou imoralidade. Falei não apenas dos meus direitos violados. mas também da minha preocupação com o violador que, tendo filhas adolescentes, não deveria ter seu vergonhoso gesto posto a público, pelo bem dessas mesmas filhas. Falei da importância de meu trabalho, do respeito que eu tinha por cada um dos orientandos que passavam por minhas mãos e do quanto levava a sério o sigilo a que me obrigava não apenas porque era moral, mas porque era também uma exigência de meu amor.

Ao final, a votação que definiria se eu continuaria ou não na escola foi adiada, conforme proposta do presidente, pois todos queriam pensar melhor. Nesse momento, dois dos presentes se manifestaram já declarando seu voto a favor de minha permanência. E uma professora questionou, entre irônica e espantada: "eu fui chamada aqui para fazer um julgamento de uma suposta criminosa, mas ainda não consegui perceber qual é o seu crime..."

Uma semana depois, a decisão: eu permaneceria na escola. A apuração contara com apenas um voto contra. Eu não participara da votação, feita a viva voz, mas pude saber exatamente quem era o dono do voto contra, pois foi o único que não manifestou alegria e não me disse qualquer palavra de respeito. Depois, ao me encontrar num corredor, disse apenas: "tenho que confessar: eu nunca vi maturidade igual".

Eu senti, nesse momento, que era dona da maior riqueza que um ser humano pode ter. Uma felicidade que eu construíra passo a passo, a duras penas, que estava dentro de mim, que nenhum ladrão poderia roubar, que polícia nenhuma poderia impedir, que ditadura nenhuma poderia violar. Construção que nunca acaba, que foi e é tarefa de cada momento.

Repito: a decisão deles foi a minha permanência. Exatamente o que eu queria. Mas a minha decisão foi deixar a escola, direito meu e afirmação de liberdade. O episódio, com certeza, me fizera crescer.

Descrevendo essa passagem, neste momento, pode parecer um episódio apenas. Mas eu sei as dores que ele me custou e, principalmente, o que significou em minha vida, o quanto me tornou melhor, mais humana, mais reta. Era fruto de um amor enorme que eu cultivava e cultivo ainda, paralelamente à minha convicção de que a verdade tem que prevalecer mesmo que nos machuque muito e que só a verdade pode tornar alguém digno de ser chamado gente.

Falo de um caso pessoal e sem nenhuma relevância, que revivo na memória diante de mulheres como Nicéia e Regina, porque esse talvez tenha sido meu primeiro passo em direção da mulher que eu sempre quis construir e, no balanço de minha vida, sei que consegui. Certamente essas duas mulheres, e tantas outras que conhecemos, viveram fatos decisivos como o que eu experienciei para chegarem à dignidade a que chegaram. Elas, com certeza, construíram também a felicidade preciosa que ninguém pode tirar. Essa vivência eu chamo de "processo de gentificação".

Eu já tinha desistido... mas o retomo hoje.


22/04/2001

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