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Contos-->As Gardênias -- 29/12/2002 - 11:49 (Vanessa Mazza Furquim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

I

Quando adentrou no saguão do imenso prédio, Alice respirou fundo, refletindo sobre o quanto lutara para estar lá. Homens uniformizados e gentis, apesar de um tanto frios, abriram passagem para o gabinete que logo seria seu. Ela simplesmente adorou a decoração. Todo revestido de mogno, com lindos quadros e algumas flores a perfumar o ambiente, ela tentou entender como era possível aquele estilo requintado num prédio que se prezava pela modernidade.
De certa forma sentiu-se privilegiada por trabalhar naquele instituto de medicina avançada, onde os maiores experimentos e pesquisas eram desenvolvidos. Para ingressar neste espaço, necessário fazia-se passar por difíceis exames e entrevistas. Somente aqueles que tivessem espírito inovador, inteligência e curiosidade teriam direito de permanecer lá.
Tocou com seus dedos delicados as pétalas de duas camélias que se deixavam estar num vaso de porcelana branca por sobre a mesa. Estranho sentimento de opressão a invadiu, como se pressentisse que mais difícil que entrar, seria manter-se ali. Sorriu para si mesma notando que as histórias que contavam sobre aquele lugar haviam produzido grande impressão em seu espírito. Alongou o corpo, tentando relaxar e preparou-se para receber sua nova colega de trabalho, Kátia. Haviam conversado por telefone no dia anterior, quando esta lhe comunicara que conseguira a vaga. Sem conter a alegria, Alice quase chorara, porém controlou-se para não causar má impressão. Kátia, fingindo nada notar, lhe dissera que no dia seguinte lhe mostraria as dependências do instituto e lhe apresentaria aos seus novos colegas de pesquisa.

- Esteja no seu gabinete por volta das nove da manhã, o.k.? – recomendou Kátia, despedindo-se em seguida.

Alice imaginava como seria fisicamente esta mulher. Velha, jovem, bonita, simpática? As vozes costumavam ser tão enganadoras. Sempre revelavam pessoas contrárias ao seu timbre. Entretanto, Kátia era exatamente aquilo que sua voz denotava. Uma mulher bela, madura e determinada
Cumprimentou Alice logo que entrou no gabinete com um sorriso simpático, sem ser afetuoso e com o braço convidou-a a sair para visitar as dependências.

- O instituto é bem grande, como deve ter reparado. Entretanto seu lugar de trabalho se reservará mesmo ao seu gabinete onde fará todo o maldito trabalho burocrático e nos três laboratórios de pesquisa que ficam no nono andar. Nenhum outro lugar mais. – começou Kátia indo direto ao assunto. Enquanto falava, mal olhava para Alice, apenas apontava os departamentos e rapidamente enumerava seus nomes. Alice sentia-se um tanto embaraçada, pois parecia à ela que provavelmente sua companheira detestava aquele tipo de tarefa, sendo de alguma maneira obrigada a fazê-lo.

- A senhora será minha chefe? – perguntou timidamente, numa voz um tanto baixa.

- O que? Sua chefe? – riu sarcasticamente – Muito. Não. Aqui todos são iguais, apesar dos anos que nos dedicamos a este lugar. – Disse esta derradeira frase com uma certa ponta de desapontamento. Parando perto de uma ampla janela de onde podiam visualizar toda a cidade, balançou a cabeça como se concordasse com algo em seu pensamento e virando-se para a novata que estava ao seu lado – Você terá um único chefe aqui. O nome dele é Gil Andersen.

Kátia com muita presteza voltou a andar em direção do que seria o laboratório onde trabalharia, já que encontravam-se no nono andar.
As portas eram todas revestidas por questões de segurança e o ambiente por dentro era impecavelmente limpo e organizado. Alice, que amava a organização, ficou feliz em seu novo habitat.
Por mais que quisesse perguntar a respeito de suas novas funções, a imagem do tal chefe a incomodara. Infelizmente em toda a sua vida nunca se dera bem com seus chefes, chegando muitas vezes a discutir com eles, largando vários empregos. Será que desta vez ela conseguiria ter um com o qual não tivesse problemas? Não que ela fosse uma funcionária indisciplinada, só tivera o azar de cair nas mãos de sujeitos por demais indiferentes às necessidades dos outros e aos seus deveres perante o lugar onde trabalhavam. Ela acreditava que um chefe tinha que prezar pelos seus funcionários e sem admitir injustiças ou descuidos, ela investira e se dera mal todas as vezes.

- Este senhor Gil, como ele é? – perguntou enquanto lia os rótulos dos vários frascos a sua volta.

Kátia aproximou-se dela observando-a por um instante e depois disse:

- Ele é um homem estranho, não fala muito e quando diz alguma coisa, você sempre fica pensando se ele não é meio excêntrico, mas é um ótimo profissional. Se você fizer suas obrigações nunca terá problemas com ele.

Alice sorriu consigo mesma. “Desde que ele faça as dele, eu realmente não terei problemas”, pensou. A mulher loira não entendeu muito bem aquela expressão no rosto da jovem. Sem querer, entretanto, investigar, voltou à um dos balcões e pegou uma pasta com várias fórmulas e pesquisas em andamento.

- Aqui está o seu trabalho. Primeiro familiarize-se com ele e em seguida pode começar a ajudar o pessoal nos experimentos. Vamos para o outro laboratório, vou apresentá-la a eles.

A jovem pegou a pasta e percebendo seu peso percebeu que teria muito trabalho dali em diante. Como não temia o serviço aquilo não representaria incômodo.
O outro laboratório, ao contrário daquele de onde vinham, estava repleto de gente. Cerca de umas dez pessoas andavam de um lado para o outro, carregando papéis, tubos de ensaio, verificando livros ou olhando em microscópios.
Quando as duas mulheres entraram todos pararam por um momento suas atividades e dirigiram seus olhares para elas, principalmente para a jovem desconhecida, de estatura alta e delgada, olhos castanhos e longos cabelos encaracolados de uma tonalidade cobre. Alguns sorriram lembrando-se que aquele era o dia de sua chegada, entretanto este fato não despertou grande animação, como ela ingenuamente esperava.
Kátia apresentou-a a todos e depois deixou-a lá para ser comida pelos lobos, como esta mesma pensou, quando percebeu o olhar desolado de Alice ao ser deixada lá com pessoas estranhas, num ambiente ainda desconhecido para ela.

- Ela vai ter que se adaptar, como eu tive, só assim se tornará forte – refletiu Kátia, que trabalhava lá há quase dez anos. Se hoje se tornara uma profissional de destaque era porque lutara muito para isso. Aquele ambiente era quase totalmente masculino e geralmente toda vez que uma mulher adentrava naquele instituto a história se repetia.

Enquanto isso no laboratório, Alice, um pouco atrapalhada, abria sua pasta e começava a ler os papéis deixados por Kátia, quando um dos homens que trabalhavam ao seu lado aproximou-se, fechando a pasta sobre seus dedos, olhando-a com desaprovação.

- Esqueça isso. Venha. Tenho um serviço para você aqui. A não ser que queira ficar mais de duas semanas lendo. – e ergueu as sobrancelhas em atitude superior, sem ser, entretanto, detestável como poderia se supor.

Não pestanejando, Alice levantou-se e acompanhou o homem. O trabalhou que lhe ofereceu era um dos tantos trabalhos de rotina que todos detestam perder seu tempo, querendo gastá-lo em coisas mais importantes. Ela sabia que isso era um tipo de teste, como na época em que era estagiária e seu serviço resumia-se a organizar pastas, cortar papéis, despachar relatórios e claro, distribuir o café. Suspirou resignada quando se sentou novamente. Precisava-se começar de algum lugar. Ela provaria que era mais do que aquilo. Afinal, pensou, estava lá e isso já provava muita coisa.
Sem se dispersar mais, concentrou-se no trabalho, realizando-o com sua costumeira rapidez e eficiência.

II

Em casa, deitada em sua cama, Alice olhou o despertador que repousava ao seu lado no criado mudo. Já eram três horas da manhã e só agora conseguira terminar de ler aquela pasta que Kátia lhe dera. Apesar de Emerson ter lhe dito para esquecer a leitura, sabia que se não o fizesse estaria em desvantagem, então separara a leitura em grandes blocos e nos três dias que se passaram, após chegar em casa e jantar, lia até de madrugada. Fora um sacrifício, pois seu trabalho começava às sete verdadeiramente, o que lhe permitira apenas quatro horas de sono naqueles últimos dias. Entretanto, valera a pena. Estava informada e usaria isso ao seu favor.
Apagando a luz do abajur e encolhendo-se debaixo das cobertas, pois fazia muito frio, ela começou a lembrar-se de como sua vida havia se desenvolvido até aquele ponto. Nascera em família de classe média baixa, tivera pais amorosos sem condições de darem o estudo que ela tanto almejava. A pequena Alice, curiosa como era, não se deixara abater pelas complicações e saciava sua fome de saber nas bibliotecas públicas de sua cidade, onde gastava todas as tardes de sua infância e adolescência. Passava tanto tempo lá, lendo, que todos seus três namorados foram encontrados lá. Um tinha sido office boy, e vivia entregando documentos para a recepcionista da biblioteca; outro um pesquisador de ciências sociais que surgia por lá enquanto realizava seu mestrado e o último, ah, o último, o mais estranho de todos, tinha sido um estrangeiro ilegal no país que se refugiara na biblioteca por condescendência da proprietária que lhe conhecera os pais.
Mesmo tremendo de frio, ela se ria das bobagens da sua juventude. Agora com vinte e cinco anos, tinha uma carreira para solidificar. A medicina sempre a fascinara, como também todas as outras ciências, a cultura, a arte e a música. Escolhera a área das biológicas somente porque era isso que seus pais queriam, mas sabia que poderia ter feito qualquer outra coisa se quisesse. Não se arrependia, lamentava apenas que grande parte de seu conhecimento tinha que ficar adormecido, por não haver lugar para utilizá-lo.
Deixando as recordações de lado, virou-se e decidiu dormir, rejubilando-se por aquela noite ser a última mal dormida.

III

Mais um dia se passou sem grandes novidades e ela começava a se questionar se o tal chefe não apareceria por lá. Já escutara indiscretamente comentários sobre sua pessoa pelas bocas de seus colegas. Nem sempre eram bons e isso a inquietava um pouco. Sua sina não poderia se repetir.
Na sexta-feira, já seu quinto dia de trabalho, ouviu rumores circulando pelos corredores de que Gil enfim voltara de sua viagem aos EUA para participar de conferências médicas.

- Tenha certeza de que a primeira coisa que fará é verificar se estamos realmente trabalhando. – riu-se um dos rapazes mais novos do grupo, seu nome era André, e vivia fazendo piadas sobre tudo, inclusive sobre o jeito de andar do chefe e o modo como se expressava.

Alice sem entender o porque de tanta perseguição, quis saber mais detalhes:

- Esse nosso chefe é tão ruim assim? Vocês vivem falando dele como se fosse um daqueles diretores chatos do colegial.

- Ele não é tão mal assim...é que...bem – respondeu um tanto constrangido por perceber que exagerara a dose.

- Ele só é diferente, é isso que ele quer dizer. A gente às vezes não entende o que ele quer dizer com aquelas frases feitas, mas ele é um bom chefe, só não é do tipo camarada, entende? – Paulo fez questão de esclarecer. Um homem dos seus trinta anos, com quem André conversava quando Alice o interrompera.

- Ah – foi tudo o que ela conseguiu emitir, enquanto observava André balançando afirmativamente a cabeça para tudo o que Paulo havia dito.

O trabalho continuou monótono, apenas para ela, que ainda não escapara das funções burocráticas, até quase o fim da tarde. Estava concentrada nas suas análises quando irrompeu pelo laboratório a voz desconhecida de um homem que a tirou imediatamente de suas conjecturas. Levantando o olhar para a porta de entrada, ela viu, com certa surpresa, um homem alto, um tanto corpulento, de rosto comprido, cabelos ligeiramente grisalhos, de porte altivo estranhamente mesclado com uma calma e autocontrole que a impressionaram. Não possuía ar dominador, nem mesmo orgulhoso, entretanto algo lhe dizia que aquelas conclusões eram muito superficiais para serem definitivas.
Levantando-se inconscientemente, ela esperou ser apresentada como a nova integrante do grupo. Minutos se passaram e ninguém fazia menção da sua presença. Gil observava os relatórios debaixo de seus óculos que acabara de colocar e expedia ordens aos que estavam por perto.
Alice continua imóvel em seu lugar, fixando seu olhar no grupo que tinha a sua frente. Curiosamente, levando-se em conta todas as gozações de que era alvo, Gil concedia à sua figura um quê tão imponente, que nenhum de seus subalternos ameaçava dirigir-lhe a palavra a não ser para algo extremamente necessário.

- Outro dia eu só perguntei se um documento que estava no balcão era dele e quando ele disse não, eu quis continuar a conversa, me perguntando como aquilo tinha parado ali e eu não sabia de quem era e ele olhou nos meus olhos e disse “divirta-se na sua caça ao fantasma” e virou as costas, me deixando ali, falando sozinha. – uma moça da recepção, Suelen, havia comentado com Emerson que buscava uma correspondência e também informava que o documento não lhe pertencia.

Lembrando-se disso, Alice pensou rapidamente sobre a hipocrisia das pessoas, entretanto o olhar sob óculos de Gil a alcançou, e sem que ela percebesse, os olhos dele piscaram estranhamente e aproximou-se dela, deixou o círculo de pessoas.
Ao vê-lo caminhando em sua direção, não pode conter um arrepio a subir-lhe pela espinha. Irritou-se com esta reação involuntária ao olhar daquele homem bem mais velho do que ela e que não esboçava o menor sorriso.

- A senhorita deve ser a nova pesquisadora que Kátia me informou. – Estendeu sua mão para ela – Meus parabéns. Conseguiu ingressar num dos grupos mais seletos da pesquisa médica.

Gil expressou seus cumprimentos com a voz mais desprovida de emoção que Alice já ouvira. Esta constatação fez com que demorasse para apertar a mão de seu contratador. Vendo que ela não reagia, Gil, esboçou um mover de lábios imperceptível e comentou, tentando parecer gentil, o que soou um tanto falso.

- Vai me deixar esperando pelo seu cumprimento, senhorita Mendes?

- Oh, desculpa, sinto muito, é que...bem – começou um tanto nervosamente, segurando a mão dele num aperto forte, que ele correspondeu.

Não permitindo que ela continuasse com suas desculpas, ele mostrou a palma da mão e no mesmo instante, ela calou-se, lembrando-se do que sabia sobre ele. Dando uma última olhada nela e já parecendo novamente sem interesse pelas coisas mortais, Gil voltou ao grupo e com mais algumas recomendações, se despediu, inclusive de Alice, para quem dirigiu um simples aceno de cabeça.

IV

- Alice, você pode me dar uma mão aqui? – pediu André. Segundos depois, percebendo que não fora ouvido pela colega, repetiu – Alice. Estou te chamando.

- Sim? – Sem perceber, ficara girando uma caneta em sua mão, perdendo sua vista através da enorme janela que dominava quase toda a parede. Deu um sorriso à guisa de desculpas e aproximou-se para auxiliar o colega. Ele estava testando novas substâncias e precisava de sua ajuda para manipular objetos muito delicados com maior precisão.

Enquanto o auxiliava não conseguia reter a atenção no experimento, mesmo sendo este o trabalho digno que esperava fazer desde que ali ingressara. Notou com perspicácia que a requisição de ajuda fora uma prova de tinham gostado de seu trabalho e, estranhamente, ao invés de felicitar-se pelo mérito, perdia-se em pensamentos adversos.
Não podia negar a si mesma que seu chefe lhe causara extrema impressão. Impressão esta que não sabia definir como provinda de algo bom ou ruim. A sensação permanecia presa à ela e a recordação dos traços dele a incomodava visivelmente, tanto que algumas vezes quase deixou os instrumentos caírem ao chão. Seu colega interpretou isto como ansiedade por enfim realizar algo mais importante do que viera fazendo até aquele instante. Ao contrário do que ela imaginara, ninguém notara sua comoção interior na presença de Gil, tão preocupados estavam com suas próprias obrigações.
Algumas horas depois, no fechar do expediente, quase todos já haviam se retirado. Alice, entretanto, permanecia atenta às suas tarefas. Havia encontrado características interessantes na sua substância e ansiosa como era, não agüentaria esperar até o dia seguinte para terminar.
O laboratório estava a meia-luz, já que a maioria das luzes estavam apagadas devido aos sensores de movimento. A jovem pesquisadora não se importava com isso, anotando com a ajuda de uma lâmpada manual próxima o que vinha observando. Não percebeu que um vulto apareceu no limiar da porta, surpreendendo-se por encontrar alguém ali, naquele horário.
Quando o personagem se movimentou em direção à ela, um pequeno barulho se fez ouvir nos sensores e imediatamente todas as luzes do laboratório se acenderam iluminando tudo a volta deles e, permitindo que ela, assustada, visse o tardio visitante.

- Tem um estranho hábito, senhorita Mendes. – falou Gil com sua sonora, porém grave voz.

- E que hábito seria esse? – inquiriu ela, após se recuperar do susto.

- O de trabalhar no escuro. – respondeu simplesmente aproximando-se dela. Percebendo o pequeno caderno de anotações ao lado do microscópio, pegou-o, ao mesmo tempo em que lhe dirigia um olhar como se lhe pedisse permissão, ao que ela assentiu. Ele comentou – É sempre bom manter suas anotações fora da vista de curiosos.
Enquanto lia, uma sobrancelha se erguia lentamente no rosto impassível. Um denso silêncio pesou no ambiente e Alice só conseguia se concentrar no som de sua própria respiração. Não sabia exatamente como se comportar frente a ele. Deveria comentar algo, ou apenas ficar ali quieta esperando por ordens? Mesmo que quisesse dizer alguma coisa - constatava com uma certa desolação - sua mente estava vazia, tal como uma bolha de sabão.

- Não desista se suas últimas fórmulas derem errado. Tem um composto aí que provavelmente ainda não encontrou. – recomendou devolvendo o caderno.

Alice esboçou um sorriso, agradecida pela colaboração. Quando ele fez menção de se retirar, não pode controlar a curiosidade, apesar dos avisos de prudência que sua mente lhe pedia:

- Senhor. – chamou fazendo-o voltar-se. – Posso estar sendo indiscreta, mas o que senhor faz aqui a altas horas?

Dois segundos após questioná-lo, já se arrependia de tê-lo feito. Que lhe interessava aquilo afinal? Parada ali, atrás do balcão, esperava por um gesto irritado dele, ou uma saída sem resposta.
De todas as reações que aguardava, nenhuma delas ocorreu. Gil simplesmente pegou um vidro com um composto laranja e sem fitá-la mais, falou calmamente:

- Como você, tenho um experimento que não pode esperar até amanhã. – ergueu o vidro em sua direção e saiu, tão suavemente quanto entrara.

V

No final de semana, Alice, contrariando suas amigas, resolveu permanecer em casa para estudar suas anotações e tentar vislumbrar qual composto ali se escondia e que mesmo permanecendo até quase meia-noite na sexta-feira, não conseguira encontrar.
Pesquisara em seus livros de química que adquirira a custo de seus esforços e de seus pais. Hoje, podia dizer, orgulhosa, que possuía mil livros em sua biblioteca improvisada.
Sua casa era extremamente simples, porém limpa, organizada e até mesmo encantadora. Sua dona adorava comprar pequenas peças de decoração que lembrassem tempos antigos, mesmo que estas fossem as mais descaradas falsificações. Alice, preferia os livros às roupas, jóias ou qualquer outro artigo que denotasse vaidade. Gastava pouco com comida e sua única extravagância eram os jogos de tabuleiro que custavam muito mais do que ela gostaria de gastar. Entretanto estes passatempos exercitavam sua mente e ela jogava, mesmo que fosse sozinha.
Sentou-se no sofá com uma caneca de chá. Lá fora brilhava um sol pálido, o primeiro de uma semana preenchida quase totalmente pela chuva. Por este motivo, suas amigas, Carol e Marta, tinham ficado aborrecidas. Uma semana inteira de trabalho sob chuva e frio e Alice não queria aproveitar o final de semana com sol!
Pegou novamente o caderno entre suas mãos. Gil lhe dissera para ter cuidado com olhares curiosos. Será que não poderia confiar em seus colegas? Sabia muito bem que naquele ramo, como em muitos outros, as pessoas costumavam se apropriar das idéias e descobertas dos outros. Mas será que poderia também nele confiar? Não poderia fazer o mesmo, estando ele no alto posto em que se encontrava?
Revendo as fórmulas escritas com ordem e capricho nas linhas do caderno, súbita idéia lhe ocorreu e durante o resto do final de semana, entre a visita de sua mãe, encontrara enfim o composto tão habilmente disfarçado.

- O que a mantém tão pensativa minha menina? – perguntara sua mãe, uma adorável senhora de cinqüenta e cinco anos, enquanto colocava sobre a mesa da sala de estar uma pequena réplica de um vaso etrusco que encontrara numa feirinha perto de sua casa.

- Me deram um trabalho para fazer e eu não consegui terminar durante a semana, então trouxe pra casa. Só momentos atrás, antes da senhora chegar, descobri o que estava faltando. Agora preciso anotar e refazer meus cálculos e fórmulas.

- Tinha que ser a minha pequena Alice mesmo. Sempre esperei ver minha filha falando sobre coisas que eu entendesse. Pobre de mim! – riu a senhora lembrando de sua imaginação de vinte anos atrás.

Alice riu com ela e a abraçou com carinho. Sentia falta de viver com a mãe. De ser cuidada por ela. Seu senso de independência a tirara cedo da casa materna e aprendera a viver e a se virar sozinha desde os dezoito anos. Seu pai nunca concordara com sua atitude e tendo morrido de velhice dois anos atrás, aos 77 anos, deixara um vazio em seu coração.

- Mãe, a senhora sente muita falta do pai? Estava aqui lembrando que ele nunca aprovou minha saída de casa.

- Claro que sinto minha linda. Muita. Seu pai tinha seus defeitos, você sabe, mas era ótimo para mim e acredito que para você também. Agora esqueça esses pensamentos. Você agiu da maneira que considerou certa e agora é uma mulher independente.

Não parecendo tão certa quanto sua mãe, Alice permaneceu quieta. Sabendo que a filha precisava terminar seus afazeres, Dona Ana deixou-a imersa em seus pensamentos, deu-lhe um beijo e saiu.

VI

Satisfeita por ter conseguido decifrar o enigma, esperava comunicar aquele fato ao seu chefe, como prova de que havia seguido seus conselhos e que dera certo.
Aguardou que ele aparecesse no laboratório durante todo o dia. Ninguém sabia onde ele se encontrava e também não davam mostras de o querer. Gil tinha a autoridade de mudar e desfazer o que quisesse ou achasse melhor e muitas vezes isso feria o orgulho de sua equipe, cuja crença de que ele o fazia por diversão velada, ou para provar sua autoridade era forte.
No meio da tarde, Alice o encontrou no corredor falando com Kátia. Antes de se aproximar para comunicá-lo da notícia, ficou parada, sem ser percebida, para observá-lo melhor e tirar suas próprias conclusões.
Gil discutia algo com sua colaboradora. Esta parecia um pouco alterada, mostrando seu ponto de vista, enquanto ele mantinha sua constante calma e lhe lançava um olhar ora enfadado, ora interessado nas suas reações.

- Não há nada que eu possa fazer, Kátia, e você sabe muito bem disso. – concluiu resolutamente.

- Como não, Gil? Onde está sua autoridade de chefe de uma das equipes mais especializadas do país? É só ir lá e dizer: eu demando esta determinada quantia de verba e pronto. – enquanto falava, ela gesticulava com os braços, fazendo-o visualizar seu ponto de vista.

Gil manteve os braços cruzados e pareceu refletir um instante. Ia fazer menção de responder quando, ao olhar por cima de seu ombro, reparou em Alice.

- Algum problema, senhorita Mendes? – questionou, braços ainda cruzados, não de forma grosseira, porém com um certo tom autoritário na voz.

Tomando coragem, ela aproximou-se, mesmo incomodada com o olhar de Kátia, para quem aquela interrupção fora mal vinda e comunicou:

- Na verdade trouxe a solução. – como ele não parecesse entender o significado de suas palavras, continuou – lembra da fórmula de sexta? Então, eu encontrei o composto.

Alice falou sorrindo, acreditando que ele fosse lhe parabenizar ou algo semelhante. O que aconteceu foi que ele rapidamente piscou os olhos e de relance olhou por um momento o semblante de Kátia, que ainda permanecia ao lado deles.

- De que composto está falando? – Kátia quis saber.

- Eu propus um pequeno teste a nossa nova pesquisadora. Um tipo de charada e pelo jeito ela solucionou o enigma. Não é mesmo, senhorita Mendes? – falou dirigindo-se a moça, que naquela altura nada mais entendia.

- Você não se cansa disso? – disse a mulher com um tanto de impaciência. Esquecendo-se logo de Alice, exigiu – Pense a respeito, Gil.

Gil apenas assentiu, enquanto Kátia sumia pelos corredores com passo rápido não fazendo questão de despedir-se da jovem. Lembrando-se subitamente dela, o chefe comentou como se a repreendesse:

- Já disse para tomar cuidado com os curiosos.

Virando os calcanhares, ele começou a andar em direção ao elevador. Um pouco indignada por ter sido alvo de uma peça que ainda não entendera a razão, Alice ainda teve forças para lhe dizer, de forma que ele pudesse escutar.

- E um desses curiosos seria o senhor?

Seu chefe parou de repente e assim permaneceu por alguns segundos, até que se virou em direção à frondosa janela e colocando displicentemente suas mãos nos bolsos da calça social, suspirou dizendo, enquanto a fitava de vez em quando:

- É incrível como o tempo se modifica com a presença de elementos diferentes na atmosfera. Às vezes pode ser um vento frio, às vezes um quente. Dependendo de como for pode criar temperaturas amenas ou grandes catástrofes. – Calou-se um momento e citou com mais ênfase – Como o tufão.

Sem esperar por resposta ele se retirou, deixando-a imersa nas mensagens que ele quisera lhe passar. Por que afinal, seu chefe não se comunicava claramente?
As pessoas realmente não haviam mentido para ela.

VII

Tendo a descoberta em suas mãos, porém sentindo-se impotente, Alice não sabia com quem partilhá-la. Começava a desconfiar de todos, inclusive de seu empregador. E estava apenas na sua segunda semana de trabalho! Até onde aquilo iria?
Procurou distrair-se com outras atividades do instituto, engavetando seu composto misterioso, tentando entrosar-se mais com o grupo.
Depois daquela primeira semana de adaptação, ela já se familiarizara com seus colegas e entravara algumas discussões interessantes com Emerson e André, com quem se simpatizara mais.
Os dois eram muito diferentes em personalidade. Enquanto o primeiro era diligente, com espírito de comando; o segundo era afável, risonho e um tanto dependente das decisões alheias. Ambos formavam uma boa dupla, considerando que nenhum pisava no território do outro. Alice, por sua vez, funcionava como um meio-termo. Não se atrevia a mandar em Emerson, entretanto o fazia com o meigo André. E como por natureza, Alice sabia ser muito simpática, desde que não a provocassem, suas ordens eram sempre acompanhadas de sorrisos e brincadeiras.
Chegando novamente a sexta, no final do expediente, seus novos amigos a convidaram para um café na lanchonete do primeiro andar, o que ela aceitou prontamente.

- Este trabalho às vezes é tão monótono, não acha André? – perguntou de repente Emerson, que acabava de sorver um bom gole de café.

- Às vezes, mas se você resolve se aventurar em conseguir boas rosquinhas na lanchonete de cima, sua vida pode virar uma verdadeira aventura. – comentou rindo, André. Estava se referindo as rosquinhas de baixa qualidade servidas pelo refeitório do andar de cima. Estranhamente, elas eram muito requisitadas pelo pessoal que lá trabalhava.

- E você, Alice, o que tem achado do trabalho? Decepcionada com o que encontrou? – quis saber Emerson.

- Não posso negar que esperava mais. De alguma forma nós continuamos a desenvolver experiências comuns, coisas de rotina, a não ser ... – lembrara-se do composto e das conclusões que tirara a respeito das fórmulas, mas lembrando-se de suas desconfianças, interrompeu-se.

- A não ser? – Emerson a fixava com seus olhos de um verde ligeiramente castanho, inquisidor.

- A não ser a aventura de se obter boas rosquinhas e bem, de tentar entender as atividades de nosso chefe.

- Ah, o eterno senhor Gil, problema de todo novo contratado! – exclamou Emerson rindo.

- Quer dizer que eu não sou a primeira a ficar intrigada...

- Nem será a última – completou André.

- Eu não sei. Ele me parece ser tão inteligente, e às vezes age de maneira como se não se preocupasse, como se fosse descuidado, entende? Isso é um tanto contraditório para mim. – suspirou enquanto girava a pequena colherzinha na mesa.

- É, todo mundo acha que ele esconde algo – notando o olhar intrigado de Alice, esclareceu – Sei lá, como se praticasse algum ato ilícito ou desviasse verba, sabe? Dizem por aí que ele é muito rico, mas anda com roupas simples e já o surpreendi várias vezes chegando aqui no instituto de ônibus. Ou ele é desconfiado demais ou muito excêntrico.

- Eu reparei que apesar de todos parecerem ter respeito por ele e temê-lo, ninguém gosta muito dele. Ele alguma vez fez algo que prejudicou alguém aqui?

- Não – foi a resposta unânime dos dois homens.

- Então por que não gostam dele?

- Acho que porque ele é diferente e como ninguém consegue entendê-lo...- começou Emerson.

- E também não deixa ninguém tomar contato mais amigável com ele... – terminou André.

- Vocês se afastaram dele totalmente... sei...já diziam que o ser humano sempre teme aquilo que desconhece – concluiu ela, refletindo sobre o que acabara de ouvir, mais para si mesma.

Eles se entreolharam, dando de ombros. Emerson, que de certa forma, começava a se interessar por aquela jovem de cabelos cobres que viviam soltos, muitas vezes desordenados, mas que lhe conferiam um encanto que muito o agradava, perguntou num tom que Alice não conseguiu identificar:

- Estaria você disposta a desvendar o grande mistério de Gil Andersen?

- Estou sempre disposta – foi a única coisa que respondeu, levantando-se e despedindo-se dos dois desejando um bom final de semana.

Já havia andado um bom bocado, quando ouviu a voz de Emerson dizendo:
- Onde pensa ir, Alice? A saída é para a direita.

- Eu sei. Eu também nunca erro o caminho. – disse virando sobre seus ombros rapidamente, esboçando um sorriso enigmático.

Havia tomado a decisão naquele momento de prestar contas com o senhor Andersen. Iria inquiri-lo sobre o que significava aquela fórmula, o por que da dissimulação de segunda-feira e tentar descobrir o motivo daquele comportamento.
Sabia que não tinha direito nenhum de invadir a vida privada de seu chefe. Entretanto aquele composto precisava ter alguma serventia.

VIII

Voltando para o nono andar, Alice encaminhou-se para o gabinete de Gil, que ficava por lá. Sua sala era imensa, com decoração semelhante ao do seu próprio, com a diferença de possuir mais móveis, uma enorme estante com livros, que ele consultava de vez em quando, um enorme vaso de plantas, algumas peças antigas penduradas pelas paredes, como espalhadas pela sala em geral.
A porta do gabinete estava semi-aberta e Gil estava recostado num confortável divã, lendo. Intuitivamente, ela sabia que ele estaria lá, como estava em todas as outras noites. Perguntava-se se ele era casado, se tinha filhos, se ficava lá para fugir dos problemas familiares, como tantos homens faziam.
Antes que ela pudesse esboçar o menor movimento e delatar sua presença, ela o ouviu dizer, sem entanto tirar os olhos das páginas que lia, ou parecia ler:

- Sempre vagando como uma sombra. – Levantou os olhos para ela. – E dizem que o estranho sou eu. – falou isso com um tom inesperadamente brincalhão.

Como ela estivesse paralisada na porta, Gil fechou seu livro e levantando-se foi colocá-lo em seu lugar na estante. Tirou os óculos, o que renovou seus traços maduros e depositou-os delicadamente sobre a escrivaninha. Encostou-se no tampo na mesma, cruzou os braços e esperou pacientemente que ela lhe dissesse o por quê de sua inesperada visita.
Tendo consciência disso, Alice novamente se recuperou da sensação estranha que sempre a invadia quando ficava frente a frente com aquele personagem peculiar. Seu coração batia descompassado e seus olhos fixavam-se naquele rosto de traços retos ao mesmo tempo marcantes, naqueles olhos castanho-escuros que queriam ler sua alma naquele momento. Ficava desprovida de ação, como enfeitiçada. Quando constatava este fato, ria-se de si mesma por perceber que não havia lógica, nem razão para aquilo. Nada naquele homem, logicamente, poderia provocar nela aquelas sensações.
Sem poder no entanto perder-se em divagações, Alice tentou ser objetiva e clara, escondendo a custo o que lhe ia por dentro.

- Senhor, desculpe-me aborrecê-lo neste instante. Mas preciso entender algumas coisas que não ficaram claras.

- Algum problema nas instruções que Kátia lhe forneceu? É ela que cuida desse tipo de assuntos. – informou, querendo deixar claro que se o assunto fosse banal, aquela seria a última vez que ela se dirigiria a ele.

Não impressionando-se com o aviso velado, falou com convicção.

- Sei que vim em hora imprópria, mas não para desperdiçar seu tempo. Tenho em mãos a solução para um experimento que sei, sua equipe estava tentando resolver há mais de um mês. Pois bem, eu resolvi. Tentei lhe mostrar, mas o senhor, com todo respeito, criou uma estorinha que até agora não entendi direito, apesar de ter conjecturado que com aquela mensagem sobre o tempo, quisesse me dizer que agira assim por causa da presença de Kátia. Eu fiquei uma semana esperando esclarecimentos e nada aconteceu, porém. Não podia mostrar esta descoberta a ninguém, porque suas palavras me faziam desconfiar de todos, inclusive do senhor. – falou tudo muito rapidamente, para não perder a coragem. Seu tom era comedido, não desprovido de força de caráter, no entanto.

Seu chefe pareceu não estar surpreendido com suas informações. Enquanto falava, Alice notara que nenhum músculo de seu rosto se movera. Era como se nada parecesse novo para ele.

- E faz bem em desconfiar dos outros, senhorita Mendes. – Ele pegou um pedaço de papel e sem que ela esperasse por isso, formou rapidamente em suas mãos um belo origame. Tudo indicava ser um cisne pronto a dar asas. – Vê este origame? Uma figura composta apenas pelas dobraduras em ângulos corretos de um papel tipicamente comum. Quem a não ser os japoneses poderiam vislumbrar figura tão bela de um simples artefato?

- Não entendo aonde quer chegar. – disse ligeiramente receosa.

- Nem precisa. – depositou o origame sobre sua mesa. A madeira criava a ilusão de um lago de águas escuras de onde a ave quisesse escapar. – A senhorita possui uma inteligência diferente daquela que se espera encontrar.

- Como o origame...para o senhor eu sou um cisne, num corpo comum. – concluiu com perspicácia. Estranhamente começava a compreender como o cérebro dele funcionava.

- Exatamente.

Sentindo certa liberdade, mesmo sabendo que seu gesto poderia ser interpretado como atrevimento, aproximou-se da estante de livros e leu o nome do volume que ele ali colocara.

- O Castelo. Kafta. – murmurou entre dentes – Nós geralmente somos aquilo que lemos. E o senhor, vive também num sonho, onde tudo pode ser verdadeiro como uma simples ilusão?

- Em partes. – respondeu, ficando mais próximo dela – Porém não estamos todos nós mergulhados num mundo cheio de verdades e mentiras relativas?

- Tudo só se torna relativo quando tomamos algo como ponto de referência. – Virou-se para ele, e seus rostos estavam a menos de meio metro de distância. Podia sentir seu perfume, que a entontecia um pouco. Ela, que tinha um olfato muito bom para perfumes, não conseguiu identificar o que ele usava. No momento, entretanto, estava preocupada com outras coisas.

- O que o senhor tenta tanto esconder?

- Esconder? Aquele que esconde algo tenta de todas as maneiras se mostrar. – raciocinou afastando-se dela e indo sentar-se na cadeira atrás da mesa. Alice sentiu naquele momento que estava começando a entrar em território proibido.

- Quer dizer com isso então que o senhor quer inconscientemente se mostrar de todas as maneiras, tal como o homem que esconde algo não quer se denunciar, abrindo-se demais. – analisava, ao mesmo tempo em que se aproximava da mesa de Gil e pegava o cisne entre suas mãos. Seus olhares novamente se encontraram. Por debaixo de seus grossos cílios, o brilho nos olhos escuros de Gil mostravam seu incômodo, perceptível somente para um ótimo observador, qualidade esta que Alice possuía em alto grau. Mas ela não saberia dizer se aquela descoberta era um sinal de vitória ou derrota naquela batalha de idéias.

- Fique com o cisne. – ofereceu subitamente. – Agora vá para casa.

Calada, Alice se virou e caminhou para porta. Antes que lá chegasse, Gil avisou:

- Na segunda-feira, depois do expediente, me procure. Precisamos resolver a segunda fórmula.

A jovem moça virou-se surpreendida. Ele nem vira suas anotações definitivas. Como poderia ao menos imaginar que havia ainda um pequeno problema na segunda fórmula?
Novamente viu o brilho no olhar dele, que agora lhe dizia o quão perspicaz poderia ser. Isso não a assustou. Deixou o gabinete e o prédio com o sentimento de que conquistara algo dele. Algo que não sabia ainda nominar.
Poderia ser ilógico. Alice, no entanto, fora acostumada desde de pequena a acreditar nas forças da Natureza e das coisas ao seus redor. Tinha certeza de que sua intuição não mentia e se assim o dizia, assim o era.


IX

Na segunda-feira, como combinado, Alice saiu a procura de Gil Andersen. Não encontrando-o em seu gabinete foi achá-lo no laboratório, de avental e óculos, extremamente concentrado no que fazia. Este estado mental dava a ele uma expressão serena no olhar e no semblante. Aos olhos de Alice, aquele homem de quarenta e oito anos era bonito, principalmente em momentos como o que se encontrava.
Tal como ela, mantinha um caderno de anotações onde marcava agora algumas coisas com rapidez. Não demorou para que percebesse sua entrada, endereçando-lhe um breve sorriso que pretendia ser acolhedor.

- Aproxime-se. Me diga até onde chegou na sua pesquisa.

- Basicamente até aqui – ela apontou num trecho do caderninho dele.

- Foi o que imaginei. Está vendo isto? Quero que me auxilie a resolver este problema.

- E o que acontecerá quando resolvermos? Este composto serve para algum remédio não é?

- E o cisne plana nas alturas – disse esboçando um ar um tanto teatral. Sem dúvidas ela havia acertado o alvo.

Entregaram-se então ao trabalho e por mais que seus cérebros estivessem funcionando numa velocidade tremenda, não foi naquela noite, nem na segunda que resolveram o problema. Ficavam após o expediente todos os dias, às vezes voltando para casa duas ou três horas da madrugada. Quando começavam a achar que iam solucionar o problema, outros que até então não haviam notado, multiplicavam-se aos montes.
Aquele convívio noturno com Gil tornava-se extremamente empolgante. Dono de uma inteligência e de um conhecimento fora do comum, ele a fascinava com suas idéias sobre os diversos temas da atualidade, da antigüidade e qualquer época na qual se dispusessem a conversar, enquanto realizavam sua pesquisa.
Gil era um hábil conversador, desmentindo todos os boatos ao seu respeito. A única coisa que permanecia verdadeira era seu sigilo quanto a vida pessoal. Dela, Alice não conseguira uma só palavra. E tentara truques que nunca falhavam com ninguém, mas que ele desmascarava instantaneamente.
Além deste sigilo, outra coisa que a incomodava extremamente era o fato de ter de chamá-lo senhor a todo instante e de ser chamada de senhorita Mendes. Isso a fazia sentir-se muito mais nova do que ele, o que de fato era, além de distanciá-lo de si mais do que gostaria. Na madrugada de quinta-feira, estavam discutindo sobre a época vitoriana, o que deu espaço para que ela tentasse mudar esta situação incômoda:

- Nesta época as pessoas comportavam-se de maneira muito formal. Não acha que a liberdade de expressão de hoje em dia torna as pessoas mais verdadeiras umas com as outras? – ela começou.

Gil a espreitou por debaixo dos óculos e sem se fazer de rogado:

- Diga logo que pretende com esta conversa.

- Certo. Incomoda-me o fato de me chamar de senhorita Mendes. Soa um tanto pomposo demais. – confessou diligente.

- Bem, quando alguém oferece, pode pedir algo em troca – disse isso olhando através de um papel sob uma lâmpada acima dele. – Veja. Parece um papel sem nada escrito. Entretanto, se o colocarmos em contato com a lâmpada quente, eis que surge...

De repente no papel apareceram algumas letras rabiscadas, sem nenhum sentido, que ele lhe entregou.

- Este truque é muito velho. Limão e o calor faz o resto. Aprendi essa quando era criança – ela comentou.

- Pois eu só aprendi ontem e ainda estou abismado.

Alice começou a rir gostosamente. Sendo contagiado por ela, esboçou o maior de seus sorrisos mostrando pela primeira vez seus dentes. Balançava a cabeça, concordando que era hilário sua descoberta tão tardia. Por um instante, os dois ficaram em silêncio, se observando. Por que não dizer, medindo um ao outro. E sem que ela desconfiasse de suas intenções, comentou ainda em seu peculiar meio-sorriso:

- Sorri como música sacra. – Alice não conseguia exprimir como ficara encantada com o comentário. Entendia que era a maneira dele dizer: você possui um sorriso angelical. Gil, habilmente desviou o assunto. – Todos nós somos crianças, sempre descobrindo coisas e nos maravilhando com elas. A única diferença é que paramos de contar para os outros, com medo que nos roubem o que vimos.

- E quem diz isso é o senhor Gil Andersen para si mesmo, ou o você é a expressão geral da humanidade?

- Só Deus sabe.

- Pensei que fosse dizer que há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia – disse sem perder o espírito.

- Essa é boa também. Mas achei um pouco clichê dizê-la a uma hora da manhã. Shakespeare pode ser perigoso quando mal utilizado.
Disse sem querer ser engraçado, e Alice riu do mesmo jeito.

X

Durante toda aquela semana de encontros noturnos, ninguém do grupo mostrou qualquer indício de que desconfiavam de algo. Era como se o que estivesse fazendo nas suas horas extras não fosse de todo significativo, embora soubessem dos hábitos noturnos do senhor Andersen. Alice assim o soube, quando Paulo, num momento de descontração do grupo aproveitou para brincar um pouco com ela:

- E você Alice não tem medo de ser pega pelo fantasma que arrasta suas correntes através dos corredores do nono andar? - imitando um narrador de filmes de terror.

- Fantasma? – perguntou Alice, fingindo não ter idéia do que ele falava, mexendo em alguns tubos de ensaio à sua volta.

- Vai dizer que nunca levou um susto, quando estava inocentemente fazendo seu trabalho e de repente ouviu passos no corredor e viu nosso chefe caminhando de um lado para o outro como um fantasma?

- É, esse cara parece que não tem casa.. – comentou Júlio, um homem de seus quarenta anos, não muito comunicativo, sendo muitas vezes ríspido e preconceituoso com relação à vida e às pessoas, o que desagradava Alice.

- Não – respondeu Alice – Ele nunca me incomodou. – vendo a reação incrédula da platéia e resolvendo dar mais veracidade a sua resposta – bem, às vezes o ouvi andando em frente o laboratório, mas não tinha nada de mais nisso.

- Nada de mais? – repetiu Emerson surpreso.

- Eu acho que ele gosta de ficar à noite porque o ambiente é tranqüilo. Talvez tenha problemas em casa, não sei, e queira fugir de lá. – conjecturou, refletindo que de certa forma acreditava no que acabava de dizer.

Por mais que quisesse descobrir se este era o motivo para tal comportamento, nada conseguiu extrair. Esta recusa em se mostrar tal como era começava a se tornar um impecilho na sua relação com ele e refletia que após desvendar uma parte dele, não quereria jamais voltar à sua antiga posição de subalterna. Alice queria mais dele.

- Tem desenvolvido alguma droga secreta durante a noite Alice? – inquirira outro dia Emerson. Não conseguia explicar porque sentia um mau pressentimento com relação ao trabalho dela. Teria inveja da sua disposição? Nunca conseguiria após o trabalho do dia, ficar longas horas pesquisando outras coisas.

Alice assustou-se com a pergunta. Será que desconfiava de algo? Embora nada no rosto dele assim denunciasse, procurou ser precavida.
- Droga secreta? Quem dera! – deu um suspiro – Acho que não tenho capacidade para isso. Eu só aproveito para estudar alguns livros aqui do instituto. Durante o dia não dá e eu prefiro a noite ao final de semana.

- É, bem pensado. – deu uma pausa como se tomasse uma decisão – Você costuma sair aos fins de semana?

- Às vezes, com minhas amigas. Por que? – agora organizava uma enorme papelada à sua frente.

- Pensei se não gostaria de sair comigo... – como ela esboçasse um olhar desconfiado, ele apressou-se em completar – você pode levar suas amigas. Paulo e André irão também.

- Bem, não posso prometer nada, mas lhe dou resposta amanhã. Tudo bem?

Tinha muitas dúvidas com relação à Emerson. Apesar de ser bonito, jovem e com um espírito de decisão que a impressionavam, não estava muito certa se sair com ele traria bons resultados.
Depois daquele dia, na outra quinta-feira, enfim ela e Gil haviam solucionado o problema da fórmula.

XI

Alice sentia-se extremamente cansada. Estavam vivendo aquela rotina há quase duas semanas. Nos finais de semana, passava dia e noite na cama para tentar recuperar o sono perdido. No seu rosto havia aspectos de seu cansaço marcados de maneira bem visível, como as inevitáveis olheiras. Gil lhe dizia para voltar para casa; que ele poderia terminar sozinho, mas súbita angústia e uma incontida irritação a assomavam quando queria que ela se afastasse. E embora ficassem o mesmo tempo naquele laboratório, a aparência dele em nada mudara. Trabalho para ele causava reações diversas às da maioria das pessoas. À medida que trabalhava, rejuvenescia-se e tornava-se cada vez mais belo.
Na quinta-feira, Alice estava um pouco indisposta e começava a ter a impressão de que nunca resolveriam o problema, quando – após algumas horas debruçada num novo método que experimentava, cansara-se e recolhera-se a um canto do laboratório à meia-luz, enquanto seu chefe resolvera continuar do ponto em que ela parara - ele soltou uma exclamação de surpresa:

- Então é aí que você se escondia – murmurou, anotando o que seria, enfim, a fórmula final.

Alice levantou-se rapidamente e aproximando-se do caderno viu a solução da fórmula. Mal pode acreditar em seus olhos.

- Nós conseguimos? – quis saber incrédula.

- Sim. Nós vencemos o problema.

E sem conter-se, Alice deu um pulo de alegria e abraçou-o efusivamente. Na hora não pensara que este gesto poderia causar uma reação tão aversiva em Gil.
Com gestos delicados, não desprovidos de força, ele a afastou de si. E olhando-a fixamente, afastou-se, virando-se de costa e murmurando, quase para si mesmo:

- Não devia ter feito isso.

- E por que não? Pensei que fôssemos amigos. – perguntou desolada, dando a palavra “amigos” uma entonação estranha.

- Somos colegas de trabalho, senhorita Mendes, em busca da solução para um problema de origem química. Só isso. – estabeleceu friamente.

- Como consegue ser assim tão frio? Quer dizer que você só me usou para fazer o seu trabalho? E afinal, que fórmula é essa? Se eu pudesse juntar esta peça de quebra- cabeças com o resto do composto, talvez descobrisse que espécie de remédio é esse, ou se realmente é um remédio... – disse nervosamente, porém sem aumentar muito o tom de voz. Na sua raiva momentânea, esquecera o “senhor”. Entretanto ele não deu mostras de se importar com isto especificamente.

- Em nenhum momento eu a coagi a trabalhar comigo. Se lembro-me bem, a senhorita foi quem apareceu no meu gabinete exigindo respostas. – lembrou-lhe, ainda usando seu tom calmo e controlado.

Alice deixou-se novamente cair na cadeira desolada. Aquele homem era imbatível. Quanto mais o chocalhava, mais ele se tornava uma muralha de impassividade. Colocou suas mãos no rosto tentando aplacar a dor que latejava em sua testa. Tinha noção de que não queria confessar para si mesma, o que já se tornara tão óbvio.

- Como pude ser tão estúpida – começou a resmungar em seu canto, dando leves tapas em sua cabeça – e essa dor que não passa!.

- Talvez devesse ir para casa. Amanhã lhe chamarei. Esta descoberta é bem importante e ganhará uma boa gratificação por ela.

- Gratificação? – a palavra soou como um choque elétrico. – Então acha que é por isso que fiquei aqui trabalhando este tempo todo? Será que você não entende o óbvio?!

- E o que seria o óbvio? – perguntou Gil numa voz mais branda do que de costume. Metade de seu corpo estava escondido nas sombras, inclusive seu rosto, enquanto ela resplendia sob a única lâmpada do lugar. Seus cabelos continuavam desordenados, e seus olhos brilhavam com um estranho fulgor.

- Eu estar apaixonada por você. – quase soprou as palavras, tristemente – Terrivelmente. Apaixonada.

Alice sentiu, mais do que ouviu os passos macios dele sobre o piso do chão se aproximando. Com incrível embaraço pela confissão, centenas de explicações lhe vieram a mente, que ela tentou imediatamente colocar para fora:

- Por que acha que fiquei todas estas noites sem dormir? Por um composto que eu nem sabia o que era! – riu para si mesma indignada, do que pensava ser pura indiferença dela à sua pessoa.

- Porque você é uma moça sem juízo – respondeu com sua voz sonora, um tanto paternalmente, já totalmente ao seu lado. Alice levantou os olhos em direção aquele homem, abismada por ter ouvido a palavra “você”, quase nem prestando atenção ao conteúdo da frase.

Gil agachou-se no chão em frente à ela, fixou os escuros olhos cheios de seriedade nos seus, deixando-a inquieta como em todas as outras vezes. Confusa, deu vazão às mais tolas desculpas, concedendo a sua pessoa ares de criança pega em falta, o que a deixava extremamente graciosa, tal como o cisne que desejava voar e escapar da mesa de seu patrão. Dizia estar louca, arriscando seu emprego com aquela bobagem; ele deveria mesmo esquecer tudo aquilo...
Tão absorta estava em suas explicações, gesticulando as mãos freneticamente, que não o viu se aproximando mais de seu rosto, tocando-lhe o joelho. E, antes que caísse em si, Gil pegou seu pescoço e sem fazer menção de fechar os olhos, dando a entender que não perderia um só segundo daquele contato, a beijou calorosamente.

XII

Aquele beijo era mais do que Alice poderia supor ou imaginar. Seu corpo todo tremia ante o contato daquele homem, que muitas vezes cogitara se possuía alguma experiência com mulheres. Nunca o vira com nenhuma delas, a não ser colegas de trabalho. Não havia um singelo porta-retratos em sua mesa, muito menos aliança em seu dedo. Quem era aquele homem afinal?
Apesar de recear ante alguém de quem nada sabia, deixou-se levar por aquele momento, quase sem nenhuma resistência. Pode-se dizer que a extrema gentileza de Gil, quase amorosa, contribuiu para que ela não mais opusesse resistência aos seus toques.

- Por que complica tanto as coisas? – murmurou ela, embevecida pelo seu charmoso olhar. Meditava que tinha praticamente desistido de possuí-lo. Havia perdido as esperanças e agora tudo tomava formas assustadoras com relação ao futuro. Ela balançava a cabeça recusando-se a aceitar tais fúnebres prenúncios.

Gil nada respondeu, apenas sorriu novamente e a ajudou a levantar-se.

- As horas que gastamos aqui nos deixaram um tanto descontrolados. Venha. Vou levá-la para casa, senho... – interrompeu-se por um momento ao constatar o rápido movimento de pálpebras que ela lhe lançou. Disse com toda a candura que um homem poderia possuir – Alice.

Agradecida, encostou seus lábios no dele, ainda fitando-o por debaixo de seus longos cílios. Gil a enlaçou transmitindo-lhe calma e segurança. Permaneceram assim durante alguns minutos, até que ela fosse desperta por uma risada, que provinda dele, deveria ser denominada “sutil”. Sua natureza não lhe conferia a risada melódica de anjos cantando, como era próprio de Alice, mas sua sutileza de riso, adequava-se bem com sua misteriosa personalidade, ganhando força e uma poderosa auréola de magnetismo.

- Do que ri? – perguntou curiosa e encantada por aquela demonstração de humanidade. Por mais um dia ou dois, ela teria acreditado ser ele tudo, menos humano, enquanto sorvia aquele mesmo perfume irreconhecível que a embriagava.

- Seu nome vem acompanhado de tantas metáforas...Qual delas seria eu no seu País das Maravilhas?

- E que importância isso tem? – perguntou para si mesma, não deixando de responder, após segundos de reflexão – Você seria a lagarta. Sim. A misteriosa lagarta que tudo diz, ao quase nada dizer. Ela é magnética, encantadora e irritante ao mesmo tempo, por causa de sua indiferença. Alice vive um misto de temor e respeito. Sim. Você é a lagarta.

Ao alcançarem a porta da frente de sua modesta casa, da qual de nenhuma maneira se envergonhava, leu em seus olhos uma mensagem, que apesar de sua perspicácia, não conseguiu entender.
Haviam voltado no carro dele. Um veículo popular. Se tinha posses como diziam e seria lógico devido à sua posição na empresa, só podia chegar a conclusão de que ou era muito humilde ou extremamente sovina.
Por um momento, ela hesitou entre despedir-se simplesmente e convidá-lo para entrar. Estava completamente incerta sobre quase tudo. Não agira com lógica, deixara questões em aberto ou mal resolvidas. Tinham que discutir diversas coisas, muitas com as quais se incomodava.
Alice, no entanto, presa como caça por um homem desconhecido, superior à ela, só conseguia manter em seu pensamento aquele rosto maduro de olhos impagáveis que aguardavam sua decisão.
Enfim, optou por desejar-lhe boa-noite e entrou em casa, depois de tê-lo visto sumir no final da rua. Para onde ele iria? Onde moraria? Seria ela mais uma de suas amantes? Suspirou angustiada. O que em alguns minutos tinha a forma de sonho, logo em seguida virava pesadelo. E no dia seguinte, como o trataria? Fingiria que nada ocorrera?
Milhares de questões, das mais corriqueiras às mais complexas atingiam sua mente em turbilhão, que cansada, rodava, rodava...sem parar, relembrando os acontecimentos, cada palavra que ele dissera, cada gesto e sim, o perfume dele. Não tinha certeza, mas lhe lembrava alguma flor.
No dia seguinte, pesquisaria isso mais a fundo. Quanto ao resto. O resto. Pelo menos uma coisa havia sido tomada com sabedoria. Aquela noite não poderia ser passada com ele. Como entregaria-se a um homem que só amaria verdadeiramente se conhecesse a fundo?
Esta idéia tocou fundo seus princípios e procurou dormir com este pensamento: que se ele nunca se revelasse a ela, não poderia amá-lo. A tristeza que a invadiu ao visualizar este acontecimento a manteve acordada até quase de manhã.
Mal fechara os olhos e já os abria para divisar as luzes da manhã. “Hoje é um novo dia”, pensava. “Tudo pode mudar”.

XIII

O trabalho não tinha mais forças para prender Alice. De tempos em tempos dispersava-se, não só em suas atividades, como nas conversas e diversas vezes vira-se caminhando para o gabinete dele, inconscientemente. Cada passo em direção à porta dos laboratórios chamava sua atenção. Imaginava vê-lo chegando a qualquer momento, oferecendo-lhe o braço e convidando-a para uma palestra agradável no seu divã de cetim.
Os minutos tinham a duração de horas e olhar o relógio começara a tornar-se algo maquinal e repetitivo.

- O que há com você, Alice? Parece assustada, não sei – preocupava-se Emerson, que ingenuamente pensara que talvez fosse algo com relação à ele, já que ela não lhe dera resposta ao seu convite.

- Como? – ela dizia, sem nem mesmo notar-lhe a presença.

Ao final daquele dia, Kátia chegara para verificar algumas coisas e fora ríspida com ela ao perceber que não estava prestando atenção às suas recomendações. Percebia que aquela moça nunca conseguiria se manter ali se não se mantivesse alerta.
Encontrando-se com Gil na sala de conferências, comentou sem perceber que o que falava tinha um significado diferente para ele.

- Que maus ventos a trazem, oh, tufão tempestuoso! – exclamou discretamente de sua cadeira, em tom jocoso.

- Um inexperiente, mestre – reforçou a última palavra ironicamente – Aquela menina que contratou. Nestes últimos dias tenho percebido que tem estado muito distantes das coisas. – conversavam baixo, pois um homem explanava alguns números à sua frente num painel.

- Fiquei sabendo que faz todos os dias horas extras. – contemporizou, sem no entanto, parecer realmente se importar com o fato.

- Sim, mas de que adianta gastar horas extras em sabe-se lá o que, quando o que se pede não é feito? Apesar que, sem a verba do governo, não há quase nada interessante para se fazer aqui. – suspirou entre resignada e irritada com a situação.

- E o que acha que seja o motivo de distração dela?

- Algum novo namoradinho.

O palestrante olhou-os um tanto aborrecido, fazendo-os calar-se.

Ao fim do expediente, depois de inúmeras tentativas de concentração, Alice por fim, parara os esforços e sentara-se numa cadeira próxima. Queria ganhar coragem para ir falar com ele, mas ao mesmo tempo um espírito rebelde e orgulhoso esperava ainda que ele viesse procurá-la.
Os passos de alguém soaram pelo piso e procurando controlar-se, ela virou-se, olhos brilhantes, decepcionando-se logo em seguida. Era Emerson.

- Oi, Alice. Ainda aqui? – como ela não respondesse – Bem, eu, eu não queria pressionar, nem nada, mas é que, bem – riu, um pouco inseguro. Era estranho como ela lhe produzia esse efeito. – amanhã é sábado e nós combinamos de sair, lembra? – arriscou.

Alice lembrou-se do compromisso e ia dizer não estar disposta, mas ao lembrar-se do fato de seu amante não ter passado uma só vez naquele laboratório, nem ao menos para vê-la, uma ponta de vingança a compeliu a dizer as seguintes palavras:

- Claro. A que horas vai me pegar? – disse resoluta.

- Pode ser às sete da noite?

- Sem problemas. Estarei pronta.

- Mas, iremos só nós dois? – fez questão de saber.

- Sim. Só nós dois.

Emerson sorriu satisfeito. Ela lhe passou o endereço e telefone e ele, por fim, deu-lhe um beijo singelo, e retirou-se.
“Quer saber de uma coisa? Não irei procurá-lo”, decidiu, levantando-se e arrumando suas coisas para partir. Agora absorta na organização, pois encontrava-se mais relaxada pela última atitude, foi surpreendida por Gil, que parado na porta a observava.

- Há quanto tempo está aí? – indagou, recuperando-se do assalto que tivera.

- Não o bastante suponho. – respondeu, caminhando em sua direção como alguém que se explica por seus atos.

- O que veio fazer aqui? – olhava-o receosa.

- Vim vê-la.

- Agora? Fico aqui das sete da manhã às sete da noite, caso não saiba. – disse irritada. Ele riu de sua maneira peculiar.

- Entendo. Conferências me impediram. – disse displicentemente, apoiando-se no balcão em frente a ela. Pegando seu queixo com uma das mãos, levantou-lhe o rosto, para fitar-lhe os olhos, que ela mantinha abaixados por não ousar erguê-los. – E para que possa perdoar minha grosseria, convido-a para um passeio amanhã, o que acha?

Como ela permanecesse em silêncio, ele brincou:

- Como? Nem com sua lagarta favorita?

À menção da lagarta e do jeito como ele a pronunciara, não pode conter um sorriso tímido. Assentiu, derrotada. Qual era o poder que exercia sobre seu espírito para que perdesse o orgulho daquele jeito?. Seguiria-o para onde quer que fosse, sabia disso. Mas, para isso, antes precisava amá-lo. E o principal de tudo, entendê-lo.
Gil combinou com ela às dez da manhã. Seria uma surpresa, lhe garantira.
Naquele momento, esquecera-se do compromisso com Emerson. Aninhara-se nos braços dele novamente e perdia-se em pensamentos de felicidade, enquanto ele acariciava-lhe os cabelos e beijava-os de vez em quando.
Até aquele instante não lhe ocorrera o por quê da transformação dele de súbita frieza para súbita gentileza do dia anterior. Tudo era por demais novo e mergulhada na situação, nada enxergava claramente.

XIV

Gil na manhã seguinte a levara para uma pequena feirinha de artefatos antigos numa região da cidade bem movimentada, conservando em si, o clima de uma cidade de interior. De onde tivera a idéia de levá-la ali, cismava, deveria provir de seus próprios gostos pessoais, que sem saber, também eram os dela.

- É bastante coincidência que tenha me trazido aqui – disse enquanto tinha em suas mãos uma pequena peça de porcelana chinesa.

- Por que coincidência? Não é seu lugar favorito? – respondeu ele, comprando a peça para ela.

- Você simplesmente deduziu isso?

- Acredito que seja o meu trabalho.

Pararam sobre uma ponte e perderam seu olhar na vista de inúmeros prédios e construções, onde mesclavam-se antigüidade e modernidade em interessante simetria.

- Foi sua idéia decorar os gabinetes daquela forma, não? – Alice especulou. O olhar dele não pareceu mover-se de onde perdera-se.

- Eu fico pensando. Sabe, este tempo todo você nunca me contou nada a seu respeito. O que sei, deduzi através do que observei. Por exemplo, ali atrás, você me disse que as paisagens da África do Sul eram resplendorosas, mas quando perguntei se estivera lá, você mudou de assunto. – antes que tivesse tempo de retomar o fôlego e continuar, ele fez sinal com o dedo indicador para que parasse e acariciou-lhe a face.

- Carpem Diem, Alice. Até no seu País das Maravilhas há hora para despertar.

Passaram o restante das horas agradavelmente, passeando por parques e outros lugares, que imaginava, partilhavam no gosto. Alice lhe convidou, então, no fim da tarde, para jantarem em sua casa. Dizia que sabia preparar comida árabe como ninguém e que se ele quisesse experimentar, nada perderia.
Comeram e riram, mais das piadas dela, do que das dele, pois em atitude quase meditativa, só a escutava. Ora apoiando seu queixo numa mão, ora recostado na parede (já que ela fizera questão de comerem à moda árabe, no chão, sobre almofadas).
Enfim, as sete horas chegaram. Alice havia se dirigido ao pequeno banheiro para lavar as mãos, enquanto Gil tirava cortesmente os pratos, quando a campainha soou na porta de entrada.
Sabendo que de onde estava, ela não escutara, Gil fez questão de abrir a porta por si mesmo.
Não se pode descrever o espanto de Emerson ao deparar-se com seu chefe na soleira da porta, segurando em sua mão um delicado ramalhete de rosas. Em questão de segundos imaginou se não havia entendido o endereço errado e antes de falar qualquer coisa, verificava novamente o que havia anotado.
Percebendo-lhe a intenção, Gil poupou-lhe o trabalho, calmamente, em sua atitude fria habitual:

- Esta é a casa da senhorita Mendes. Não se enganou. – havia reparado nas rosas e esboçara um irônico sorriso, que Emerson não notara em sua confusão.

- Mas, desculpe senhor, o que faz aqui?

- A senhorita Mendes precisava de auxílio num trabalho paralelo. – explicou, mostrando que aquilo seria o máximo que extrairia dele. – Agora se o senhor me dá licença, tenho outros compromissos, avise a senhorita que...

- Me avisar do que? – perguntou Alice ao chegar na porta de entrada e notar os dois homens conversando.

- De que o senhor Andersen tem outros compromissos agora – respondeu Emerson solícito.

Alice mal conteve a surpresa:

- Mas, como? – questionava mais com as pupilas do que com as palavras.

- Desculpe, sei que está muito empolgada com sua pesquisa, mas precisa entender que não é única. – o tom que ele usou foi odioso na opinião dela. Há dois minutos atrás estava este mesmo homem beijando-a e agora lhe despachava. Porém seu senso crítico e inteligência a avisaram logo do que ocorria.

Emerson estava a sua porta com um ramalhete de rosas vermelhas. Gil nunca diria, mesmo que não atinasse por qual motivo, que tinha sido convidado para jantar.
Tentou recuperar a presença de espírito. Gil continuou:

- Vou deixá-los agora. Espero que divirtam-se – comentou fitando-os de cima a baixo enquanto dirigia-se para o seu carro estacionado do outro lado da rua.

- Obrigado, senhor. Até segunda. – gritou Emerson educadamente. Voltando-se para
a delgada moça de vestido verde-musgo, que balançava suavemente com o vento, notou algo estranho na maneira como o olhar dela acompanhou o carro azul de seu chefe. Mais que diabos ele fora fazer ali afinal? Ajuda em pesquisa? Desde quando era amigo dela? Nunca os vira conversando.

- Vocês conversam há muito tempo? Pensei que ele não falasse com ninguém mais de dois minutos, a não ser com Kátia, com quem é obrigado, já que ela coordena tudo.

- Na verdade não. Eu pedi para que me ajudasse e ofereci minha casa. Ele prontificou-se a vir e bem, você o viu. – falava um pouco distraída, um pouco sem paciência pelas mentiras que inventava.

- Surpreendente. Conseguiu algum resultado? – interessou-se de repente.

- Não muitos. Ele é um pouco calado demais. Ordena o que deve ser feito e eu tenho que descobrir tudo por mim mesma. – concluiu dando a tudo um duplo sentido.

- Mas é melhor assim, não acha? O mérito da descoberta depois cairá todo sobre você.

XV

O comentário pareceu despertar algo nela, acordando-a daquele vicioso torpor. Entrou correndo sem explicações, pegou sua bolsa e não se importando com o fato do vestido ser desapropriado para noite, acompanhou-o para onde ele a quisesse levar.
Meia hora depois estavam num bar um tanto sofisticado. Alice observou suas roupas um pouco desolada, comparando-as com de todas as moças elegantes do lugar. Acompanhando-lhe o olhar, Emerson riu e sussurrou nos ouvidos dela:

- Esqueça delas. Você está linda. Parece um ninfa do mar com este vestido. – Alice sorriu agradecida. Era bom saber que não era a única apaixonada ali. E também, sentir-se desejada por outro homem dava-lhe forças e segurança para pensar a respeito da sua relação tumultuosa com Gil. Comparava-a com a Quinta Sinfonia de Beethoven, enquanto as primeiras revoluções eram tempestuosas, as próximas se tornavam brandas e assim iam de um lado para outro, com ondas em uma tempestade.

- Me diga, você trabalha no instituto há muito tempo?

- Praticamente desde que Gil assumiu o posto de chefe, há dez anos. Se não me engano fazia só um ano que ele havia ascendido quando eu entrei – disse após bebericar um pouco de seu copo. – Por que?

- Curiosidade. Então você tem muita experiência. Deve saber das histórias mais mirabolantes. – sugeriu o assunto com todo o charme que conseguiu imprimir às suas palavras.

- De fato – lançou-lhe um sorriso meio de lado – eu sei, sim. Por exemplo, você sabe porque nós ficamos nos entregando aquelas atividades que qualquer outro instituto faria, menos nós? – deu uma pausa de suspense – Por causa disso – gesticulou os dedos significamente – Dinheiro. O governo está para liberar uma verba, mas o senhor Andersen se recusa a exigi-la. Comenta-se por aí que ele já a requisitou, mas gastou tudo nas suas atividades clandestinas. Aí ele não poderia aparecer por lá e requisitar novamente.

- Mas outra pessoa não pode ir lá verificar isso?

- Não. Parece que somente ele tem acesso livre. É o porta-voz do instituto. Sempre comparece às audiências sozinho. Kátia às vezes o acompanha, mas nunca pode entrar.

- Estranho. E aquela fórmula que estávamos pesquisando, sabe para o que é? Até agora não consegui perceber o composto que a forma. – mentiu.

- Verdade, nem eu. Parece um eterno quebra-cabeças aquilo. – bateu a mão espalmada no balcão. - Especula-se que seja um novo remédio. – suspirou.

- Porém nunca se sabe ao certo de nada. – concluiu. Olhando pensativamente ao seu redor murmurou - Quem está imerso em um quebra-cabeças somos nós e não a fórmula, Emerson.

- O que quer dizer?

- Nada, realmente – fingiu estar um pouco tonta e riu – A bebida começa a fazer efeito eu acho. Minhas palavras perdem o sentido.

Emerson aproximou-se dela e em atitude sedutora a beijou. Sentindo-se um pouco abusada, já que aparentemente ele aproveitara-se da sua indisposição, afastou-o, porém com delicadeza. Ele era uma chave importante para o que estava tentando vislumbrar.

- Deveria aprender a se comportar – repreendeu brincalhona – Falando nisso, sabe o que eu percebi lá em casa hoje, tendo o senhor Andersen ao meu lado?

Mexeu nos cabelos, dando mais entonação de uma mulher que começava a ficar ligeiramente ébria. Para melhor convencer, tomou mais um copo. Emerson não sabia que Alice tivera o péssimo hábito de aprender a beber com seu namorado estrangeiro. Ele lhe ensinara técnicas de como ingerir altas doses de álcool sem embriagar-se. Ganhara alguns campeonatos em bares perto da biblioteca assim. Um dinheiro que usara depois na compra de seus livros e que dissera a sua mãe ser fruto de uma ajuda a bibliotecária.

- Que ele não parece gostar de mulheres. Acho que na verdade é um daqueles homens que dedicam a vida a virgindade, você me entende? Em séculos passados, seria um eunuco!

Emerson, ótimo em ciências exatas, e apenas nelas, não conseguiu visualizar seu chefe da mesma maneira como ela o fazia. Mas o comentário animou sua disposição para o boato, presente em todo ser humano, como ela previra.

- Não sei se ele pratica isso que você disse. Sei apenas que ele não é casado. Pode ser que tenha sido, mas nunca vi ou ouvi algo que me comprovasse isso. Nunca o vi com mulher alguma também. Às vezes o encontro no teatro do centro da cidade. Praticamente todas as vezes que fui, ele estava lá. Acho que gosta daquele dramaturgo inglês...

- Shakespeare?

- Isso. Mas nunca acompanhado, nem de parentes ou amigos.

- Ele deve se sentir muito sozinho – exteriorizou, corrigindo-se em seguida – Pobre coitadinho! – riu gostosamente com sua ironia forjada.

Emerson riu com ela, aproveitando-se para beijá-la novamente.

- Vamos deixar de falar nesse velho. Estamos os dois aqui, sozinhos, nos divertindo. Vamos aproveitar o momento.

- Carpem Diem. – ela repetiu, lembrando-se do momento em que Gil lhe soltara esta frase. Sim, também lhe dissera para aproveitar a vida e que um dia ela despertaria do País das Maravilhas. Estaria ele lhe compelindo a descobrir algo que não podia ainda lhe dizer?

- O que disse, querida? – novamente a falta de conhecimentos universais atingiu-o

- É uma expressão em latim que significa...esqueça...Pode me levar para casa? – decidiu subitamente perdendo a paciência. Conseguira o que queria, não tinha mais porque continuar com aquela comédia.

Emerson encorajado pela bela companheira, bebera mais do que podia e no fim, ele é que encontrava-se meio ébrio, não raciocinando muito bem ante a súbita mudança de comportamento.

- Para casa? Já? Mas nem nos divertimos ainda. – reclamou um pouco mais sóbrio.

- Eu sei, desculpa. Preciso dormir. Foi um longo dia de estudos para mim. – levantou-se apressada, enquanto ele pagava o barman.

- Tudo bem, desde que prometa sair amanhã comigo. Podemos almoçar se quiser.

- Claro. Combinamos melhor amanhã.

XVI

Naquela noite, Alice raciocinava nunca velocidade quase frenética. Podia falar com certeza que não dormia bem há quase um mês. “Quando toda esta história terminar, se é que terminará, tirarei férias só para hibernar”. Retomava todas as informações que obtivera desde o início. Lembrava-se muito bem das palavras de Kátia sobre a verba, da relutância de Gil em exigir alguma coisa. Do fato de estarem solucionando a fórmula de um remédio, ou o que quer que fosse, às escondidas, durante à noite, enquanto seus colegas tentavam, sem nada conseguir. Logicamente sentia-se envaidecida por terem os dois solucionado sozinhos, porém tinha consciência de que tinha como parceiro um profissional de mais de vinte anos de experiência e chefe do maior instituto de pesquisa médica do país.

- Ah, maior instituto de pesquisa médica do país! Que nome pomposo! – pensou - Um instituto tão bem recomendado dependendo de uma verba para continuar na ativa. - Aquilo não fazia sentido!

Todas reflexões tomavam forma em seu sofá, onde reclinara a cabeça em algumas almofadas. No rádio tocava a Quinta Sinfonia, que ela ironicamente para si mesmo, colocara, para raciocinar seu relacionamento com a trilha sonora adequada.
Uma leve batida na porta a tirou rapidamente de sua posição.

- Quem será agora? Uma da manhã! Pelo menos não só sou eu que mantenho hábitos noturnos – pensou, sorrindo consigo mesma.

- Gil!

- Beethoven. Uma música bem adequada à nossa relação. – comentou imóvel do lado de fora.

Os acordes da música estavam em seu derradeiro final, quando após piscar nervosamente os olhos, ela abriu passagem para que ele adentrasse a casa.

- Pensei que tivesse compromissos mais importantes. – resmungou enquanto fechava a porta.

- E tinha. – respondeu, sentando-se no sofá. Ato que ela imitou. – Esta música é mais bonita. Começa lenta e vai crescendo em intensidade até romper todas as barreiras. E no entanto é sempre o mesmo tema, tocado repetitivamente.

Gil referia-se à uma fuga de Bach que tocava em seguida à sinfonia.

- Tal como você. Fico imaginando se não é sempre a mesma pessoa, repetindo-se, mas em tonalidades diferentes. Hoje descobri muitas coisas a seu respeito. – insinuou para testá-lo.

- Boatos são sempre boatos. Espero que não a tenham assustado com a história do fantasma do corredor e suas correntes tenebrosas – gesticulou os dedos imitando o que seria um fantasma de aspecto tenebroso.

Alice jogou-lhe uma almofada na cabeça, segurando-se para não rir.

- Fantasmas não me assustam. – praticamente caiu aos seus pés e beijou-lhe apaixonadamente – Mas boatos sempre vem de um fato real.

- De fato, meu gafanhoto serelepe. – ele respondeu sério.

- De onde tira essas frases? Anda lendo livros de sabedoria chinesa além da conta.

E perdendo as mãos em seus cabelos grisalhos, Alice por um momento desejou esquecer sua antiga resolução e liberando seus sentimentos. A relação deles era por demais esquisita para que não aproveitasse alguns momentos ao seu lado.
Afetuosamente ele a levantou pela mão e a conduziu até o quarto.
Ao ser depositada no colchão macio, Alice espreguiçou-se e quando o companheiro deitou-se ao seu lado, aconchegou-se nele, espreitada contra seu peito. E assim, inesperadamente, dormiu profundamente.

XVII

Quentes e agradáveis raios solares bateram em seu rosto indicando a manhã. Alice demorou para abrir os olhos, reconfortada que estava na sensação de leveza. Sonhara que estava voando e ainda sentia-se envolvida pelas brumas do sonho.
Demorou para ter consciência do dia e do que acontecera na noite passada. Seus pensamentos voltavam lentamente. Com a mão direita procurou tocar o resto da cama, procurando por alguém, entretanto ninguém estava lá.
Ao entender o que isso significava, ergueu-se de um salto, assustada. Estava sozinha em seu quarto.

- Por que se contorce como uma enguia? – uma voz familiar lhe falou da porta. Era Gil que entrava no quarto com uma bandeja de café-da-manhã. – Fiz questão de lhe preparar alguma coisa. Você parecia indisposta ontem.

Ela agarrou-o pelo pulso.

- Sim. Ontem. O que aconteceu?

- O que queria que tivesse acontecido?

- Nada.

- Então não vejo o por quê da preocupação. Aqui está. – ajeitou a bandeja numa mesa próxima.

Ele sentou-se na beirada da cama, silencioso.

- Eu dormi não foi? – Alice sorriu embaraçada. Pensou em como ele devia estar se sentindo, porém surpreendia-se com o fato dele ter ficado ali. – Você dormiu bem naquele sofá? Quero dizer, não parece que dormiu aqui e...

- Eu não durmi. Tem uma biblioteca muito interessante, Alice. – parou um instante e depois finalizou – Pena que não tenha aprendido valiosas lições de seus livros de espionagem.

Alice quis deixar para pensar em suas palavras depois. Morria de fome. O café que ele preparara convidava-a ao desjejum.
Durante a manhã, Gil a ajudou nas tarefas domésticas com uma alegria muito bem disfarçada, mas que ela começava a desvendar, de tanto que observara aquele rosto mudando de expressões com uma habilidade tão sutil que tinha que se ter muita paciência para pegar-lhe os detalhes.
Comentaram sobre os livros que haviam lido e num dos momentos de contemplação mútuas, em que ela recostava-se em seus braços, mostrando-lhe um álbum de fotografias, ele perguntou de chofre:

- Alice, não a incomoda a nossa diferença de idade?

- Não. Meu pai era vinte e quatro anos mais velho que minha mãe e nunca conheci casal mais feliz que os dois. – olhando-o de baixo – e os seus pais, foram felizes?

- Dizem que a felicidade não é deste mundo... – citou laconicamente.

A inocente resposta pareceu ser a gota d’água para ela.

- Sabe de uma coisa? Isso não vai dar certo. Nunca. – disse levantando-se, indo parar perto da mesinha. Estava a ponto de verter algumas lágrimas. – Eu começo com uma simples pergunta e você nunca é capaz de respondê-la. Eu não posso viver assim, Gil. Eu te adoro. Conversar com você me delicia, aliás, tudo em você. Seu cheiro, seu sorriso, seu olhar. Mas eu não sei quem você é! – bateu furiosamente com o pé no chão.

- Você não precisa saber. – murmurou num tom indefinido, um pouco sacudido pela reação explosiva dela.

- Claro que preciso. Você me disse que até mesmo Alice havia despertado. Eu quero despertar.

Gil a olhava fixamente e ela não conseguia descobrir o que tencionava. Impacientemente, pegou suas chaves e saiu. Precisava de ar puro.
Deu algumas voltas pelo quarteirão chorando algumas vezes e quando voltou a casa, duas horas depois, ele havia partido. Nenhum recado repousava em sua mesa. Nenhum pedido de desculpas. Ele havia ido embora.
Caiu novamente no sofá. Amanhã pediria sua demissão.

XVIII

Naquele quase um mês de convivência, chegara enfim a conclusão de que seria impossível continuar com aquele relacionamento. Além de carecer em bases sólidas, o romance tornava-se a cada dia mais opressivo e muitas vezes confuso. Nunca em sua vida imaginara adentrar naquele mar de emoções. Para ela, em sua aguda intuição, Gil era um homem perdido, fechado numa ostra tão bem lacrada, que havia, ele mesmo, perdido a noção de intimidade tão comum aos seres humanos. Imaginava o que teria acontecido para que um profissional tão conceituado agisse de maneira tão desencontrada, não só nos negócios como na vida pessoal.
Ele tinha o poder de transformar minutos junto à si, em vagas de felicidade e calma. Um homem tão doce e gentil como se mostrara tantas vezes não era compatível com sua frieza e indiferença.
Por mais que quisesse desvendar todo este mistério, Alice considerava não possuir forças para tal. A sabedoria dizia que os homens só mudam de dentro para fora. Nada que fizesse poderia impelir Gil na sua abertura para o mundo, a não ser através de uma decisão íntima dele mesmo.
Gil parecia querer ficar com ela, desfrutar das conversas intelectuais e filosóficas e perder-se em seu mundo sem ser perturbado. Entretanto Alice queria penetrar em seu mundo, pois só assim, seria parte realmente integrante de sua vida.
Com todos estes pensamentos em mente, decidiu afastar-se definitivamente do instituto. Há muito desfrutava do trabalho que lá exercia, grande parte devido aos mistérios que lá circulavam. Todas as suas batalhas em antigos trabalhos tinham sido originadas pelo mesmo motivo: gostava de trabalhar às claras, gostava de ordem e honestidade. Pela terceira vez sua sina repetia-se. A única diferença era que desta vez sua briga com o chefe tinha assumido proporções íntimas inimagináveis.
Além do mais, afastar-se do instituto claramente significava afastar-se de Gil Andersen. Somente longe daquele olhar, poderia raciocinar novamente e continuar sua vida, aonde quer que decidisse se fixar.
Lembrou-se da impressão inicial de que tudo aquilo não daria certo e sorriu amargurada. Valera a pena em certo sentido. Não teria voltado atrás se pudesse recomeçar.

No dia seguinte, como combinado, Emerson telefonou. Alice, mergulhada em apatia e em suas recordações, desculpou-se, omitindo sua saída da empresa. O rapaz do outro lado da linha subitamente percebeu o que ficara estampado diante de seus olhos durante aquelas semanas. Alice e Gil estavam tendo um caso! E ele fora estúpido o bastante para não dar-se conta do ocorrido. Notava com absoluta clareza como a desculpa do dia anterior para a presença do chefe na casa de Alice fora completamente absurda. Conhecia aquele homem há dez anos e nunca o vira agir daquela maneira. Recordou-se das conversas e do fato dele ter sido sempre o assunto principal.

- Eu sei que está com ele, não minta – disse de repente, após estas reflexões que não duraram mais de alguns segundos.

- Com ele quem? – surpreendeu-se, apesar de saber que isto aconteceria de qualquer modo.

- Você sabe, Gil, seu chefe. Por que saiu comigo se estava com ele este tempo todo? E aquele teatrinho na porta da sua casa? Eu sempre desconfiei que tivesse relacionamentos bem esquisitos...que tipo de namorado gosta de ver sua garota saindo com outro?! – dava as suas palavras um tom chocado.

- Ele não é meu namorado, Emerson. E que isto fique bem claro. Agora eu não preciso dar explicações a você sobre minha vida pessoal. Desculpa se lhe dei falsas esperanças. Mas note que o principal responsável por elas, foi você mesmo.

Antes que Emerson pudesse responder, despediu-se rapidamente e colocou o telefone no gancho. Receava, passado o instante da raiva, que sua rispidez provocasse nele o desejo de delatar seu relacionamento a todos que encontrasse pela frente. Não temia pela sua reputação, já que a abandonaria, mas ressentia-se por Gil. A imagem dele estava por demais deturpada para receber mais aquele revés.

XIX

Todo o gabinete de Gil Andersen transpirava aquele mesmo perfume embriagante. Aquele, que apesar de pesquisar, não entrara a fonte. Talvez não tivesse procurado com muito empenho, suspirava, mas agora aquilo não tinha mais importância.
Sentada na única cadeira em frente a imensa mesa de madeira escura, Alice observava os mínimos detalhes daquele rosto que contraia-se estranhamente, enquanto passava os olhos sobre a carta de demissão. Havia colocado seus inseparáveis óculos, que tremeluziam com os reflexos da claridade de fora.
Às vezes abaixava os olhos resoluta a esquecer de vez aqueles traços, porém uma força irresistível a puxava e assim, numa luta de dominação e subjugação intermináveis, passou aqueles silenciosos minutos.
Repousando a folha sobre o tampo da mesa, ele aconselhou seriamente:

- Não deve deixar sua vida pessoal interferir na profissional. Seu pedido de demissão é inadmissível. Terei que recusar.

- Sinto muito, mas o senhor não pode me prender aqui. – voltara a usar a linguagem formal, como prova de seu desligamento.

- Está agindo de maneira irracional. O instituto a abrigou em seus braços. Partir seria o mesmo que voltar a estaca zero. – seu tom era perfeitamente controlável.

- Pois então que assim seja. E quanto a ser irracional, bem, acredito que somente agora estou agindo racionalmente. Durante todo este tempo tenho agido fora do controle, não tenho dormido bem, meu relacionamento com o grupo não é dos melhores, realizo tarefas para as quais não sei a utilidade.

- Controle é uma energia interna. Sabendo canalizá-la, vencerá estes problemas.

- Como o senhor? Admiro seu autocontrole, poderia aprender a utilizá-lo, mas estaria perdendo um pouco de mim, da minha personalidade, da minha espontaneidade, além do mais, nada tenho a esconder – alfinetou, revelando sem querer um pouco da sua mágoa. – O controle nem sempre clareia as situações.

- E como sei, a senhorita deseja as coisas às claras. – começou – que seja.

Gil abriu a gaveta com uma pequena chave que trazia ao bolso e de lá tirou uma pasta com todas as informações possíveis sobre o composto que estiveram estudando naqueles últimos tempos.
Alice, com a pasta em mãos, não conseguia proferir palavra. Aquele gesto fora inesperado. Pela primeira vez, provara confiar nela, entretanto precisava possuir mais informações para medir o grau desta confiança.

- O composto sim, era parte fundamental de um remédio que o instituto, sob meu nome resolveu desenvolver. O governo me deu possibilidades de o fazê-lo secretamente, para evitar qualquer tipo de concorrência. Entretanto para minhas primeiras experiências, tive gastos vultuosos e ficou estabelecido que só voltaríamos a receber verba, a partir do momento que tivessem em mãos o remédio pronto para ser testado. – fez uma pausa. Alice escutava-o sem desviar a atenção – procurei agir por conta própria para evitar a cobiça de meus jovens colaboradores, cujas mentes fervilham diante de uma descoberta deste porte. Dei à eles a parte mais complexa, esperando que alguém conseguisse destrinchar o enigma, enquanto eu mesmo o tentava, noite após noite. Quase um mês depois, a senhorita apareceu e em questão de dias chegou ao resultado que eu esperava.

- Então isso explica o por quê da ceninha em frente Kátia aquele dia. Não podia falar abertamente, nem queria que eu mostrasse aos meus colegas o que tinha descobertos, dando a entender que aquilo fosse mais importante do que parecia ser. – fitando-o brandamente não conseguiu esconder sua simpatia – Deve ter sido difícil ser pressionado por todos os lados.

- De certa forma, senhorita, o ser humano a tudo se acostuma. E representar um personagem é quase sempre mais seguro, quando pisamos em território hostil.

- Eu não entendo, Gil. Por que disso tudo? Eu não sou hostil a você – seu tom perdera a frieza anterior. – Poderíamos ser felizes juntos, só depende de você.

- Não jogue em minhas mãos algo que não posso oferecer. – respondeu, sereno, guardando novamente a pasta.

- Então não há esperanças. – sentenciou – Nem lugar para mim aqui.

Abrindo sua bolsa, depositou suavemente o cisne de papel sobre a mesa:

- Fique com ele, para lembrar-se que eu sempre quis fugir de você e que agora eu o consegui.

- A fuga pode ser a pura negação de quem somos. – raciocinou, sem tocar o cisne.

- Então fuja, Gil, fuja – implorou, mais com os olhos, do que com a voz que permanecia firme.

Saindo pela porta prometeu nunca mais voltar. Fecharia sua casa na cidade e voltaria para os braços de sua mãe no interior. Lá teria paz. E mesmo dizendo não haver mais esperanças, sentia em seu íntimo que o esperaria atravessar a agradável varanda de sua mãe para buscá-la.

- Tola menina apaixonada – diria sua mãe certamente, acariciando seus cabelos e falando de um futuro onde só haveria felicidade e paz.

E em algum dia teria havido felicidade e paz no mundo de Gil?

XX

A chácara de sua mãe tinha ares de um mundo a parte. Campos verdejantes circulavam a pequena casa de madeira, isolando-a da barulhenta e caótica civilização. A varanda repleta de flores era um convite a meditação e à leitura. Depois que seu pais morrera, Dona Ana resolvera vender a propriedade situada na área urbana e comprar aquele “pedacinho de chão”, como chamava. A terra era significativamente mais barata e com o dinheiro de venda da modesta casa, vivia agora no que considerava um luxo.
Tinha espaço para plantar e cuidar das galinhas. Nada lhe faltava. Amava a terra e ela lhe retribuía com seus frutos. Tinha como companhia a filha de um morador próximo, que praticamente adotara, após a morte deste, há alguns meses. Sendo aquela senhora sua única família, dedicava-se a ela com venerável dedicação. Seu nome era Amélia e tinha apenas treze anos de idade.
A vida no campo não era uma vida cheia de facilidades e tampouco de ociosidade. Com sua chegada, Alice logo percebera que era seu dever ajudar nas tarefas da casa, cuidando para que também a propriedade fosse bem cuidada e administrada. Usando seus conhecimentos administrativos, - e isso pela primeira vez, praticamente falando – fundamentou novas estruturas e garantiu a sua mãe uma estabilidade econômica e uma renda fixa, que ela sempre lhe agradeceria.
Para isso, Alice entregara-se às contas e aos documentos. Observara as relações de trabalho, quantificara tudo o que via e encontrara várias maneiras de expandir aquela chácara. Sua mãe com toda a simplicidade de que era capaz, recusava esta idéia, querendo apenas o bastante para viver sua velhice. Dona Ana lhe dizia:

- Sei que deseja desesperadamente gastar seu tempo em algum projeto para deixar de pensar naquele homem, mas aumentar minhas rendas não lhe trará paz, nem a mim, diga-se de passagem. O que faria com todo este dinheiro que planeja para mim? Já passei da idade de ser uma mulher de negócios. Por que não clinica na cidadezinha próxima? Afinal, você é formada e tem muita gente precisando de seus esforços.

- Clinicar? Não sei mãe. Queria mudar totalmente de profissão, entende?

- E não é o que tem feito este tempo todo? Formada em medicina, você trabalhava como recepcionista num hospital, depois foi para a área de pesquisa. Você vive fugindo.

- Por que nunca me disse que era assim que pensava?

- Queria que você encontrasse seu caminho sozinha. – foi sua simples resposta.

- Mas eu não tenho a mínima idéia do que quero seguir. – reclamou, virando algumas páginas cheias de conta que tinha sobre a mesinha.
- Então dedique-se ao trabalho da terra e da casa. São trabalhos humildes, muitas vezes pesados, mas com eles poderá esvaziar sua mente de tal forma que, através da simplicidade, as coisas ficarão muito mais claras do que imagina.

Percebendo a sabedoria contida nas palavras da mãe, Alice comoveu-se, abraçando-a pela cintura, agradecida:

- Obrigada, mãe. A senhora é um anjo do céu.

- Sim, sim...agora vá trabalhar que tem um monte de roupas para estender no varal.

Assentindo com a ordem, mais amorosa do que repreensiva, Alice deixou as contas sobre a mesa da varanda e foi-se dedicar às suas novas tarefas. Já fazia três semanas que morava na pequena chácara e deixara de alimentar ilusões sobre sua vida amorosa. Queria fazer exatamente o que sua mãe lhe recomendara. Afastar de si todo e qualquer pensamento e sentir a Natureza de maneira contemplativa, totalmente vazia de sentimentos.

- Mãe, a senhora acha que Gil um dia virá me procurar? – perguntara um dia, enquanto colhiam maçãs no pomar, uma semana depois.

- A batalha que um homem enfrenta para mudar a si mesmo é longa e difícil. Ele tem que amá-la muito para dispor-se a isso. – fitando-a com seus olhinhos atentos, questionou – Será que é isso que ele sente por você?

E assim, com a dúvida presente em seu peito, Alice passava a maior parte do tempo distraindo-se de si mesma. Muitas noites, não impedira seus sentimentos de virem a tona e explodirem em algumas lágrimas ressentidas, que molhavam seu travesseiro dando o gosto salgado da desilusão.
Um dia aquilo passaria, murmurava para si mesma. O tempo fazia com que os acontecimentos e as pessoas perdessem a força. Decidiria que caminho queria seguir agora e daria nova forma à sua vida.

XXI

Com novas resoluções em mente, algumas semanas se passaram na mais completa tranqüilidade. O lugar em que agora morava lhe dava muita coisa para fazer e pensar. Meditara algumas vezes na varanda - ouvindo Amélia cantando, enquanto esta dava de comer às galinhas – sobre suas novas atividades. Pensara em ser economista, pintora e até mesmo fotógrafa. Entretanto, tudo aquilo que parecia ainda simples hobbies dos quais não deseja formar uma profissão.
A amplitude de seus conhecimentos a cansavam, às vezes. Teria sido mais fácil se seus gostos confluíssem para apenas um ponto. Desprovida de forças para mudar a natureza de seu ser, esperava, pacientemente, que uma idéia lhe surgisse de repente.

Um pouco mais de um mês depois de sua partida do centro urbano, Alice, totalmente adaptada à nova vida, estendia algumas roupas no varal, cantando algumas das músicas locais que Amélia lhe ensinara. Perdia-se em divagações sobre um romance que acabara de ler. Tratava-se de um rei frio, que por ganância mandara exterminar milhares de religiosos. Cogitando na tristeza de uma vida mergulhada em tanta crueldade, ela ouviu passos na varanda e na escada que dava para o jardim dos fundos, onde estendiam-se a roupa. Deduzindo ser sua mãe ou Amélia, não perdeu mais que dois segundos constatando este fato e continuou cantando serenamente.

- Cantando assim, chegará ao céu muito rápido – uma voz conhecida soou em seus ouvidos como um trovão irrompendo num campo deserto.

Alice, vestida simplesmente, cabelos desordenados mais do que o normal, lençóis entre as mãos, não conseguiu pensar em nada mais significativo do que a sua aparência. A explicação talvez para sua fútil preocupação, residisse no fato de temer pensar em qualquer outra coisa mais importante. Se pensasse que aquela voz que escutara representava para ela toda uma gama de novas verdades, teria explodido ali mesmo.

- Vai fingir que não estou aqui? – perguntou ele mais perto, quase sussurrando em seus ouvidos.

Estremecendo, ela não conseguia virar-se para encará-lo. E se tudo fosse uma ilusão de sua cabeça?
Tomando coragem, fitou aquele rosto, do qual não esquecera um só traço, e que permaneciam do mesmo jeito como os deixara.
Gil estava vestido de maneira esporte e sorria para ela como se algo nele tivesse finalmente se liberado.

- Como me encontrou aqui? – foi o que conseguiu dizer em primeiro lugar.

- Subestima-me. Soube seguir suas pistas com minhas pequeninas células cinzentas do cérebro. – sorriu ao citar o célebre detetive Hercule Poirot.

- E você vem me contar o que eu quero saber? – perguntou desconfiada.

- Não - respondeu, avaliando o choque que a negativa produzia nela – Mas, estou disposto a vender informações.

- Vender informações? – qual era o sentido de tudo aquilo? Começava a sentir-se exasperada.

- Gardênias. – soltou a palavra, despertando inconscientemente algo em Alice.

- Gardênias! Seu perfume é feito de gardênias. – disse entre dentes.

- Sim.

- Mas qual a relação? – percebendo o olhar divertido dele, irritou-se um pouco - Se veio aqui para me confundir de novo, é bom sair por aquela porta, Gil. Eu já mudei de casa e emprego por causa disso.

E querendo fugir dele, daquele confronto, e de si mesma, pois percebera que com a presença dele ali, continuava a ter os mesmos sentimentos de antes - coisa que ela ingenuamente pensara ter superado ao longo daquelas semanas – deu as costas saindo apressadamente em direção à varanda.

- Gardênias eram as flores favoritas de minha mãe – ele gritou-lhe do varal.

Aquelas palavras foram como um tiro no meio da escuridão, iluminando tudo a sua volta.

- O que disse? – Alice estacara nos degraus incrédula.

- Eu uso perfume de Gardênias, porque minha mãe adorava esta flor. – disse ele lentamente, dando sonoridade e força a cada uma das suas palavras, enquanto caminhava em sua direção. Alice acompanhava-lhe o gesto.

Quando ficaram mais perto um do outro, os olhos castanhos dela brilharam comovidos, incentivando-o a continuar.

- Eu amava minha mãe. – ele disse, fazendo-a correr para os seus braços e beijá-lo apaixonadamente.

- Eu quero – ele continuou – que você saiba tudo sobre mim.

- É tão bom ouvir você dizendo isso.

- Sim, mas tente entender que isso é muito difícil para mim. Eu demorei um mês só para lhe dizer isto.

- Vai me vender as informações? – ela quis saber, dando uma entonação graciosa aquela situação bizarra. Onde já se viu ter que pagar para conhecer o homem que adorava?

- Sim e quero que pague com gardênias. Cada vez que me trouxer uma, lhe conto alguma coisa. É um preço simbólico. E assim, as coisas durarão o tempo que tem que durar.

- Então minha primeira compra será um buquê de trezentas gardênias. Para que isso dure o ano todo! – ela exclamou feliz.

- Lembre-se da moderação, grilo falante.

Ambos não perceberam Dona Ana, na janela, sorrindo pela cena que presenciara. Tinha o visto circundando a casa algumas vezes nos últimos três dias e notara que toda vez que parara em frente ao portão, desistia, sumindo pela estrada. Supondo que fosse aquele estranho homem por quem sua filha encantara-se, não deixou que ele desistisse na terceira vez.

- O senhor deve ser Gil, não? – ela perguntou alcançando-o na estradinha em frente o portão.

- Sim. – ele respondeu sem parecer de todo surpreso.

- Pois pare de temer o inevitável e entre logo nesta casa. – exigiu em atitude de mãe repreensora.

- Pelo tom, creio ser a senhora a mãe de Alice – comentou aproximando-se. Sabia agora de onde viera toda aquela força que aquela moça transmitia por todos os poros.

E sem mais demora, Dona Ana o conduzira silenciosamente até o jardim e esperara na janela para ver o desfecho daquela história. Somente ela tinha conhecimento do sofrimento de Alice e ao mesmo tempo, entristecia dela ter arrumado para companheiro alguém tão reservado. Entretanto, consolava-se com o fato dele estar ali, revelando a sua filha alguma coisa. Provava que Alice significava mais para ele do que até então acreditara. Os olhos dele não pareciam mentir. Ele a amava.
Recordando subitamente que coincidentemente Amélia havia trazido da cidade duas gardênias, Alice deixou Gil no meio do jardim e saiu correndo em direção a casa, voltando algum tempo depois com elas entre as mãos. Sorridente disse:

- Agora, senhor Gil Andersen. Quero lhe comprar algumas informações.

- Quero pagamento adiantado.

- Quero saber se seus pais foram felizes e como foi a sua infância.

- Venha comigo. – e pegando-a pela mão, conduziu-a até um monte mais a frente, onde sentaram-se para observar a vista.

- Meu pai divorciou-se de minha mãe quando eu tinha nove anos. Casou-se novamente e agora mora na França, onde trabalha num leilão de peças de artes. Minha mãe morreu de câncer há dois anos. Com medo de morrer sozinha, eu a instalei em minha casa durante seus derradeiros meses.

- Por isso se dedicou tanto aquele remédio? Era para o câncer então?

Ele apenas assentiu e continuou:

- Não quis lhe contar porque tudo isso me trazia muito sofrimento. Eu vi minha mãe sumindo naquela cama, entende?

E com muito carinho, Alice abraçou aquele homem forte, que apesar da lembrança, não chorava e perdia seus olhos na imensa paisagem.
Após isso, Gil se calou e nada mais falou sobre seu passado. Alice não se importava mais com aquele silêncio. Tinha a garantia de que ele lhe contaria no seu tempo e movida por esta certeza, voltou para sua casa na cidade, passando a trabalhar, o que parecia surpreendente, numa floricultura. Queria dedicar-se aquele ser que abrira o coração de quem, agora, ela realmente amava, pois passara a conhecer intimamente.

Epilogo

Depois de um ano trabalhando na floricultura, Alice realmente encontra-se a si mesma. Vivia no reino das flores, como a personagem Alice desejara em seu sonho maluco. Era feliz, pois naquele ambiente podia utilizar-se de tudo aquilo que aprendera, desde a biologia até as ciências sociais, a arte e a música. Exercitava seus conhecimentos no lido com as flores, com as pessoas que ali compravam, nos arranjos e cartões que fazia, administrando seu novo negócio, expandindo-o, planejando as propagandas, enfeitando eventos, encantando, enfim, os visitantes com suas histórias sobre os significados das flores, dizendo sempre que podia com satisfação:

- Eu fui enfeitiçada por uma gardênia, uma flor conhecida por seduzir com seu agradável perfume, cuja uma das origens é a África do Sul.

Obtivera esta informação não de livros especializados em flores, mas do próprio Gil. Ele lhe contara que estivera na África do Sul, como também no Japão, China e quase todo o Oriente, pelo qual era fascinado.
Percebera a intensidade desta admiração, ao visitar-lhe a casa pela primeira vez. Uma rica mansão, herança de família, repleta de artefatos, muitos dos quais, confessara, adquirira graças ao seu pai. Outra parte havia sido conseguida em suas viagens e cada parte dele, dizia, residia naqueles objetos.
Ao longo deste ano, a casa de Gil ficara repleta de gardênias, que perfumavam cada canto. O ato ao qual Alice se comprometera de entregar a flor em troca de uma parte dele, representava algo tão sagrado como um culto religioso.

Já o remédio desenvolvido pelos dois ganhara prestígio e ajudaria muitos doentes nos próximos anos. O instituto voltara a receber a verba e os pesquisadores animaram-se com as novas perspectivas. Também admiraram-se com o romance de Alice, sua antiga colega de trabalho, com o ainda enigmático Gil. Porque este, apesar de abrir-se a sua amada, permanecera sem alterações em seu ambiente de trabalho.

Um sábado, como sempre fazia, Alice foi até a casa dele, tendo entre as mãos a poderosa flor. E estendendo a ele, que lia em sua biblioteca fabulosa (cerca de trezentos mil livros), pediu:

- Você me disse que já foi casado uma vez. Gostaria de saber como ela era. – sentou-se na sua frente.

Gil recusou-lhe a flor, depositando o livro na mesinha ao seu lado. Pensando que não quisesse falar sobre aquele assunto, já que algumas vezes recusara algumas perguntas de cunho muito pessoal, ficou atônita quando lhe explicou o motivo:
- Não preciso mais disso para lhe contar o que quiser saber. Mas antes de falar do passado, quero falar do futuro. – erguendo-se do pequeno sofá, gentilmente fez com que ela se levantasse. - Quero que minha futura esposa seja alta, de cabelos encaracolados e lindos olhos castanhos, vinda direta do País das Maravilhas.

Alice, radiante, beijou-lhe tendo a certeza de que aquele homem sacudira sua vida sim, mas transformara para melhor, pois havia descoberto não só o amor, como aquilo que decididamente queria fazer ao longo da vida. Além de ter trazido aquela pérola tão presa em sua concha, para fora, libertando-a.

Três meses depois, lia-se Alice & Gil em todos os convites de casamento espalhados entre parentes de ambos os lados. E na frente do envelope, residia, graciosamente, uma gardênia desenhada pelas mãos de Alice.





















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