Usina de Letras
Usina de Letras
125 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62186 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10351)

Erótico (13567)

Frases (50587)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->A flor, a náusea e a crítca -- 15/05/2011 - 03:49 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A FLOR E A NÁUSEA
(Drummond)

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me`?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Fantástica construção poética. A náusea, que é o produto resultante do conflito do “eu” com a realidade, com o exterior, com a “rua cinzenta”. O eu lírico, preso à classe, às roupas. Mesmo assim, ele vai. Até o enjoo, até a revolta, etiquetado pela posição social, pelas roupas, pela classe, ele vai. Mesmo preso, ele deve seguir. Melancolias que refletem o interior do “eu lírico”, as mercadorias referentes ao extremo, ao capital, à rua. Ao se aproximarem pela sonoridade, personificando-as e convergendo-as para si (por meio do verbo espreitar), o “eu lírico” demonstra (e prenuncia) o feroz conflito com o mundo exterior. Um aspecto importante a ser ressaltado é o uso muito bem empregado da cor branca, em contraste com o cinza. O branco evoca a pureza, a tranquilidade, talvez a paz interior, que se antagoniza ao cinza da rua, ao denso e injusto mundo, pelo qual ele caminha. Ademais, o branco representa a ausência de cor, enquanto o cinza é justamente a mistura desse branco no preto. A poesia, tomada como a flor, pode tornar o mundo menos “sujo”, menos “negro”, mais “cinza”. Ao caminhar pela rua negra, o branco do poeta a torna cinza.
O sujeito está em crise, em uma autoanálise, ele reflete: “Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?”. É a crise de identidade do ser, em uma oscilação entre o “eu” e o mundo, já expressa por melancolias (interior) e mercadorias (exterior). A náusea aqui pode ser depreendida pelo conceito existencialista de Sartre, em uma fusão com a dialética de Drummond, explicitada em dever-poder: dever seguir até o enjoo e poder revoltar-se. A náusea de Sartre surge da liberdade de escolha individual, da possibilidade de ser capaz. Somos responsáveis por gerar, por nossos atos, nosso mundo – responsáveis pela escolha das nossas metas, dos nossos caminhos (as ruas, em que caminhamos) para alcançá-las: opções, possibilidades de êxito e de fracasso, punição e redenção. A impossibilidade da revolta (“Posso, sem armas, revoltar-me?”) faz com que o eu lírico procure uma saída para vencer a náusea: uma flor rompe o asfalto, engana a polícia (censura) e vence, como se percebe no final da poesia. Mergulhado nesse mundo mercadológico, cinzento, nauseante, está o homem perdido em si próprio, em seus ideais, em sua classe social, nos valores e papéis sociais, etiquetados em sua testa. Um “eu” em busca de si próprio, de sua identidade e liberdade.
Esse ser, imerso em um universo que provoca náusea, é o campo conotativo da condição humana. Temos, portanto, pelo esquema de relações sêmicas de Pottier, o enjoo no centro, que dialoga com a rua cinzenta e a mercadoria, em contraposição às melancolias e ao branco, o que resulta na repulsa, na revolta, na aversão e no aborrecimento. E isso leva o eu lírico a cometer um crime, que consiste em qualquer ato passível de punição.
Nesse caso, o sintagma preposicionado “da terra” confere ao núcleo (crime) o seu objeto. Não são crimes reais. O crime é cometido pela terra. São crimes “publicados”, nos quais o eu lírico tem parte (“tomei parte em muitos, outros escondi”). A terra pode ser entendida sob dois aspectos: a terra, que produz o alimento e, por conseguinte, “a ração” e a terra, lugar em que habitamos, o solo aonde edificamos nossa morada, ou seja, o país em que vivemos. O primeiro sentido é lançado sobre outros campos semânticos: ração, padeiro e leiteiro, todos ligados pelo alimento, metaforizado e antropomorfizado em “ração”. O segundo sentido é exteriorizado, remete-nos à realidade sociopolítica da época e à vivência do eu lírico nessa realidade. Tais crimes da terra são as injustiças sociais e outros aspectos nauseantes, diretamente relacionados com a má política, que são fabricados por malignos padeiros e distribuídos por leiteiros, pessoas da mídia, como ração, diariamente, na casa das pessoas.
O campo semântico constituído pelos semas “ração diária”, “padeiro” e “leiteiro” está contaminado por modificadores depreciativos: “ferozes”, “do mal”. A ração, por sua característica antropomórfica (algo próprio do animal, estendido ao homem), também é negativamente carregada. Dessa forma, temos: a ração, alimento do animal e, nesse contexto, também do homem; o padeiro, aquele que faz o pão (alimento); o leiteiro, aquele que distribui o leite (alimento) e, portanto, visto que o alimento é a ração diária, aquele que a distribui.
O verso “alguns achei belos, outros foram publicados” é a chave para decifrar a metáfora. Algo que é distribuído diariamente, que é consumido, como o pão e o leite, que é publicado: algo como o jornal e, por extensão, a notícia, o texto. Temos agora a relação estabelecida: os veículos de comunicação, que, por meio dos ferozes leiteiros do mal, os jornalistas corrompidos, distribuem a ração diária (jornal, notícia, texto) à população, que é tratada animalescamente. Pão, leite, ração de erros: componentes essenciais ao desenvolvimento da criatura humana?
Para o eu lírico, esses criminosos padeiros e leiteiros são ferozes e estão imersos no mal, porque acabam por assumir a ideologia podre do erro, invadindo a casa das pessoas, com essa diabólica e distorcida ração. Por meio do ódio, o eu lírico redime a sua condição errática, dando esperança, mesmo que mínima, é verdade, aos poucos que leem a poesia (sobretudo, aos que conseguem compreendê-la).
“O ódio é o melhor de mim”, pois é justamente do ódio, que nasce a flor; encontramos a explicação do motivo pelo qual a flor é feia. O ódio é bom, porque gera a flor. A flor, a poesia que revela os crimes da terra, que contesta a ração de erros, que resiste aos padeiros e leiteiros do mal. A flor, que é a palavra, verbo, grito, revolução, que duela com a náusea, a flor que é poética, acaba vitoriosa, furando “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. A flor liberta, a náusea prende.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui