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Contos-->O Exame -- 30/12/2002 - 15:47 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

- Então, não se esqueça, amanhã bem cedo lá no laboratório, tá? Em dois dias você recebe o resultado via e-mail. Mas não se preocupe, são mínimas as chances de surpresa.

Pedro despediu-se do Doutor Penha e, por um instante relembrou de seu calvário mais recente.
Depois de semanas de terror, Pedro agora estava quase lá. Apenas mais um exame e ele saberia se aquelas dores acutíssimas na base de sua coluna teriam ido-se para todo o sempre.

Aquilo era um inferno! Quase toda noite ele acordava durante a madrugada sentindo que havia um alien na base de suas costas. Era uma dor insuportável, que vinha sem aviso prévio e durava horas. Eram horas de suor, às vezes lágrimas, de busca por posições reconfortantes, de tentativas estúpidas de se espantar aquela dor maldita. Chegara a tomar laxantes, achando que o problema poderia ser de má digestão ou de tráfego intestinal. Mas, nada feito. Chegara a passar várias alvoradas dentro do banheiro, lera todas as bulas de remédio da gaveta sob a pia e já fizera palavras cruzadas o suficiente para achar repetitivos alguns livrinhos que ainda não havia completado.

Havia já dois meses que procurara o primeiro médico, que lhe receitou “Florais de Bach”, uma infusão de flores e conhaque que prometiam curar quase tudo, dizendo-lhe ser sua dor causada por uma enorme tensão de sua coluna. – Provavelmente stress – diagnosticara o pajé diplomado.

Três horas após a receita, lá estava ele de volta ao consultório do médico, com o corpo inteiro coberto por bolinhas vermelhas e uma coceira que lhe fazia sentir inveja daqueles cachorros que vivem na porta de igreja no interior, que conseguem alcançar o corpo inteiro com suas patas.
- Estranho isso, eu nunca vi nada parecido, assumira o pajé petrificado com o fracasso do seu goró milagroso.
Pedro se foi, coçando-se e xingando o doutor.

Alguns médicos foram consultados desde então. Alguns se declararam inaptos para resolver o problema, outros recomendaram de fisioterapia à musculação, passando por analgésicos e até relaxamento com meditação, uma verdadeira “Torre de Babel” médica.

Até que um dia, já meio conformado com a situação de eterno insone, ele procurou o Doutor Penha.
Tratava-se de um senhor de seus quarenta e sete anos, aproximadamente, grisalho e bem sorridente, levemente manco da perna direita e sempre ostentando uns dois quilos de ouro espalhados entre pulsos, dedos e pescoço.

A maneira como o Doutor Penha falava sobre a sua dor e descrevia o malabarismo rotineiro de Pedro durante as madrugadas de dor dos últimos anos, cativou Pedro e o fez até achar que o ouro ostentado pelo Doutor era fruto de uma fortuna que ele não conseguia mais esconder, amealhada durante décadas de salvação a sofredores desenganados, e não cafonice crônica, como primeiro lhe ocorrera.
Ele descrevia cada estágio da dor que atingia a Pedro, conhecia as posições mais confortáveis, sabia até que Pedro assistia à “Santa Missa em seu Lar” durante crises dominicais da dor (na visão de Pedro essa era uma maneira de se unir o suplício a Deus à insônia matutina). Esse era o homem indicado.

Ao final de quarenta minutos de consulta ele disse a Pedro que seria importantíssimo que fossem realizados alguns exames clínicos, a fim de que se esclarecesse a origem exata da dor e sua abrangência dentro do corpo sofrido daquele `homem com dor`.

Um dia a menos no escritório, passado integralmente no laboratório. Pedro fez tomografia, raio X, tirou sangue, fez xixi num frasco, correu na esteira, furaram o lóbulo de sua orelha, sentiu-se como um daqueles sujeitos que se dizem abduzidos e examinados por extraterrestres em um disco voador.

O Doutor Penha ligou para ele bem cedinho exatos três dias após a abdução:

- Alô, senhor Pedro, como está? E as dores?
- Eu vou mal, cada vez mais fraco e cansado. As dores vão bem, cada vez mais fortes e dispostas, tá dando até gosto. Se meus filhos parassem de se espelhar em mim e buscassem inspiração na minha dor, seriam candidatos a presidência da IBM aos vinte e cinco anos de idade. Diga lá doutor, alguma novidade?
- Sim, preciso de sua presença aqui no meu consultório, antes da hora do almoço. Pode ser às 12:00 em ponto?
- Sim, sim, pode. Alguma coisa grave?
- Nada grave, apenas quero agilizar o processo para que possamos ganhar tempo nessa nossa luta. Meio dia aqui. Deixarei a Cremilda avisada da sua consulta. Até lá.

Pedro aproveitou o telefonema e deu fim à noite de sono e dor. Dirigiu-se ao chuveiro e começou a sua rotina diária. Seria mais uma chuveirada rotineira, não fosse a recapitulação que ele fizera durante o banho daquele telefonema do Doutor Penha.

O médico me pediu que comparecesse a seu consultório no mesmo dia, antes do almoço. Era urgente!
Sua intenção era a de agilizar um processo. Mas que processo?!? E por que agilizá-lo?!?
O fim era o de ganhar tempo em nossa luta?!? Mas qual era a luta em que estávamos metidos? A luta era contra a dor? Ou contra a causa misteriosa dessa dor? E por que essa luta demandava pressa, meu Santo Deus? Médico com pressa é emergência, é óbvio!
Ele ainda havia mencionado a palavra “consulta”, e não a palavra “retorno”, ou a palavra visita, ou até a palavra “passadinha”. Essa palavra iria me custar mais uns duzentos paus. E quem é essa tal de Cremilda?!

O resto daquela manhã fora uma espécie de “viagem de ácido woodstockiana”, parecia que Pedro não estava ali. Ele não respondia aos outros, seu telefone tocava sem parar e ele nem “tchuns”, fitara durante minutos o traseiro de uma moça no elevador de maneira descarada, gerando um certo mal estar entre os passageiros.Era tudo superficial. Essa era a melhor descrição de sua manhã, superficial, nada era importante, pois teria um encontro com seu médico ao meio-dia para discutir a forma de lutar contra algo terrível que residia nele, e essa luta demandava pressa, urgência, determinação, e ainda lhe custaria duzentas pratas, fora a Cremilda, que ainda era um personagem sem função aparente nessa estória toda. Que mais lhe importava nessa manhã? Balancetes? Traseiros de desconhecidas? Telefonemas? Jornais? Era tudo secundário, ele não sabia o que poderia importar em sua vida após o meio-dia.

Caminhou pelo corredor até a porta do consultório do Doutor Penha como se tivesse sido chamado pelo diretor da escola aos doze anos de idade. Medo e mistério preenchiam sua mente naquele momento, era chegado o momento que ele tanto aguardara nas últimas quatro horas e meia.

Entrou pela porta de vidro, não conseguiria depois lembrar-se de tê-la aberto, e dirigiu-se a uma bela moçoila que não tinha sido vista por ele em suas consultas anteriores ao Doutor Penha:
- Bom dia, isto é, boa tarde, é que já passou do meio dia, né?
- Não, ainda são onze e cinqüenta e sete - Devolveu a mocinha, parecendo mais bela e simpática a cada décimo de segundo – O Sr. deve ser o Sr. Pedro Torres, não é?
- É, não, sou, quer dizer é isso mesmo, sou eu o Pedro Torres.
- Pois meu nome é Cremilda e eu vou avisar o Doutor que o Sr. chegou, só um instante, por favor.

Pelo menos a Cremilda era bem melhor do que ele imaginara, as coisas começavam a caminhar bem.
Surge o Doutor Penha sacudindo a sua “Serra Pelada particular” e com um sorriso animador no rosto. Estava mais leve, recuperando o ânimo. Seja lá qual for a luta a ser lutada, ele estava mais preparado agora.

- Grande Sr. Pedro Torres. Vamos entrar?
- Não vou perder nosso tempo com a linguagem técnica, vou direto ao ponto. Os exames mostram que o Sr. pode ter uma espécie de infecção num feixe de músculos nas costas e essa infecção pode ter sido causada por uma espécie de verme que só pode ser detectado no seu intestino, portanto os exames realizados mostram o efeito, mas a causa não está 100% detectada. Preciso ter certeza da causa desse problema para combatermos esse bichinho e cuidarmos para que essa dor se vá.
- Poxa Doutor, isso que dizer que é só tomar uns remédinhos, matar esses bichos e “correr pro abraço”?!?!?
- Mais ou menos. Primeiro precisamos nos certificar que esses bichinhos existem mesmo e são o que a gente imagina.
- E como ter essa certeza?
- Um exame apenas. Coisa simples. Rápido e rasteiro! Sem dor nem hora marcada. A parte chata já se foi!
- Que exame devo fazer Doutor? Quando posso faze-lo? Quero liquidar essa estória logo!
- Examezinho de fezes. Dá pra fazer amanha mesmo.
- O que!?!?!?!?!?!?!?!?!?!!?!?! Fezes!?!?
- É, fezes, coco. Eu posso te arranjar um potinho de plástico aqui no consultório e você nem precisa ir até o laboratório buscar. Aí é só recolher uma amostrinha e pronto.. Entrega no laboratório e, em menos de quarenta e oito horas confirmamos o diagnóstico e prescrevemos um remedinho para acabar com o danado que tanto atazana as suas noites.
- Não vai dar Doutor.
- Como não vai dar? Não vai dar o que?
- Não vou fazer coco no potinho coisa nenhuma. O que que é isso?!?! Eu tenho dor nas costas. Preciso de analgésicos, antiinflamatórios, fisioterapia, acupuntura, reza-brava, sei lá. O meu coco não vai dizer merda nenhuma. Quer dizer, não vai dizer nada, né?
- Sr. Pedro, não lhe compete analisar os exames que eu solicito, caso o Sr. deseje, o Sr. pode procurar outro médico e levar os exames que já realizou. São mais de trinta e quatro anos exercendo a medicina, sem nunca ter me arrependido de um diagnóstico ou de ter pedido um exame desnecessário. O Sr. está tornando essa situação muito embaraçosa para mim.
- Poxa, desculpe Doutor. Eu não sei o que se passou comigo. É que essa coisa de exame de fezes é muito estranha pra mim, eu não sei se eu vou conseguir.
- Pare de frescura. Fique frio e procure entregar a amostra amanha o mais cedo que você puder no mesmo laboratório em que você retirou sangue.
- Eu vou fazer o melhor possível, Doutor, me desculpe mesmo, viu.
- Não se preocupe em caprichar não, qualquer cagadinha serve. Você pode retirar os potes para a amostra na recepção e efetuar o pagamento da consulta lá também. Assim que tiver em minhas mãos o resultado, eu entro em contato com o Sr.. Até breve.
- Tchau, Doutor.

Pedro saiu da sala do Dr. Penha como se tivesse levado uma surra de uma menina de quinze anos dentro de um elevador lotado de mulheres interessantes. Não sabia nem como deveria andar.
Dirigiu-se a recepção sem olhar para os lados, pois não queria que os outros o vissem com aquela cara de quem vai fazer coco no potinho. Como não havia ninguém na recepção, ficou aguardando de costas para a sala de espera.

- Desculpe a demora Sr. Pedro, mas eu nem sabia que ainda tínhamos esse potinhos para exame de fezes aqui no consultório, eu estava em férias e me esqueci até do endereço daqui!
Risadinhas espetaram as costas de Pedro.

Pedro sentiu um movimento estranho entre seu estômago e seu peito, um calor interior que fez automaticamente pontearem dezenas, senão centenas, de gotículas de suor em sua testa e seu pescoço. Não olhou para trás, apenas para o lado, o suficiente para ver a Cremilda, um tremendo mulherão caminhando lentamente, em câmera lenta, estendo o braço esquerdo com dois potinhos de plástico com uma textura meio leitosa.
Pegou rapidamente os dois potes e perguntou quanto devia.
- Cento e noventa reais. Vai querer recibo?
- Sim.

Entregou-lhe o cheque e ainda teve tempo de se expor a uma última frase da Cremilda.
- Não vá me repetir no exame de fezes, hein! Esses são os últimos potinhos que temos.
As risadinhas atravessaram-lhe o peito,

Pedro não se lembraria ao certo de sua reação, mas, acreditem, ele rosnou para a moca. Como um cachorro perturbado durante a refeição ele olhou bem fundo nos olhos caramelo da Cremilda e soltou o que existe de mais próximo de um rosnado vindo de um ser humano.

Durante o percurso entre o consultório do Dr. Penha e o escritório onde trabalha Pedro, ele ponderou o que almoçaria. Algo leve, sem fibras, sem consistência, visando evitar ao máximo que ele venha a fazer coco novamente, ou logo um bom file com arroz e fritas e salada de rúcula, procurando aliviar logo esse suplício que se ensaiava?
Acabaria não comendo nada e voltando para o escritório com cara de quem nem tinha saído. Era isso! Nada acontecera. Procuraria esquecer de sua tarefa escatológica e trabalharia normalmente, como se nada tivesse acontecido.

Seu silencio contrastava com o barulho que seus colegas faziam na mesa de operações da corretora.

- Eu não vou te ajudar nessa, Miguel, a cagada é sua, se vire agora.
- Alguém pode atender a essa bosta de telefone?!?!
- Paulão, hoje eu não vou jogar não. To com uma dor de barriga danada.
- Com esse banco eu não negocio. E um cocozinho! Não tem bala pra esse tipo de negócio.
- Mas que merda!
- Ei, o que deu no Pedro? Saiu correndo e nem levou o paletó. Eu, hein?!

O que estava acontecendo? Milhares de pessoas devem fazer exames desse tipo todos os dias só em São Paulo. Que pânico era esse?
Começou a pensar em como se daria o processo. Chegaria em casa e, assim que tivesse o menor desejo de fazer o malfadado coco, dirigir-se-ia ao banheiro, em silencio, sorrateiramente, e faria o tal. Depois colocaria uma luva cirúrgica que tinha há séculos perdida em uma gaveta, e buscaria dentro do vaso sanitário o dito cujo, o cocô, o Duque, o bololô, o bagre-cego. Aí seria só colocar o maldito no pote, jogar fora a luva e amputar a mão utilizada.

Procurou jantar normalmente, sua esposa nada notara, seus filhos então, eram vítimas da própria ingenuidade. Comeu o que comeria normalmente. Assistiu novela, filminho, jornal noturno e foi dormir sem notar a menor iniciativa de seu estômago e de seu intestino em colaborarem com seu intento. Dormiu razoavelmente aliviado, pois ainda não seria dessa vez que se veria frente a frente com o inimigo.

Acordou na manhã seguinte e parecia que não rolaria antes do almoço. Chegou ao escritório e procurou minimizar sobre a sua fuga do dia anterior, dissera que sentira uma ânsia de vomito insuportável, e correra em busca de ar puro acabando por ir para casa direto.

Passou a manhã toda analisando o comportamento de seu intestino. Procurava compreender qualquer movimento em sua barriga, imaginava ouvir barulhos e sentir tremores abdominais. Cada ronco rotineiro de seu estômago era visto como um aviso de que o pior estava iminentemente por vir.
A tudo isso somava-se a dificuldade histórica de Pedro em defecar no banheiro do escritório. Sempre fora assim, impossível fazê-lo no trabalho, como antes havia sido na faculdade, na escola, na casa de sua avó. Enfim, cocô fora de casa era o `fim da picada`. Obviamente já acontecera, mas contáveis em dedos das mãos. Muitas vezes já se pegara questionando como as pessoas conseguem utilizar o banheiro de um restaurante, de uma faculdade, de um aeroporto, de uma rodoviária, da casa de outra pessoa, para fazer o sagrado e secreto cocô. Tinha amigos que nunca se apertavam, a mínima vontade era a propulsão necessária para se fazer um turismo pelas latrinas mundo afora. Parecia-lhe surreal os relatos dos que haviam deixado suas fezes em locais como o mar, moitinhas, chão, mesa do professor na escola... . Como podiam fazer isso fora de quatro paredes?! Sem jornais, azulejos conhecidos, silêncio absoluto.... .
No futuro, acreditava Pedro, cada um haveria de ter sua própria privada, portátil, auto-limpante, uma beleza de tecnologia. Aliás, deve-se atentar para o nome do recipiente onde costuma ser despejado o bolo fecal. – A privada. Pri-va-da, quer dizer particular, pessoal, intransferível. Como podem haver privadas públicas? É claro que esse negócio tá errado!

De repente, no mais absoluto e repentino sopetão, eis que emana de sua região entérica um sentimento gélido de prenúncio de que ele estava por vir, em alguns segundos estaria escondido, entocado no banheiro mais distante da mesa de operações da corretora coletando a maldita amostra que aquele Doutor Brega tanto desejava, e em mais algumas dezenas de minutos estaria a caminho do laboratório finalizando os momentos mais angustiantes desde a disputa de pênaltis na final da Copa de 94. Tudo acabaria, e isso o reconfortava, e lhe dava mais forcas para encarar o que estava por vir: - A coleta da amostra!

Levantou-se, com a dignidade que deve ter um soldado ao ser preso pelo inimigo, caminhou, como se estivesse desfilando pelos corredores do auditório a caminho de receber um Oscar, em direção ao banheiro da copeira da corretora, onde esperava não ser perturbado em seu momento da verdade intestinal. Sentia-se como se estivesse frente a frente com um louco armado, precisava ser sereno, forte, cauteloso, sabia que qualquer afobação, precipitação de sua parte poderia acarretar numa literal cagada.

Bateu a porta, respirou fundo, sabia que precisaria tapear seu intestino, e a melhor maneira seria simular algo rotineiro, algo normal, mesmo que com esse cenário inédito (jamais o fizera nessa corretora – mais de 14 anos), levaria seu organismo a crer que estava em casa. Precisava fazer isso.

Acomodou-se no vaso, concentrou-se e, após um ou dois minutos percebeu sucesso na operação, era questão de segundos. Sentiu-se genial, seu próprio herói lançando mão de ardis que enganaram seu próprio instinto. Sua natureza entérica doméstica estava vencida por sua astúcia e determinação. Vestiu a luva em sua mão esquerda (a hipótese de amputação ainda não estava totalmente esquecida) e consumou o fato.
Respirou novamente, não tão fundo. Cumpriu todas as formalidades que a higiene exige e levantou-se a fim de encarar o inimigo.
Lá estava ele, inerte. Agora era só retirar-lhe um naco e guardar no....... .
- Meu Deus........não..........O POTINHO!!!!!!!!! O potinho ficara em sua sala, sobre a mesa, disponível, talvez até ansioso por desempenhar sua função.
Não era momento para nervosismo. Sairia correndo e pegaria o potinho, voltaria antes que qualquer um pudesse pensar em tê-lo visto passar.
Preparava-se para sair e correr quando, por uma obra do demônio, alguém forca a maçaneta do pequeno e tão pouco concorrido toalete. Alguém não, a Lucicleide, a verdadeira rainha daquele trono.

- Quem é que tá aí, hein? Si demorá vai complicá pra mim aqui, viu?

Não podia ser sério, isso. Era cruel demais, demais mesmo! Olhou ao redor e indagou como um banheiro podia ser tão desprovido de coisas. Procurou por um copo plástico, uma saboneteira, um saco plástico, um jornal. Nem um maldito jornal havia no banheiro dessa alienada. Custou a crer no inventário que realizara daquele cubículo: - Um rolo de papel higiênico pela metade, uma escova de dentes nova em folha, dois cacos de sabonetes diferentes fundidos um no outro e um vidro de esmalte de cor não identificada.

Pedro fitou aquele negócio à tona no vaso. Nunca pensou que se veria nessa situação, mas teve vontade de chorar. Doer-lhe-ia ver aquilo partir. Evitou pensar em tudo o que ainda estava por vir. Apertou o botão com cerimônia e viu a derrota rodopiar e submergir rumo ao léu.
Abriu a porta pronto a cometer uma injustiça inominável e ofender a Lucicleide, e deparou-se com a moca ajeitando algumas xícaras em uma bandeja.
- Que foi mulher? Fez na calca? O que aconteceu, ainda agora você esmurrava a porta do banheiro........
- Ihh, seu Pedro, e eu lá sou mulher de me apertar? O Sr. demorou, eu fui lá no banheiro das madame e castiguei a porcelana. Se foi por isso que o Sr. saiu, pode voltar.

Dois rosnados em menos de 24 horas, Pedro comportava-se como um animal acuado. Deixara a pobre mulher lívida, chorosa, nocauteada, com apenas uma rosnada.

Voltou para sua sala e lá estava ele, o potinho. Para deixar a situação mais insólita ainda, era só o potinho ter anotado alguns recados para ele e ter pedido almoço.

O resto do dia foi nonsense. Pedro não saiu para almoçar, não participou ativamente de nada durante a tarde e foi para casa cedo, com a certeza de que as próximas vinte e quatro horas não lhe reservavam nada de novo. Uma vez mantida a sua média de comparecimentos entéricos ao banheiro, não haveria por onde ocorrer algo nas próximas vinte e quatro horas, de jeito nenhum.

Noite normal, rotina mantida, ele portava-se como se nada mudara em sua vida. Era um mestre nisso, dissimulação era seu nome do meio. Não teria havido nada anormal, não fosse a sobremesa. A sobremesa do jantar era algo frugal. Meio mamão-papaia fora colocado pela Neide em frente a cada um dos familiares sentados à mesa.
- O que é isso, Neide? Por que papaia? O que você quer dizer com isso? Tá de sacanagem? Cê tá achando que eu sou moleque? São vinte anos de carteira assinada, dois diplomas, dois filhos. Quem você pensa que é? Comigo não! Essa comigo não!

O resultado fora algo digno de um filme de Mel Brooks: - Sua filha começou a chorar copiosamente, como se tivesse visto uma assombração das mais terríveis. O filho caçula continuara a comer numa passividade que parecia esconder o maior dos assombros somado a um pavor de se tornar vítima daquele maníaco que tomara o corpo de seu dócil papai. Sua esposa pusera-se de pé e gritava sem parar palavras desconexas entremeadas com palavras de ordem como “Decência”, “Cautela” e “Respeito”. Neide, pobre Neide, permanecia em pé, sólida como um bloco de mármore, impassível ou catatônica, e assim permaneceria até a chegada de um vizinho médico que lhe acudira sem jamais vir a saber do ocorrido. Seria a última vez que a Neide seria vista naquelas imediações. Pedro arrependeria-se profundamente, mas não naquele momento. Naquela hora continuava concentrado em si mesmo, mais precisamente em sua região ventral.

Noite infernal: Dores na base das costas, pesadelos com privadas gigantes e o desconforto do sofá onde fora obrigado a dormir pela mulher que temia pela própria segurança (ela exigira que ele fosse a um psiquiatra, a quem ele já se decidira por contar toda a verdade).

Acordou bem cedo e decidiu não ir trabalhar. Ligou na corretora e disse que teria que fazer exames de rotina, que seus exames haviam sido marcados para dali a dois meses, porém o médico ligara abrindo-lhe o horário de uma desistência que houvera. Colou!

Foi a um hotel e hospedou-se. Faria tudo com a mais budista calma. Abusou do serviço de quarto. Pediu dois sanduíches e duas omeletes antes do meio-dia. Apesar das lembranças que afloraram, pediu um mamão-papaia inteiro e devorou-o de maneira desesperada.

Almoçou um risoto, nem se lembra do quê. Mais mamão pela sobremesa.

Equipou o banheiro de sua suite com dois jornais do dia, um só de esportes, um walkman e dois livrinhos de palavras cruzadas. Depositou ao lado do altar de sacrifício um par de luvas cirúrgicas esquerdas e os dois potinhos leitosos. Sentia-se como um suicida em seu ritual.

Três e quarenta e cinco da tarde, em meio à sessão da tarde, eis que inicia-se a erupção ventral tão esperada. Pedro correu para o banheiro e olhou-se no espelho como que se absolvendo por tudo o que ocorrera até agora. Ouviu seu celular tocar, mas agora não havia nada no mundo capaz de interromper o cumprimento de sua missão.

Uma hora e vinte minutos depois ainda não havia acontecido nada do que se esperava. Acabara com um livrinho de palavras cruzadas, já decorara a escalacão com que o Mogi-Mirim enfrentaria o União São João de Araras naquela noite e já ouvia pela terceira vez a mesma fita cassete.

Estava a ponto de oficializar o alarme-falso, quase desistindo de tudo e pronto para viver com aquela dor o resto de sua vida, quando veio o frio, gelando de forma cortante seu estômago, seu intestino, e libertando aquilo que ele já não queria em seu interior há um bom tempo.

Levantou-se e, de forma meio-cirúrgica, meio-artística, extraiu um bom pedaço da porcaria, depositando-o no potinho que foi lacrado com a mão direita, essa dentro de uma luva de jardineiro, menos sensível mas mais protetora.

Estava feito, concluído, finalizado. Vencera! Ele, Pedro Lemos Torres vencera o mal simbolizado naquela caca, naquela merda, que trazia em si a verdade sobre a dor que o afligia desde sempre, trazia animais perversos consigo, representava o mal. Era dele, mas havia sido produzido pelo “Coisa Ruim”. Se Deus vivia em seu coração, o demônio habitava seu intestino.

Vitorioso, saiu de seu campo de batalha e foi ver do que se tratavam os inúmeros telefonemas que ouvira enquanto pelejava.

Colheu o número no identificador de chamadas. Como não constava de sua memória nem da do telefone, resolveu chamar aquele número e descobrir de quem se tratava. Por um instante rezara para que não fosse nada relacionado aos incidentes dos último dias, alguém do sindicato das domésticas, nem algum psiquiatra orientado por sua esposa, ou algo pior.

- Consultório do Dr. Penha, Cremilda, boa tarde!

- Olá, Cremilda, aqui é o Pedro Torres, cliente do Dr. Penha. Acho que recebi algumas ligações de vocês.....

- Ah, Sr. Pedro, o Doutor quer vê-lo imediatamente aqui no consultório. Disse até que era para ser interrompido caso o Sr. chegasse aqui.

- Mas, do que se trata? Posso falar com ele?

- Agora é impossível, mas ele irá receber o Sr. a qualquer momento em que o Sr. chegar aqui.

- Eu vou passar no laboratório, deixar a amostra para o meu exame e vou para aí.

- Acho melhor o Sr. vir direto, pois o Dr. Pode ter alguma novidade com relação ao seu problema.

- Ok, eu vou direto praí.

Não era mais capaz de suportar aquilo. Mais alguma novidade e o próximo médico seria um cardiologista. Será que havia alguma coisa a acrescentar a tudo? Coisa boa nunca é, pensou.
Tenso, nervoso, amedrontado, dirigiu-se ao consultório do Dr. Penha.

Entraram, ele e seu potinho, acondicionado sob quatro camadas de sacos de plástico, no consultório, e já foram logo encaminhados pela Cremilda:
- O Doutor está lhe aguardando Sr. Pedro, pode entrar nessa sala.

Era uma sala de exames, bem branquinha, com apenas uma maca e umas duas ou três prateleiras repletas com instrumentos médicos.
Tão branco quanto a sala, entrou o Doutor Penha, chacoalhando sua própria Serra Pelada sala adentro:

- Salve, salve, Grande Pedro Torres. Difícil encontrar o Sr., não?
- O que aconteceu, Doutor?
- Boas notícias me moveram a procurá-lo. Notei sua aversão ao exame que lhe solicitei, e resolvi pesquisar uma alternativa a esse exame. E eis que descobri que esse verme é passível de ter sua presença detectada por meio de uma simples análise de sua saliva. Só uma cuspinha! Como imaginei que o Sr. sofreria uma espécie de bloqueio, resolvi chamar-lhe antes que seu sofrimento aumentasse.

Pedro permanecia calado, sentado como se estivesse em sua primeira comunhão. Fitou o Dr. Penha bem nos olhos e, de maneira clinteastwoodiana, levantou-se dizendo:

- Doutor, permita-me apresentar-lhe de maneira bem prática a função da crase na língua portuguesa. Meu desejo era o de mandar lhe à merda, mas vou, com muito prazer mandar-lhe a merda.

Foi sua última frase antes de lançar o potinho, já livre de sacos plásticos e tampinha, rumo ao Doutor, que ainda teve tempo de gritar:

- Mas, que merda é essa?!?!

- A minha! Gritou de longe o nosso herói.


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