Usina de Letras
Usina de Letras
242 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10302)

Erótico (13562)

Frases (50483)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->DIÁLOGOS DE LUZIA. FAZER CAFÉ! -- 31/08/2011 - 12:09 (Alexandre José de Barros Leal Saraiva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Fazer café.



Depois que sai, ontem... depois que você brigou comigo e me obrigou a sair, na noite de ontem ou na madrugada de hoje... sei lá quando, fui direto para a cozinha deste buraco em que me acho presa, voluntariamente presa, para fazer um cafezinho e me acalmar. Achei a cozinha muito estranha. Era toda preta. Havia apenas um objeto de outra cor. Era uma saia de dançarina. Estava rasgada e perto dela ouviam-se versos de poesias que também eram negras. Peguei a saia vermelha e guardei em cima da pequena mesa redonda. Procurei o pó de café e não o achava. Procurei de novo e nada. Minutos depois achei o pote. Fiquei puta da vida. Você já reparou que todas as vezes que perdemos alguma coisa nós só a encontramos no último lugar em que procuramos?
Não seja idiota. É lógico. Depois que achamos a coisa perdida, não mais a procuramos, portanto...
Acontece o mesmo com os nomes. Eu vivo trocando o meu. Agora mesmo não sei ao certo se sou Luiza ou Luzia. Acho que de manhã cedo, sou Luzia e a medida que o tempo passa as letras trocam sutilmente de lugar, como minhas lembranças trocaram as chaves de algumas portas pelas quais passei anteontem e que hoje não consigo mais abrir de jeito nenhum. Quando eu era criança, eu simplesmente não sabia o que significava ser criança. Hoje, com os cabelos pintados de estórias, gostaria de não saber o que significa a velhice e a solidão, mas conheço bem as duas. A companheira velhice é o tributo mais caro que há. Todas as minhas extravagâncias, meus porres homéricos, meus amores nada pudicos, as noites que eram apenas o elo musical e etílico entre dois ou mais dias de orgias, se transformaram em hipertensão, cirrose, diabetes, enxaquecas, diarréias e alguns nomes difíceis de soletrar ou de escrever, ainda mais com as mãos tremendo muito, como estão.
Da solidão nem sei o que falar. Ela é tão obviamente sozinha que lhe faltam adjetivos, embora sobre substância má.
Sou assim: velha e só. Tão velha e só, que somente agora encontrei o café. Eu, Luzia, daqui a pouco, logo após o café, talvez seja outra. Luiza, talvez. De novo o ‘talvez’. Por que repito tanto as palavras? Você já notou isso? As palavras deveriam ser únicas e suicidas. Usadas uma vez se desintegrariam e jamais poderiam ser reutilizadas. Garanto que se assim fosse, as maiores mentiras da humanidade teriam sido caladas. Como Hitler, por exemplo, poderia dizer mais de uma vez que os judeus mereciam morrer?
Por favor, você que lê... você que já atravessou a morte, por favor, não me interrompa! Não adianta vir com este frívolo argumento de que as palavras repetidas poderiam, por outro lado, perenizar sentimentos bons. Tolo. Asno. Os bons afetos não precisam de palavras! O homem que ama uma mulher não necessita de mais nada além do olhar carinhoso, do toque amoroso e do membro viril. Nada mais. Todas as palavras são desnecessárias. O silêncio é o luxo da sabedoria. Mas como você, além de morto recém retornado é burro, jamais compreenderá isto. Siga o meu exemplo: fique calado.
Nessa confusão, perdi a caixa de fósforos e sem ela não haverá café. Vou vestir a saia vermelha. Eu ainda não tinha percebido que estava nua. Meu corpo, além de fétido, está horrível. A pele sobra. Os seios deformados me incomodam quando ando, quando corro, quando respiro. Acabei de mentir um pouquinho. Eu não corro mais. Nunca corri, de verdade. Sempre andei devagar, olhando as pessoas com desdém, balançando as ancas por simples convite a malícia de pedreiros, operários, lixeiros, homens em geral. São todos lixeiros. Parecem cachorros virando latas atrás de sobras de comida. Andam pelas ruas obstinados pela concupiscência desenfreada, enxergando beleza nos restos macilentos das carnes putas de mulheres, meninas, feias ou bonitas, esquinas vivas da cidade moribunda.
Tive uma idéia. Posso sair por essas mesmas esquinas e, em vez de vender ou alugar – não sei qual o melhor verbo para este tipo de transação – o meu corpo decaído e demoníaco, posso oferecer esta saia vermelha rasgada. Direi, em tom solene, que a peça pertenceu a Ela. Famosa dançarina de flamenco. Filha de coronel. Neta de meretriz. Casada com um General. Nascida de parto normal, escapou da morte por um triz. A mãe, coitada, morreu sem a conhecer. Pariu, sorriu, gritou, praguejou e morreu. Suas últimas palavras não tinham carinho, amor ou transmitiam ternura e paz. Ao contrário, despediu-se com ódio. Não queria morrer, menos pela filha que acabava de chegar, muito mais pelo desejo inconfesso de continuar a se encontrar, as escondidas, com o cabo de cavalaria que bem servia ao general e melhor ainda à sua mulher. Aprenda, nunca confie demasiadamente em subalternos, principalmente naqueles que são, ou parecem ser, muito confiáveis. Estes são os piores! Direi, ainda, que depois de grande, a menina sem mãe, viajou pelo mundo. Aprendeu diversas línguas e, de forma primorosa, a trabalhar com todas elas. Chupava italianos, turcos, alemães, esquimós e apátridas, enfim! Engasgou-se com um político de Brasília, que até no gozo tirava proveito. Ela estranhava a sanha daquele homem de terno, circunspecto, autoritário, sempre querendo uma boa porcentagem daquilo que, por direito, a ela pertencia, afinal quem era a recipiendária? Certa vez, o dignitário a fez vomitar e bebeu assim mesmo seu quinhão de costume. Ela vomitou e compartilhou, o que antes era dele, com ele, bebendo agora o que era dele com o nojento tempero de dentro dela. Mas fazer o que? Político brasileiro é assim mesmo. Não há sujeira que os repila. Ao contrário, parece que os atrai.
Porém, ninguém em sã consciência pagará preço justo pela saia vermelha rasgada que visto. E, além do mais, enquanto imaginava o palavrório publicitário, acabei encontrando a caixa de fósforos. Acendo o fogão. O Pano de café brinca de esconde-esconde comigo. Não vou dar trela para este pedaço borrento de tecido. Pego a saia, exatamente no local em que estava rasgada. Renovo a ruptura original. Meus pelos ficam a mostra. Passo o café assim mesmo. O cheiro invade a cozinha. O cheiro do café também. Não tenho xícaras suficientes, mas mesmo assim podemos, eu e você, conversar um pouco em off, enquanto saboreamos este chá de final de tarde.
Bom apetite! Calma, mal educado, esta bolacha é minha...

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui