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Ensaios-->O NÍVEL NARRATIVO DA HORA DI BAI DE MANUEL FERREIRA -- 30/07/2012 - 00:02 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O NIVEL NARRATIVO E METAFÓRICO DA HORA BAI DE MANUEL FERREIRA

João Ferreira
1987

1 - A NARRATIVA


Globalmente, a narrativa de Manuel Ferreira atinge seus objetivos oferecendo ao leitor os dados de uma história trágica cujo começo se situa na fome que avassalou a ilha de S. Nicolau e cujo desfecho termina no saque e na chuva da ilha de S. Vicente. Ao nível de pragmática narrativa, Manuel Ferreira obtém em Hora di Bai (1) o sucesso de um emérito narrador. Toda a projeção simbólica carregada através do discurso prende o leitor, num movimento progressivo que o faz caminhar desde a descrição do flagelo da fome e da estiagem até às estórias individuais e biográficas dos humildes que participam da metáfora maior que é a fome e a luta pela sobrevivência.
O ambiente entre os migrantes da leva a caminho de São Vicente, a descrença do povo nas propostas de emigração para S. Tomé - onde a qualidade de vida é comparada à escravidão, as farras, os amores, a prostituição e a arte de construir os personagens maiores e menores como Chíco Afonso, Xandinha, Juca, Nha Venância, Dr. César, Dr. Maia, Dr. França, capitão Fonseca Morais, Beatriz, alferes Viegas, Sebastião Cunha etc., são pontos altos do vigor narrativo de Manuel Ferreira. O movimento dos signos de superfície, que são os signos lingüísticos, levam-nos aos signos de profundidade psicológica e simbólica. Através destes, os termos de uma nova unidade se estabelece: aquilo a que Todorov ou Roland Barthes chamariam de gramática narrativa.
As partes do discurso obtêm sua unidade mediante os dois processos clássicos da descrição e da denominação. Com os nomes próprios e pronomes constrói-se o substrato da denominação, que tende a identificar no tempo e no espaço os agentes da narrativa ou os sujeitos das proposições. Com os nomes comuns (substantivos, adjetivos, advérbios e verbos) funda-se a descrição. Esta é sobretudo acionada através predicativo, mas os nomes comuns podem também passar a próprios e cada uma das formas servir aos dois processos em graus diferentes. Se como dizem os teóricos da narrativa, 'a intriga mínima completa consiste na passagem de um equilíbrio a outro' e 'a narrativa ideal começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar' (Todorov, o.c. 195) resultando daí um estado de desequilíbrio que será restabelecido através da ação de uma força dirigida em sentido inverso (ib. 195), Manuel Ferreira conseguiu urna narrativa bem sucedida.
1.1 Estado de equilíbrio: A Fartura
'aquelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco do rés-do-chão; aqueles pés de papaia carregadinhos, aquelas batatas doces, aquele feijão, aquela mandioca, aquele inhame, aquele milho crescendo na achada, dando a fartura da gente e dos animais'. (pág. 18).
1.2. Estado de desequilíbrio: A Estiagem e a Fome
A estiagem, a seca, a fome e suas consequências físico-biológicas, sociais, humanas, econômico-financeiras formam o quadro que derruba o equilíbrio da fartura:
'Empurrados do interior, os povos buscavam o litoral, na esperança de uma mandioquinha, de um caldinho de peixe, de uma chupar, ou de folhas verdes para mastigar'. (p. 18)
1.3. Passagem de um equilíbrio para outro e passando pelo desequilíbrio: O autor narra a situação deste povo faminto, dramatizado pela 'maldição da estiagem e da fome' numa travessia de dureza trágica onde a imagem realista os apresenta como 'restos de vida absurda e degradada na luta impiedosa pela sobrevivência' longe da imagem de humanos cuja sobrevivência se faria em condições normais de trabalho.
A narrativa consegue alternar estados de equilíbrio, mostrando os desequilíbrios intermediários que caracterizam a vida sofrida do povo traumatizado pela fome.

2 -ESTRUTURA DA NARRATIVA

2.1 . Força temática
A temática dinâmica que arrasta toda a narrativa é a estiagem e a fome por elas, os flagelados lançam-se num êxodo coletivo desde a ilha de S. Nicolau até S. Vicente. O povo faminto vê S. Vicente como terra de promissão ('Soncente tinha tropa que enchia a barriga de todos nós. O veleiro levá-los-ia à terra da promissão' 19).
2.2. Representação do bem desejado
Em torno da temática dinâmica, que é a fome, a narrativa estabelece a representação do bem desejado. Este é representado pela travessia, pela aventura em direção à terra da promissão, ou seja, S. Vicente.
2.3. Obtenção virtual do bem
A chegada a S. Vicente representa virtualmente e ao nível da imaginação popular, a primeira etapa da obtenção do bem desejado. Ouve-se um 'uáá' de admiração com S. Vicente à vista (p. 59). S. Vicente é para os flagelados uma visão iluminada. Ouve-se o rufar de tambores. Mais tarde a realidade dura que atinge esta 'gente de fome' (p. 61), criará o lado duro da desilusão: 'S. Vicente também tinha fome' (p. 61), pertencia à 'terra nanhida' (p. 63). Este desencantamento da realidade oferece ao autor a parte dialética dos opostos. 'As chuvas têm rareado, mas há que lutar contra a estiagem com resignação e coragem que nunca faltou ao nos-so povo' (p. 63).
2.4. Os contrários
Os contrários dialéticos oferecidos à representação do bem desejado, que é a fartura, produzida pela chuva, especialmente colocada em S. Vicente como terra de promissão, estão na continuação da estiagem, nas nulas soluções de base oferecidas pelo Governo, no sentido negativo da sopa da assistência, na ineficácia administrativa, na carência de soluções concretas contra a estiagem, e na sonegação da realidade cabo-verdiana feita por representantes formais e repressivos como o Dr. Maia e Juca, formalistas da palavra e incapazes de analisar os fatos reais.
2.5. A balança. O equilíbrio
A narrativa, colocada em seus termos dialéticos, busca sempre o equilíbrio das soluções, busca os pratos da balança, busca a ação coletiva, a palavra ou a ação do povo que procura restabelecer o equilíbrio, através de personagens que fazem a leitura genuína da realidade como o Dr. França, o Dr. César, ou Nha Venância, que denunciam o mal e a injustiça. Esta busca de equilíbrio encontra seu desdobramento final quando associados os vários elementos formais da situação, o próprio povo, que viveu submisso, sofrido, esfomeado, mas resignado, resolve, por mérito próprio, forçar uma solução emergencial, como a explosão da marcha da fome, o saque dos celeiros secretos, agora tornados atentatórios da moral em vista da fome, de Sebastião Cunha.
2.6. Socorro e desdobramento de uma das forças anteriores
A ação coletiva resolve buscar uma solução por si própria, antes que a chuva venha. No final, a chuva vem. A chuva é sempre a promessa de que' tudo começará a modificar-se', é o agente da transformação (p. 151). O estado de novo equilíbrio.

3 — A TIPOLOGIA DA NARRATIVA

Hora di bai, em sua essência, uma crônica literária da fome cabo-verdiana. é uma narrativa caracterizada onde é fácil identificar um herói que une toda a cadeia dos eventos da ação. Este herói é o povo de Cabo-Verde. portanto, um herói coletivo. Colocada no eixo que vai da ilha de S. Nicolau à ilha de São Vicente, enquanto espaço de ação. a narrativa atinge e diz respeito a todo o povo de Cabo-Verde, o que. coletivamente, sofre a estiagem e a fome. O povo torna-se, portanto, o herói problemático, ou seja, aquele personagem a quem dizem respeito os problemas narrados. E dentro desta categoria, a narrativa pode situar-se no âmbito da narrativa do idealismo abstrato, para usarmos a classificação que Lukács introduziu ao estabelecer tipologias especiais para os romances.

4 - A METÁFORA TELÚRICA

Não pode ser dissociada da narrativa a história do espaço onde os personagens exibem sua ação. O espaço da narrativa é Cabo Verde de uma maneira geral e São Vicente e São Nicolau, de uma maneira especial. Além do espaço telúrico que entra na tecelagem da história, - mais concretamente materializado no espaço físico do mar e da terra de Cabo Verde, que, através da promessa do milho, da mandioca, do feijão, do inhame e da papaia podem oferecer uma garantia de sobrevivência obstaculada pela estiagem que transforma a vida possível numa vida 'absurda' e degradada - a terra é considerada também como nação e como fronteira soberana dos direitos de um povo. Dentro dessa fronteira, os mais diferentes laços se estabelecem, o mais forte dos quais é o sentimento nativista ou o senti-mento da terra. A narrativa de Manuel Ferreira revela-nos que em Cabo Verde, bem antes de surgirem os movimentos de autodeterminação da década de 60, um sentimento nativista se desenvolvia. Esses vestígios podemos vê-los nos seguintes lances narrativos:
a) No discurso de Nha Venância sobre a realidade cabo-verdiana: 'Isto não pode continuar' (p. 122) 'Sua terra estava uma desgraça' (p. 149);
b) No amor à poesia e no apoio que dava aos poetas da sua terra e especialmente a Jacinto Moreno fp. 147);
c) Em sua opção por viver nas ilhas, não obstante o movimento de muitos em favor da emigração para S. Tomé (p. 150);
d) Na conversão de Nha Venância à utilização da língua crioula, apesar de dominar bem o português, graças à ação do poeta Jacinto Moreno;
e) Na conscientização das tradições e do folclore local; ~
f) No próprio ato da conscientização, quando a tragédia local aflorou com toda a sua evidência: 'Sentia a tragédia na própria carne'. A tragédia da sua gente (p. 63), sofrendo e sentindo que Cabo Verde era 'terra nhanhida' (p. 63) (= infeliz, desgraçada) p. 48
g) Sua integração telúrica está na maneira como ela recebe a miudagem que pelas ruas da cidade cantava as boas-vindas de Ano Novo e como se mistura com a mesma, participando da paródia, pela cidade (p. 153).

5 - A METÁFORA POLÍTICA

A metáfora política, que representa o recado fundamental do livro, é-nos proporcionada através de sucessivas e sólidas micro-estruturas e isotopias narrativas. A fome nas ilhas não é mimetizada como mera obra do acaso ou como dialética do destino de um povo sofredor. Bem claramente, a narra-tiva nos mostra o imobilismo do governo colonial, a falta de uma programação governamental dinâmica que procure superar, de um lado, a adversidade da climática e, por outro, a natureza pobre e carente das ilhas cabo-verdianas batidas pelo suão e pelas lestadas. Deixar um povo com fome, gente sem trabalho e sem comida não pode ser uma solução (61). A população insiste, cada ano, em semear. Por outro lado, a chuva é uma espécie de deusa caprichosa: quando vem, dá a fartura e, quando falta, promove a miséria. A par da luta tenaz pela sobrevivência convertida em tradição pelos habitantes do arquipélago, a narrativa leva-nos a deduzir duas posições frontalmente opostas. A briga entre o Dr. César e Juca Florêncio representa um duelo de mentalidades. O duelo entre a mentalidade estática e a mentalidade nativista progressista e renovadora. A mentalidade estática é a do Governo e tem seu representante no jornalista Juca Florêncio para quem a riqueza do mar cabo-verdiano poderia resolver o problema de alimentação da população do arquipélago. Por outro lado, o regime lembrava outras soluções: a sopa da assistência para os flagelados, a transferência dos mais necessitados de umas ilhas para outras as levas Para S. Tomé (64). No mais, quem recalcitrasse, era ameaçado com a polícia política, com a Pide. O Dr. César foi a vítima visível no conluio que se estabeleceu entre Juca e Dr. Maia (69). Da parte dos cabo-verdianos, os jovens do jornal Madrugada (64/65). o Doutor César, e outros nativistas, entendiam que a realidade teria de ser analisada de outra maneira. As croniquetas e os artiguelhos de Juca Florêncio apenas escondiam a realidade especial da fome, dos bairros de lata. Embora o destino do cabo-verdiano seja o desconhecido (82), teria de ser realizado um movimento para minorar a miséria deste povo. Havia a consciência popular e. nesse sentido, seu representante era o doutor César, alcunhado pelo Juca como 'nativista' ('ele sentia era as razões do povo') (97). Doutor César, um bom professor, amado pelos alunos, apenas gostava de ser realista, de dizer a verdade (98). O autor de Hora di bai lembra ainda o papel da revista Claridade para esta conscientização local (99).
Uma forma indireta de colocar bem realisticamente a inoperância do Governo colonial é a alusão ao tipo de Governo que dominava as ilhas: 'Governador tem as mãos atadas. As ordens vêm de Lisboa' (42). O próprio Alferes Viegas, num diálogo com Juca, abriu um pouco mais o leque da problemática do desenvolvimento: chuvas, portos, estradas, obras hidráulicas, artesanato, estudo do subsolo, novas indústrias etc. (46). O que é verdade é que a forma de vida estática que predominava no arquipélago nunca conseguiu combater a fome de uma forma ostensiva. E veio a explosão. O sentimento nativista não desarmou. Com as esperanças desiludidas, no desespero, o povo se reparte entre a leva para S. Tomé (132), que se vai como navio negreiro (135) e a marcha da fome, com bandeiras negras na mão (137) até aos celeiros de Sebastião da Cunha (139). Era um mundão de gente esfomeada. Só restava o saque, o motim. A tropa viera para a repressão, ficando ao fim os destroços de uma incrível batalha. E com eles a consciência dolorida de um direito espezinhado.
6 - LITERATURA E FOLCLORE

'Quem canta, seu drama esquece' (115)
A narrativa de Manuel Ferreira leva-nos também ao âmago da cultura popular. Entre as expressões desta cultura, a leitura oferece-nos informações preciosas dando-nos uma representação do mundo folclórico cabo-verdiano. A música toma amplo espaço em Hora di bai. Ela é apre-sentada como expressão da tragédia do povo (22) e como expansão amorosa e sentimental, sob a forma de mornas cantadas ou dançadas (22, 31), de coladeiras (85). de dança cancã, (86), de tonguinha (134), de finançon (136), de bailes (76, 31, 83). de farras (87), de serenatas (83, 23, 29) de dança e canto (136. 85, 31, 59, 83). Hora di bai mimetiza bem esta necessidade íntima que o povo tem da música. A mão de Chico Afonso no Senhor das Areias durante a travessia de S. Nicolau para S. Vicente é disso uma prova. A ação da morna na hora das lembranças (113) e como expressão do amor e da nostalgia ('a morna fala aos corações' 32) está em cada página. A música purifica também: 'povo chateado canta morna da fome, morna da Fedagosa' 132. Cantar é uma necessidade (114). No clima social sofrido de Cabo Verde, a música é aliada do povo. Ela embala no amor, suaviza a lembrança e faz chorar a gente (23). A narrativa mostra os troveiros (22, 23), os cantadores (33, 58), o violão (24), os tocadores de violão (38) e ainda as formas de composição popular, os dancings noturnos de S. Vicente e a farra musical pelas ruas da cidade. A completar o quadro da cultura popular, a narrativa de Manuel Ferreira mostra-nos os poetas populares, personificados em Nhô Eugênio (22), Beleza, Mochinho do Monte e Salibânia (22, 23), as comidas típicas (cachupa 140), a língua po-pular crioula (150), as estórias populares nativistas e de importação (135), os poemas de gesta (136) e as gestas insulares (135), formas nativistas de viver e de encarar a dramática existência.

7 - A ESTRUTURA DA LINGUAGEM

Um dos pontos altos do nível artístico da narrativa é a própria estrutura da linguagem, tão bem ajustada por Manuel Ferreira. De um modo geral e para facilitar a compreensão global do livro, poderíamos assinalar que a matriz da linguagem básica é o português vernáculo, acompanhado dos sub-sistemas específicos do falar cabo-verdiano e do crioulo. No fundo, no fundo, teríamos a língua portuguesa, em vários registros e normas e ainda o crioulo. A linguagem dos personagens é natural, corrente, movimentando-se bem, de acordo com os níveis culturais e sociais. As diferenças estão não apenas na lexicologia, mas na estrutura da frase, na derivação, na formação do diminutivo, no uso de pronomes de tratamento, nos modismos e idioma-tismos, na colocação pronominal, nos neologismos característicos e outros.
7.1. Norma lusa
O tempo do romance abrange, historicamente, o período de Cabo-Verde Colônia, ou melhor, o tempo da 2a Guerra Mundial (1943). Como tal, a par de idiomatismos tipicamente cabo-verdianos e de uma forma própria de interpretar a linguagem portuguesa, grande parte do discurso, ou o discurso em sua essência, é o português vernáculo. Assim, não apenas o capitão Fonseca de Morais, o Dr. César, Juca Moreno, Nha Venância na primeira fase, o alferes Viegas, Beatriz e outros personagens falam um português correto, mas toda a sociedade segue, basicamente, a estrutura linguística de São Vicente e da população urbana. No campo da estrutura gramatical, a maior parte do discurso permanece luso. No campo do léxico, são evidentes a absorção de vocábulos lusos como esfanicados (21), soalheira (111), bicha (29), matulagens (25), banzé (83), cancela (111), cancro (123), carrinha (48), madraços (46), criada (128) bobaiela (129), trangalhadanças (91), etc.
7.2 Apesar desta observação geral, a tipicidade regional e local da linguagem empresta a este livro um encanto enorme. A movimentação da vida, os sentimentos, o comportamento em geral, as paixões, as ansiedades, os vícios, a luta pela sobrevivência, o heroísmo, as festas, a música, a re-sistência se percebem bem através da habilidade do autor em retratar a modalidade cabo-verdiana da linguagem.
7.2.1 Começando pelo léxico, há toda uma variedade local que nos coloca dentro da terra. Os produtos tropicais da cana, mandioca, do inhame, da papaia, abrem para fora da esfera lusa. Depois são os termos achada, morna, sabura, sabinha, chuchinha, cachupa, coladeira, morabeza, fedagosa, pertóde, mondrongo, mantenhas, moia, tarafe, que aparecem como integrantes do léxico de Cabo-Verde.
Passando em seguida à caracterização da linguagem notamos uma popularização da linguagem portuguesa específica tão bem assinalada nas falas populares exibidas pelos passageiros do Senhor das Areias.
7.2.2 Através de Júlia Vicente Gonçalves, uma das passageiras do Senhor das Areias, podemos ver uma narrativa popular, com formas populares de nha por minha, o que é muito comum na boca de quase todos os personagens, e o emprego do pronome pessoal à brasileira ('Marido dela embarcou num veleiro e ninguém mais viu ele (21), a forma popular de Soncente (por S. Vicente), além da forma conceitual típica de tempo: 'Tínhamos comida e tudo enquanto, graças a Deus' (21), a indicar existencialmente a posse temporária incertamente afirmada e ameaçada pela carestia. Outros diálogos, como é o da chamada na hora de entrada do Senhor de Areias (p. 20), o diálogo de Chico Afonso com Nita Mendonça (p. 23) são registros de coloquial popular. Esta tendência de popularização do português nota-se na natural arrancada para a formação popular de palavras ('desproposenteza' por despropósito ('Agora este demônio tinha cada desproposenteza' (47), intentação ('Gostoso como intentação' (57).
Uma das formas que caracterizam o falar cabo-verdiano é a frequência dos diminutivos, tendência bem mais próxima do português do Brasil do que do português de Portugal. Agorinha (45), coisinha (47), chuchinha (31), caquinho (67), groguinho (58), piamanhazinha (61), sabinha (31), mandioquinha (18), Xandinha, Conchinha, Nho Mochinho). Muito próximo da tendência brasileira de alguns diminutivos em im estão os casos de chicharrim (chicharrinho), nhô Mochim (por Mochinho). Mas uma maior aproximação com o português do Brasil pode ser vista nas amostras seguintes:
a) na supressão do s final em circunstâncias de coloquial popular: 'Quanto tens recebido? — Dois mil e quinhento, cinco escudo.' 79.
b) no uso de alguns diminutivos em im, como no Brasil (chicharrim (23) Nhô Mochim).
c) no uso do coletivo gente, no sentido brasileiro: 'Cuidado, gente. Deus pode castigar'. 53. 'É assim mesmo, gente, corpo fraco não agüenta muita comida' 55. 'Chegamos, gente' 56.
d) no emprego de mamãe e papai, no diálogo de Maninha (pp. 77, 78, 116), de preferência a papá e mamã, usados em Portugal.
e) na forma sincopada e popular de nha por minha e senhora (nha terra, nha Venância) e nhô por Senhor (Nhô Mochim, Nhô Eduardinho (117); Nhô Augusto em Hora e vez de Augusto Matraga, de G. Rosa).
f) no emprego do pronome pessoal oblíquo como sujeito, em forma popular, como no Brasil: 'Maria de Nhô Antoninho Duque. É mim (p. 20).
g) no uso da forma reta pronominal para funcionar como complemento, com função objetiva ('Marido dela embarcou num veleiro e ninguém mais viu ele' 21). h) em formas sincopadas como adê (84), dondé (18), se-melhantes ao cadê brasileiro. Mas não termina aqui a caracterizacão da linguagem ca-boverdiana. Além de um léxico que o caracteriza regionalmen-te e de formas coloquiais, exibe ainda formas de sufíxacão próprias com pertóde (para dizer apertado), cansóde (para dizer cansado).
7.3. Para ressaltar ainda o enriquecimento do vocabulário de Cabo-Verde pelo crioulo, vale lembrar a introdução de várias expressões típicas no português local: canhoto (cachimbo), hora di bai, mantenhas (saudações, lembranças), tarafes (tarrafe, tamargueira). Mas o que este livro tem de extraordinário na condução da comunicação e da expressão dos personagens é que ele insere, num todo só, a linguagem das várias classes, dos vários grupos, num tom de verossimilhança que leva o leitor a sentir-se em Cabo-Verde. Não apenas nos diálogos, mas também na discussão e na avaliação cultural dos poetas, dos nativistas e dos intelectuais, a língua crioula é colocada em seu lugar como expressão típica da comunicação popular. Este livro, portanto, que é de 1962, antecipa-se à formalidade da independência de Cabo Verde, ocorrida só, em 1975, e coloca o crioulo na boca do povo, dando-lhe um espaço que ele tem hoje dentro da república popular de Cabo Verde. Exemplos típicos desta inserção no país que o próprio Manuel Ferreira ensaiou com o nome de Aventura crioula é a citação da letra da morna da Fedagosa (p. 56) cantada por Chico Afonso (Fedagosa bô é mau/ Bô mata nha mamãe/ Bô mata nha papai). No diálogo de Nha Venância com Bia Dinis, aparece 'oh nha fidge' (oh minha filha), que é expressão tipicamente crioula (60). 'Eh bocê dizê-me um côsa. O`zê quil' (Eh, você, diga-me uma coisa: o que é aquilo? 61).
Outro exemplo fundamental é a cruzada nativista em prol do crioulo levada a cabo pelo poeta Jacinto Moreno, que teimava em falar em crioulo (150) e que fez decidir a nativista Nha Venância a ficar em sua terra e a assumir a permanência, acompanhando a sorte de toda a população, levando-a também a falar crioulo e a sentir o apelo das coisas de Cabo-Verde, de que a língua é uma das expressões maiores. (152)

Nota:
(1) O texto usado nesta pesquisa literária foi: FERREIRA, Manuel. Hora di Bai. São Paulo: Editora Ática, São Paulo, 1980.
As páginas indicadas em nosso texto são referentes a esta edição.

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