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Cartas-->CARTA PARA MINHA FILHA-1 -- 13/11/2002 - 21:48 (ROSAPIA (veja página 2)) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CARTA PARA MINHA FILHA-1

Quando eu tinha 15 anos, já tinha definido: mesmo que tenha 10 filhos, vou adotar uma criança. Quando mamãe morreu, achei que tinha cumprido minha missão de filha e deveria partir para a de mãe. Procurei por você. E você chegou 6 meses depois. Tinha um ano e dez dias. Era linda, linda, linda. Carinha triste, de gente grande. Gritava e queria comer as mãos. A tristeza era fome. Manhã seguinte, fomos ao pediatra. Você tinha anemia, mas isso não me assustou. Tratamos. Logo você sorriu, desapareceu a carinha de gente grande. Ficou a criança alegre e buliçosa.

Agora você cresceu e escolheu sua vida, a vida com que sempre sonhou: liberdade plena, nada de amarras, ninguém no seu pé, como você queria. Desde cedo você fugia de casa, queria ficar na rua, andando sem rumo, olhando vitrines, falando com todo o mundo, conhecido ou não. Era um tormento quando isso acontecia. E você sempre voltava à força, precisava ser encontrada. Chegava contando um montão de histórias. Quando fez 21 anos, alguém lhe disse que você era maior, era dona de seu nariz, eu não podia mais mandar em você, nem proibir nada. Então você saiu sem fugir. Foi cumprir o seu sonho. Sonho que para mim é pesadelo. Eu não consigo entender: você tem tudo, casa, cama macia, comida quentinha na hora certa, os doces de que tanto gosta, mas escolhe morar na rua, pedir roupa, comida, carona, esmola. Às vezes sinto uma revolta imensa. Lembro-me quando fomos ao pediatra a primeira vez. Ele disse: "Devolva essa criança, ela vai dar muito trabalho." Respondi: "ela não é TV com defeito que eu devolvo pra loja..." Ele disse que sua anemia não era da barriga da mãe, era da barriga da avó. Claro que tive medo, mas resisti. Aos 3 anos veio a confirmação: causada pela desnutrição, você era portadora de uma deficiência leve (ah, como pesa!). E começou nossa correria: psiquiatras, psicólogos, neurologistas. Eu aprendi muita coisa, mas também ouvi muita besteira: alguns profissionais me ouviam como se eu estivesse contando um filme. Houve momentos de grande solidão. Só nós sabemos do tanto sofrimento que preencheu nossa vida. Não vencemos nada, vencemos um pouco a cada dia. Cada dia com sua derrota e sua vitória. Era um amor que ria de quando em quando e chorava quase sempre. Mas permanecemos unidas.

Hoje já não tenho você. Você mora na rua, não tem endereço, não tem telefone. Você liga quando quer. Eu espero.

Amanhã faz uma semana que você foi pela última vez. Você foi ao meu quarto, ajeitou minhas cobertas, deu-me vários beijos. Saiu do quarto, mas voltou em seguida. Beijou-me outra vez, beijou o nosso cãozinho, tornou a ajeitar meu cobertor. Não sei se dormi enquanto você estava ali, ou se já havia saído. Dormi pela exaustão. Acordei hora e meia depois, levantei-me, deparei com a porta da frente aberta. Chamei por você duas vezes, não tive resposta. Fui ao seu quarto, a cama vazia. Você tinha ido embora. Você deve ter ido assim que me percebeu dormindo. Eu tinha pedido que, se resolvesse ir, me desse até logo, pois eu não a impediria. Disse a você: "quem sai de fininho é bandido, que não pode ser pego, você não é bandida". Mas você foi de mansinho, não disse até logo. Ou disse e eu não entendi? Aqueles beijos todos... estava se despedindo. Pensei nisso e não consegui ter a raiva que quis ter.

Hoje fui ao seu quarto. Bagunçado como sempre..., as roupas em desordem, seu traço característico..., sobre a cama desarrumada, duas bonecas! Minha filhinha, você tem 23 anos e dorme com bonecas... Como posso ter raiva de tanta pureza? Você saiu de mansinho, não avisou, não disse até logo, me fez sofrer. Eu quis sentir raiva. Mas eu penso em você com tanto carinho, não consigo sentir raiva, mesmo no meio da minha frustração.

Lembra-se quando cuidei do beija-flor que ficou sem a mãe, o Júnior? Pois foi ele que me ajudou a entender você. Eu dizia para ele: "Não posso me apegar, você nasceu para voar, nasceu para o mundo, não para mim." E eu recomendava que o Júnior prestasse muita atenção, tivesse muito cuidado com o ser humano, pois nem todos eram como eu, alguns até matam e prendem passarinhos. Enquanto isso, ensaiava pelo dia de ver Júnior voar. Ao mesmo tempo, eu pensava em você, também nascida para voar, e cujas asas eu cortara por tanto tempo... E assim fui aceitando a idéia de um dia não ter mais você junto de mim. Aceito hoje, mas não sem dor, não sem chorar, não sem pedir que volte.

Não, também, sem às vezes me revoltar. Revolta por estar sozinha como estou, pois só tenho você. Quando não estou bem, precisaria de você para cuidar de mim, como eu cuidei de você. Mas eu me lembro logo que isso não é problema seu, você não alcança essa necessidade minha, você não consegue perceber o quanto eu sofro, mesmo quando eu digo. Você tem uma compulsão pela rua. Há pessoas que entendem isso, acham até que você é feliz. E confesso que eu acho também, e quando me convenço disso me sinto egoísta. Não tão egoísta... eu penso muito nos pais que, como eu, têm filhos com o mesmo problema (pesado, mas de nome leve...), crianças que crescem biologicamente, mas cuja cabecinha permanece criança. Penso neles quando a solidão me desespera, e sinto menos que estou só. Quisera ter o poder de adivinhar onde estão eles, estar com eles, contar meu sofrimento e ouvir o deles, trocar idéias sobre as nossas crianças diferentes das crianças chamadas normais.

Não tenho para onde mandar esta carta, não sei onde você está. Escrevo para você como se escrevesse para ninguém. A carta não chegará, mas chegará para você o apelo do meu coração: volte, minha menina, volte logo, aconteça o que acontecer aqui é seu lugar, ao meu lado, arrumando minhas cobertas para que eu não sinta frio, dando-me beijos não de adeus, mas de ficar.

Eu te amo e sinto muita saudade. Mando meus beijos cheios do meu melhor amor.

Mamãe.


01/07/2001

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