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Cronicas-->24. A DANÇARINA DA COBRA -- 03/10/2002 - 06:40 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Lembro-me bem dela. Apresentava-se no circo. Eu era pequeno e ficava extasiado com tamanha falta de medo. A bem da verdade, tremia ao vê-la deixar-se enrolar pelo magnífico espécime.

Depois daquele número, vinham os palhaços e a pantomima final, até que todos os artistas voltavam para agradecer ao "amável público". Eu não saía até que visse a dançarina conduzir a cobra definitivamente para os bastidores.

A bandinha recolhia os instrumentos e eu fechava a fila dos retirantes, ainda impressionado com a frieza daquela maravilhosa criatura.

Está claro que agora estou rememorando com muita nostalgia um acontecimento simples de minha triste infància. Tantas coisas ruins aconteceram comigo e eu fico a imaginar-me de novo junto ao picadeiro, vendo os requebros da moça com a cobra, ao som de um repicado agudo, como se naquele momento final do número a serpente fosse dar o bote fatal.

Não deu. Somente muito mais tarde é que pude compreender que a noite era, como dizíamos, "uma criança" e que havia tanta coisa mais para acontecer ao meu derredor.

Foi num daqueles dias de espetáculo que, ao regressar a casa, encontrei meus pais desesperados. Haviam atirado em meu irmão mais velho. Estava morto. A polícia entrava e saía. Meu tio apanhou-me pelo braço e me levou para a casa dele. Eu tinha oito ou nove anos, mais ou menos. Essas datas não ficam muito nítidas na mente das pessoas. O que de fato me entristeceu foi não encontrar mais o mocinho que me levava ao campo de futebol.

Hoje as coisas não se modificaram muito. Eu ainda sofro com a saudade do mano, de meus pais e daquele meu tio...

Eu sei que deveria sentir-me bastante feliz por estar a conduzir esta mensagem até o mundo dos vivos. Ocorre, porém, que não me habituo comigo mesmo, como ser reflexivo e moralizado. Está difícil de vencer a ànsia do passado, já que nenhum futuro me parece tão alvissareiro. Mas o tal passado conta com uma dançarina e sua cobra...

Quando adulto formado, tive a desgraça de me candidatar ao cargo de professor primário, sem nenhuma vocação. As crianças me "cansavam a beleza", com perdão da gíria da época, e eu as arreliava, passando lições impossíveis de serem cumpridas.

Houve uma aluna que me surpreendeu. Um dia, pedi para que escrevessem sobre o circo que estava no bairro e ela descreveu com primor o número da cobra e da dançarina (nesta ordem), muito mais impressionada com o animal do que com a mulher.

Foi a única vez que me enterneci de verdade. A nota máxima que lhe atribuí e a aprovação final com louvor ninguém chegou a entender, tão apagadinha era a menina, jamais destacada para qualquer desempenho nas festividades tradicionais.

Penso naquela nota extraordinária e logo me vem à mente a criteriosa leitura que o meu prezado leitor está efetuando. Terá a mesma contemplação para com meu texto? Serei levado a sério, apesar de não desfilar aqui todas as virtudes, todos os serviços, todos os caminhos para a salvação da alma?

Mário me obriga a conter as lágrimas e me pede para encerrar. Concordo com o mestre, mas não posso deixar de referir-me a outro fato muito importante para esta minha conduta tão diferenciada dos colegas.

Certa ocasião, uns dois ou três anos antes de morrer, lá no centro espírita onde ouvia as palestras e tomava os passes, houve uma reunião mediúnica para a qual fui convidado. Disse-me o amigo dirigente que eu deveria, pelo menos uma vez, comparecer a uma sessão com os espíritos. Quem sabe, sugeriu-me ele, não estaria em mim, escondida, a capacidade de me comunicar com os seres de além-túmulo.

Fui com muito medo. Receava que o espírito de meu irmão viesse dizer-me que estava vigiando os meus passos e que não gostara do modo pelo qual tratara os milhares de alunos até a aposentaria. Também temia que o guia do centro pudesse admoestar-me, por me queixar sempre dos magros proventos da aposentadoria, desculpa não só para não contribuir com nada, mas para também ir tomar a sopa que se distribuía entre os pedintes. É verdade que auxiliava no preparo, mas ninguém deixou de perceber com que fito me apresentava para o trabalho.

Nem irmão, nem guia. Apresentou-se uma encantadora de serpentes dizendo-se arrependida por haver maltratado os pobres animais. Dizia que cuidava deles com muito carinho, que os alimentava e mantinha limpos e bem tratados. Entretanto, declarou que fizera muito mal em separá-los de sua criação, pela natureza selvagem que ela sufocou.

Quando me lembrei daquela dançarina da minha infància, me veio instintiva a pergunta a respeito da lascívia da dança, que estimulava a libido dos homens da platéia. Como que tendo percebido a minha questão íntima, disse o espírito que esse era pecado que estava penitenciando há mais de quinze anos.

E mais não disse.

Eu saí dali sem nenhuma empolgação. Deixei de frequentar as palestras, ou melhor, chegava bem atrasado, a tempo de colher o passe que julgava ser reconfortante. Assim mesmo, naquele ambiente sagrado, sentado diante do passista, ainda me deixava perturbar pelas palavras da dançarina, crendo que estava ela sendo injustiçada, porque dera tanta alegria a muitos jovenzinhos inocentes.

Fique o texto para sua reflexão, como a dádiva máxima que pode distribuir este simples professor primário.

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