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Ensaios-->O PODER PERSUASIVO DE ZÉ FERNANDES -- 12/02/2014 - 04:05 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
RESUMO: A presente comunicação busca explicitar as características do narrador-personagem de A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queirós, apresentando como ele foi capaz de persuadir a sua contraparte, o protagonista Jacinto, fazendo com que ele se tornasse uma espécie de espelhamento do narrador.

ABSTRACT: The current communication searches for reveal the caracteristics of the narrator of “A cidade e as Serras”, romance of Eça de Queirós, presenting how he can able to convence the caracter Jacinto changes the opinion, making him just like a self-mirror of the narrator character`s.

PALAVRAS-CHAVE: A cidade e as Serras; Zé Fernandes; persuasão; Eça de Queirós; foco narrativo.

KEYWORDS: A Cidade e as Serras; Zé Fernandes; persuasion; Eça de Queirós; narrative point of view.



A cidade e as Serras é um romance póstumo, ou seja, ele foi publicado em 1901, após o falecimento de seu autor. Ao lado do conto civilização, de onde muitos críticos afirmam que Eça retirou a substância para criar A Cidade e as Serras, A Ilustre Casa de Ramires, uma saborosa narrativa irônica, e A Correspondência de Fradique Mentes, em que observamos aspectos congruentes entre ele e o narrador do livro que abordamos aqui, pertencem à dita última fase do romancista.
Tal como acontece em ACFM, existe um “narrador-testemunha” que acompanha o protagonista, contanto a história dele e vivenciando os seus momentos mais marcantes. A estrutura é praticamente a mesma. Observe:

A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa, - justamente na semana em que ele regressara de sua viagem à África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, uma tarde, no café Martinho, que encontrei, num número amarrotado da Revolução de Setembro, este nome C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam. (QUEIRÓS, 1952, p. 05)

Meu amigo Jacinto nasceu em um palácio, com cento e novo contos de renda em terras de semadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. / No Alentejo, pela estremadura, através das duas beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos dessa velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei dom Dinis. Sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até o mar de Ancora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, em Paris, nos Campos Elíseos, número 202. (QUEIRÓS, 2003, p. 07)

Esta aproximação não é gratuita. Para entendermos como Eça criou este narrador e o seu poder de influenciar a mente daquele a quem chamou de “meu príncipe”, abordaremos alguns fatos importantes e particularidades de sua psique. A intenção principal deste trabalho é explorar as características e particularidades de Zé Fernandes, narrador deste célebre romance de Eça de Queirós.
A leitura que realizamos busca expandir as significações inerentes a esta curiosa personagem, na medida em que tece diálogos permeados pelas palavras do próprio Zé Fernandes.
Ele é uma personagem muito curiosa. Narrador homodiegético, presencia a história contada, ao lado de Jacinto, seu príncipe. Ao que tudo parece, ele seria uma personagem secundária, tal qual Sancho para Dom Quixote, mas as aparências enganam. O papel de Zé Fernandes na narração é o fio condutor e sua personalidade, aquilo que promove o desfecho da história. Eça criou este indivíduo de uma forma muito crítica, como testemunha, amigo, confessor e relator da vida de Jacinto, assume um papel de destaque na economia do texto: é por meio da sua perspectiva, que o romance se realiza.
Relevante ressaltar que, apesar do discurso direto que há na voz de Jacinto, ela não passa de uma lembrança. O tempo presente serve para presentificar a ação ao leitor, no entanto, dentro da cronologia narrada, ele é passado. Percebemos bem esta utilização dos tempos na narração, se observarmos os verbos de dizer:

_ Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou Jacinto, encostado à janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da madre natureza, lestos e sãos, nós podemos distinguir além, através da avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além do planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos campos Elíseos. É outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da natureza, elevado pela civilização à sua máxima potência de visão. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreenderás o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos devemos cercar da civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes? (QUEIRÓS, 2003, p.12-13)

(...) Então, passando o lenço sobre os lábios que a angústia ressequira, confessou o erro, contritamente o atribuiu a uma improvisação tumultuosa: _ Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com efeito, é um absurdo, um colete preto! (...) (QUEIRÓS, 2003, p.45)

Ou aspecto que vale a pena comentarmos nos diálogos entre os dois amigos é a tentativa de convencimento mútuo, uma jogada narrativa desenvolvida por Eça, muito inteligente, que causa uma dicotomia por toda a obra.
Tal aspecto está bem nítido na passagem acima. Jacinto, após explicitar a teoria que o governa, sente a necessidade da concordância por parte de Zé Fernandes (Agora concordas, Zé Fernandes?). Esta tentativa de convencimento do outro, tão peculiar à retórica latina, não encontra eco na mete do seu interlocutor, por outro lado, nas palavras dele, há o convencimento – o que Jacinto recebe de Zé Fernandes é exatamente o que o seu interlocutor desejava, mas não é o que ele pensava, há, portanto, um falso feedback. Observe:

Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em distinguir através do espaço manchas num astro, ou através da avenida dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e lançando um gesto para o lado do café e das luzes: _ Vamos então beber, nas máximas proporções, brandy and soda, com gelo! (QUEIRÓS, 2003, p. 13)

Trata-se de uma inegável necessidade de coexistência e afirmação no outro, bem como uma dicotomia intrínseca ao par Jacinto/Zé Fernandes: um é o contraponto do outro, formando um yin/yang. A existência do primeiro está necessariamente condicionada ao segundo e vice-versa. Tal aspecto está totalmente integrado à narrativa, pois, lembremo-nos do título, ao passo que Jacinto, rodeado das modernidades e uma espécie de Fradique Mendes repaginado, é ligado à cidade (Paris), José Fernandes, sua contraparte, como ele próprio se revela e Jacinto bem o sabe, é uma criatura das Serras (interior de Portugal).

_ Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocote com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário que agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no clube. Eu pago um bocado... Mas meramente por civismo, para dotar a cidade com uma cocote monumental. De resto não chafurdo. Pobre Diana!... Dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de limão. (QUEIRÓS, 2003, p. 36)

Engenhosamente pensada por Eça de Queirós e perfeitamente construída na narração, o binômio Jacinto/Zé Fernandes espelha-se em Cidade/Serras, respectivamente. É através da tensão inerente a esta dicotomia que o escritor português demonstra a realidade dos espaços-títulos da sua obra, colocando as suas personagens a divagar neles.
Sabemos qual é o final da história. A dicotomia patente busca o equilíbrio do taoísmo. Tanto é que o termo chinês “tao” significa justamente “caminho” – a força motriz por trás de tudo o que existe. O caminho de Jacinto, do 202 em Paris até Tormes, aliado às constantes interferências da vontade de convencimento de Zé Fernandes sobre a sua, é a força motriz que o vai transformando. Zé Fernandes atua como uma espécie de consciência crítica, que busca balancear as ideias do seu príncipe, sem desalojar o espírito de Jacinto “do conceito onde ele encontra segurança”, como ele próprio confessou em pensamento.
Observe este trecho:

E depois (acrescentava) só a cidade lhe dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do cesario de Paris, dois milhões de seres arquejando na obra da civilização (para manter na natureza o domínio dos Jacintos!), sentia um sossego, um conchego, só comparáveis ao do peregrino que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedário, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de armas... (QUEIROS, 2003, p. 14)


Sem dúvida, um espírito citadino! No capítulo VI, ocorre de a dupla estar em Paris, a visitar a Basílica do Sacré-Coeur quando, ao contemplar a cidade de uma colina, Zé Fernandes questiona o amigo:

(...) Vê, Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o amor, na cidade, meu Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os faunos amam a ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os rocantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque eu lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. (...) Assim, meu Jacinto, na cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou imprudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela cidade! (QUEIRÓS, 2003, p. 71-72)


Não há como não admirarmos a retórica irrepreensível do narrador. Ele detém a arte do convencimento, não nos restam dúvidas. Perante as argumentações do sobrinho de Afonso Lorena de Noronha e Sande, o príncipe da Grã-Ventura, cujo espírito moderno e urbano do começo do livro tão grandiosamente enalteceu a cidade, começa a se inquietar, proferindo a seguinte frase: Sim, com efeito, a cidade... É talvez uma ilusão perversa!
Zé Fernandes “saboreia”, assim, o seu “fácil filosofar”. Torna-se evidente que seu intuito era mudar Jacinto, sua necessidade de convencer o interlocutor foi bem sucedida.
A filosofia taoísta se realiza no final da obra, o Yin volta a se encontrar com o Yang, trazendo, desta forma, equilíbrio a Jacinto. Facilmente observamos este fator ao lermos o seguinte trecho:

(...) Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o príncipe sem principado. E uma tarde, no pomar, encontrando o nosso velho Grilo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra lhe dera meninos para trazer às cavaleiras, observei ao digno preto, que lia o seu Fígaro, armado de imensos óculos redondos: _ Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o sr. dom Jacinto está firme. O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para o ar os cinco dedos em cursa como pétalas de uma tulipa: _ Sua Exa. brotou! Profundo sempre o digno preto! Aquele ressequido galho da cidade, plantado na serra, pegara, chupara o humo do torrão herdado, criara seiva, afundara raízes, engrossara de tronco, atirara ramos, rebentara em flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando frutos, derramando sombra. E abrigados pela grande árvore, e por ela nutridos, cem casais em redor a bendiziam. (QUEIRÓS, 2003, p. 192-93)

As serras reencontraram Jacinto e fizeram brotar o seu espírito em serenidade: a equação, que ele propusera no Capítulo I, não se efetiva. Suma ciência X Suma Potência = Suma Felicidade, “louvada pela juventude positivista” era o ideal metafísico para alcançar a plenitude. É justamente o narrador que mostra ao príncipe que, na verdade, a felicidade estava no equilíbrio das coisas, no resgate da sua parte serrana, e não nesta equação.
Posto isso e tendo ciência de que Jacinto, no fim do livro, realiza-se, reconcilia-se com Portugal, podemos inferir, sem titubear, que esta personagem é redonda, pois ela evoluiu – em pensamento – de uma proposição inicial, a equação metafísica, como uma espécie de objetivo para alcançar um resultado, a outra, influenciado por sua contraparte, que o persuade a viver nas Serras, o narrador-personagem, Zé Fernandes.
Por fim, enfatizemos o tom centrado e articulado dos pensamentos do narrador por todo o romance. Suas opiniões, sempre bem organizadas e retoricamente domesticadas. Diferentemente do que aconteceu com Jacinto, que mudou a sua ideia sobre as Serras, relativizando o conforto oferecido pela modernidade em Paris (lembremo-nos que o telefone, grande ícone da tecnologia, também chegou a Tormes) com a tranquilidade e boa comida das Serras, José Fernandes, talvez exatamente por já possuir o seu yin/yang, não sofre uma alteração deste nível. É verdade que ele cede ao fascínio pelas belezas da tecnologia, que não escapam de seus olhos:

Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade serrana todos os gostos duma iniciação. Aos lados da cadeira de Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, pôr onde ele decerto soprava as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles, coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e refletida no seu verniz como na água dum poço, pousava uma Máquina de escrever; e adiante era uma imensa Máquina de calcular, com fileiras de buracos de onde espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro. Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira duma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a última de
Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras admirei aparelhos que não compreendia: - um composto de lâminas de gelatina, onde desmaiavam, meio chupadas, as linhas duma carta, talvez amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca duma tuba toda aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados às cimalhas, luziam arames, que fugiam através do teto, para o espaço. Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam forças universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e entrara na sua domesticidade!... Jacinto atirou uma exclamação impaciente: -Ó, estas penas elétricas!... Que seca! Amarrotara com cólera a carta começada – eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali
jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos economistas. Avancei – e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas Pré-socráticas até às escolas Neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas – e que todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, embaixo, era pesado, de
couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na seção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Ortografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto duma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo – e pôr trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor. (QUEIRÓS, 2003, p. 22-23)

Assim como o seu valor pelas Letras, transparente na passagem supracitada, o “armazém do raciocínio e da imaginação”, o que revela bem o seu espírito equilibrado entre a cidade (tecnologia, razão) e a arte (emoção, cultura, tradição), reforçando, desta forma, a nossa ideia de que Zé Fernandes já estava completo.
Curioso observar que esta persona serrana, que “admira aparelhos que não conhecia”, recebe esta cativante e sedutora presença da modernidade e, como é claramente relatado no texto, chega a admira-la, sem, no entanto, ser absorvida por ela, porque ele já encontrou o seu caminho, fato que o seu príncipe, Jacinto, nesta altura da narração, ainda está por encontrar.
Portanto, demonstramos como a personagem-narrador foi importante para a mudança que aconteceu com o protagonista, sua força de convencimento a ponto de reestrutura-lo internamente. Jacinto, sem Zé Fernandes, nunca encontraria o caminho para a Suma Felicidade. O mais impressionante disto tudo é que a resposta para a realização pessoal de Jacinto sempre esteve ali, ao lado dele, em seu amigo Zé Fernandes.

REFERÊNCIAS

AMORIM, C.M.S. Entre a queda na cidade e a ascensão na serra – as trajetórias de
Calisto e Jacinto na segunda metade de oitocentos. Dissertação de Mestrado em
Literatura Portuguesa, UFRJ. Rio de Janeiro, 1995.

JAPIASSÚ, H., MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

MATOS, A. Campos (Org.). Suplemento ao dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Ed. Caminho, 2000.

MIGUEL, Real. O último Eça. Lisboa: Quidnovi, 2006.

QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
______. A correspondência de Fradique Mendes – Memórias e Notas. Porto: Lello & Irmão, 1952.

SOUSA, Frank. Jacinto e Zé Fernandes: diálogo e paródia. In: A cidade e as Serras de Eça de Queirós. Edições Cosmo: Lisboa, 1996.
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