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Contos-->Suite 206 -- 12/01/2003 - 21:21 (PEDRO VIANNA NETO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Suíte 206


Mandei tudo à merda e disse que ia sair de qualquer forma. A tarde prometia ser uma daquelas, e eu não podia ficar de fora. Ela me pegou pelo braço com os olhos úmidos e pediu que ficasse. Era sua última tentativa. Não dei ouvido. O João e o Carlos já estavam na porta me esperando. O elevador abriu e pulamos pra dentro com o coração a mil. Desci os dezessete andares com um leve peso na consciência, mas a certeza de que a farra seria intensa dissipou qualquer réstia de sentimento retido em meu peito.
Pegamos o carro do Carlos no estacionamento e nos mandamos o mais rápido possível. Não havia tempo pra arrependimentos. Carlos era o irmão da minha mulher e nessa época também não estava nem aí. Na praça em frente ao prédio gordos autopiedosos caminhavam ciclicamente tentando queimar a banha de suas barrigas burguesas. Descemos numa reta interminável rumo a periferia. Os postes passavam rápidos como meus pensamentos. João bolou e acendeu uma enorme tora de maconha enquanto nos perdíamos pelo estreito labirinto de ruas de terra próximo ao mercado do Guamá. Ondas de fumaça percorriam o interior do carro como fantasmas. Ninguém dizia uma palavra.
Paramos na entrada de uma casa de madeira onde um moleque tentava insistentemente levantar uma curica de plástico pela varanda. Cada um de nós puxou 20 paus. Um moreno com um baita talho na cara apareceu na janela e jogou um saquinho de pano preso a um fio. Coloquei a grana dentro, ele puxou, e depois de conferir o dinheiro, desceu o produto no mesmo saco. Saímos como loucos a procura de um bar que tivesse um banheiro adequado. Tinha de ser um lugar em que a porta trancasse e não tivesse muita gente. O João reacendeu o baseado. O tempo não passava.
O bar ficava numa rua larga dividida por um canal – o canal onde fumei birra pela primeira vez. Poucas figuras bebiam em duas mesas afastadas. Pedimos a primeira cerveja e brindamos como se celebrássemos a renovação de nossas vidas. Agora tudo estava bem, nada poderia nos atingir. Fiz questão de ser o último a ir ao banheiro. Tranquei a porta e dei quatro cafungadas generosas. Em pouco tempo tudo se revestiu com um verniz de interesses mútuos, inacreditáveis; as palavras voavam como pássaros; e cerveja era gelada e o bagulho do bom. Não precisávamos de mais nada.
O sol começou a descer por trás do rio. Do bar não dava pra ver, mas eu sabia que ele estava lá, caindo com seu rastro de fogo. Logo estaria escondido. O João disse “falou” e se mandou junto com o sol.Continuamos sem ele a nos revezar em visitas constantes ao banheiro. Aquela rotina já era conhecida. De repente acabaram-se o pó e o cd que tínhamos colocado pra tocar. Um silêncio doentio tomou conta de minha cabeça: eu queria mais. O Carlos também. Descemos novamente para o Guamá. As coisas se repetiam como num filme.
Quando voltamos o bar tinha fechado; parece que o dono queria curtir Mosqueiro e fechara mais cedo. Playboys em carros incrementados ocupavam uma das laterais do canal ouvindo house no último volume. Eu conhecia aqueles caras. Não sei bem se eles haviam me desprezado na época em que comecei a endoidar, ou se eu me cansara de todo aquele papo furado de rodas e toca-fitas. Atravessamos pra uma lanchonete que também vendia cerveja. O banheiro era escroto, mas dava pra quebrar o galho. Começou a rolar um som bacana. O dono do bar tinha uns cds de mpb. Chegaram umas putas até gostosas, mas eu tava tão travado que não dava nem pra pensar em mulher. Queria mesmo era viajar no som e jogar conversa fora.
Depois de umas duas horas o bagulho acabou novamente e a noite começou a se desfazer. A pouca grana que tinha restado do troco da birita não dava pra mais nada. Decidimos então deixar o relógio do Carlos penhorado na boca, e com a minha última folha de cheque nos trancarmos num quarto de hotel barato e detonar até de manhã. Pegamos o carro, e depois de feitas todas as negociações com o boqueiro, paramos numa espelunca malcheirosa em frente ao ver-o-peso. Descemos tirando uma de veados pra que a mulher do balcão não suspeitasse de nada. Ela entregou a chave: suíte 206. Subimos a escadaria de mãos dadas quase não conseguindo conter o riso. Me bati um pouco pra abrir a porta e vi que tinha uma câmara nos filmando. Era uma suíte clássica de motel com canal pornô e tudo. Entramos pela madrugada cheirando, bebendo, e conversando sobre música. Penso até hoje que, além das drogas, só a música nos trazia algum conforto. Talvez a música fosse nossa única paixão.
O pó acabou e o Carlos resolveu sair pra descolar uma puta. Fiquei esperando ele no quarto com a cabeça a mil. É certo que quando acaba a parada começa a deprê. Tentei bater uma bronha: impossível. Não demora o Carlos chegou com uma morena rabuda que dava até pra traçar, mas como estávamos sem um puto ela não quis acordo. Mandei ela rasgar antes que eu ficasse puto. Falei pro Carlos que era melhor ele chegar em casa só e dizer que tínhamos nos separado em algum lugar. Pedi emprestado uma caneta e um canivete suíço que ele tinha ganhado de natal. Esperei ele sair e arranquei uma folha do catálogo telefônico. Minha cabeça girava confusa, mas eu estava decidido a acabar com toda aquela merda. Escrevi uma longa carta. Deitei na cama com o peito pra cima, abri a maior lamina do canivete e cortei com força os dois pulsos. Olhei pro lado e vi meu sangue tingir aos poucos o lençol. Era melhor assim. Era o fim de todo sofrimento. Havia em mim a certeza de que o mundo, as pessoas, a dor, tudo só existia em mim. Senti que minha visão aos poucos ficava turva, as coisas ganhavam sombras mais espessas como se tudo estivesse a ponto de apagar. Levantei com as forças que me restavam e me arrastei até o telefone. Liguei pra casa e meu pai atendeu. Pedi socorro com a voz tremula. Assim como minha vida, meu suicídio não passara de uma farsa.


14/10/2002




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