Nosso rádio Philips era preto, grandão, acomodado numa
até elegante moldura de madeira, e sua sintonia era
seu calcanhar de aquiles. Frágil e caprichosa. Papai
dizia que era a antena, que era externa, com uns fios
que se projetavam da janela de nossa varanda para o
telhado, o quintal afora.
E havia horas melhores para se sintonizar, no entanto:
pena que boa parte desse tempo ou era de sono
compulsório, ou daquele programa chato, repetitivo: A
Voz do Brasil. E não tinha escapatória: deu sete da
noite, babau. Uma hora inteira de avisos aos
navegantes, comunicados oficiais dos poderes
constituídos e outros temas de pouco alcance e menor
agrado. Tinha umas `rádia` estrangeiras que podiam ser
alternativa, em ondas curtas, mas os blá-blá-blás eram
coisa de Satanás, além de Anaz e Caifaz. Não
entendíamos bulhufas.
Eram quatro os botões do comando: o de ligar, o do
volume, o da sintonia e o das ondas. O de ligar, mais
à esquerda do ouvinte, fazia um ressonante `poum!`
tanto para ligar quanto para desligar. Mas era só o
barulho, não fedia nem cheirava. E cabia ao ouvinte
esperar uns poucos segundos para a coisa esquentar. O
botão mais acionado era o da sintonia, o terceiro.
Tanto nele a gente mexia, que volta e meia o
cordãozinho interno que acionava uma lingueta metálica
externa no topo do aparelho e que coincidia com as
determinações do `dial` (uma placa de vidro com os
nomes das estações radiodifusoras em umas seis ou oito
colunas) emperrava, saía dos seus trilhos internos e
se embolava todo. Era preciso então, abrir o rádio por
detrás e fazer as correções, manobrando-se
cautelosamente as mãos entre aquele emaranhado de
fios, caixinhas e válvulas. Tinha uma delas que se
destacava das demais: bojuda e compridona era a
mãe-de-todas as válvulas. Menino não podia tocar
naquelas coisas. No que obedecíamos, mas espiar e se
extasiar com aquele mar de combinações não colocava
problemas. Desde que guardada uma certa distância e
que palpites não perturbassem o corregedor da vez.
Uma vez, apareceu lá em casa o Benedito, moço, vai ver
que adolescente então, alto, magro e bem alinhado. Um
gentleman. Era filho de um compadre de papai, outro
Benedito, ferroviário e vicentino.
Ao Benedito filho, cabia fazer a limpeza no rádio e
corrigir a linha das estações. Ele chegou com uma
confiança imperturbável aos meus anseios de
proximidade para ver as vísceras do nosso Philips.
Acho que até fui instado - por papai - a tomar
distância, e deixar o moço trabalhar em paz. Se não me
engano ele era aprendiz atencioso e reputado naquele
setor. Tivera prática com um tal Vicente do Rádio, lá
da cidade, e agora, no povoado do nosso Brumado, fazia
valer as lições hauridas com o mestre Vicente.
E o Bené se concentrou como pode no seu trabalho - eu
mantido a distância para se evitar qualquer ato falho.
Era uma tarde, de um sol morno mas brilhante. Menos só
que meus olhos naquele fascinante aparato de se
desnudava nas mãos do novato.
O golpe fatal no entanto veio quando o Bené, sem se
dar conta do risco, virou o aparelho de lado e o
`dial`, de vidro, apenas encaixado no topo daquele
caixote, se projetou rumo ao vermelhão. Sem no olvido
cair, o barulho até hoje me ressoa aos ouvidos.
Centenas de lasquinhas e o prejuízo vitral.
Benedito, lívido, assumiu o erro, embaraçado, mas sem
contestação. Ficou de comprar um reposto logo que
fosse à capital. E o fez. Não achou um igual ao
original, mas ninguém estava ali para fazer
comparações, nome de rádio por nome de rádio, tim-tim
por tim-tim. O importante é que se encaixava bem e o
cordãozinho voltara a acionar a lingueta pra lá e prá
cá. Até que um novo capricho o desalojasse de seus
trilhos. Mas aí o Bené já estava escolado.
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