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Contos-->A Noite Apocalíptica ou o Cavaleiro Sedutor -- 13/01/2003 - 20:29 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



A filha do ferreiro dormia a sono solto, no seu humilde quarto de virgem, enquanto a noite lá fora prosseguia inquieta, banhada pelo sorriso cúmplice da lua cheia. Quando os seres ocultos da noite se puseram a piar, gemer, gritar, guinchar, o ferreiro temeu, a meio do seu estado de embriaguez, que a noite se fizesse apocalíptica. Já assim fora numa noite igual, vinte anos antes, vinte seriam certamente, era de peito a agora linda moça sua filha. E... entende a mão para a garrafa de espessa licorosa aguardente e de um trago, eis que despertam as odiosas recordações. Uma noite assim.
Lua-plena, bebedeira, passarada em alvoroço, os uivos quase lupinos dos cães. E ...
Deteve-se, interdito o pensamento, gelada a fluidez do sangue nas artérias. Surdas pancadas. Pancadas na porta. Pancadas que vieram provocar-lhe um estremecimento mortal. Como naquela noite... Toda a casa fez eco surdo. Tombando sobre ela o mundo. Esmagada irresoluta na espera ansiosa, suspensa no silêncio posterior.
A bela desce já as escadas adormentada, semicerrados os olhos negros, da cor da fatalidade, pretos os cabelos também, fartos e espalhados em rebelde cascata. O ferreiro sabia que não valia a pena ignorar aquelas pancadas que prosseguiriam insistentes, aumentando os uivos e latidos dos cães da vizinhança. Vai para escondê-la, insensato e trôpego, corre a amealhar o seu maior tesouro em lugar que não lembre ao diabo. E esse lugar sempre existiu, sempre esteve ali à espera que a fatal noite se avizinhasse. Feito de ferro fundido, forrado a lã de ovelha e linho puro, o alçapão abriu-se onde nada o faria adivinhar e a jovem acende desmesuradamente os olhos para aquele prodígio, morrendo-lhe a voz nos lábios róseos, pálidos agora de tremura, a um sinal imperioso de seu pai, esgazeado como nunca o vira.
Baixinho, pegou-lhe na mão dizendo:
__ Entra. Esconde-te ali. Que nada que vejas ou ouças te faça abandonar este lugar. Anda, entra.
__ Mas...
__ Obedece, anda. E não saias daí. Seja quem for que entre, seja quem for que vejas...
Nota bem que é muito importante. Lembra-te que o que parece, não é. Não é, ouviste?
Vai a moça para protestar, é rebelde e arredia, mas já cai brutalmente no doce invólucro de lã e algodão que se fecha sobre si como um sepulcro.
O ferreiro tapa tudo com um tapete calça fortemente o chão e inseguro, cambaleante, abre a porta ao visitante.
__ Boas noites, senhor. Procuro guarida por aqui. Sabe de alguma estalagem ou albergaria? A noite está feia e fria.
Feia é que ela não está, pensou o ferreiro relanceando o olhar pelo pátio. Fria? Sim fria, gelada de morte ímpia, cruel por ser certeira.
__ Há sim. A alguns quilómetros daqui. Cinco ou seis __ sorriu pálido de medo.
__ Que pena. E eu tão cansado que estou. Caminho já há outro tanto quanto o que ainda devo caminhar. Poderei descansar por umas horas em sua casa? Uma cadeira, um lugar junto à lareira, nada mais será preciso.
Sabendo que de nada serve recusar entrada a quem já decidiu entrar, franqueia-lhe ciosamente a porta. Indica-lhe o tão almejado lugar junto à lareira. Entrega tudo que tem, o pão o queijo e o que resta da garrafa. Sabe que poderá não ficar por ali. E estremece. Prolonga até ao infinito a sua presença na sala, olhando fixamente o visitante. Passará a noite com ele ali na sala. Mas já este o incita a ir deitar-se, pagando-lhe a hospitalidade com um saco de dinheiro, confiante e seguro do seu poder.
Moço de formas perfeitas, cabelo louro inocente, lábios finos, candidamente inocentes, vai o ferreiro mais calmo, pensando ter-se enganado nos seus premonitórios receios.
A meio da noite, curiosa como todas as mulheres, resiste a donzela em espasmos a dar uma discreta espreitadela... Levanta suavemente os bem oleados gonzos e nada faz adivinhar os olhos negros que, a partir do chão, se cravam no belo jovem. Habituada aos rudes pastores, nunca a moça vira pessoa tão branca e delicada, diáfano o braço que pendia da cadeira, puro o perfil de príncipe, louro como estes são, e uns lábios frescos de criança, macios ao simples olhar. Que estranha força a faz permanecer olhando-o?
Sabe apenas que os seus olhos querem devorar aquele corpo, centímetro a centímetro, e sente até que as suas mãos não poderão deixar de tocá-lo de mansinho. Impulsionada, fascinada em sonâmbulo caminhar, estende a mão e passa um dedo por aqueles lábios. Uma e outra vez, quedando-se na seda pura, mais suave que as sedas dos vestidos que sonhara ter. Depois os cabelos louros e revoltos. Encantada e alheia a tudo o mais. Quando ele abre os olhos, não recua assustada ou possuída de súbita vergonha. Não. Ela quer que os olhos verdes de esmeralda do mar continuem a quebrar-lhe assim o alento, sem vontade, sem outro desejo que o de fundir a sua pele na dele, num banho de suavidade e seda. A jovem não sabe por que assim age, nem lhe vem ao entendimento a força de inquirir, porque já se debruça sobre o moço que a enlaça docemente. Assim os encontra a lua que espreita traiçoeira e cúmplice por uma fresta da janela. Os cães uivam desvairados e as corujas sábias prolongam os seus lamentos. O sono do ferreiro tem todo o peso de uma forja e seus preparos. Quer arrancar-se-lhe mas a forja pesa, pesa, o peso de uma vida de trabalhos e ele consciente, cônscio mas impotente...
A filha desmaia agora nos braços do visitante. Os gemidos audíveis são de suave prazer, na descoberta dos encantos dessa pele, onde a suavidade se faz frémito e quase agonia. Percorre-a em sábias carícias que não conhece, trilhando os caminho da doce loucura estonteante. E ele agora soerguido e lânguido, remexe-lhe o corpo em ansiedade, revira-o, beija-o, morde-o tentadoramente e ela do gemido passa ao grito suplicante. Que ele não páre assim de a surpreender nos cantos mais escondidos do seu corpo, onde se alojam conchas puras que se abrem ao prazer. Agora quase a enlouquece, o prazer já é dor, as mãos já são impuras e tacteantes, os dois já são só uma onda sem saber, dor e mais dor e tanto prazer, dança sem ritmo, selvática ou doce, estremecer de corpos inocentes que se entregam sem saber ao quê. Quando o desmaio sublime suplanta a dor, e dois corpos brotam em fonte, o grito dos amantes morre abafado pelo crucitar dos corvos que comandam a sinfonia infernal da natureza.
Quando o dia amanhece inocente e puro, a donzela já não tem a cor da mocidade. Jaz abandonada e fria, um sorriso esquecido nos lábios brancos, guardada por um corvo indiferente, as mãos ainda em gesto de carícia. Pela porta entreaberta, o ferreiro ainda vê um bode portentoso a olhá-lo antes de partir, o corpo solto, e um olhar maldoso.
Ninguém sabe ao certo o que nessa noite se passou, começando pelo ferreiro cuja forte bebedeira lhe embotara o pensamento... A filha, essa, partiu. Dizem que deu à luz uma criança sem defeito ao fim de nove perfeitas luas-cheias. Foi mais uma das que, reza a história, copulou com o Diabo.


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