Japonês Especialista em Cachaça!
Adrião Neto *
Tive o privilégio de ler grande parte da produção literária do escritor Décio Adams. E agora, para minha surpresa, fui convidado para prefaciar um dos seus trabalhos. Das duas obras postas à minha disposição – Japonês Especialista em Cachaça! e O Mineiro Sovina, optei pela primeira.
Confesso, que por conta das minhas atividades, demorei bastante tempo para concluir a leitura, mas a fiz, degustando página por página como quem degusta uma boa cachaça. E, com o meu paladar literário bem apurado, pude constatar que o autor continua escrevendo em alto nível.
Nos comentários feitos em uma breve apreciação sobre A Saga da Família Cruz – um dos melhores romances da atualidade –, tive a oportunidade de dizer: o autor tem um estilo sóbrio, direto, claro e objetivo, demonstrando extrema facilidade de escrever; ele brinca com as palavras; suas ideias, bem concatenadas, fluem naturalmente; suas obras escritas com leveza e suavidade, prendem a atenção do leitor do começo ao fim.
O mesmo vale também em relação a obra em epígrafe, que tem como fio condutor a história de vida e a trajetória de luta do português Manoel Silvério Ferreira, proprietário do Bar Snooker do Portuga, situado no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, onde o japonês Toshyro Sakagutti, passou a demonstrar as suas habilidades como especialista em cachaça.
A história inicia em Ancede – uma vila medieval de vasta produção vinícola, situada à margem do rio Douro, em Portugal –, terra natal de Manoel Ferreira, o filho caçula de Dolores da Cruz Ferreira e Joaquim Ferreira, nascido logo depois da implantação do Estado Novo, também conhecido como Salazarismo.
Manoel não gostava muito de estudar, mas tinha paixão pela mecânica. Tudo o que ele queria era saber de máquinas, não simplesmente para ser operador de uma delas. Tinha vontade de participar da fabricação, montagem, desmontagem e manutenção.
Seguindo seu desiderato, ainda adolescente, passou a trabalhar como aprendiz numa oficina de sua terra natal. Depois, já chegando aos 18 anos, foi trabalhar em uma oficina na cidade de Porto, onde passou a conviver com marinheiros, estivadores e toda sorte de gente.
Em meados de 1953, flagrado numa manifestação contra o governo, foi preso e interrogado pelas tropas da repressão. Ficou encarcerado por um bom tempo e só ganhou a liberdade graças aos préstimos de um advogado contratado pela família.
Voltando para sua terra, retomou o trabalho na oficina onde começara como aprendiz. Depois de economizar o suficiente, tomou um navio e, na condição de clandestino, veio para o Brasil junto com um amigo.
Após vários dias de viagem passando pela Espanha e Marrocos, aportaram em Recife e depois em Santos.
Com sua vinda, além de se livrar do regime ditatorial do seu país, Manoel começou sua luta pela realização do sonho de ter uma vida melhor e até de fazer fortuna.
A partir do dia seguinte, ele e o amigo passaram a integrar um grande contingente de trabalhadores braçais no porto de Santos como estivador, tendo como principal atividade o carregamento e o descarregamento de navios.
Após legalizar sua situação de clandestino, de se filiar ao sindicato dos estivadores e de se envolver com a política sindical, e posteriormente com a polícia, Manoel juntou suas economias, partiu para a cidade de São Paulo, onde começou a trabalhar na oficina de um cearense, fez um curso de torneiro mecânico no SENAI e ingressou numa indústria de autopeças recém-instalada na região metropolitana da capital.
Em 1983, quando ele trabalhava no setor de usinagem fina em sua máquina de produção de peças, ocorreu a explosão de uma caldeira num local ali próximo. O grande impacto derrubou uma parede e parte do teto, ficando vários dos operários presos sob os escombros. Levado para o hospital com algumas escoriações e o dedo indicador da mão direita decepado, Manoel teve ainda de amputar parte do pé esquerdo, esmagado por um pedaço de concreto.
A mutilação acidental ensejou a sua aposentadoria por invalidez, com o recebimento dos vencimentos integrais, permitindo-lhe ainda sacar o fundo de garantia, o saldo do PIS, além de receber uma gorda indenização.
Com o dinheiro de suas economias e da indenização, Manoel comprou e reformou um bar na Mooca, onde seus clientes organizavam campeonatos de sinuca, pebolim e futebol de botão.
Durante um dos primeiros campeonatos, o japonês Toshyro Sakagutti – amigo do antigo proprietário – deu com os costados no Bar Snooker do Portuga.
Informado de que o estabelecimento havia mudado de dono, apresentou-se ao novo titular, passando a disfrutar da sua amizade e do convívio dos frequentadores do recinto.
As viagens de trabalho como representante de uma indústria agroquímica o havia mantido afastado dos prazeres da vida, especialmente de um agradável jogo de sinuca.
A coleção de cachaça exposta no bar do português atraiu sua atenção. Ele (que durante suas viagens por várias regiões do Brasil, tornara-se grande apreciador de jiribita, havia se transformado numa espécie de sommelier da principal bebida genuinamente brasileira), comentou que sua sensibilidade palativa desenvolveu a capacidade de identificar pelo sabor, a marca, a procedência e a safra do produto.
Com essa afirmativa os frequentadores do Bar Snooker do Portuga começaram a questionar entre si, se isso seria possível. O assunto espalhou-se rapidamente e logo resolveram colocá-lo à prova, mas antes organizaram uma aposta. Os que se posicionaram contra deram-se mal, o japonês acertou na mosca, declinando a marca, o local de fabricação, a safra e o nome do alambique.
Deste então, o japonês passou a ser desafiado para identificar os mais variados tipos de cachaças produzidas pelo Brasil afora. Sempre havia uma nova garrafa para ser experimentada. É possível que tenha provado até uma dose de Mangueira, uma das melhores cachaças do Brasil, made in Castelo do Piauí, antiga Vila de Marvão, onde o escritor Francisco Gil Castelo Branco ambientou o primeiro romance genuinamente piauiense, intitulado de Ataliba, o Vaqueiro – uma das obras pioneiras que mais contribuíram para a formação da identidade cultural do Piauí.
O paladar apurado do japonês virou lenda na região da Mooca e aos poucos espalhou-se pelas redondezas. A sua fama de cachaçólogo rendeu-lhe o status de celebridade.
Retomando à história de vida de Manoel – tão bem contada por um dos maiores magos da palavra, que tive o prazer de ler –, logo depois da inauguração do bar, ele contraiu matrimônio e constituiu uma linda família.
Encerrando esta breve apresentação, parabenizo ao escritor Décio Adams por mais essa importante contribuição para o engrandecimento da cultura nacional.
Adrião Neto – Dicionarista Biográfico, historiador, poeta e romancista. Autor de várias obras e da ideia da inclusão da data histórica da Batalha do Jenipapo (13 de março de 1823) na Bandeira do Piauí (Lei nº 5.507, de 17/11/2005, de iniciativa do deputado Homero Castelo Branco).
|