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Contos-->No Fim a Paisagem Sempre Vence -- 20/01/2003 - 00:22 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
No fim, a Paisagem Sempre Vence.

Não, melhor evitar a paisagem, dar a volta, passar ao largo. Melhor não ter o que esquecer. Mas um dia a paisagem vence. Paisagem é um troço inútil, feito para consternar as almas mais desavisadas. Passar ao largo. Ela fala na importância da MTV para a sua formação cultural. Exatamente isso: “para a minha formação cultural”. Nunca imaginou que a MTV pudesse formar culturalmente alguém. Aliás, odeia essa expressão “formação cultural”. Prefere Pepino di Capri, Champgne. Mas sorri simpático. Conjuga simpatia com mil pequenas obsessões diárias e acha que a vida é um amontoado de escombros. E a paisagem ali, de intermédio, como dizem. A MTV como símbolo. Ela estuda Habermas, Adorno e a indústria cultural. Daí a MTV. A vida fodida. Inevitável não falar em vida, em ocaso, em vazios e esquecimentos, em música italiana tocando sem parar no karaokê, em calor e maresia, sufoco e outros artigos de luxo. Essa merda em que se afunda com dignidade e desespero, tentando manter o equilíbrio, não enlouquecer, não sair correndo e se acabar na arrebentação.

“Meu nome é Luíza, como na música do Tom...”

(Taí um cara que fodeu!)

E ele ali, há mais de duas horas, ouvindo ela falar em MTV, as vantagens de usar Intimus Gel, esmalte e batom vermelhos, em orgasmos múltiplos, na dominação das massas, na genialidade de Gilberto Gil, em Tropicalismo e no inconsciente coletivo de Jung. (Um pilantra, não duvidem). E ele querendo se afogar na arrebentação. Sumir com a paisagem. Prestidigitação. Vale que ainda é fim de tarde e mulher sempre se excita com pôr-do-sol. Quem sabe uma chance? E o céu tingindo tudo de laranja.

O mar, um convite.

Ela fuma Charm e vai manchando as guimbas com batom vermelho. O mar laranja desse fim de tarde de guimbas e tesão incontinente. O gosto do batom vermelho, de cerveja e cigarros, a língua que desliza suave entre lábios e dentes, a paisagem avermelhada de crepúsculos e arrependimentos, o vento marinho suavizando os contornos, balançando levemente os cabelos compridos. A arrebentação. O sol se afogando lentamente e a mar em tons laranja. De repente, pensa que não seria ruim um Tubarão, da Gelatto, e sente uma nostalgia fodida de um tempo, uma época, uma vida.

Nostalgia é tão inútil quanto paisagem.

E, no mar, o sol cortado ao meio. Longe, muito longe. O vento marinho, a areia cedendo sob os pés, a arrebentação sorrindo sem jeito, o calor desse fim de tarde idêntico a qualquer outro fim de tarde já vivido. Às vezes um anjo, outra toda a sorte de demônios e fantasmas, a alma deserta, vermelha como a paisagem. MTV, Adorno, Habermas, essa vontade estranha de se afogar lentamente antes da noite maior que noite ameaçando seus convivas.

Luíza, como na música do Tom... Um brilhante partindo a luz em sete cores...

Etc. Etc. Etc.

A paisagem insustentável.

Passar ao largo.

Logo é a noite atravessando a vida pelo meio. O esquecimento, as pequenas obsessões, macarrão instantâneo, Tv fora do ar, a arrebentação que ficou para trás, os sonhos irremediavelmente perdidos, Luíza, como na música do Tom, esquecida. Depois é conjugar o vazio de depois. A solidão de estranhos gestos alheios. A literatura é só uma vingança a mais, só mais uma forma de estar sozinho. De morrer sem pressa ou sentido.

Não seria ruim passar a noite com Luíza. Pensando bem, não seria ruim passar a vida com Luíza, se não fosse o gosto dela pela paisagem. De resto, nem uma foda, que não tem nada a ver com paixão ou ressentimento. O sol se afogando no mar, sem remédio ou expectativas, sabendo que a noite também é uma forma de vingança, contra o dia, contra a paisagem, contra a literatura. O sol se afogando em azul e um princípio tímido de estrelas. Nenhum anjo ousa abrir asas em dias assim, povoado de fantasmas e lembranças, que são a mesma coisa. Vontade de sumir, de escrever que essa vida não presta, que o coração é uma nau, naufragado nesse azul-laranja de fim de tarde, de vento noroeste, soprando uma canção italiana e adormecendo os anjos que sequer ousam abrir asas em dias assim. Esse sentimentalismo de boteco sujo, de fim de tarde e ocaso, a única apalavra que ainda vale a pena. Vontade de estar morto. A MTV e a indústria cultural. O desejo perdido. Desejo também se perde na paisagem lúgubre.
Luíza vai embora e talvez não volte. Associar nostalgia e paisagem é um negócio perigoso, arriscado, no mínimo. Tesão é outra coisa, menos definível e mais durável. Amor nem se fala. Vontade de mandar tudo à puta-que-o-pariu e passar o resto do dia ouvindo Champagne no karaokê. De se apaixonar. De chorar à-toa, à-toa. Por nada. Por tudo. Por qualquer coisa que sufoque, o que seria uma justificativa para o vazio e alguns tantos sofismas. A literatura ensaiada no escuro, como a areia cedendo sob os pés, como Luíza caminhando devagar, os cabelos e a saída de praia balançando com o vento, o corpo suspenso no espaço, o calor terrível da noite que se anuncia. Um certo lirismo. Uma visão romântica. Mil taras, pequenas obsessões diárias, simpatia, tudo conjugado na terceira pessoa. Vale que isso tudo um dia acaba. Ah, acaba!
Melhor esperar o fim ouvindo Champagne. Dar crédito à Pepino di Capri, ser canastrão e melancólico, solitário e sentimetal, sujando as mãos, sentindo passar o vento, idealizando cenas românticas, conversas inteligentes, enquanto a alma vai escurecendo com a tarde, em preto e branco.
Melhor esperar.
Ou acabar logo com tudo isso.
Essa indignidade.
Melhor escrever um soneto, uma elegia ao dia.

Inútil, no fim a paisagem sempre vence.

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