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Contos-->Quando um velho numa cadeira de balanço -- 31/07/2000 - 15:00 (Leonardo Almeida Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Fundamentalmente, o espírito deve habituar-se a não pretender alcançar, em cada momento singular, o todo almejado e a suportar a incompletude do instante."
Hölderlin, "Reflexões"



A cadeira de balanço descreveu um movimento impassível para trás e, então, passaram-se pelos olhos cegos, de olhar aguçado, incertos vagos pensamentos, e uma luz-visgo alojou-se nas paredes tepidúmidas da epiderme; e por um momento, por um raiossegundo de microfibra de Cronos, pensei: nesse instante, nada era mais que velocidade alucinante, desesperada correria de luziscores e impressões, conseguia definitivamente não estar...

...tatear, à sombra solene de um carvalho curvo e secular, os resíduos de antigas florações, buscando aquele piscar de consciência nas raízes mais profundas de minha árvore, o lampejo mágico daquele instante, o velocino de ouro perdido em-onde; cravar os dedos na areia molhada pelas lágrimas de uma deusa-mãe albina, esquecida sob pequenos seixos que ocultam invertebrados lerdos e sussurros de vértebras que a cortina negra do tempo calou, abandonada sob as folhas descoloridas que as mãos dos outonos arrancaram com carinho e fatalismo para decorar o chão e saciar a sina, os ciclos, as estações que atravessei alheio, desde sempre, sobre montes e montanhas frias que do céu assemelham-se ao arrepio de uma mulher azul nublada , sob as águas de rios sedentos e famintos que reafirmam a passagem do tempo, de uma grande-mãe residual e semente: rebrotar em carnes novas; desenhar cicatrizes na pele-pó da terra fértil e insistir: as unhas sujas e abençoadas, como bispos na sucessão dos papas, movimentando-se, objetivas e aleatórias como só o trabalho produtivo consegue ser; e então, a grande rosa de pétalas macias, beijada pela probóscide de tênue inseto, abriu-se, devagar, ao vergão fecundo e imemorial, totem ejaculando o eterno tabu, errando pelo ar, que se coloria de notas musicais, seus tons e odores juvenis que me aguardavam desde sempre, e o espírito pairava sobre as águas e me viu nascer; a grande sinfonia se fez ouvir, as pegadas buscavam seus donos que jogavam cartas no salão de cristal da casa da floresta, e o calor, que de dentro dela exalava pela varanda, ardia agora em minha pele, eu era finalmente; era poesia, sim, era ela que despencava das folhas e dos olhos e da terra e do céu e do suor das coisas sem sentido e sem utilidade alguma, além de serem, simples e gloriosamente, coisas; e o ar recendia a nardo de virgens prados, a jasmim e camomila de jardins perdidos; cheiros, recolhidos nas frutas que apodreciam no chão, carreavam lembranças à narinas-grutas escuras e cabeludas e pernas frágeis, cambitos trêmulos de ovelha desgarrada e sem cincerro, afundavam-se no desconhecido: abriam-se os portões da minha história, iniciava-se a travessia; odores que o tempo ocultou sob a seda rósea-púrpuramarelada dos crepúsculos moviam-se sinuosamente, como fantasmas de odaliscas na linha-lábio do horizonte; ele, aquele que um dia fui, via a passagem das grutas, sabia os segredos da escuridão e dos estalactites, percebia como ninguém a falcatrua dos gnomos, o blefe dos duendes, a linguagem dos elementais e o balé vertiginoso das fadas: era um pequeno deus-pagão que encontrava minhas mãos pelos buracos que a terra oferecia; e o coro de vozes sem corpo que ela regia permaneceu atento; certamente, em outras terras, o arado consumira a energia mas, aqui, nesse instante quase-inexistente, ele esperava o sinal; aí, na expectativa da rara e grandiosa sinfonia, eu era o outro, aprendia a não ser para finalmente ser o que esperavam de mim; o odor das tuas asas me é familiar, invade meu nariz que hesita em acreditar que tu estivestes por aqui: não ! nesse momento o sol é mero adereço da manhã estática que presencia as minhas mãos na busca de teu corpo; nós sabemos que esse silêncio é falso, ele não nos diz nada, e é por isso que minha língua cala e meus ouvidos desconfiam: está por aqui a língua muda da verdade, meus olhos explodem onde existem luz e sombra e permanece a busca: é possível encarar as coisas que o dia-a-dia rejeita e esconde; as formigas enfileiradas picam minhas mãos de crônicos movimentos, desprezo-as e à dor também, em algum lugar encontrarei a máscara que minha infância escondeu; unhas, calos, sangue, ferimentos que a razão opta por desprezar e mastiga então o caldo dos sentidos: continuo; aquele pêndulo, que faz se está suspenso ? aqui não corre o tic-tac, não procede o calendário, não evoca, o aqui, o acolá; ninguém vive, nem desvive, aqui não há futuro; tatibitate o cego diz pestana, cílio e barbatana, peixes nadam e não me enganas, queres mesmo saber o que sei ? rasteja, sua, chora, muda a tua cara e eu te direi onde está e estou; zoom na asa esquerda do jato que queima, falta pouco para encontrarem o mistério e resolvê-lo sem resolvê-lo, pois é preciso divulgá-lo, e aquelas pessoas não terão como contar, daí por que apenas eu, mulher, detenho esse talento raro: queres usufruir de medonha sabedoria ? então prostra-te aos meus pés, solta os teus cabelos e desejos, abre tua alma, rasga-a, afrouxa o laço de tua consciência e entrega-te, desarmada, às minhas mãos; ofereço-te meu falo e meu sêmen, deixa então que tua boca prove do pólen sagrado, que tua língua toque o cetro divino e que teus dentes manchem-se com a divina substância; vem como quem adora e presencia o inefável, como se te preparasses para a ordenação em uma nova igreja e abre tua boca para receberes de minha hóstia; por entre teus lábios, dia após dia, sai tua condenação mas, hoje, quando nada mais interfere em tua vida, terás a chance rara que procuras: abre bem os teus lábios , relaxa os músculos bucais, fecha os olhos, aguça os teus sentidos e toma do meu corpo: eis o mistério da fé; bebe do meu líqüido e deixa que adentre tuas entranhas, purificando teu desejo, eliminando de tua carne a mancha original das correntes, levando o meu código, o mapa desse meu corpo que crava as garrunhas na pele-pó da terra; vejo que ele sabe onde pretendo chegar, pois sorri descrente e ameaça mover o tempo, deslocar o sol, ativar o vento, a chuva, as marés, desencadear os segundos e resgatar o passado; ele teme que eu me aproxime do grande ventre, por isso, como retaliação, expõe o futuro nos varais que circundam minha arqueologia prometéica; não conseguirá, não conseguirá; a gota vermelha de vinho mancha a veste antes imaculada do noviço que anseia o corpo do professor de teologia, vejo no olhar fiel da criatura o desejo desenhado pelo criador; ali, naquele vácuo, naquela cena resgatada ao tempo, está o limite do corpo, da fé, da ideologia; eu prossigo sem temor e revelo que o fogo que roubei do deus, depositei-o na lareira de minha e tua casa para que as lagartas e os insetos não mais tremam e sejam calcinados; perdão, perdi o bardo pardo que fui, lancei ao mar, em noite de tempestade, o fio de minha lucidez; hoje não tenho cor e sou serpente, rastejo pelos cantos, consumo raízes, ratos e batráquios; minhas escamas estão nos teus lençóis, minha peçonha depositei na tua carne e mordo meu rabo por prazer e necessidade; às vezes sou, noutras não sei; ela veio então, rastejou e provou mais uma vez de meu néctar, eu, sua flor em viço e desejada, e, dessa vez, não havia mais revelação ou transcendência; ofereci-me à oitava e nona portas do seu corpo e o pastor condenou-me então: ouvi sua voz nos corredores frios das catacumbas e dos calabouços, nos mosteiros, nas mesquitas, nos pagodes, nos terreiros, nas catedrais e nos centros espíritas; ouvi-a também rugindo vitoriosa nos quartéis, nas escolas, nas repartições públicas, nas fábricas, nos sindicatos, nos aparelhos de televisão, ao vivo e à cores, nas salas de jantar onde famílias se alimentam de entropia, nos campos de futebol, nas cartilhas, nos livros mais vendidos, e puseram então, em mim, algemas de fogo e ferro, marcaram minha pele: deixaram nela o ignominioso sinal dos desprezados, o humilhante labéu dos exilados, o oprobrioso estigma dos hereges e, para espanto deles todos, nada disso era abjeto para mim, sentia orgulho de minhas cicatrizes; acorrentaram-me às paredes frias e lodosas de lugaralgum e sua voz, ecoando pelo meu crânio coberto pela coroa de espinhos, dizia-me: pensas que por que pensas te furtarás ao grande pensador, animal ? não te é permitido, em tempo algum, duvidares, questionares, perquirires, instigares, maculares o verbo desde sempre; teu caminho é apodrecer e que de ti saiam as larvas das varejeiras, os vermes e seus ovos, líqüidos asquerosos, cheiros repugnantes; teu destino é alimentar, com a tua carne, as coisas rastejantes, as criaturas nauseabundas da escuridão, do lodo e do limo; é saciar, com teus nervos, teus tecidos flácidos e teus tendões frágeis, o apetite voraz dos saprófitos; teus sonhos são imprestáveis e embora, por causa deles, te julgues a própria perenidade, a glória vestida e bípede, a nobreza do ser perfeito, não significam nada para a fome eterna dos bacilos, das bactérias e dos vírus que preenchem o ar na marcação cerrada dos pêndulos; tua sina é voltar à substância que recheia, agora, tuas unhas; tu és barro que o sopro do criador fez carne; é o que de útil tens a oferecer à tua espécie: fertilizar a terra; e eu vi então que o mestre de teologia sorria para o noviço em chamas e percebia, como ninguém, que aquelas criaturas eram abençoadas pelo mesma voz que ameaçava as minhas mãos e que, se acreditássemos realmente em tudo aquilo, viver seria apenas uma tediosa sucessão de inexorabilidades; o jato explodiu num pântano e a mancha de óleo e querosene era combustão dantesca; as caravelas singraram um mar sem dono e se apoderaram de carnes e espíritos sem dono e exterminaram um futuro possível; vi o poder das víboras e da coroa abençoada, portos esfumarados e homens sujos de corpo e alma, vi Málaga e Sevilha, Lisboa e Porto, vi Cortez, Cabral, Pizarro, Isabel e Fernando, vi todos eles ardendo na sarça dos séculos, ungidos pelo óleo santo, o mesmo óleo que borbulhava em caldeirões de cobre, onde jogavam, para sua redenção, os meus irmãos de utopia; nesse vai-não-volta, que volta agora aos meus olhos fechados, vi que o espaço regurgita artérias, tendões e sonhos e o tempo, pacientemente, traça espantalhos, numa velocidade vertiginosa, nos virgens quintais da caboclada, espantando assim, a mulher que toma meu falo em sua boca, o noviço que anseia o pecado, minhas mãos que sangram, meu-teu desejo em brasa; e nem era preciso tanta dor e tamanha vigília, considerando que a história se encarregara de nos selar à força, de nos impor arreios, de nos cravar esporas, de nos atar a troncos, carroças e estábulos, e de nos alimentar como prêmio por nosso trote ordeiro; vi-nos, então, de crina arriada, de passos ritmados e controlados e ousei afrontar os golpes do azorrague, eriçar meus pêlos, desgrenhar minha crina noutros ventos, arriscar galopes em pradarias proibidas e perder-me enfim, esfaimado e sem abrigo, a tremer de frio num campo perigoso e minado, repleto de poços contaminados pelo vibrião da conformidade, e, mesmo aos farrapos, nesse momento fui senhor de mim, criatura de cerviz reticente, de fortaleza e humanidade latentes; nesse instante em que minha carne exibia lanhos profundos, minha alma explodia em luz e certezas: ali, eu fui feliz, era homem e humano e, a cada minuto vivido selvagemente, assisti decomporem-se os arreios, a sela, a ferradura, o instinto débil do temor que psilos arcaicos inocularam em minhas veias, para extrair, de meu corpo alquebrado, o antídoto, o soro eterno que a minha raça, de mãos calejadas, sorve e suga no discurso inocente e pestilento dos homens sérios; a asa frágil da mariposa arde no calor da lâmpada de mercúrio e o vapor dilui-se em raias tênues, em cores que meus olhos pressentem e minhas retinas anseiam saborear; atiça-me os sentidos o vôo cego e fatal do lepidóptero, e o que arranca dos meus olhos o raro brilho é o reconhecimento de nossa semelhança: é a determinação do inseto, sua atração encantada e mágica pela luz que é morte, seu alegre trajeto, inflexível trajeto, inexorável trajeto; o ritual se reveste de uma liberdade trágica que rejeita a lógica e o instinto de preservação; espanta-me o curso neurótico traçado pelo ar e os pêlos, pequeniníssimos, que a luz do sol refletem em cor e cheiro e, por fim, a imolação insensível, quase imperceptível, do invertebrado que se perde no calor hediondo, emitindo pequenos estalos com sabor de morte, odor de nunca mais, num espetáculo de vida e eternidade em minha sala, tão longe e tão aqui, quando muda está a boca da manhã em meu outono, agora todo outono, e minhas unhas são puro resto de substância calcificada sobre tecidos esfolados: preciso encontrar a máscara que a minha infância escondeu...

...e a cadeira de balanço tornou a voltar, agora para frente, descrevendo o que a gravidade lhe impusera, e percebi que aquele instante raro ficara para trás, espremido entre a ida e a vinda da cadeira que possuía meu corpo, encravado num lugar que a velhice saberia resgatar nos lúdicos momentos de esclerose e desvario...

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