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Cronicas-->Histórias de amor -- 14/10/2002 - 00:52 (José Renato Cação Cambraia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Histórias de amor
I- Fugaz
Caio e Juliana estudavam na mesma classe do segundo colegial. Eram amigos de infància, sempre estiveram juntos, desde o prezinho. Nunca haviam reparado um no outro como algo mais que amigos. Na verdade nem eram muito íntimos. Foi quando aquela quantidade louca de hormónios explodiu, junto com as espinhas e os dramas adolescentes, que os dois de repente decidiram, ou perceberam que se amavam. "Loucamente", como disse o Caio para sua avó Nestésia.
Viraram um grude. Na escola, nem era sete horas da manhã e eles já trocavam salivas com gosto de leite com Nescau. Ele, pois ela bebia Toddy. Mas o amor é lindo e não tem cheiro, e os dois se beijavam assim todas as manhãs. Na primeira semana, já haviam dito a temível frase "eu te amo". Estavam ambos cegos de amor.
Quem não estava muito feliz era o grupo de amigos do Caio. Afinal, ele não era um centro-avante tão bom quanto achava, mas o pessoal começou a sentir falta das suas piadinhas (que eram boas!) quando ele deixou de ir jogar bola pra ficar namorado a Juliana. Também na hora do intervalo sentiam sua falta, pois era ele quem estimulava as hilárias discussões entre o Bernardão, o gordo, e o Turíbio, que na verdade se chamava Hélio. O Caio era um cara engraçado, mas apaixonado como estava virou presa fácil para Juliana, que, por ser mulher, era dominadora por natureza.
Mas os amigos do Caio contra-atacaram. Começaram a deixá-lo de lado nas aventuras, nas bagunças de moleque. Nenhum outro tinha namorada, não passavam de adolescentes espinhentos, situados naquela fronteira entre as pessoas que ganham presente de dia das crianças e as que fazem a barba sem sentir vergonha ou medo. Ah, e claro, eram totalmente desprezados pelas garotas (a vida é cruel para um adolescente).
Essa atitude dos seus amigos foi vista pelo Caio não como uma possível inveja da sua condição superior. Pelo contrário, ele se viu rejeitado pelo seus camaradas, seus iguais, seus companheiros de baderna. A verdade era que estava sendo pressionado a escolher um lado. Ou ela ou eles.
Caio passou um tempo terrivelmente longo deprimido - uma semana (na escala de tempo adolescente, o tempo passa mais devagar: um dia adolescente equivale a 3,4 dias adultos). Mas enfim tomou sua decisão. Terminou com a Juliana e foi jogar bola.

II- Dolorido
Duarte era um cara comum. E, como toda pessoa comum, não gostava de hospitais. Mas agora ele estava ali, vendo seu irmão do outro lado do vidro, numa cama. Não era cama, pensou, era leito. Tanto faz, seu irmão estava doente e precisava de uma coisa que só ele podia lhe dar. Uma parte da sua medula.
Como todo cara comum, Duarte não gostava de dor. Na verdade, tinha pànico de sentir dor. Quando o médico disse que no caso do Valdo só um transplante de medula, ele já teve um frio na espinha. Sabia que isso era com ele, já tinha ouvido falar naquilo. Os caras enfiariam uma agulha grossa e comprida no meio da sua coluna vertebral pra tirar um líquido espesso e viscoso. Isso no mínimo iria doer muito. Mas era a vida do Valdo, pó! Duarte teria que encarar o transplante dali a poucas horas. Por isso, olhava para o irmão do outro lado do vidro tentando parar de imaginar uma agulha penetrando no meio das suas costas, como uma inevitável ferroada de um escorpião gigante. Mas era difícil, Duarte ficava imaginado como seria o som da agulha furando seus tecidos e suas cartilagens, raspando nos ossos (ele nem sabia por onde a agulha teria que passar), como se tivesse um minúsculo microfone e uma càmera e ele estivesse vendo sua doação de medula no Discovery Channel. Teve diversos calafrios.
Ficou ali o tempo todo, ao lado do vidro que o separava do irmão. Quando a enfermeira o chamou para entrar na sala de preparo, Duarte olhou para seu irmão quase sentindo raiva. Foi aí que o Valdo finalmente abriu os olhos, viu o irmão do outro lado do vidro, deu um sorriso enquanto levantou debilmente o braço que não tinha nada espetado. Os olhos de Duarte soltaram duas lágrimas e ele foi encarar a doação de medula sentindo-se extremamente forte e corajoso. Tinha certeza que não iria doer tanto assim. Havia passado por um desses momentos especiais de iluminação, onde o fraco se torna forte, o impossível se torna natural.
Tudo deu certo, o Valdo voltou pra casa cem por cento recuperado. E essa história poderia terminar assim, bonitinha. Mas as imperfeições e os exageros é que tornam nossa vida incomum, valiosa, repleta de amor e de beleza. O tanto de palavrão que o Duarte gritou naquela sala enquanto a agulha furava sua carne não pode deixar de ser uma medida disso, do amor que ele sentia pelo irmão.

III- Ilimitado
Geralda vivera sozinha praticamente a vida toda. Órfã e pobre, estudou muito para vencer essas barreiras que a vida lhe impusera. Atravessara todas, conseguindo se formar no colegial, passando numa universidade pública, tendo vários empregos e enfim se aposentando para aproveitar maturidade as coisas boas que nunca teve na juventude. Dinheiro não era problema. Na verdade, o único problema de Geralda era sua solidão.
Mesmo durante sua juventude, nunca fora muito sociável. Tivera poucas amigas, e nunca um namorado. Achava que todos os homens eram uns canalhas e que nenhum jamais mereceria o seu amor. Aliás, nem acreditava em amor. Nunca desejara uma família, a solidão era a sua, como costumava dizer. Estava com 64 anos quando conheceu Hulk, o labrador.
Foi meio sem querer. Seus vizinhos, um casal com um filho de quatro anos, entrou em dificuldades financeiras logo depois de adquirir o cachorro. Numa conversa casual, que não interessa agora, ofereceram o cão a Geralda. Ela nunca havia pensado na possibilidade de conviver com outro mamífero, mas nem mesmo seu coração endurecido pelos anos de solidão póde resistir à cara de cão abandonado - literalmente - de Hulk.
Viveram juntos durante pouco mais de dez anos. Um entendia perfeitamente o outro, bastavam poucos sons e gestos. O cotidiano os ensinou a linguagem. O bom dia, o café, deitar ao lado enquanto a dona lia o jornal, hora de comer, um latido para gatos, outro para pessoas que passavam na frente da casa, passear, essas coisas de cachorro. Hulk era muito inteligente, e sabia alguns outros truques que aprendera sozinho, como por exemplo auxiliar Geralda a cuidar do jardim, puxando a mangueira pra lá e pra cá. Foram anos felizes para Geralda, que enfim conheceu aquilo do que fugira a vida toda.
Essas elucubrações foram a base do relatório do investigador Polesi, que foi quem encontrou o corpo da velhota segurando um vidro vazio de barbitúricos, ao lado de uma pá encostada a alguns metros de distància. No quintal, policiais falavam da horrível performance do Palmeiras no brasileirão ao lado do corpo de um labrador recém desenterrado. Polesi acendeu um cigarro e pensou em Keila, sua esposa, que nessa hora devia estar saindo do banho.


Renato Cação Cambraia roubou descaradamente o título dessa crónica de um livro do Rubem Fonseca, um de seus escritores favoritos.
beco@netonne.com.br
BECO/A SEMANA, 12/10/2002
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