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Contos-->O CONTADOR DO CÉU -- 23/11/1999 - 10:24 (Jefferson Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Homem bem casado, já por volta de seus sessenta e sete anos, Antônio de Almeida – o Sr. Almeida - como era mais conhecido, nunca pensou em aposentadoria. Funcionário Público, Almeida era Contador do Governo Estadual, um cargo humilde, mas que ele exercia com honestidade extrema. Nunca se teve notícia de um ato de desonestidade que tenha praticado, nem no tempo de Serviço Público, nem no período de vereação. Zeloso e metódico, sempre era pontual na repartição. Nunca faltava na repartição; apenas uma única vez pediu licença do trabalho, quando faleceu-lhe a esposa.

Depois da morte da mulher, única companheira em toda sua vida, Almeida também faleceu, vitimado que foi por um câncer que o debilitava já há dois anos. Deixou os poucos bens que tinha aos seus dois filhos em testamento que fizera antes de morrer.

É certo que a morte de alguém querido causa comoção naqueles que o amam. Por isso, é até compreensível que se invente histórias sobre aquele que partiu, com o fito de lhe perpetuar a memória. Foi o que aconteceu entre os moradores na pacata cidade de Serra Alegre, cidade mediana, onde Almeida vivia. Foi ele vereador da cidade por quatro anos e, por isso, era muito conhecido entre os moradores e circunvizinhança. A história Post-mortem de Almeida surgiu não se sabe de onde, mas ficou nos anais dos grandes feitores daquela cidade. E é aqui que começa a nossa narrativa.

Conta-se que quando Almeida morreu foi para o céu. Conduzido pelo Serafim especialmente designado para isto, ele foi recebido numa solenidade breve, mas com pompa. A solenidade que se deu o empossou no cargo de diretor do Conselho Penitenciário do céu.

Dada a posse, Almeida, emocionado e radiante com tamanha honra, tratou de tomar pé das suas obrigações e responsabilidades inerentes a um cargo tão digno. Foi-lhe dito que o seu cargo era o de fiscalizar, rever, anuir ou denegar as penas impostas às almas que estavam no purgatório. Estaria nas mãos de Almeida a sorte daqueles que estavam pagando pelos pecados, cometidos quando viviam na terra; Caberia a ele dar seu aval para que tais almas subissem ao céu, ou, caso contrário, permanecessem no purgatório.

E assim, Almeida consultou os livros. Viu tabelas. Anotou. E pôs-se a trabalhar. Utilizava-se de tabelas previamente elaboradas, onde se especificava qual a pena e o número de dias para cada um dos pecados cometidos. Verificou que os pecados eram classificados em veniais e graves e que havia as subclasses de cada pecado, conforme as conseqüências que tivesse causado, tendo o número certo de dias de punição no purgatório.

Diariamente compareciam as almas, vindas do purgatório, para que Almeida analisasse e fizesse as contas das penas. Além de tais verificações ele, através de perguntas específicas, anotava se a alma estava, ou não, arrependida dos pecados outrora cometidos. Se os dias da alma, passados no purgatório, de acordo com seus cálculos, estivessem cumpridos e se estivesse, com sinceridade, arrependida e consciente de que tais atos que praticara era passível de punição, então, subia ao céu. Caso contrário, Almeida negava sua assunção, estipulando o número de dias mais que deveria ficar no purgatório.

Inúmeras almas passavam pelas mãos do Sr. Almeida. E ele com toda honestidade que sempre lhe permeou o agir, analisava cada caso. Algumas subiam, regozijando, ao céu; outras voltavam aflitas para o purgatório. Assim era todos os dias. Um dia era uma anciã que havia morrido aos setenta e cinco anos e que há cinqüenta e três padecia no purgatório; outro que morreu aos trinta e três anos, mas havia assassinado dois da família; um terceiro avarento; um quarto ladrão. Enfim, uma lista enorme todos os dias passava pelo crivo de Almeida, que a todos julgava pelo arrependimento que sentiam e pelas tabelas celestes.

A felicidade, o gozo e a bem-aventurança e, por outro lado, a aflição, a dor e indizível sofrimento de milhões e milhões dentre homens e mulheres, ricos e pobres, pretos e brancos, estavam nas mãos do Almeida. Tamanha responsabilidade deu-lhe a nítida sensação e gozo de um poder que ele nunca sentiu, nem jamais sonhou em ter.

Um dia compareceu diante de Almeida um homem que aparentemente devia ter seus oitenta e quatro anos. Almeida olhou bem para ele e logo o identificou. Era Ananias, um velho conhecido que morava na mesma cidade. Almeida espantou-se de que o velho Ananias estivesse ali. Para ele, se uma pessoa, quando morresse iria para o céu, esta seria o velho Ananias. Pessoa boa, sempre freqüentadora da Igreja Nossa Senhora do Rosário de Serra Alegre, Ananias nunca foi visto em atitude que lhe fosse reprovável. Bem casado com dona Eutália, sempre dizia que ela era o motivo de sua vida e, por sua causa, é que ele, regularmente, passava dias e noites na vida dura dos garimpos das Minas Gerais.

- Ananias, meu velho, não está me reconhecendo? -perguntou Almeida.
- Sim, reconheço. Mas...o que você faz aqui? Disse Ananias, com ar de surpresa.
- Eu sou o diretor. Mas como? Eu não posso acreditar que você esteja no purgatório.
- Então...vê se me tira de lá, porque esta já é a terceira vez que apareço aqui e me é negada a assunção.
- Vejamos a sua situação...

E o Sr. Almeida foi verificar os livros, com quase certeza de que algum engano havia sido cometido. Buscou no terceiro volume da letra A e bateu logo a mão nos Ananias. Percorreu o dedo de cima para baixo; folheou a primeira página, percorreu novamente o dedo de cima para baixo e tornou a folhear a segunda página. Quando começou a percorrer o dedo nesta, lá estava, realmente, o nome de Ananias Pacheco de Araújo, com todas as letras, para decepção de Almeida. Começou a ler. Leu toda a vida pregressa do velho Ananias, em detalhes, com datas e nomes.

Na verdade, o velho Ananias havia cometido dois principais pecados: o adultério e a mentira. Ananias sempre viajava pelas terras de Minas Gerais a procura de pedras preciosas. Quando casou, aquietou-se um pouco em casa. Três anos de casado e já tinha dois filhos. Por alguns anos viveu pacatamente do que vendia em uma quitanda que botara na parte da frente da casa. Depois de cinco anos de casado disse para a mulher que a vida dele era mesmo o garimpo e que o comércio não lhe dava a menor apetência. E voltou às viagens e ao garimpo.

Foi nessas andanças que arranjou uma amante em outra cidade e com ela teve três filhos. Mentia para ambas. Nunca uma delas soube da existência da outra. E foi nessa condição em que a morte o colheu.

Almeida ficou ali parado, surpreendido pelo que acabara de saber. Nunca imaginou que o velho Ananias tinha uma vida dupla, nem ele, nem ninguém da cidade.

- Como pôde fazer uma coisa dessas com dona Eutália? -perguntou Sr. Almeida.
- Eu amava minha mulher, Almeida. Mas, eu amava Quitéria, também. Não temos culpa do destino de nosso coração. Nem mesmo conseguimos mandar nele.
- Você não se arrepende do que fez?
- Nem um pouco. Eu amava as duas; e dei alegria às duas, também. Nunca deixei faltar o pão cotidiano a nenhuma das duas e às crianças.
- E a traição que você cometia...? Não acha que você traía as duas?
- Não acho, não. Eu amava as duas. O meu amor para com elas era sincero e verdadeiro.

Diante da ausência de arrependimento do velho, Almeida não teve outro jeito senão deixá-lo mais tempo no purgatório, até que lhe mudasse a idéia e lhe viesse o siso.

Homens e mulheres tidos de boa reputação e imagem ilibada desfilavam diante de Almeida, que, ao abrir-lhes os livros, estampava-se a seus olhos as vidas ocultas por que passaram. Muitas vezes, ele sentia pena dos sentenciados. Como o caso de uma balzaquiana que veio à sua presença. Seu o único pecado, narrado no livro, foi o de ter matado seu marido, um traste que não trabalhava, tomava todo dinheiro que ela ganhava com a costura e que, ao chegar em casa bêbado, a espancava sem piedade. Ele, sem pestanejar, mandou a mulher para cima. E assim, fazia com todos os casos parecidos. Mesmo que uma alma como essa ainda não tivesse terminado o tempo da pena, dava tratamento particular, mandando-a para cima.

Um dia veio à sua presença para seu parecer, um tio seu. Almeida o odiava desde que era menino, quando levou um surra dele com o arreio do cavalo por ter pisado, por descuido, em uma horta que plantara há pouco. Cabisbaixo, tio Augusto, como era chamado, ficou ali em frente ao sobrinho. O motivo de ele estar no purgatório o Almeida já sabia muito bem. Espancava os filhos. Tinha dois. Culpara o mais moço pela morte de sua mulher, que falecera em trabalho de parto. Depois da morte da mulher ficou alucinado. Não gostava dos filhos. Quem cuidava do menor era uma sua irmã. De tanto sofrer maus tratos, o mais velho fugiu de casa e nunca mais foi visto e o mais moço preferiu ir morar com a tia bem longe do pai.

Apesar de demonstrar nitidamente sinais de profundo arrependimento e de ter já passado o tempo de purgatório, Almeida deu seu negativo para que Augusto saísse de lá.

De outra vez, um jovem que entrara na casa de uma senhora para roubar, matou-a sem que esta tivesse esboçado qualquer reação. Apesar do arrependimento e da súplica do jovem, Almeida concluiu pela sua continuação no purgatório.

Noutra oportunidade, surgiu na sua frente um ex-colega de trabalho, o Ernesto. Trabalhavam na mesma repartição em que o sujeito o acusou injustamente, fazendo alegações infundadas de integrar auditoria para favorecer empresas em débito com o fisco. Ernesto pediu-lhe quase implorando que o perdoasse daquele ato e tivesse compaixão. Apesar de ter demonstrado que se arrependera de todos seus pecados, inclusive desse que cometera contra Almeida, o mesmo negou-lhe a assunção.

Passaram-se boas dezenas de anos e Almeida, ufanado com o poder e a oportunidade que tinha de vingança, que, no seu entendimento, tratava-se tão-somente de fazer justiça, dava indícios de nepotismo, já caminhando para o despotismo.

Os pecados contra sua religião, tais como a heresia e o sacrilégio nem eram analisados por ele. Tratava de dar logo o carimbo de “negado”. Às vezes acrescentava dias quando as penas já haviam sido inteiramente cumpridas. Outras vezes, dizia que não havia arrependimento suficiente quando, na realidade, a alma estava pronta a ascender ao céu. Muitas vezes, fazendo juízo de valor próprio, antecipava a assunção de pessoas que, na sua opinião, nem deveriam estar no purgatório.

No entanto, Almeida julgava-se, realmente uma pessoa criteriosa e que reunia caráter e virtudes para um cargo ainda maior no reino celeste, que era o que ele agora queria.

Um dia chegou-lhe a notícia de que era para colocar tudo em ordem, pois sairia dali. Eufórico, Almeida sentiu-se como se toda a felicidade do Universo estivesse dentro de si. Finalmente, ganharia um posto mais acima. Atido como estava, conjeturou consigo mesmo: Afinal, exerci minha obrigação com esmero. Mereço algo muito melhor. Quem sabe agora vão me dar um cargo em que eu tenha autoridade sobre os destinos dos vivos...se for isso...estou preparado.

Passados dois dias na expectativa, chegaram dois varões na presença de Almeida e lhe entrega um edito, que dizia : “Acompanhe esses dois varões”.


Passaram-se vinte anos sem que se tivesse notícias de Almeida. Um dia chega perante o diretor do Conselho Penitenciário um homem vindo do purgatório. Este, trás no semblante as marcas da vergonha, do sofrimento e do remorso. É lhe perguntado o nome e ele responde : Antônio de Almeida Correia Sampaio. Abre-se o livro. E na frente de seu nome lê-se : pecado de orgulho.





Jefferson Carvalho
bsbab345@zaz.com.br


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