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Contos-->A Trilha dos Nativos -- 27/01/2003 - 14:16 (João Batista da Silveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
JOÃO BATISTA DA SILVEIRA

A TRILHA DOS NATIVOS

UMA AVENTURA NA SERRA DO TABULEIRO


O sol nasceu e com ele, o primeiro domingo daquela primavera. Tudo pronto e decidido; iria à Serra do Tabuleiro fazer uma caminhada ecológica pelas trilhas do parque, com o indispensável acompanhamento dos guias, tudo direitinho.

Parti. Estava aproximadamente a 50 Km do destino. O carro rodava suavemente sobre o asfalto. Sentia e respirava a leve brisa da estação – este seria um dia inesquecível – Gosto de montanhas, árvores, flores, pássaros, bichos, terra, água e sol ...
Viajava nessas divagações quando repentinamente, o motor do carro começou a ratear, a engasgar. Direcionei-me para o acostamento e divisando uma pequena rua de chão batido, fui em sua direção, nela lançando-me. O motor apagou e deixei o declive leve da estreita rua levar-me. Finalmente o caminho aplanou-se e parei.

Saltei do carro, olhei o motor e como nada de anormal identificasse , entrei, dei partida; uma vez, duas, três... e esgotei a bateria . Debrucei-me sobre o volante e descansei.
- Hei amigo, algum problema? Posso ajudá-lo?
Levantei a cabeça, e no quadro da janela, vi um homem que me lembrou Noé – o construtor da arca, nos relatos bíblicos.

Saí do carro, constatando que a estatura do homem era bem menor, do que a do personagem bíblico, na minha concepção.
- Bom dia senhor. Cumprimentei-o; e concisamente relatei a minha situação.
- Olha moço, hoje é domingo. Lembrou-me o homem, - Tudo fechado; ônibus é raro, carona neste trecho, nem pensar, - ninguém pára.

O homem, começou a olhar-me como que me fotografando, já estava sentindo-me mal quando ele retomou:
- Tu disseste que gostas de caminhar, não é?
- Sim, confirmei.
- Então tenho uma solução.
- Continue – encorajei-o
- Conheço um atalho que te levará ao parque. É uma trilha, que era usada por meus antepassados para chegar à serra, despistando assim seus caçadores.
- Perdão senhor – Interrompi assustado; os seus antepassados eram caçados? – Eles eram bandidos?
- Não filho – disse-me afetuosamente, eles eram Índios.
Ao ver meu desconforto, o velho tocou o meu ombro dizendo: - Como é, vamos caminhar? – Assenti com a cabeça, peguei a mochila e decidido acompanhei o velho nativo, que já se dirigia ao outro lado da rua, em direção a um casebre e sem parar entrou na chácara que se apresentava aos fundos. Segui-o como um cão e apertei o passo para alcançá-lo.
Caminhávamos lado à lado, em silêncio. A estreita chácara ladeada por toscas cercas de taquaras continha galinhas, goiabeiras, pitangueiras, bananeiras e algumas rochas arredondadas que emergiam da terra.
- Gostas de frutas? – Interrompeu o Índio minhas observações.
- Ah sim, quem não gosta? – respondi meio atordoado.
- Então espere aí! Determinou-me – deu meia volta, deixando-me só ao lado de uma saudável laranjeira com muitos frutos. Catei uma, catei outra. O velho demorava e apanhei outra, cuidando para que ele não me surpreendesse em tamanha folga, foi quando olhei em volta e presenciei-o saindo de um bambuzal bem ao meu lado.

Sem saída comecei a jogar a laranja, de uma mão para outra, e como um idiota a dizer; boa muito boa sua laranja. Sem dar maior importância a minha idiotice o velho convidou-me: - Vamos?

Só agora, percebi que ele trazia ao ombro uma bolsa a tiracolo, ornada com detalhes rupestres; muito bonita. Seguimos. A vegetação fechava-se rapidamente e logo estávamos numa espécie de túnel vegetal , contornado por pequenos arbustos, trepadeiras floridas e cipós; muito interessante. Passado o túnel , elevei a vista e constatei um imenso paredão cinzento com cerca de 20 metros de altura e com laterais infinitas, aos meus olhos.
Alguns passos a mais e a rocha apresentou-se definitivamente, bloqueando com sua verticalidade, nossa passagem. O velho alinhou-se a uma fissura bem definida na rocha, virou a esquerda, e com passos calculados, começou á caminhar, contando: - um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Parou e repetiu. Sete é aqui! Olhei para a massa pétrea de alta densidade, olhei para o índio que começou a falar: - É aqui a passagem para a trilha do sol – apontando para o paredão.

Intrigado, pensei que o Índio fosse gritar: - ABRE-TE ROCHA. Mas ao invés disso o homem desferiu um chute de direita, na grande pedra – senti na minha pele o que a reação da grande massa, fez no pé do agressor e imediatamente pulei sobre ele, segurando-o e com consternação e tristeza disse: - Senhor... o senhor precisa de um médico. – Não, não! – interrompeu-me, o que preciso é de uma marreta. Vou buscar e já volto.
Contestei, segurando-o firmemente: - Senhor, deixa que eu vou – certo, concordou ele – está debaixo da escada da cozinha. E enquanto isso eu dou uma conferida.
Saí correndo atônito, sem saber o que fazer – o homem é louco. Ao passar pela laranjeira, minha conhecida, parei, catei um fruto, e percebi agora, que em baixo de seus ramos havia um rústico banco, talhado em um tronco. E observando melhor, muito bem talhado a facão. Este banco em uma loja de artigos rústicos valeria uma nota preta – avaliei, e sentei-me sobre ele. Amigo! Amigo! Ouvi ao longe a voz do Índio. De pronto, preocupado, voltei correndo rumo ao paredão. Ao sair do túnel vegetal tropecei e totalmente desequilibrado caí batendo com a cabeça
- Amigo!... Amigo! Por Deus, volte, me perdoe, volte, eu estou aqui, me perdoe...
Senti uma palmada no rosto, acompanhada de muita água – Acordei assustado, e vi o Índio segurando uma jarra e alçando o braço em minhas costas, ajudou-me a sentar. Tomei água e tentava levantar-me, quando o ele afetuosamente pôs a mão sobre meu ombro impedindo-me e falou: - Amigo me perdoa, não te zangues comigo, eu devia ter te explicado antes, não o fiz, porém, faço agora.
Interrompendo-o, falei – Senhor, posso saber qual a sua idade?
- Hoje é um dia muito especial para mim – respondeu-me – hoje a noite completo mil... bati fortemente com as mãos fechadas no chão e sem conter um riso irônico, estendi a mão cumprimentando-o: - Meus parabéns Senhor, e muitos anos de vida. Meu nome é Papai Noel.
Vendo minha perplexidade o Índio retomou – Não, não são mil anos, Noel – São mil luas filho.
- Perdoe-me Senhor – desculpei-me.
- Noel – disse o Índio, com um leve sorriso - olhando superficialmente, esta rocha contínua, intransponível, mas ela também possui uma falha. Falha esta que inicia aqui, e atravessa toda sua extensão, formando uma espécie de túnel natural, desembocando na pradaria do outro lado, onde inicia o território da reserva. Lá existe uma trilha que te levará ao coração da serra, por onde passa a trilha principal, onde ocorrem os passeios ecológicos.
Dizendo isto estendeu-me a mão, levantando-me, e para minha preocupação alinhou-se novamente à fissura referencial e começou a caminhar contando: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete; parou apontou para a rocha e disse: - Não, não é aqui, e prosseguiu: oito, nove, parou. Olhou detidamente para rocha, e disparou um murro; ao qual a rocha respondeu vibrando e emitindo um som fenomenal.
- É aqui, disse eu com euforia. Mas como romper a casca? com a marreta?
- Não, respondeu o Índio.
A habilidade de trançar e tecer fibras somada a vontade de que ninguém fizesse mau uso da passagem, levaram-me a fazer isto que tu chamas de casca, para camuflar a entrada. Esta casca é feita de fibras vegetais, barro, areia e musgos – e parece-me que ficou muito bem feita; pois não confundiu apenas a ti, mas até a mim mesmo, o construtor. Porém é compreensível, pois quando a construí, contava com apenas com 500 e agora conto com 999 luas, minha acuidade visual não é a mesma, assim como minhas passadas, que diminuiram sensivelmente. A distância que antes percorria em sete passos, hoje tenho que caminhar nove, e isto quase levou-me a quebrar o pé.
Dizendo isto, inclinou-se, e com um pequeno canivete descobriu um fino filete e a medida que puxava desenhava-se na rocha um semicírculo de aproximadamente dois metros de raio. Pasmo, acompanhava a tudo.
O velho descobriu à direita, uma alça, foi a esquerda e descobriu a próxima, encaixou sua mão e como eu não tomasse nenhuma iniciativa convidou-me à ajuda-lo, puxando a outra alça. Sem esforço retiramos a camuflagem, a cortina, a porta para o desconhecido. A obra de arte, cuja massa avaliei, não passava de cinco quilos. Soltei a alça e saltei para o velho, agora não para segurá-lo como um louco, mas para abraçá-lo como um artista. O homem tomou a dianteira e posicionando-se em frente ao túnel fez uma reverência dizendo: - Êi-lo, é todo seu. Depois de muitas luas, quando foi pisado pela última vez, poderá novamente entrar em atividade. Olhei para a arcada interna do túnel, avancei a visão para seu interior, que a poucos metros foi bloqueada por absoluta falta de luz.
- Senhor, interpelei-o; quem foi o último a cruzar o túnel?
O velho olhou-me profundamente e como que em transe, começou:
- O último homem a cruzar este túnel foi o filho do cacique Trovão. Foi o meu pai. Sim, foi o meu pai. Expulso da terra e exilado aqui, fabricávamos para sobreviver, cestas, bolsas, isto que vocês chamam de artesanato. Fabricávamos e eu os transportava à freguesia aonde eram trocados por bananas, batatas, aipim, querosene; o que precisávamos para sobreviver. A cada viagem, ia eu mais carregado e voltava mais leve.
- Sentia meu pai – o filho do cacique – cansado, desanimado, entristecido mesmo. Certa noite, ao chegar à nossa casa, o candeeiro estava apagado; constatei que ele não estava. Tomei o rumo da freguesia e lá chegando, vi uma imensa movimentação; moças, velhos, crianças, balões, pipocas, fanfarras... Tudo em volta de uma tenda. Aproveitando um descuido do guarda, enfiei-me pela borda da tenda muito longe da bilheteria e já estava lá dentro, embaixo das arquibancadas; boquiaberto com tantas coisas femininas sobre minha cabeça. Subi e posicionei-me ao lado de uma bela e rosada Polaquinha- sem que pudesse puxar uma conversa o megafone anunciou uma sentença de morte:
- Senhoras e Senhores, temos o prazer de apresentar, diretamente da selva, um autêntico Índio, um filho de cacique! - Vi no centro do picadeiro, macaqueando com um calção vermelho até os joelhos, rodeado de bailarinas o meu único amigo, o meu pajé; o meu contador de estórias; o meu pai.
- Rapidamente saí por onde havia entrado, mas acho que ele me notou. A partir deste dia o velho começou a incluir na lista de compras aguardente, muita aguardente. Já não era aquela cachacinha, que costumávamos tomar em volta da fogueira contando estórias. Era cachaçada mesmo; de mijar sem sair da rede e de mijar no cesto de roupas pensando que estava embaixo do abacateiro.
Certa manhã de primavera, o velho foi até a cachoeira e banhou-se; adornou-se com seus trajes de festa, fumou um palheiro e tomou um trago; pegou a gamela na qual banhava os pés, encheu-a de pinga e colocou-a no centro do terreiro. Ateou fogo e dançou ao seu redor até a noite trazer a lua cheia. Então o velho apanhou sua tocha, acendeu-a no fogo azul da gamela e encaminhou-se até aqui – onde estamos agora.
- Entrou no túnel – E daqui, vi a luz da tocha, a luz do sonho, a luz da vida se apagarem. Saí, e encontrando na chácara um tronco, peguei o facão e comecei a talha-lo; para acalmar meu coração. Bati no tronco por vários dias. Por fim meu espírito acalmou-se e comecei a tecer a casca para cobrir a entrada do túnel que acabamos de descortinar.

Depois de uma longa pausa quebrei o silêncio: - E a polaca? Voltou a vê-la?
- A polaca – Suspirou o velho Índio.
- A polaca me deu um grande presente – Disse refazendo-se.
- Com a partida de meu pai, comecei a freqüentar as quermesses na freguesia, e certa noite encontrei novamente a polaquinha. Estava bonita, com o olhar colorido, doce como o mel e com a pele ainda mais rosada.
- Convidei-a para conhecer minha casa. – Hoje, não posso – respondeu-me resoluta a polaca. Amanhã, amanhã se concordares irei.
- Mas como? – Pensei – a polaca sabe onde moro? – Esta polaca andava me cuidando – concluí.
Fui embora feliz – é amanhã, já amanhã, depois de tanta solidão... Dormi assim pensando. Chegou o sol e com ele uma bela manhã. Pouco tempo depois me surpreendi, realizando como um doido, uma grande faxina, para receber a polaquinha. – O que o homem não faz por uma fêmea.
Exausto e quase desanimado olhava o sol poente, quando finalmente chegou minha desejada companhia cor de rosa.
- Conversamos longa e alegremente quando ela, a Polaca surpreendeu-me novamente, fazendo-me uma proposta premonitória; Disse-me Ela: - Índio, hoje vamos dar início a uma nova vida!?... Intimou-me interrogando-me, a fogosa polaquinha olhos de mel.
- E era verdadeiramente uma premonição, pois naquela mesma noite, foi gerado ali o nosso filho – o filho do Índio com a Polaca.
Já no outro dia, encostou um caminhão lotado de mesas, cadeiras, fogão à gás, sofá, cama e mais uma série de tralhas, deixando nossa pequena casa intransitável. Passaram-se as luas e nasceu nosso rebento – o meu Flecha Ligeira. Éramos felizes. As luas se sucediam; eu aprovava seus métodos educacionais com relação ao flecha. Exceto, que quando irada com alguma peraltice do menino, descia sua mão de chumbo sobre o jovem Flecha. E mais tarde descobri que além de sua mão pesada, a Polaca possuía também um coração de pedra.
Ela era sabida e dedicada, ensinou-nos a ler e escrever, além de iniciar-nos na aritmética – Em contra partida eu contava histórias sobre a magia da estações, da lua, do sol, das estrelas, da selva, das plantas, dos pássaros, das águias...

Com o suceder das luas, os olhos de mel da Polaca procuravam outras luzes, luzes de neon, de mercúrio, e abandonavam paulatinamente a luz do sol, da lua, das estrelas...
Certa tarde ao voltarmos, eu e o Flecha, da coleta de taquaras; vimos o que eu já esperava. A cozinha e a sala estavam absolutamente vazias; e no quarto uma rede e a cama do Flecha com um pacote sobre ela.
Olhei para o guri, que chorava indagando-me: - Por que? Por que pai?.. Você brigou com a polaca mão de chumbo?
- Não filho, não briguei com a tua mãe. Ela então brigou contigo, Índio?
- Não filho; é que o barco estava afundando. E a Polaca, ao ver o chamamento das luzes artificiais, lançou-se em direção a elas.
- Ela pode afogar-se, pai?
- Não Flecha – Ela sabe nadar, e nada muito bem.
Olhei o pacote sobre a cama, e percebi que havia sobre ele um bilhete – que dizia:
- Índio! Use bem o conteúdo desse pacote; se não tu vai te ver comigo e com o Polaco – cuide bem do Flecha – Dou notícias.
Abri o pacote e constatei que ele continha uma grande quantidade de notas – De dólares americanos.
- E nós, pai – retomou Flecha, nós vamos afundar?
- Isso depende de nós, Flecha. Podemos afogar-nos no choro dos abandonados e afundar na frouxidão das futilidades e das facilidades; ou podemos voar ; enfrentando firmemente os obstáculos e adversidades – que tamanha proeza exige.
- E aí Flecha? Nós vamos afundar ou vamos voar?
- Nós vamos voar pai – Nós vamos voar tão alto, como as águias das tuas histórias. – Sentenciou Flecha, tomando para si seu destino.

Acordei com o sol. Tudo estava decidido. Enfiei na mochila do Flecha, seus pertences, vestimo-nos e fomos para beira do asfalto, aguardar o ônibus; que demorava.
- Pai para onde vamos? – Indagou Flecha, quando apontava na curva um carro de aluguel – um táxi. Fiz sinal e o motorista só parou depois de perceber o meu filho.
- Para onde? Perguntou-me o desconfiado condutor.
- Você conhece a capital? Indaguei.
- Sim, e muito bem.
- E conhece um bom colégio. O melhor?
- Sim senhor.
- Então dirija-se para lá. Ordenei com a confiança de quem tem dinheiro, muito dinheiro na bolsa, e sabe aonde quer chegar. Em silêncio olhando a paisagem seguimos rumo à capital.
O Flecha Ligeira, tinha na contagem de tempo, pelo calendário da Polaca, completos sete anos.
Voltei só, com o coração e a alma apertados, os olhos vermelhos e umedecidos, mas feliz – o Flecha iria alçar vôo.

O Índio olhou para o sol; olhou para nossas sombras que se estendiam na palharia ao pé do paredão e disse:
- Afinal tu vieste aqui para caminhar, ou também és jornalista, e estás aqui para bisbilhotar a minha vida? Se publicares uma só linha sobre o que falei, eu tiro teu escalpo – disparou o Índio disfarçando a emoção.
Deu-me uma lanterna e a bolsa que trazia.
- Senhor, porque não acompanha-me?
- Conheces aquela estória dos dois amigos e a onça? – questionou-me o Índio.
- Não, conte-me.
- Dois amigos, caminhavam, de botas, por uma trilha, quando perceberam que estavam sendo seguidos por uma onça faminta. O mais jovem que trazia em sua mochila um par de tênis rapidamente tiro as botas e calçou o tênis; no que o outro perguntou: -Tu achas que de tênis correrás mais rápido do que a onça? – Correr mais rápido que a onça não sei, porém mais rápido do que você, com certeza. E disparou pela trilha.
Refeito de uma longa gargalhada retomei:
- Senhor, porque faz tudo isso por mim? Um desconhecido?
- Porque você merece.
- Como, como sabe?
- Eu sei e agora vá. Vá que o tempo não pára – e na volta traga-me boas histórias, para rirmos um pouco.
- Como sabe que voltarei?
- Deixaste teu carro aqui – Lembrou –me o Índio.

Enfiei-me pelo túnel, despertando com a luz da lanterna e minhas passadas alguns morcegos. Seguia em frente através da grande falha, rumo à trilha, rumo à luz no fim do túnel. Repentinamente minha visão foi sendo reduzida, acelerei o passo, reduziu-se ainda mais, e já estava correndo quando a escuridão assenhoreou-se do túnel, percebendo então que segurava um facho de luz, com a potência de um vaga-lume.
Parei assustado, pensando em voltar. Tateei a rocha, e o silêncio absoluto foi quebrado por grunhidos e vôos de morcegos.
Voltar para a chácara vencido, ou seguir em frente rumo à trilha vencendo os obstáculos e as adversidades?
Lembrei-me do Índio – E aí Flecha, nós vamos afundar ou vamos voar? - Nós vamos voar pai... Desfiz-me da lanterna e segui em frente.

A medida que avançava na escuridão, a massa rochosa comprimia-se e para continuar já estava caminhando de quatro, como um símio e logo a seguir rastejando como um réptil – estava desesperado a procura de luz, de um fiapo de luz – quando entalei na rocha.
È o fim da linha, constatei. O vôo da águia acabou numa toca de morcegos. Tateei e percebi que o espaço a frente era mais amplo e permitiria minha passagem.
Só precisava vencer esse estrangulamento no qual me entalara, foi quando lembrei-me da grande mochila que trazia às costas. Com dificuldade me livrei do fardo, ficando apenas com a pequena bolsa do Índio. Rastejei um pouco mais e já podia andar de quatro, um pouco mais além eu já estava de pé como um homem, foi quando vi um ponto de luz e comecei a correr. A correr em sua direção, como uma criança corre em direção ao lar.
E saltei do interior da rocha; do caminho escuro; para ser abraçado pela luz do sol; pela luz da vida.

Refeito, feliz e com a visão já adaptada a intensa luminosidade, vislumbrei extasiado a trilha. A trilha dos nativos – que o neto do Cacique me indicara; parecia um longo cordão de prata, adornando a verde montanha pontilhada com todas as cores do arco-íris; enchendo meus olhos.

Lancei-me na trilha, com corpo, alma e muita alegria no coração. Os meus sentidos se deleitavam com as vibrações da luz; os sons, os cheiros, os sabores e os carinhos das brisas, dos ventos, dos pássaros, dos bichos, das cachoeiras- da natureza.
Alegre comecei a cantar, e logo percebi que não cantava sozinho, que fazia parte de uma orquestra. E a cada instante um novo componente vinha juntar-se a nós.
Éramos dezenas... centenas... milhares ... milhões de vozes e instrumentos unidos à mesma canção – formando um só corpo, sob a regência do Criador.
- Que dia esplêndido! Exclamei. Morri e minha alma caminha para o céu?! Ou o paraíso é aqui na Serra do Tabuleiro – E mesmo assim tão leve, estou vivinho, em carne e osso? Especulei, enquanto o sol do meio dia cruzava o zênite. Em êxtase, havia parado de cantar e contemplava a natureza; Quando voltei à orquestra, senti que os componentes estavam diminuindo. Agora eram milhares... um pouco além centenas... depois dezenas... olhei o horizonte e vi o sol poente avermelhando o céu. Foi quando senti os pés no chão. A orquestra se resumia na voz do vento, que balançava as copas das gigantescas árvores que me cercavam e a uns poucos coachados um tanto desafinados.
Um arrepio e um leve tremor, me trouxeram à realidade - Eu estou perdido na mata, a noite descerá rapidamente. Os seres que tocavam e cantavam comigo, recolheram-se aos seus ninhos, suas tocas, seus abrigos, para aquecerem-se e protegerem-se dos predadores noturnos.
Predadores noturnos?!
Rapidamente tinha que iniciar a busca, por uma árvore, uma pedra, uma toca. O que primeiro se apresentasse para também abrigar-me, antes que a noite caísse definitivamente.
Avistei o que me pareceu um caminho entre as árvores, e por ali lancei-me rapidamente; Como alguém que sabe onde chegar. O chão rebaixado e com poucas folhas definiam uma pequena trilha. O solo que inicialmente apresentava-se firme, começou a ceder, a prender-me; e pouco depois estava eu, afundando num terreno pantanoso.
Desviei-me lateralmente para um plano mais elevado, percebendo que as árvores rapidamente aniquilavam-se em meio as formações rochosas. Um pouco à frente surgiu um grande maciço. Aproximei-me e aproveitando uma generosa rampa, escalei-o até o topo; que apresentou-se como uma grande bancada plana, com fissuras das quais emergiam alguns arbustos.
A noite caía e pontilhava de estrelas o céu. Olhei em volta percebendo à frente um imenso descampado. Sem nenhuma árvore.
Lembrei-me da bolsa que trazia; Sentei-me na rocha e apoiando as costas em um arbusto, abri virando-a com cuidado sobre a laje.
Estava a procura de alimentos, e tateei na escuridão.
... uma garrafa... lacrada – larguei-a.
... pequena... esférica... casca de fácil remoção... odor cítrico conhecido - chupei duas tangerinas.
... um pouco menor... rígida... com a casca presa... sem cheiro... dura na mordida... comi uma vitaminada goiaba.
... bola de gude... macia, com gominhos; aquosa. Odor indefinido – pressionada entre a língua e o palato, revelou-se uma pitanga madurinha.
... pequeno... oval... ovo de codorna cozido... sem casca...
Depois uma pequena mordida, revelou-se uma saborosa uva.
... achatada... macia... um pouco úmida, geladinha – antes que pudesse prová-la saltou da minha mão.
Cilíndrica... rígida... com pequeno gatilho... Apertei e na plataforma apresentou-se uma variedade de frutas, uma caneca de argila, um litro de whisky, e assustada com a luz do isqueiro, uma pequena rã espiando-me.
Meu Deus, que coisa terrível a cegueira!

Deitei-me na rocha, olhando o céu. Bom lugar para um observatório astronômico... Ao longe um avião, vindo do sul... aproximando-se... passou muito baixo, e com as luzes num piscar intermitente... Algum problema? Está voltando. Não, não está voltando não... fez um círculo completo e seguiu rumo norte, seguiu viagem.
Sussurros, gritinhos, grilos, insetos e cansaço, levaram-me da selva para o mundo dos sonhos...
Gritos ecoaram em minha cabeça e trouxeram-me instantaneamente de volta à selva. Atordoado vi o arbusto ao meu lado sendo violentamente sacudido por corpos escuros. Corpos escuros neste breu? Olhei em volta e vi a mata toda iluminada e a minha frente haviam duas grandes bolas de luz, sim, ali estavam duas imensas bolas prateadas; uma no céu e outra sobre as águas de uma lagoa, bem a minha frente.
Um misto de felicidade, medo e melancolia invadiram-me – A pouco estava tateando na escuridão, e agora posso ver. Vim a procura de abrigo e achei mais.
Encontrei abrigo, luz, água e talvez companhia – pensei observando os curiosos e inquietos macacos – Foi quando num piscar de olhos; numa tremenda algazarra, a macacada lanço-se da árvore, caindo sobre minha mesa e com uma velocidade impressionante, fugiram para o interior da mata; deixando sobre a plataforma a bolsa, o litro de whisky, a caneca e o isqueiro, que imediatamente pus no bolso.
- Grandes amigos encontrei. Olhei a lua cheia, prateando a mata e o Índio veio-me à lembrança.
- Hoje o Índio completa 1000 luas cheias. Isto corresponde a... 76 anos – calculei por alto.
Sua alma continua jovem e clara, o tempo que havia desgastado o seu corpo, não conseguira atingir sua essência. Nada tinha abalado sua luminosa aura. Era o Índio verdadeiramente uma pessoa muito especial. Gostaria de abraçá-lo e cumprimentá-lo agora.
Parabéns meu velho amigo, daqui do mato que era do teu avô, eu te desejo do fundo do meu coração, muitas luas de vida...

Um imenso ruflar de asas chamou-me a atenção para a lagoa, e no espelho ondulado da água, percebi uma série de lanternas, movimentando-se duas a duas. Do interior da mata subiu aos meus ouvidos um crepitar de folhas e gravetos secos; Agucei os ouvidos encolhendo-me, já vendo entre as folhagens um vulto acinzentado, entrando na trilha lodosa. Um imenso porco do mato, seguido por porquinhos pelados. Cinco, contei cinco porquinhos. Algum tempo depois um baque na água, acompanhado de roncos e grunhidos, seguidos por outro ruflar de asas, que logo transformou-se num belo anel prateado em volta da lagoa. Observei agora a mamãe porca, retornando com passos acelerados pela trilha acompanhada por apenas três porquinhos assustados.

Tomei um gole; um bom whisky – avaliei, indo até a ponta da plataforma onde a lagoa apresentava-se a pouco mais de um metro abaixo. Ouvi um ruído contínuo vindo da direita, de uma rocha vizinha, e logo avistei uma grande bica d’água cristalina. Com sede fui ao seu encontro, quando escorregando no limo da plataforma úmida fui impiedosamente lançado dentro da lagoa.
Em pânico, comecei a debater-me na água bastante fria, quando senti o pé no fundo constatando que o nível da água não passava do meu umbigo. Tentei subir pela encosta onde havia descido, sem sucesso, comecei a procurar outra saída quando percebi que era observado por um par de lanternas; um par de olhos brilhantes que já se deslocavam em minha direção.
Tentei caminhar ladeando a rocha, mas a resistência da água aliada a lama do fundo me impediam a marcha. Soltei os pés e lancei-me a nadar freneticamente fazendo um imenso barulho na noite. As garças levantaram-se de seus poleiros, com um ruflar de asas – no ritual das ceias dos jacarés. As lanternas se aproximavam rapidamente e já estavam alcançando-me, agora eram dois pares. Estou perdido. Só um milagre. Meu Deus! Quando desceu do céu um grande pássaro negro atravessando-se entre eu e o animal, que imediatamente a abocanhou. Cheguei a ouvir um triturar de ossos. Nadando com as últimas forças, toquei com a mão na lama e num impulso final, saí correndo de quatro, como que catando alguma coisa na água enquanto ouvia às minhas costas o som surdo de mandíbulas, querendo sofregamente abocanhar meu calcanhar, minhas pernas, meu traseiro.
A terra firmou-se e comecei a correr, quando em sentido contrário apresentou-se um pequeno animal vindo em minha direção em disparada também fugindo de um predador e para não ser atropelado saltei sobre eles, e desequilibrado caí – constatando enfim que o meu feroz perseguidor havia desistido.
Como é dura a luta pela sobrevivência. Aqui quem pode menos, também tem que correr mais – constatei.
Aquela ave salvara-me? Como? Coincidência? Não, meu Anjo da Guarda é forte. É forte e atento.
Ainda sentado, perplexo, olhando para o vazio a minha frente, percebi bem aos meus pés um pequeno caroço. Catei-o e examinando-o vi que dele emergia uma pequena haste, percebendo agora que se tratava de uma semente, uma semente já brotando. Olhei atentamente para o pequeno e rústico caroço que a pouco estava caído no chão. Olhei as árvores em volta e só agora percebi que aquele caroço em minha mão, possuía impresso em seu interior sofisticados comando, que para serem acionados bastaria simplesmente mergulha-lo na terra, e deixar o sol e a chuva agirem sobre ele e em pouco tempo eclodiria o resultado de sua programação: uma árvore completa, enraizada, com tronco, galhos, folhas, flores, frutos e caroços. Levantei-me e plantei a semente na terra macia de uma clareira ao lado; Com alguns galhos fiz, uma espécie de pirâmide para protegê-la de algum descuidado animal. Tirei a camisa encharcada e torcendo-a, reguei o pequeno broto pensando: Este é um marco de minha passagem pela floresta, e esta nova vida é dedicada ao meu anjo protetor, aos meus filhos, a todas as crianças e ao neto do cacique na passagem de sua milésima lua cheia.

Voltei feliz e seguro para a plataforma. A lua já descambava para o oeste e as árvores se faziam presentes através de suas sombras nas rochas. Em breve estaria novamente nas trevas. Precisava de uma fonte de luz. Percebi um pequeno buraco na plataforma, uma espécie de concha e... era isso que precisava, luz e calor – era só abastecer a concha e atear fogo. Sem perda de tempo pus um pouco de whisky para testar o desempenho e logo percebi que havia perdido o isqueiro. Onde? Caso tenha sido na água não havia chance de recuperação; Talvez por sorte, no tombo?! Desci a plataforma e chegando ao local da queda percebi que realmente sou um homem de sorte. Voltei e grande foi minha surpresa e meu espanto. Lançado sobre o buraco, havia um pequeno animal, uma espécie semelhante a uma raposa; mas muito mal acabada, sorvendo voluptuosamente o whisky. Corri com o intuito de chutá-lo, mudei de idéia e parei praticamente sobre ele, que assustado comportou-se como se tivesse recebido uma grande descarga elétrica. Saí correndo rocha a baixo, só parando a uma segura distância para respirar, o fedor era insuportável – que arma possui este animal! – Avaliei.

A mata acinzentava-se, subi a rampa e a leve brisa que me fazia tremer, havia levado o mau cheiro e também o seu emissor.
Abasteci o buraco e rapidamente ateei fogo. Sentindo o seu calor subir até o meu rosto, tomei um gole e pensei em dançar em volta do fogo. Desisti – o último que havia dançado em volta da chama azul – o pai do Índio – entrou no túnel, e não mais voltou.
As lanternas da lagoa apagavam-se, no céu as estrelas cintilavam mais fortes. Algumas lançavam-se numa estupenda velocidade, formando rastros de luz , e em seguida se apagavam. O fogo sobre a pedra foi diminuindo, apagando, e com um pequeno estouro – extingui-se. Tateava na escuridão, com cuidado para não abalroar a garrafa, quando um choro agudo e manhoso assustou-me – Um choro de criança? Meu Deus, será que ainda existem nativos aqui?
Abasteci o buraco e rapidamente inflamei-o. Notando na clareira abaixo um gato com pêlos amarelados, que ao perceber a luz ou perceber-me, lançou-se na mata, já acompanhado por outro gato maior. Um gato perseguindo uma gata manhosa, mas agora não para devorá-la.

O cansaço dominava-me e olhando o fogo agradeci:
- Obrigado Senhor, por esta pequena chama azul, que agora me ilumina, pois sei que em pouco tempo; uma imensa chama portadora de todas as cores iluminará não só esta rocha, mas até onde meus olhos possam alcançar.
Exausto, estirei-me para trás e olhando o infinito, adormeci aguardando o sol.

***
Vai levantando aí seu safado, e bem devagarzinho! Assustado abri os olhos e vi duas carabinas apontadas, uma para minha testa e outra para o meu coração.
- Senhores – Balbuciei.
- Psiii... mais uma palavra e arrebento teus miolos
- Levantando – ordenou-me um dos homens com uniforme cinza, já com um par de algemas na mão.
Obedeci. E com destreza o homem prendeu-me as mãos ás costas, enquanto o outro indicava-me com a arma o caminho a seguir rocha a baixo. Atingindo a base, embicou-me em direção à lagoa, dizendo: - Esta manhã os nenês vão saborear um porco, um grande porco no desjejum.
Parei e sentindo o cano da carabina pressionar minha nuca, reagi
- Isto é tortura!
- Tortura tu vais ver quando o troglodita ali, estiver mascando a tua perna. Disse o outro guarda, apontando para um imenso jacaré, que tomava sol na terra úmida.
Rapidamente dei meia volta e saí em disparada, correndo desengonçadamente com as mãos às costas. Passava ao lado da pequena pirâmide de gravetos, quando um estampido ecoou pelo espaço. Caí pesadamente ao solo, ouvido o ruflar de milhares de asas e sentindo no peito dilacerante dor, chorei.
O verde da mata acinzentou-se com o apagar do sol. Ouvi ao longe fiapos de vozes; - olha o que fizeste; mataste um homem algemado e pelas costas.
- Só atirei para assustá-lo, pois o covarde ia...
A dor foi aplacando-se como se eu estivesse recebendo altas doses de anestésicos, e numa metamorfose mágica, a escuridão transformava-se em coloridos fachos de luz como cometas circulantes ao meu redor; formando um ciclone de luz e cores que sugava-me do chão úmido, ao qual tentava agarrar-me, sem sucesso.
Leve, afastava-me da terra. Sem dor e sem peso, ia eu, involuntariamente ao encontro do novo, do desconhecido; do Criador, que ontem pela manhã ao contemplar sua obra, senti sua presença.
Agora, imitando o Mestre, começo a perdoar a todos, deixando a terra com o coração livre, assim como nela entrei. Inicio pelo que me atingiu mortalmente. Ele também não sabia o que fazia, talvez minha última missão fosse plantar uma árvore, e os guardas foram apenas instrumentos; já que eu milagrosamente havia me safado dos jacarés. Mas se ainda não estiver pronto; eu te peço Pai: Devolva-me à Terra, e concluirei minha jornada, muito mais sintonizado aos teus desígnios.

Um grande silêncio se fez. As luzes foram paulatinamente apagando-se e eu ganhando massa, sentia-me pesado, sufocado, precisava de ar. Uma grande agonia tomou conta de mim, quando repentinamente abri os olhos e em pânico vi um ser horrendo, com os olhos esbugalhados, com sua cara e sua boca pregadas à minha. Tomado de pavor, agarrei suas imensa orelhas desvencilhando-me do maldito, gritando: - Afasta-te de mim Satanás! Eu não mereço o inferno e tu não vês que sou homem?! – O maldito atendeu ao meu apelo, e para completar meu espanto, caiu de joelhos dizendo: - Obrigado meu Santo, você atendeu o meu pedido. Completamente desorientado, reconheci o guarda, que queria jogar-me aos jacarés e havia me acertado no peito. Já pulava sobre ele, quando lembrei-me que o havia perdoado, e o homem também já segurava-me, engatilhando a carabina dizendo: - Olha moço, bem quietinho se não atiro para acertar. Cuspindo sem parar, notei preocupado que suas orelhas sangravam.
Vendo que o homem estava só, indaguei sobre seu colega, sendo informado ele havia ido atrás de socorro.
- Homem, hoje estive na porta do céu e do inferno, o que está acontecendo? Eu apenas me perdi na mata. Isso é crime? Indaguei com energia.
- Mas não sabes que caçar, prender ou matar animais na reserva é crime?
- Sei, sim senhor.
- Então seu estúpido! Agrediu-me o guarda pegando a bolsa indígena.
- Reconheces esta bolsa?
- Claro, estava comigo.
- E o que o Senhor guardava aqui dentro hein? Disse o guarda com sarcasmo, sacudindo a bolsa que emitiu um grunhido e um cheiro que não me eram estranhos.
- É, o Senhor mantém preso este gambá. Iria assa-lo para o almoço? Presentear a namorada ou contrabandeá-lo? Hein?
O delegado, o Ibama, o pastor, o padre, a paróquia querem saber.
Vendo que não adiantava explicar que o bicho havia se escondido na bolsa sem o meu conhecimento, perguntei amenizando: - O que aconteceu comigo? E porquê ficou tão feliz quando voltei à consciência?
- Caçador comido por jacaré é legal, porém morto com um tiro nas costas, algemado e por arma oficial é ilegal; e nós só trabalhamos na legalidade, entende? – Disparou o guarda.
- Quando fugistes deixando os nenês só com água na boca, eu atirei para mostrar quem é que dá as ordens por aqui, e ao mesmo tempo para te proteger. Se te embrenhas pela mata, com as mãos amarradas e esbarras com um lote de cães do mato ou dás de cara com uma jaguatirica, que por aqui tem aos montes; nós íamos ter de soltar o gambá e ir embora com as mãos vazias. Sem nenhum serviço prestado à comunidade, sem cumprimentos, sem gratificação, sem nada. Entende?
- Se não fores muito burro, já concluístes que nós te queremos vivo. Mas arma de fogo é coisa do diabo, acontecem coisas inexplicáveis. Quando caístes, imediatamente após ao disparo, pensamos que eu havia te acertado. Aproximamo-nos apreensivos e feliz constatei que não havia nenhum buraco nas tuas costas, mas quando te virei para te dar um esporro, percebi que havias caído com o peito sobre aquela pedrinha ali, e enfiado a cara na lama. Tirei as algemas, limpei tua cara toda roxa e preocupado vi que já não respiravas. Comecei então a pôr em prática pela primeira vez as lições de primeiros socorros, de ressuscitação mesmo, que aprendi na academia. Passaram-se mais de três minutos e eu cansado já estava desistindo quando tu quase me arrancasse as orelhas, seu desgraçado.
- Olhe só, o manhoso está vivo. Falou o outro policial, aproximando-se.
- O rádio não funcionou, por isso demorei tentando contato, não conseguindo já pensava que teríamos de arrastar o presunto até o jipe. Assim é melhor, ele vai com as próprias pernas. Vamos! Vamos entregá-lo ao Polaco. Informou o homem, voltando por onde havia chegado. – Segui-o, tendo na minha retaguarda o outro policial.
***
- Doutor, temos aqui um cavalheiro, preso em flagrante caçando animais na reserva; e aqui está a prova do crime – disse o guarda florestal apresentando a bolsa com o gambá.
Olhando-me dos pés a cabeça com desprezo, sentenciou o delegado: - Trancafie o cidadão ali junto do Tainha, enquanto fazemos o relatório.
- Doutor, intervi. – É tudo um mal entendido... – É sempre assim, sempre a mesma ladainha. Quando chegam aqui são todos uns santinhos. Tire esse sujeito da minha frente!
O cubículo tinha em seu interior duas tarimbas, um ocupante de meia idade e um “toalete!”, onde a intimidade do ocupante era protegida por uma cortina toda esfarrapada, que mesmo da porta do cubículo avistei em seu interior um lavatório e um vaso sanitário enegrecidos.
- Alô, é bom ter visitas – recebeu-me o homem
- Mas é rápida – emendei
- Será? Desconfiou o anfitrião
Fui direto ao “toalete”, e sentindo-me melhor atirei-me sobre a tarimba reservada aos visitantes. A exaustão, a perplexidade e o desconforto, não me deixaram repousar.
- O senhor também está aqui de passagem ou é hóspede permanente do delegado? Disse numa infeliz tentativa de parecer simpático.
- Ô cara, eu já estou de saco cheio, com vontade de fazer uma besteira, sabe? Não contra ninguém não; contra mim mesmo entende?
- Calma! Intervi.
- Calma como? Estou aqui há mais de um ano, e sabes porque?
O homem queria desabafar. Compreendi e encorajei-o a prosseguir.
- Porque no ano passado chegou ali na praia um barco atolado de tainhas, sabes né? No inverno elas vem pra cá. Eu estava desempregado, sem nada em casa, com minha família passando necessidades. Eu agi errado, eu sei, mas no desespero...
Enquanto eles descarregavam o barco, para carregar o caminhão do frigorífico, peguei duas tainhas, joguei dentro de uma sacola e rapidamente fui para casa prepará-las. Já estava fritando quando a polícia chegou, e experimentei o gosto do furto. Algemaram-me na frente das crianças e trouxeram-me para cá, aonde estou até hoje. E segundo o delegado, ainda dei sorte por não haver vaga no presídio.
- E advogado?
- Eu tinha. Fornecido pelo Estado – No início falou que não cabia dois anos. Depois disse que iria comutar a pena por prestação de serviços à comunidade, e depois não me disse mais nada. Ele vem aqui, conversa com o delegado, é amigo dele, e vai embora.
- Que injustiça Senhor. Duas tainhas, dois anos. Um para cada tainha, o seu advogado deve ser um grande bacharel. Mas mesmo com essa dura pena, o Senhor não tem um bom comportamento aqui dentro? Inquiri.
- Uma freira Senhor, tenho me comportado como uma freira.
- Então o Senhor não deveria estar mais aqui.
- Os seus familiares lhe visitam?
- Sim, eles moram aqui pertinho.
- Então eles não o abandonaram, e mesmo que o tivessem feito, nada justificaria o senhor atentar contra a vida. A vida é...
- Ô do gambá, o delegado quer falar contigo, disse um policial abrindo a cela.
Ao ver-me o delegado foi logo falando: - Pelo relatório da Florestal: maus tratos, cativeiro, armadilhas... tu estás enrolado rapaz, no mínimo seis anos, sem falar nas multas.
- Doutor, interrompeu um homem de colete preto entrando pela sala. A comunidade está em polvorosa, querem ver o contrabandista de animais e estão bravos. A coisa pode ficar perigosa.
- Aqueles Florestais não tem jeito, não conseguem calar aquelas matracas. Faz o seguinte: vai ali na lojinha da Kika e depois na peixaria do Xico e conta pra eles que o meliante foi transferido para a Federal. Entendido?
- Sim Senhor! Disse o investigador saindo.
- Por que isso? Indaguei.
- É que daqui a meia hora, a população inteira já sabe que tu não estás mais aqui. E ninguém vem pra cá encher o saco.
Na parede o relógio bateu onze horas.
- Te chamei aqui para a identificação, passa os documentos. Pegando a carteira do bolso falei:
- Doutor, eu tenho direitos, e preciso de um advogado.
- Tenho um conhecido que pode...
- Não, muito obrigado Doutor, posso usar o telefone? O telefone não está funcionando, estão vindo consertar.
- Se te comportares direitinho penso no teu caso. Tinha eu na carteira R$ 200, pus os documentos na mesa e arrisquei: - Doutor, já estou muito tempo sem me alimentar, preciso comer alguma coisa.
- O rango sai às 12h30. Informou-me.
Peguei uma nota de R$ 50 dizendo:
- Será que poderia pedir a alguém para...
- O que queres comer?
- Um peixe, um bom peixe para dois, de preferência assado, com arroz, farofa e muito verde acompanhados por uma boa cerveja.
- Porra, já abusasses. Cerveja não!
Em meia hora eu e o tainha saboreamos uma bela anchova. Senti-me revigorado, deitei-me na tarimba pensando no que fazer e adormeci.
Acordei renovado e com uma idéia. Escrever um bilhete para a mulher do tainha telefonar ao meu advogado para ajudar-nos.
- Senhor, tem caneta e papel? O homem passou-me um caderno com a caneta entre as folhas com algo escrito e fingindo escrever li. Fiquei pasmo com o conteúdo e mais preocupado. Iniciava a escrever o bilhete quando fui interrompido pelo guarda:
- Senhor, por favor, poderia acompanhar-me? Já estava fora quando percebi que trouxe o caderno, do seu José.
- Sente-se, convidou-me o delegado. Ainda de pé falei: - Doutor, eu no seu lugar, colocaria um guarda para cuidar do tainha.
- O homem é inofensivo, já está comigo há muito tempo , e nunca deu problema. E tu uma hora com ele, já fizestes o homem se rebelar?
- Senhor, o seu José está com a alma sangrando.
- Olhe, o telefone já foi ligado, mas tu não vai usar. Se quiseres falar com alguém vá lá no orelhão da esquina e ligue. Estás livre – disse-me rasgando a papelada da acusação e entregando-me os documentos.
Quanto ao Tainha, deixa ele comigo, pelo que sei não és psicólogo para entender de alma.
- Doutor, o Senhor resolveu esquecer as acusações porque viu meus documentos? - irritei o homem.
- Tu estás insinuando que eu só prendo ladrão de tainha e galinha seu filho da mãe? Agora posso prender-te por desacato, e para de me chamar de Doutor! – bravo esmurrou a mesa.
- Eu te liberei porque foi provado que és inocente. Saiba que o nosso serviço de investigação é de primeira.
- Delegado, então teremos de acionar este serviço novamente. Isso irá salvar a pele de muita gente, inclusive a sua.
- Peça para eles a pasta do Tainha falei.
- Mas pelo amor de Deus! Exclamou o Delegado.
- Agora tu queres mandar aqui na minha delegacia. Tu é da OAB? Tu és do Ministério da Justiça? Ou tu és um lunático que aterrisou no Tabuleiro atrás de bichos exóticos? Não, tu não és nada disso, tu és um diabo que o inferno mandou para tirar a paz desta delegacia; e pegando gaveta seu revólver indagou-me com autoridade: O que o Senhor sabe que eu não sei?
- Calma! Disse eu assustado e entregando o caderno aberto no depoimento do seu José. Convidei-o a ler:
“ Companheira, os primeiros dias aqui foram positivos, mostraram-me como a liberdade é boa e como vocês são importantes na minha vida. Coisas que não via quando livre estávamos juntos. Embalado pelas promessas do Doutor fiz planos e ensaiei discursos para pronunciar à vocês quando estivéssemos juntos catando mariscos, pescando siris e a noite preparando a refeição. Vi-me também, já no outro dia saindo À procura de trabalho e a noite retornar dizendo: - Eu consegui, eu consegui! Já estou empregado. Pode abrir uma caderneta na quitanda do Zeca e ir na lojinha da Kika comprar umas roupinhas para as meninas e um belo vestido pra ti. E no domingo ao sair da capela, rumo à peixaria do Xico, sentir os comentários das Senhoras: - Pôxa como o seu José mudou! Parece ser outro homem. O xilindró lhe fez muito bem.
Já no fim do mês ir ao frigorífico pagar o prejuízo e desculpar-me.
Hoje, preso e sem um amigo, a mulher e as filhas do Tainha vem domingo pela manhã na delegacia, à noite com as mesmas roupas surradas , sentam-se no último banco da capela junto a parede. Os discursos que preparei e os sonhos que sonhei; amanhã segunda-feira irão comigo atrás de outro julgamento.
Cuide bem dos meninos, procure perdoar-me.
José – O tainha.”
- Que barbaridade! E se este homem morre aqui dentro? Pensou nele o Delegado.
- Guarda! Fique de olho no Tainha. Pois é, o homem não diz nada, ninguém fala nada por ele, o homem ficou esquecido.
Pegou a pasta do condenado, deu uma olhada e fez uma ligação que assim foi concluída: ... e apareça aqui ainda hoje com o alvará de soltura. Te vira! Se não eu mesmo vou te denunciar.
- Delegado, como descobriu minha inocência?
- A bolsa. Ele respondeu.
- Ao prestar atenção nela, vi que era de origem indígena. Procurei o Neto do Cacique que esclareceu-me tudo. Disse-me que eras um amigo, que gostavas da natureza, que jamais irias prender, maltratar ou caçar algum animal. Que ao contrário tua passagem pela mata deixou-a mais feliz. Isso eu não entendi. Coisas de Índio!
- Já o conhecia? Indaguei.
- Aqui todos o conhecem. E eu o conheço bem, viveu alguns anos com minha irmã.
- A Polaca?
- Sim minha irmã mais velha, a Frida, tem um filho com ele. O Flexa, conhece-os?
- Não, só conheci o Índio e espantei-me com sua atenção dedicada à minha pessoa. E embora não seja psicólogo nem joalheiro, sei que o Neto do Cacique tem um coração de ouro.
- É, nessa altura do campeonato eu não duvido é de mais nada. Só sei que o Índio te livrou a cara, para a tristeza dos Florestais; que agora terão de continuar as buscas, e ainda se quiseres terão de responder a um processo. Soube que eles quase te mataram. Naquele mato devem ter acontecido coisas estranhas, pois vi o Florestal com dois grandes curativos nas orelhas. Tu andastes puxando as orelhas dele!?! E ele não te matou? Disse o Delegado rindo.
- Não Senhor, e depois do puxão de orelhas, o homem caiu foi de joelhos agradecendo. Acredite!
- É, o que faz a falta de um pai. Concluiu.
- Delegado, posso esperar pra ver o desfecho do caso do seu José?
- Claro, e se quiseres descansar um pouco use a cama do plantão.
A cama era bem mais confortável e limpa do que a tarimba, repousei até ser despertado com a chegada de um carro sobre a brita do estacionamento.
Levantei-me, e ao ver-me o Delegado informou: - Olha o advogado do Tainha. Parece que ele só trabalha sob pressão. O homem entrou na sala cumprimentou-me com a cabeça e entregando uma pequena pasta ao Delegado falou: - Ta aí Delegado, o Juiz liberou o homem. Eu havia esquecido dele, sabe “né” muitos compromissos.
- Muito bem Doutor, a injustiça agora vai cessar. Mas para que se faça alguma justiça, vai, apresente este documento ao guarda e diga ao seu cliente: “A partir deste momento, seu José, o senhor está livre. Tire uma semana de férias, e se quiser trabalhar, poderá começar na próxima segunda-feira.”
- Amigo, que bom, o homem merece. Depois desta “cadeiada” toda e com esta crise, não seria fácil o homem arranjar um trabalho. E tu já tens um trabalho para ele, onde?
- Não, eu não tenho nenhum trabalho para ele. O Senhor tem tempo, tem uma semana para encontra-lo.
E pegando um envelope depositou cem reais convidando o ainda atônito homem a imita-lo, disse: - Seu José não pode chegar em casa para as férias sem um tostão no bolso. Concordas?
Também concordando com ele – depositei cinqüenta reais.
Ao sair, seu José com uma grande alegria emocionada voltou-se a mim dizendo:
- Hoje pela manhã eu era um condenado sem esperança. O senhor apareceu, serviu-me a refeição que mais gosto e ao invés de mandar-me para o carrasco , surpreendeu-me com férias remuneradas e já com trabalho garantido, mandou-me para junto dos que mais amo.
- Homem, você é do Ministério da Justiça ou é uma Anjo?
- Não seu José, eu não fiz tudo isso e também não pertenço a nenhuma dessas entidades, segundo o Delegado sou o diabo que veio do inferno para tirar a paz desta delegacia .
Seu José benzeu-se e retirou-se rapidamente.
- Tu és um lunático – Mudou de idéia o Delegado.
- Delegado, o senhor conhece um bom mecânico?
- Ah, sim. O teu carro fico lá com o Índio não é?! O rapaz da oficina ali é muito bom disse-me apontando pela vidraça o outro lado da rua.
Saia da delegacia rumo à oficina quando, surpreso, vi Seu José retornando.
- Resolveu voltar à segurança das grades?! Brinquei.
- Senhor, disse timidamente Seu José; nem seu nome sei e talvez jamais volte a vê-lo. O que poderei fazer para agradecer? Retribuir?
- Jonathan, meu nome é Jonathan. Cuide bem de sua família Seu José, progrida e ajude os outros a fazerem o mesmo. Não se escale para julgar com severidade, e ao lançar-se em defesa de alguma causa, não se amofine, faça-o com todas as suas posses e se preciso, vá além delas e peça ajuda.
Não guarde ressentimentos. Processe o joio para adubar o trigo e assim o Senhor estará ajudando a construir cadeias. Grandes cadeias de solidariedade, com amplas portas abertas. E não haverá em todo o universo agradecimento e retribuição maiores. Eu lhe asseguro.
O homem abraçou-me e sentindo o ombro umedecer ouvi:
- E eu, velho tolo e ingrato por ter desaprendido a brincar; tímido, depois da sua brincadeira com o diabo, quase não volto para agradecê-lo...
Afastou-se e como um acadêmico que acaba de receber o diploma discursou:
- Que julguem os juizes, pois eu José, o Tainha, acabei de ser promovido a construtor e executarei com dedicação este projeto: Cadeias com grandes portas abertas. Cadeias de solidariedade e habitarei nelas, pois agora compreendi que estas cadeias ajudarão a esvaziar as prisões construídas com ferros, pedras, iras, egoísmos, invejas, traições, medos e misérias. As quais tive de conhecer, pois ignorante me portava como um juiz medíocre, um advogado mofino, um pastor fofoqueiro, um plantador de joio. Era um servente que ajudava a construir jaulas para depois enfiar-me nelas.
- E agora com licença Jonathan, preciso por em ação este projeto que não é pequeno. Você sabe...
- Mas Jonathan prosseguiu seu José, eu vim agradecer, retribuir e você acabou dando-me outro presente... Um projeto de vida.
- É que o Senhor fez por merecer, pronunciou palavras mágicas: Agradecer e Retribuir, que quando transformadas em gestos são os alicerces das cadeias de solidariedade.
- Onde aprendeu tudo isto Jonathan? Na universidade?
- Não seu José... Está vendo aquelas belas montanhas azuis, onde o sol agora se põe...?
E lá se foi seu José cantando como um menino. Parodiando “A Montanha” de Roberto Carlos;
Obrigado Senhor por este dia
Obrigado Senhor , já posso ver
Obrigado Senhor, porque tenho um caminho a seguir
Obrigado Senhor pelas montanhas azuis e pelos florestais que prenderam Jonatha
Muito Obrigado Senhor...

Em trinta minutos, chegávamos eu e o mecânico na casa do Neto do Cacique, que ao ver-nos veio ao nosso encontro já com as chaves na mão e entregou-as ao meu acompanhante de uniforme azul. Por conhecê-lo ou deduzir a razão do homem estar ali, dizendo-me:
- Amigo, sei que as últimas 24 horas foram massacrantes, embora proveitosas, espero. Vamos brindar o teu retorno enquanto o mecânico trabalha em paz, pois é horrível trabalhar sob os olhos dos curiosos. Falou o sábio nativo, encaminhando-me para sua casa.
Anoitecia e o Índio acendeu um lampião sobre a rústica mesa ladeado por dois bancos – únicas peças adquiridas depois do arrastão da Polaca, avaliei após olhar em volta.
Sobre a mesa além do lampião havia duas garrafas, uma de pinga e uma de whisky, duas canecas de argila e um envelope.
- Como foi a comemoração da milésima lua? Lembrei-me do senhor lá no mato.
- Eu também lembrei-me de ti e falei para Polaca: A essa hora, o nosso amigo naquele mato... deve estar se borrando todo. Mas falando sério, continuou o Índio, a comemoração foi curta porém muito boa.
- A polaca lhe visita?
- Sim, as vezes em ocasiões especiais. E ontem também veio trazer-me um recado do Flecha.
- Porque curta? Vocês brigaram?
- Não, ninguém vai perder mais o tempo precioso – Isso é tolice. É que tive de olhar por um amigo muito especial... Um ronco de motor, e logo o mecânico interrompeu-nos anunciando que o carro estava pronto.
- Foi rápido hem? Qual era o problema? Inquiri.
- Não tinha nada senhor.
- Como assim nada?!
- É, não tinha nada no tanque de combustível, mas eu já coloquei o suficiente para ir até o posto. – Disse o eficiente mecânico.
O Índio olhava-me com ar de escárnio, enquanto eu acertava as finanças com o rapaz.
Respirando o ar da manhã primaveril do dia anterior, havia esquecido-me de abastecer. Lembrei-me agora.
O Nativo pegou o whisky, serviu-me e quando ia largar a garrafa sobre a mesa redirecionou-a para sua caneca dizendo:
- O Flecha quer que eu troque o produto nacional por estrangeiro, me trazendo essas porcarias, mas hoje eu te acompanho no Scoth. Levantou a caneca cerimoniosamente... A ti, a mim e ao Flecha Ligeira. Que o sol, a lua, as estrelas e todo o universo que emite ou reflete a luz não nos abandone jamais. Porque nós gostamos da luz, da amizade, do amor e da vida.
- Brindemos pois, disse eu, sem jamais esquecer do Criador de tudo ISTO.
- Amigo, retomou o Índio, quero te mostrar uma coisa. Pegou do envelope uma fotografia e entregou-me indagando: Vê se conheces alguém aí?
Surpreso vi que eu estava ali impresso no papel, eu, alguns amigos e muitas colegas. O tempo retrocedeu e muitas lembranças invadiram-me.
- Senhor, esta fotografia é dos formandos de minha turma. Como chegou aqui?
- Muito cuidado quando tirar fotografias em grupo. Nunca se sabe aonde irão parar. Disse-me o civilizado Índio.
- Olhe, mostrei, eu estou aqui e abraçado ao Moreira, meu grande amigo e colega trapalhão. O Moreira. Nuca mais tive notícias dele. Bons tempos aqueles. Mas como esta fotografia veio parar aqui? Reforcei a pergunta.
- Esta fotografia foi teu amigo trapalhão que me deu.
- Não é possível que o Senhor conheça o Moreira.
- Conheço-o e até algumas de suas trapalhadas.
- Conta uma. Desafiei o Índio.
- Contou-me o Moreira, que numa prova final, muito difícil, para a qual ficou estudando por semanas, precisava de sete pontos para conseguir a aprovação. Deu-se a prova, já havia passado mais de uma hora e em pânico coçando a cabeça todo desconcertado ele não conseguia dar início á resolução. Não encontrava o fio da meada. Foi quando o colega de trás vendo o seu desespero tocou-lhe nas costas. Pensando ele que o colega queria copiar alguma coisa, para surpresa geral da classe, levantou-se com a prova na mão, e mostrando o papel em branco bradou: “- Pare de bater nas minhas costas, eu também ainda não resolvi nada!.” Por pouco não foram expulsos da sala. Mesmo assim acalmado os ânimos, o amigo de retaguarda driblou a atenção redobrada do professor e passou-lhe a folha com a chave da questão. Ele contou-me às gargalhadas.
- É, o Senhor conhece o Moreira. Assenti, e esse colega era eu. Aquele filho da mãe quase pôs tudo a perder. O que faz isso é querer ajudar o próximo.
- É filho, disse o velho, para aquele trapalhão filho da mãe tu eras o irmão que ele não teve, eras o companheiro de lutas do mestiço, que sem tradição, carregando apenas o nome da mãe, viajava atrás de um sonho que quando pequeno ele mesmo pronunciara: “- Nós vamos voar pai; Nós vamos voar tão alto como as águias de tuas histórias.
- Estou pasmo! Não posso crer no que ouço. Então o Moreira é o seu filho com a Polaca mão de chumbo? Moreira é o nome civil do Flecha Ligeira? Até rimou Senhor.
- É, mais é rima e muito pobre. E não foi proposital amigo. Riu o poeta.
- Eu compreendo Senhor, isso no mínimo mereceria uma rima rara. – Brinquei.
- Jonathan, quando exilei o menino Flecha, eu tinha no coração a confiança de que em sua jornada iria encontrar sonhadores, que como e com ele, estudariam com objetivos claros : Aprender e realizar. Não tenho a fluidez verbal para expressar o sentimento que me invade, tendo aqui na minha frente você; que há muito tempo já conhecia, pelos relatos do Flecha...
- Senhor, como está o Flecha? Eu indaguei quebrando a emoção.
- O Flecha literalmente voou, amigo. Ele é Engenheiro de vôo e também pilota. Ontem no início da noite, vindo do sul, alterou ligeiramente a rota e fez no céu um círculo acompanhado por um pisca, intermitente de todas as luzes da aeronave para homenagear-me na passagem da minha milésima lua cheia. Você devia ter visto amigo.
- Eu vi, Senhor, eu vi.
O velho levantou-se, tomou um trago e perguntou-me:
- Tens filhos?
- Sim tenho. Tenho quatro filhos.
- Está na hora de parar hem? Brincou, e continuou:
- Cuidado, muito cuidado com o que disseres para eles. Imagine se naquele momento de decisão eu tivesse indagado ao pequeno Flecha: “- E daí Flecha, vamos afundar ou vamos chegar às estrelas? Onde andaria nosso amigo hoje?...
- Eu faço idéia Senhor, eu faço idéia.

Depois de longa despedida, o Índio acompanhou-me até o carro.
- Senhor, como recuperou-a? Como sabia? Indaguei ao perceber minha mochila sobre o banco.
- Recuperar a mochila foi fácil, esbarrei-me com ela. O difícil foi desfazer-me das duas frangas.
- Como assim? Duas frangas!
- A primeira foi a Polaca, dispensei-a após a acrobacia do Flecha, e mais tarde a outra que atropelou-me lá no mato. Muito, mas a muito tempo mesmo, não saboreio uma galinha Nativa. E também não foi dessa vez, pis tive que joga-la na lagoa; dá-la aos jacarés, para eles te darem uma folga amigo. A tua fuga foi coisa de cinema rapaz, contando ninguém acredita. E aquele salto sobre os animais? Impagável. Mas o que me comoveu mesmo, foi o teu gesto após teres saído daquele sufoco. Plantando, protegendo e regando aquela futura árvore que estava condenada a morrer sobre o solo. Senti vontade de aparecer e te abraçar, mas não quis estragar tudo. Interrompendo a tua e somente tua experiência. Contive-me e logo que rumastes para a segurança da rocha, bati em retirada mas para garantir, quando aqui cheguei pela manhã, realizei uma poderosa pajelança.
- Senhor, velho Pajé, meu amigo, aquela árvore também foi plantada em sua homenagem . Muito, muito obrigado por tudo. Na próxima primavera venho e trago um bom peixe para o almoço, tentando assim compensar os seus também impagáveis gestos e frangas. – Disse eu partindo.

As luzes passando por mim, trouxeram-me a lembrança das lanternas na lagoa. Uma imensa fila de predadores, vindo ou indo para a ceia. Jacarés de praia seguindo a trilha betuminosa. Alguns me perseguiam enquanto eu seguia outros; mas agora eu estava forte e seguro, protegido por uma grande carapaça de lata, como uma robótica tartaruga ia eu pela trilha congestionada. Porém mantendo uma distância segura, pois qualquer aproximação mais ousada, qualquer descuido, poderia ser fatal. E potentes mandíbulas entrariam em ação, destroçando impiedosamente a carapaça ferruginosa, e expondo assim minha imensa fragilidade.

***

No ano seguinte, ao invés de dirigir-me à pequena rua, à casa do Índio, segui em frente. Queria cumprir minha promessa. Parei no posto de gasolina da freguesia para informar-me como chegar famosa na peixaria do Xico.
- Senhor, tenho um amigo que hoje, Domingo- lembrou-me- Está inaugurando uma bela peixaria. O homem é esforçado e merece a indicação, vá até lá e comprove. Disse-me o frentista mostrando o caminho que sem dificuldades segui.
Parei em frente ao pequeno estabelecimento com uma ampla porta, ao fundo atrás do balcão com frontais de vidro e tampo branco azulejado um homem manuseava caixas de peixes, enquanto uma mulher bem afeiçoada e confiante atendia uma cliente. Logo aproximaram-se duas mocinhas; uma entregou-me um panfleto enquanto a outra falou-me: “- Senhor, quando quiser fazer uma boa peixada é só passar por aqui, na peixaria do nosso pai. O preço é bom e o produto é de primeira.” Concluiu.
Olhei para a fachada do estabelecimento e lá estava escrito: PEIXARIA DO TAINHA.
Feliz, com cara de turista, e para testar o improviso da simpática menina disparei: - Tainha é o sobrenome do seu pai?
- Não, não meu senhor. Disse a menina com um sorrisinho de “Monalisa”. Tainha é o nome fantasia, um nome inventado, sabe? O nosso sobrenome é Serra.
Lisinha igual a um bagrinho essa filha do seu José. Bem lisinha, pensei alto agora olhando para a menina que surpresa perguntou-me:
- Senhor, como sabe o meu nome?
- Hã?! Embasbaquei-me... Ah sim, Lizinha, Lizinha é o seu nome?!
- Sim, meu nome é Elizabete, mas todos me conhecem por Liza, Lizinha.
- Olha Liza, disse eu recomposto, este nome caiu como uma luva em você. Eu cheguei a adivinha-lo por duas vezes. Acredite, e agora vá, vá ajudar o seu pai a conquistar novos clientes.
Olhando novamente para o interior do estabelecimento, observei que a bem afeiçoada mulher estava com a barriguinha um tanto desenvolvida. Seria muito peixe com pirão? Ou um tanhotezinho para completar o quadro? Deixa para lá, no próximo ano tiro a dúvida.
Peixaria do Tainha. Um bom nome, feliz constatei. E com uma equipe dessas, meu amigo, o Xico vai ter que mudar de ramo. Mas hoje comprarei no concorrente para evitar que o Seu José já comece seu negócio presenteando alguém.

Todas as primaveras retorno à trilha dos nativos, participando e aprendendo com a orquestra da natureza e quando os componentes atingem a casa dos milhões, faço um suave retorno ao meu mundo. Com milhões... milhares... centenas... dezenas... e finalmente aportamos na pequena rua próxima do asfalto, apenas eu e o Maestro, que nunca abandona a mim, nem aos que com Ele tentam harmonizar-se.

Virá um dia porém no qual, quando o sol cruzar o zênite, e os componentes da orquestra atingirem a casa dos milhões, eu não voltarei. Seguirei em frente, para fazer parte definitivamente da “Grande Sinfonia do Universo e da infinita harmonia do Criador.”
Lá onde o amor, só o amor é a Lei. E desta vez, quando o ciclone de luz me envolver, seguirei em profundo silêncio.
Primavera de 2002.

JOÃO BATISTA DA SILVEIRA








A TRILHA DOS NATIVOS


UMA AVENTURA NA SERRA DO TABULEIRO







O sol nasceu e com ele, o primeiro domingo daquela primavera. Tudo pronto e decidido; iria à Serra do Tabuleiro fazer uma caminhada ecológica pelas trilhas do parque, com o indispensável acompanhamento dos guias, tudo direitinho.

Parti. Estava aproximadamente a 50 Km do destino. O carro rodava suavemente sobre o asfalto. Sentia e respirava a leve brisa da estação – este seria um dia inesquecível – Gosto de montanhas, árvores, flores, pássaros, bichos, terra, água e sol ...
Viajava nessas divagações quando repentinamente, o motor do carro começou a ratear, a engasgar. Direcionei-me para o acostamento e divisando uma pequena rua de chão batido, fui em sua direção, nela lançando-me. O motor apagou e deixei o declive leve da estreita rua levar-me. Finalmente o caminho aplanou-se e parei.

Saltei do carro, olhei o motor e como nada de anormal identificasse , entrei, dei partida; uma vez, duas, três... e esgotei a bateria . Debrucei-me sobre o volante e descansei.
- Hei amigo, algum problema? Posso ajudá-lo?
Levantei a cabeça, e no quadro da janela, vi um homem que me lembrou Noé – o construtor da arca, nos relatos bíblicos.

Saí do carro, constatando que a estatura do homem era bem menor, do que a do personagem bíblico, na minha concepção.
- Bom dia senhor. Cumprimentei-o; e concisamente relatei a minha situação.
- Olha moço, hoje é domingo. Lembrou-me o homem, - Tudo fechado; ônibus é raro, carona neste trecho, nem pensar, - ninguém pára.

O homem, começou a olhar-me como que me fotografando, já estava sentindo-me mal quando ele retomou:
- Tu disseste que gostas de caminhar, não é?
- Sim, confirmei.
- Então tenho uma solução.
- Continue – encorajei-o
- Conheço um atalho que te levará ao parque. É uma trilha, que era usada por meus antepassados para chegar à serra, despistando assim seus caçadores.
- Perdão senhor – Interrompi assustado; os seus antepassados eram caçados? – Eles eram bandidos?
- Não filho – disse-me afetuosamente, eles eram Índios.
Ao ver meu desconforto, o velho tocou o meu ombro dizendo: - Como é, vamos caminhar? – Assenti com a cabeça, peguei a mochila e decidido acompanhei o velho nativo, que já se dirigia ao outro lado da rua, em direção a um casebre e sem parar entrou na chácara que se apresentava aos fundos. Segui-o como um cão e apertei o passo para alcançá-lo.
Caminhávamos lado à lado, em silêncio. A estreita chácara ladeada por toscas cercas de taquaras continha galinhas, goiabeiras, pitangueiras, bananeiras e algumas rochas arredondadas que emergiam da terra.
- Gostas de frutas? – Interrompeu o Índio minhas observações.
- Ah sim, quem não gosta? – respondi meio atordoado.
- Então espere aí! Determinou-me – deu meia volta, deixando-me só ao lado de uma saudável laranjeira com muitos frutos. Catei uma, catei outra. O velho demorava e apanhei outra, cuidando para que ele não me surpreendesse em tamanha folga, foi quando olhei em volta e presenciei-o saindo de um bambuzal bem ao meu lado.

Sem saída comecei a jogar a laranja, de uma mão para outra, e como um idiota a dizer; boa muito boa sua laranja. Sem dar maior importância a minha idiotice o velho convidou-me: - Vamos?

Só agora, percebi que ele trazia ao ombro uma bolsa a tiracolo, ornada com detalhes rupestres; muito bonita. Seguimos. A vegetação fechava-se rapidamente e logo estávamos numa espécie de túnel vegetal , contornado por pequenos arbustos, trepadeiras floridas e cipós; muito interessante. Passado o túnel , elevei a vista e constatei um imenso paredão cinzento com cerca de 20 metros de altura e com laterais infinitas, aos meus olhos.
Alguns passos a mais e a rocha apresentou-se definitivamente, bloqueando com sua verticalidade, nossa passagem. O velho alinhou-se a uma fissura bem definida na rocha, virou a esquerda, e com passos calculados, começou á caminhar, contando: - um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Parou e repetiu. Sete é aqui! Olhei para a massa pétrea de alta densidade, olhei para o índio que começou a falar: - É aqui a passagem para a trilha do sol – apontando para o paredão.

Intrigado, pensei que o Índio fosse gritar: - ABRE-TE ROCHA. Mas ao invés disso o homem desferiu um chute de direita, na grande pedra – senti na minha pele o que a reação da grande massa, fez no pé do agressor e imediatamente pulei sobre ele, segurando-o e com consternação e tristeza disse: - Senhor... o senhor precisa de um médico. – Não, não! – interrompeu-me, o que preciso é de uma marreta. Vou buscar e já volto.
Contestei, segurando-o firmemente: - Senhor, deixa que eu vou – certo, concordou ele – está debaixo da escada da cozinha. E enquanto isso eu dou uma conferida.
Saí correndo atônito, sem saber o que fazer – o homem é louco. Ao passar pela laranjeira, minha conhecida, parei, catei um fruto, e percebi agora, que em baixo de seus ramos havia um rústico banco, talhado em um tronco. E observando melhor, muito bem talhado a facão. Este banco em uma loja de artigos rústicos valeria uma nota preta – avaliei, e sentei-me sobre ele. Amigo! Amigo! Ouvi ao longe a voz do Índio. De pronto, preocupado, voltei correndo rumo ao paredão. Ao sair do túnel vegetal tropecei e totalmente desequilibrado caí batendo com a cabeça
- Amigo!... Amigo! Por Deus, volte, me perdoe, volte, eu estou aqui, me perdoe...
Senti uma palmada no rosto, acompanhada de muita água – Acordei assustado, e vi o Índio segurando uma jarra e alçando o braço em minhas costas, ajudou-me a sentar. Tomei água e tentava levantar-me, quando o ele afetuosamente pôs a mão sobre meu ombro impedindo-me e falou: - Amigo me perdoa, não te zangues comigo, eu devia ter te explicado antes, não o fiz, porém, faço agora.
Interrompendo-o, falei – Senhor, posso saber qual a sua idade?
- Hoje é um dia muito especial para mim – respondeu-me – hoje a noite completo mil... bati fortemente com as mãos fechadas no chão e sem conter um riso irônico, estendi a mão cumprimentando-o: - Meus parabéns Senhor, e muitos anos de vida. Meu nome é Papai Noel.
Vendo minha perplexidade o Índio retomou – Não, não são mil anos, Noel – São mil luas filho.
- Perdoe-me Senhor – desculpei-me.
- Noel – disse o Índio, com um leve sorriso - olhando superficialmente, esta rocha contínua, intransponível, mas ela também possui uma falha. Falha esta que inicia aqui, e atravessa toda sua extensão, formando uma espécie de túnel natural, desembocando na pradaria do outro lado, onde inicia o território da reserva. Lá existe uma trilha que te levará ao coração da serra, por onde passa a trilha principal, onde ocorrem os passeios ecológicos.
Dizendo isto estendeu-me a mão, levantando-me, e para minha preocupação alinhou-se novamente à fissura referencial e começou a caminhar contando: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete; parou apontou para a rocha e disse: - Não, não é aqui, e prosseguiu: oito, nove, parou. Olhou detidamente para rocha, e disparou um murro; ao qual a rocha respondeu vibrando e emitindo um som fenomenal.
- É aqui, disse eu com euforia. Mas como romper a casca? com a marreta?
- Não, respondeu o Índio.
A habilidade de trançar e tecer fibras somada a vontade de que ninguém fizesse mau uso da passagem, levaram-me a fazer isto que tu chamas de casca, para camuflar a entrada. Esta casca é feita de fibras vegetais, barro, areia e musgos – e parece-me que ficou muito bem feita; pois não confundiu apenas a ti, mas até a mim mesmo, o construtor. Porém é compreensível, pois quando a construí, contava com apenas com 500 e agora conto com 999 luas, minha acuidade visual não é a mesma, assim como minhas passadas, que diminuiram sensivelmente. A distância que antes percorria em sete passos, hoje tenho que caminhar nove, e isto quase levou-me a quebrar o pé.
Dizendo isto, inclinou-se, e com um pequeno canivete descobriu um fino filete e a medida que puxava desenhava-se na rocha um semicírculo de aproximadamente dois metros de raio. Pasmo, acompanhava a tudo.
O velho descobriu à direita, uma alça, foi a esquerda e descobriu a próxima, encaixou sua mão e como eu não tomasse nenhuma iniciativa convidou-me à ajuda-lo, puxando a outra alça. Sem esforço retiramos a camuflagem, a cortina, a porta para o desconhecido. A obra de arte, cuja massa avaliei, não passava de cinco quilos. Soltei a alça e saltei para o velho, agora não para segurá-lo como um louco, mas para abraçá-lo como um artista. O homem tomou a dianteira e posicionando-se em frente ao túnel fez uma reverência dizendo: - Êi-lo, é todo seu. Depois de muitas luas, quando foi pisado pela última vez, poderá novamente entrar em atividade. Olhei para a arcada interna do túnel, avancei a visão para seu interior, que a poucos metros foi bloqueada por absoluta falta de luz.
- Senhor, interpelei-o; quem foi o último a cruzar o túnel?
O velho olhou-me profundamente e como que em transe, começou:
- O último homem a cruzar este túnel foi o filho do cacique Trovão. Foi o meu pai. Sim, foi o meu pai. Expulso da terra e exilado aqui, fabricávamos para sobreviver, cestas, bolsas, isto que vocês chamam de artesanato. Fabricávamos e eu os transportava à freguesia aonde eram trocados por bananas, batatas, aipim, querosene; o que precisávamos para sobreviver. A cada viagem, ia eu mais carregado e voltava mais leve.
- Sentia meu pai – o filho do cacique – cansado, desanimado, entristecido mesmo. Certa noite, ao chegar à nossa casa, o candeeiro estava apagado; constatei que ele não estava. Tomei o rumo da freguesia e lá chegando, vi uma imensa movimentação; moças, velhos, crianças, balões, pipocas, fanfarras... Tudo em volta de uma tenda. Aproveitando um descuido do guarda, enfiei-me pela borda da tenda muito longe da bilheteria e já estava lá dentro, embaixo das arquibancadas; boquiaberto com tantas coisas femininas sobre minha cabeça. Subi e posicionei-me ao lado de uma bela e rosada Polaquinha- sem que pudesse puxar uma conversa o megafone anunciou uma sentença de morte:
- Senhoras e Senhores, temos o prazer de apresentar, diretamente da selva, um autêntico Índio, um filho de cacique! - Vi no centro do picadeiro, macaqueando com um calção vermelho até os joelhos, rodeado de bailarinas o meu único amigo, o meu pajé; o meu contador de estórias; o meu pai.
- Rapidamente saí por onde havia entrado, mas acho que ele me notou. A partir deste dia o velho começou a incluir na lista de compras aguardente, muita aguardente. Já não era aquela cachacinha, que costumávamos tomar em volta da fogueira contando estórias. Era cachaçada mesmo; de mijar sem sair da rede e de mijar no cesto de roupas pensando que estava embaixo do abacateiro.
Certa manhã de primavera, o velho foi até a cachoeira e banhou-se; adornou-se com seus trajes de festa, fumou um palheiro e tomou um trago; pegou a gamela na qual banhava os pés, encheu-a de pinga e colocou-a no centro do terreiro. Ateou fogo e dançou ao seu redor até a noite trazer a lua cheia. Então o velho apanhou sua tocha, acendeu-a no fogo azul da gamela e encaminhou-se até aqui – onde estamos agora.
- Entrou no túnel – E daqui, vi a luz da tocha, a luz do sonho, a luz da vida se apagarem. Saí, e encontrando na chácara um tronco, peguei o facão e comecei a talha-lo; para acalmar meu coração. Bati no tronco por vários dias. Por fim meu espírito acalmou-se e comecei a tecer a casca para cobrir a entrada do túnel que acabamos de descortinar.

Depois de uma longa pausa quebrei o silêncio: - E a polaca? Voltou a vê-la?
- A polaca – Suspirou o velho Índio.
- A polaca me deu um grande presente – Disse refazendo-se.
- Com a partida de meu pai, comecei a freqüentar as quermesses na freguesia, e certa noite encontrei novamente a polaquinha. Estava bonita, com o olhar colorido, doce como o mel e com a pele ainda mais rosada.
- Convidei-a para conhecer minha casa. – Hoje, não posso – respondeu-me resoluta a polaca. Amanhã, amanhã se concordares irei.
- Mas como? – Pensei – a polaca sabe onde moro? – Esta polaca andava me cuidando – concluí.
Fui embora feliz – é amanhã, já amanhã, depois de tanta solidão... Dormi assim pensando. Chegou o sol e com ele uma bela manhã. Pouco tempo depois me surpreendi, realizando como um doido, uma grande faxina, para receber a polaquinha. – O que o homem não faz por uma fêmea.
Exausto e quase desanimado olhava o sol poente, quando finalmente chegou minha desejada companhia cor de rosa.
- Conversamos longa e alegremente quando ela, a Polaca surpreendeu-me novamente, fazendo-me uma proposta premonitória; Disse-me Ela: - Índio, hoje vamos dar início a uma nova vida!?... Intimou-me interrogando-me, a fogosa polaquinha olhos de mel.
- E era verdadeiramente uma premonição, pois naquela mesma noite, foi gerado ali o nosso filho – o filho do Índio com a Polaca.
Já no outro dia, encostou um caminhão lotado de mesas, cadeiras, fogão à gás, sofá, cama e mais uma série de tralhas, deixando nossa pequena casa intransitável. Passaram-se as luas e nasceu nosso rebento – o meu Flecha Ligeira. Éramos felizes. As luas se sucediam; eu aprovava seus métodos educacionais com relação ao flecha. Exceto, que quando irada com alguma peraltice do menino, descia sua mão de chumbo sobre o jovem Flecha. E mais tarde descobri que além de sua mão pesada, a Polaca possuía também um coração de pedra.
Ela era sabida e dedicada, ensinou-nos a ler e escrever, além de iniciar-nos na aritmética – Em contra partida eu contava histórias sobre a magia da estações, da lua, do sol, das estrelas, da selva, das plantas, dos pássaros, das águias...

Com o suceder das luas, os olhos de mel da Polaca procuravam outras luzes, luzes de neon, de mercúrio, e abandonavam paulatinamente a luz do sol, da lua, das estrelas...
Certa tarde ao voltarmos, eu e o Flecha, da coleta de taquaras; vimos o que eu já esperava. A cozinha e a sala estavam absolutamente vazias; e no quarto uma rede e a cama do Flecha com um pacote sobre ela.
Olhei para o guri, que chorava indagando-me: - Por que? Por que pai?.. Você brigou com a polaca mão de chumbo?
- Não filho, não briguei com a tua mãe. Ela então brigou contigo, Índio?
- Não filho; é que o barco estava afundando. E a Polaca, ao ver o chamamento das luzes artificiais, lançou-se em direção a elas.
- Ela pode afogar-se, pai?
- Não Flecha – Ela sabe nadar, e nada muito bem.
Olhei o pacote sobre a cama, e percebi que havia sobre ele um bilhete – que dizia:
- Índio! Use bem o conteúdo desse pacote; se não tu vai te ver comigo e com o Polaco – cuide bem do Flecha – Dou notícias.
Abri o pacote e constatei que ele continha uma grande quantidade de notas – De dólares americanos.
- E nós, pai – retomou Flecha, nós vamos afundar?
- Isso depende de nós, Flecha. Podemos afogar-nos no choro dos abandonados e afundar na frouxidão das futilidades e das facilidades; ou podemos voar ; enfrentando firmemente os obstáculos e adversidades – que tamanha proeza exige.
- E aí Flecha? Nós vamos afundar ou vamos voar?
- Nós vamos voar pai – Nós vamos voar tão alto, como as águias das tuas histórias. – Sentenciou Flecha, tomando para si seu destino.

Acordei com o sol. Tudo estava decidido. Enfiei na mochila do Flecha, seus pertences, vestimo-nos e fomos para beira do asfalto, aguardar o ônibus; que demorava.
- Pai para onde vamos? – Indagou Flecha, quando apontava na curva um carro de aluguel – um táxi. Fiz sinal e o motorista só parou depois de perceber o meu filho.
- Para onde? Perguntou-me o desconfiado condutor.
- Você conhece a capital? Indaguei.
- Sim, e muito bem.
- E conhece um bom colégio. O melhor?
- Sim senhor.
- Então dirija-se para lá. Ordenei com a confiança de quem tem dinheiro, muito dinheiro na bolsa, e sabe aonde quer chegar. Em silêncio olhando a paisagem seguimos rumo à capital.
O Flecha Ligeira, tinha na contagem de tempo, pelo calendário da Polaca, completos sete anos.
Voltei só, com o coração e a alma apertados, os olhos vermelhos e umedecidos, mas feliz – o Flecha iria alçar vôo.

O Índio olhou para o sol; olhou para nossas sombras que se estendiam na palharia ao pé do paredão e disse:
- Afinal tu vieste aqui para caminhar, ou também és jornalista, e estás aqui para bisbilhotar a minha vida? Se publicares uma só linha sobre o que falei, eu tiro teu escalpo – disparou o Índio disfarçando a emoção.
Deu-me uma lanterna e a bolsa que trazia.
- Senhor, porque não acompanha-me?
- Conheces aquela estória dos dois amigos e a onça? – questionou-me o Índio.
- Não, conte-me.
- Dois amigos, caminhavam, de botas, por uma trilha, quando perceberam que estavam sendo seguidos por uma onça faminta. O mais jovem que trazia em sua mochila um par de tênis rapidamente tiro as botas e calçou o tênis; no que o outro perguntou: -Tu achas que de tênis correrás mais rápido do que a onça? – Correr mais rápido que a onça não sei, porém mais rápido do que você, com certeza. E disparou pela trilha.
Refeito de uma longa gargalhada retomei:
- Senhor, porque faz tudo isso por mim? Um desconhecido?
- Porque você merece.
- Como, como sabe?
- Eu sei e agora vá. Vá que o tempo não pára – e na volta traga-me boas histórias, para rirmos um pouco.
- Como sabe que voltarei?
- Deixaste teu carro aqui – Lembrou –me o Índio.

Enfiei-me pelo túnel, despertando com a luz da lanterna e minhas passadas alguns morcegos. Seguia em frente através da grande falha, rumo à trilha, rumo à luz no fim do túnel. Repentinamente minha visão foi sendo reduzida, acelerei o passo, reduziu-se ainda mais, e já estava correndo quando a escuridão assenhoreou-se do túnel, percebendo então que segurava um facho de luz, com a potência de um vaga-lume.
Parei assustado, pensando em voltar. Tateei a rocha, e o silêncio absoluto foi quebrado por grunhidos e vôos de morcegos.
Voltar para a chácara vencido, ou seguir em frente rumo à trilha vencendo os obstáculos e as adversidades?
Lembrei-me do Índio – E aí Flecha, nós vamos afundar ou vamos voar? - Nós vamos voar pai... Desfiz-me da lanterna e segui em frente.

A medida que avançava na escuridão, a massa rochosa comprimia-se e para continuar já estava caminhando de quatro, como um símio e logo a seguir rastejando como um réptil – estava desesperado a procura de luz, de um fiapo de luz – quando entalei na rocha.
È o fim da linha, constatei. O vôo da águia acabou numa toca de morcegos. Tateei e percebi que o espaço a frente era mais amplo e permitiria minha passagem.
Só precisava vencer esse estrangulamento no qual me entalara, foi quando lembrei-me da grande mochila que trazia às costas. Com dificuldade me livrei do fardo, ficando apenas com a pequena bolsa do Índio. Rastejei um pouco mais e já podia andar de quatro, um pouco mais além eu já estava de pé como um homem, foi quando vi um ponto de luz e comecei a correr. A correr em sua direção, como uma criança corre em direção ao lar.
E saltei do interior da rocha; do caminho escuro; para ser abraçado pela luz do sol; pela luz da vida.

Refeito, feliz e com a visão já adaptada a intensa luminosidade, vislumbrei extasiado a trilha. A trilha dos nativos – que o neto do Cacique me indicara; parecia um longo cordão de prata, adornando a verde montanha pontilhada com todas as cores do arco-íris; enchendo meus olhos.

Lancei-me na trilha, com corpo, alma e muita alegria no coração. Os meus sentidos se deleitavam com as vibrações da luz; os sons, os cheiros, os sabores e os carinhos das brisas, dos ventos, dos pássaros, dos bichos, das cachoeiras- da natureza.
Alegre comecei a cantar, e logo percebi que não cantava sozinho, que fazia parte de uma orquestra. E a cada instante um novo componente vinha juntar-se a nós.
Éramos dezenas... centenas... milhares ... milhões de vozes e instrumentos unidos à mesma canção – formando um só corpo, sob a regência do Criador.
- Que dia esplêndido! Exclamei. Morri e minha alma caminha para o céu?! Ou o paraíso é aqui na Serra do Tabuleiro – E mesmo assim tão leve, estou vivinho, em carne e osso? Especulei, enquanto o sol do meio dia cruzava o zênite. Em êxtase, havia parado de cantar e contemplava a natureza; Quando voltei à orquestra, senti que os componentes estavam diminuindo. Agora eram milhares... um pouco além centenas... depois dezenas... olhei o horizonte e vi o sol poente avermelhando o céu. Foi quando senti os pés no chão. A orquestra se resumia na voz do vento, que balançava as copas das gigantescas árvores que me cercavam e a uns poucos coachados um tanto desafinados.
Um arrepio e um leve tremor, me trouxeram à realidade - Eu estou perdido na mata, a noite descerá rapidamente. Os seres que tocavam e cantavam comigo, recolheram-se aos seus ninhos, suas tocas, seus abrigos, para aquecerem-se e protegerem-se dos predadores noturnos.
Predadores noturnos?!
Rapidamente tinha que iniciar a busca, por uma árvore, uma pedra, uma toca. O que primeiro se apresentasse para também abrigar-me, antes que a noite caísse definitivamente.
Avistei o que me pareceu um caminho entre as árvores, e por ali lancei-me rapidamente; Como alguém que sabe onde chegar. O chão rebaixado e com poucas folhas definiam uma pequena trilha. O solo que inicialmente apresentava-se firme, começou a ceder, a prender-me; e pouco depois estava eu, afundando num terreno pantanoso.
Desviei-me lateralmente para um plano mais elevado, percebendo que as árvores rapidamente aniquilavam-se em meio as formações rochosas. Um pouco à frente surgiu um grande maciço. Aproximei-me e aproveitando uma generosa rampa, escalei-o até o topo; que apresentou-se como uma grande bancada plana, com fissuras das quais emergiam alguns arbustos.
A noite caía e pontilhava de estrelas o céu. Olhei em volta percebendo à frente um imenso descampado. Sem nenhuma árvore.
Lembrei-me da bolsa que trazia; Sentei-me na rocha e apoiando as costas em um arbusto, abri virando-a com cuidado sobre a laje.
Estava a procura de alimentos, e tateei na escuridão.
... uma garrafa... lacrada – larguei-a.
... pequena... esférica... casca de fácil remoção... odor cítrico conhecido - chupei duas tangerinas.
... um pouco menor... rígida... com a casca presa... sem cheiro... dura na mordida... comi uma vitaminada goiaba.
... bola de gude... macia, com gominhos; aquosa. Odor indefinido – pressionada entre a língua e o palato, revelou-se uma pitanga madurinha.
... pequeno... oval... ovo de codorna cozido... sem casca...
Depois uma pequena mordida, revelou-se uma saborosa uva.
... achatada... macia... um pouco úmida, geladinha – antes que pudesse prová-la saltou da minha mão.
Cilíndrica... rígida... com pequeno gatilho... Apertei e na plataforma apresentou-se uma variedade de frutas, uma caneca de argila, um litro de whisky, e assustada com a luz do isqueiro, uma pequena rã espiando-me.
Meu Deus, que coisa terrível a cegueira!

Deitei-me na rocha, olhando o céu. Bom lugar para um observatório astronômico... Ao longe um avião, vindo do sul... aproximando-se... passou muito baixo, e com as luzes num piscar intermitente... Algum problema? Está voltando. Não, não está voltando não... fez um círculo completo e seguiu rumo norte, seguiu viagem.
Sussurros, gritinhos, grilos, insetos e cansaço, levaram-me da selva para o mundo dos sonhos...
Gritos ecoaram em minha cabeça e trouxeram-me instantaneamente de volta à selva. Atordoado vi o arbusto ao meu lado sendo violentamente sacudido por corpos escuros. Corpos escuros neste breu? Olhei em volta e vi a mata toda iluminada e a minha frente haviam duas grandes bolas de luz, sim, ali estavam duas imensas bolas prateadas; uma no céu e outra sobre as águas de uma lagoa, bem a minha frente.
Um misto de felicidade, medo e melancolia invadiram-me – A pouco estava tateando na escuridão, e agora posso ver. Vim a procura de abrigo e achei mais.
Encontrei abrigo, luz, água e talvez companhia – pensei observando os curiosos e inquietos macacos – Foi quando num piscar de olhos; numa tremenda algazarra, a macacada lanço-se da árvore, caindo sobre minha mesa e com uma velocidade impressionante, fugiram para o interior da mata; deixando sobre a plataforma a bolsa, o litro de whisky, a caneca e o isqueiro, que imediatamente pus no bolso.
- Grandes amigos encontrei. Olhei a lua cheia, prateando a mata e o Índio veio-me à lembrança.
- Hoje o Índio completa 1000 luas cheias. Isto corresponde a... 76 anos – calculei por alto.
Sua alma continua jovem e clara, o tempo que havia desgastado o seu corpo, não conseguira atingir sua essência. Nada tinha abalado sua luminosa aura. Era o Índio verdadeiramente uma pessoa muito especial. Gostaria de abraçá-lo e cumprimentá-lo agora.
Parabéns meu velho amigo, daqui do mato que era do teu avô, eu te desejo do fundo do meu coração, muitas luas de vida...

Um imenso ruflar de asas chamou-me a atenção para a lagoa, e no espelho ondulado da água, percebi uma série de lanternas, movimentando-se duas a duas. Do interior da mata subiu aos meus ouvidos um crepitar de folhas e gravetos secos; Agucei os ouvidos encolhendo-me, já vendo entre as folhagens um vulto acinzentado, entrando na trilha lodosa. Um imenso porco do mato, seguido por porquinhos pelados. Cinco, contei cinco porquinhos. Algum tempo depois um baque na água, acompanhado de roncos e grunhidos, seguidos por outro ruflar de asas, que logo transformou-se num belo anel prateado em volta da lagoa. Observei agora a mamãe porca, retornando com passos acelerados pela trilha acompanhada por apenas três porquinhos assustados.

Tomei um gole; um bom whisky – avaliei, indo até a ponta da plataforma onde a lagoa apresentava-se a pouco mais de um metro abaixo. Ouvi um ruído contínuo vindo da direita, de uma rocha vizinha, e logo avistei uma grande bica d’água cristalina. Com sede fui ao seu encontro, quando escorregando no limo da plataforma úmida fui impiedosamente lançado dentro da lagoa.
Em pânico, comecei a debater-me na água bastante fria, quando senti o pé no fundo constatando que o nível da água não passava do meu umbigo. Tentei subir pela encosta onde havia descido, sem sucesso, comecei a procurar outra saída quando percebi que era observado por um par de lanternas; um par de olhos brilhantes que já se deslocavam em minha direção.
Tentei caminhar ladeando a rocha, mas a resistência da água aliada a lama do fundo me impediam a marcha. Soltei os pés e lancei-me a nadar freneticamente fazendo um imenso barulho na noite. As garças levantaram-se de seus poleiros, com um ruflar de asas – no ritual das ceias dos jacarés. As lanternas se aproximavam rapidamente e já estavam alcançando-me, agora eram dois pares. Estou perdido. Só um milagre. Meu Deus! Quando desceu do céu um grande pássaro negro atravessando-se entre eu e o animal, que imediatamente a abocanhou. Cheguei a ouvir um triturar de ossos. Nadando com as últimas forças, toquei com a mão na lama e num impulso final, saí correndo de quatro, como que catando alguma coisa na água enquanto ouvia às minhas costas o som surdo de mandíbulas, querendo sofregamente abocanhar meu calcanhar, minhas pernas, meu traseiro.
A terra firmou-se e comecei a correr, quando em sentido contrário apresentou-se um pequeno animal vindo em minha direção em disparada também fugindo de um predador e para não ser atropelado saltei sobre eles, e desequilibrado caí – constatando enfim que o meu feroz perseguidor havia desistido.
Como é dura a luta pela sobrevivência. Aqui quem pode menos, também tem que correr mais – constatei.
Aquela ave salvara-me? Como? Coincidência? Não, meu Anjo da Guarda é forte. É forte e atento.
Ainda sentado, perplexo, olhando para o vazio a minha frente, percebi bem aos meus pés um pequeno caroço. Catei-o e examinando-o vi que dele emergia uma pequena haste, percebendo agora que se tratava de uma semente, uma semente já brotando. Olhei atentamente para o pequeno e rústico caroço que a pouco estava caído no chão. Olhei as árvores em volta e só agora percebi que aquele caroço em minha mão, possuía impresso em seu interior sofisticados comando, que para serem acionados bastaria simplesmente mergulha-lo na terra, e deixar o sol e a chuva agirem sobre ele e em pouco tempo eclodiria o resultado de sua programação: uma árvore completa, enraizada, com tronco, galhos, folhas, flores, frutos e caroços. Levantei-me e plantei a semente na terra macia de uma clareira ao lado; Com alguns galhos fiz, uma espécie de pirâmide para protegê-la de algum descuidado animal. Tirei a camisa encharcada e torcendo-a, reguei o pequeno broto pensando: Este é um marco de minha passagem pela floresta, e esta nova vida é dedicada ao meu anjo protetor, aos meus filhos, a todas as crianças e ao neto do cacique na passagem de sua milésima lua cheia.

Voltei feliz e seguro para a plataforma. A lua já descambava para o oeste e as árvores se faziam presentes através de suas sombras nas rochas. Em breve estaria novamente nas trevas. Precisava de uma fonte de luz. Percebi um pequeno buraco na plataforma, uma espécie de concha e... era isso que precisava, luz e calor – era só abastecer a concha e atear fogo. Sem perda de tempo pus um pouco de whisky para testar o desempenho e logo percebi que havia perdido o isqueiro. Onde? Caso tenha sido na água não havia chance de recuperação; Talvez por sorte, no tombo?! Desci a plataforma e chegando ao local da queda percebi que realmente sou um homem de sorte. Voltei e grande foi minha surpresa e meu espanto. Lançado sobre o buraco, havia um pequeno animal, uma espécie semelhante a uma raposa; mas muito mal acabada, sorvendo voluptuosamente o whisky. Corri com o intuito de chutá-lo, mudei de idéia e parei praticamente sobre ele, que assustado comportou-se como se tivesse recebido uma grande descarga elétrica. Saí correndo rocha a baixo, só parando a uma segura distância para respirar, o fedor era insuportável – que arma possui este animal! – Avaliei.

A mata acinzentava-se, subi a rampa e a leve brisa que me fazia tremer, havia levado o mau cheiro e também o seu emissor.
Abasteci o buraco e rapidamente ateei fogo. Sentindo o seu calor subir até o meu rosto, tomei um gole e pensei em dançar em volta do fogo. Desisti – o último que havia dançado em volta da chama azul – o pai do Índio – entrou no túnel, e não mais voltou.
As lanternas da lagoa apagavam-se, no céu as estrelas cintilavam mais fortes. Algumas lançavam-se numa estupenda velocidade, formando rastros de luz , e em seguida se apagavam. O fogo sobre a pedra foi diminuindo, apagando, e com um pequeno estouro – extingui-se. Tateava na escuridão, com cuidado para não abalroar a garrafa, quando um choro agudo e manhoso assustou-me – Um choro de criança? Meu Deus, será que ainda existem nativos aqui?
Abasteci o buraco e rapidamente inflamei-o. Notando na clareira abaixo um gato com pêlos amarelados, que ao perceber a luz ou perceber-me, lançou-se na mata, já acompanhado por outro gato maior. Um gato perseguindo uma gata manhosa, mas agora não para devorá-la.

O cansaço dominava-me e olhando o fogo agradeci:
- Obrigado Senhor, por esta pequena chama azul, que agora me ilumina, pois sei que em pouco tempo; uma imensa chama portadora de todas as cores iluminará não só esta rocha, mas até onde meus olhos possam alcançar.
Exausto, estirei-me para trás e olhando o infinito, adormeci aguardando o sol.

***
Vai levantando aí seu safado, e bem devagarzinho! Assustado abri os olhos e vi duas carabinas apontadas, uma para minha testa e outra para o meu coração.
- Senhores – Balbuciei.
- Psiii... mais uma palavra e arrebento teus miolos
- Levantando – ordenou-me um dos homens com uniforme cinza, já com um par de algemas na mão.
Obedeci. E com destreza o homem prendeu-me as mãos ás costas, enquanto o outro indicava-me com a arma o caminho a seguir rocha a baixo. Atingindo a base, embicou-me em direção à lagoa, dizendo: - Esta manhã os nenês vão saborear um porco, um grande porco no desjejum.
Parei e sentindo o cano da carabina pressionar minha nuca, reagi
- Isto é tortura!
- Tortura tu vais ver quando o troglodita ali, estiver mascando a tua perna. Disse o outro guarda, apontando para um imenso jacaré, que tomava sol na terra úmida.
Rapidamente dei meia volta e saí em disparada, correndo desengonçadamente com as mãos às costas. Passava ao lado da pequena pirâmide de gravetos, quando um estampido ecoou pelo espaço. Caí pesadamente ao solo, ouvido o ruflar de milhares de asas e sentindo no peito dilacerante dor, chorei.
O verde da mata acinzentou-se com o apagar do sol. Ouvi ao longe fiapos de vozes; - olha o que fizeste; mataste um homem algemado e pelas costas.
- Só atirei para assustá-lo, pois o covarde ia...
A dor foi aplacando-se como se eu estivesse recebendo altas doses de anestésicos, e numa metamorfose mágica, a escuridão transformava-se em coloridos fachos de luz como cometas circulantes ao meu redor; formando um ciclone de luz e cores que sugava-me do chão úmido, ao qual tentava agarrar-me, sem sucesso.
Leve, afastava-me da terra. Sem dor e sem peso, ia eu, involuntariamente ao encontro do novo, do desconhecido; do Criador, que ontem pela manhã ao contemplar sua obra, senti sua presença.
Agora, imitando o Mestre, começo a perdoar a todos, deixando a terra com o coração livre, assim como nela entrei. Inicio pelo que me atingiu mortalmente. Ele também não sabia o que fazia, talvez minha última missão fosse plantar uma árvore, e os guardas foram apenas instrumentos; já que eu milagrosamente havia me safado dos jacarés. Mas se ainda não estiver pronto; eu te peço Pai: Devolva-me à Terra, e concluirei minha jornada, muito mais sintonizado aos teus desígnios.

Um grande silêncio se fez. As luzes foram paulatinamente apagando-se e eu ganhando massa, sentia-me pesado, sufocado, precisava de ar. Uma grande agonia tomou conta de mim, quando repentinamente abri os olhos e em pânico vi um ser horrendo, com os olhos esbugalhados, com sua cara e sua boca pregadas à minha. Tomado de pavor, agarrei suas imensa orelhas desvencilhando-me do maldito, gritando: - Afasta-te de mim Satanás! Eu não mereço o inferno e tu não vês que sou homem?! – O maldito atendeu ao meu apelo, e para completar meu espanto, caiu de joelhos dizendo: - Obrigado meu Santo, você atendeu o meu pedido. Completamente desorientado, reconheci o guarda, que queria jogar-me aos jacarés e havia me acertado no peito. Já pulava sobre ele, quando lembrei-me que o havia perdoado, e o homem também já segurava-me, engatilhando a carabina dizendo: - Olha moço, bem quietinho se não atiro para acertar. Cuspindo sem parar, notei preocupado que suas orelhas sangravam.
Vendo que o homem estava só, indaguei sobre seu colega, sendo informado ele havia ido atrás de socorro.
- Homem, hoje estive na porta do céu e do inferno, o que está acontecendo? Eu apenas me perdi na mata. Isso é crime? Indaguei com energia.
- Mas não sabes que caçar, prender ou matar animais na reserva é crime?
- Sei, sim senhor.
- Então seu estúpido! Agrediu-me o guarda pegando a bolsa indígena.
- Reconheces esta bolsa?
- Claro, estava comigo.
- E o que o Senhor guardava aqui dentro hein? Disse o guarda com sarcasmo, sacudindo a bolsa que emitiu um grunhido e um cheiro que não me eram estranhos.
- É, o Senhor mantém preso este gambá. Iria assa-lo para o almoço? Presentear a namorada ou contrabandeá-lo? Hein?
O delegado, o Ibama, o pastor, o padre, a paróquia querem saber.
Vendo que não adiantava explicar que o bicho havia se escondido na bolsa sem o meu conhecimento, perguntei amenizando: - O que aconteceu comigo? E porquê ficou tão feliz quando voltei à consciência?
- Caçador comido por jacaré é legal, porém morto com um tiro nas costas, algemado e por arma oficial é ilegal; e nós só trabalhamos na legalidade, entende? – Disparou o guarda.
- Quando fugistes deixando os nenês só com água na boca, eu atirei para mostrar quem é que dá as ordens por aqui, e ao mesmo tempo para te proteger. Se te embrenhas pela mata, com as mãos amarradas e esbarras com um lote de cães do mato ou dás de cara com uma jaguatirica, que por aqui tem aos montes; nós íamos ter de soltar o gambá e ir embora com as mãos vazias. Sem nenhum serviço prestado à comunidade, sem cumprimentos, sem gratificação, sem nada. Entende?
- Se não fores muito burro, já concluístes que nós te queremos vivo. Mas arma de fogo é coisa do diabo, acontecem coisas inexplicáveis. Quando caístes, imediatamente após ao disparo, pensamos que eu havia te acertado. Aproximamo-nos apreensivos e feliz constatei que não havia nenhum buraco nas tuas costas, mas quando te virei para te dar um esporro, percebi que havias caído com o peito sobre aquela pedrinha ali, e enfiado a cara na lama. Tirei as algemas, limpei tua cara toda roxa e preocupado vi que já não respiravas. Comecei então a pôr em prática pela primeira vez as lições de primeiros socorros, de ressuscitação mesmo, que aprendi na academia. Passaram-se mais de três minutos e eu cansado já estava desistindo quando tu quase me arrancasse as orelhas, seu desgraçado.
- Olhe só, o manhoso está vivo. Falou o outro policial, aproximando-se.
- O rádio não funcionou, por isso demorei tentando contato, não conseguindo já pensava que teríamos de arrastar o presunto até o jipe. Assim é melhor, ele vai com as próprias pernas. Vamos! Vamos entregá-lo ao Polaco. Informou o homem, voltando por onde havia chegado. – Segui-o, tendo na minha retaguarda o outro policial.
***
- Doutor, temos aqui um cavalheiro, preso em flagrante caçando animais na reserva; e aqui está a prova do crime – disse o guarda florestal apresentando a bolsa com o gambá.
Olhando-me dos pés a cabeça com desprezo, sentenciou o delegado: - Trancafie o cidadão ali junto do Tainha, enquanto fazemos o relatório.
- Doutor, intervi. – É tudo um mal entendido... – É sempre assim, sempre a mesma ladainha. Quando chegam aqui são todos uns santinhos. Tire esse sujeito da minha frente!
O cubículo tinha em seu interior duas tarimbas, um ocupante de meia idade e um “toalete!”, onde a intimidade do ocupante era protegida por uma cortina toda esfarrapada, que mesmo da porta do cubículo avistei em seu interior um lavatório e um vaso sanitário enegrecidos.
- Alô, é bom ter visitas – recebeu-me o homem
- Mas é rápida – emendei
- Será? Desconfiou o anfitrião
Fui direto ao “toalete”, e sentindo-me melhor atirei-me sobre a tarimba reservada aos visitantes. A exaustão, a perplexidade e o desconforto, não me deixaram repousar.
- O senhor também está aqui de passagem ou é hóspede permanente do delegado? Disse numa infeliz tentativa de parecer simpático.
- Ô cara, eu já estou de saco cheio, com vontade de fazer uma besteira, sabe? Não contra ninguém não; contra mim mesmo entende?
- Calma! Intervi.
- Calma como? Estou aqui há mais de um ano, e sabes porque?
O homem queria desabafar. Compreendi e encorajei-o a prosseguir.
- Porque no ano passado chegou ali na praia um barco atolado de tainhas, sabes né? No inverno elas vem pra cá. Eu estava desempregado, sem nada em casa, com minha família passando necessidades. Eu agi errado, eu sei, mas no desespero...
Enquanto eles descarregavam o barco, para carregar o caminhão do frigorífico, peguei duas tainhas, joguei dentro de uma sacola e rapidamente fui para casa prepará-las. Já estava fritando quando a polícia chegou, e experimentei o gosto do furto. Algemaram-me na frente das crianças e trouxeram-me para cá, aonde estou até hoje. E segundo o delegado, ainda dei sorte por não haver vaga no presídio.
- E advogado?
- Eu tinha. Fornecido pelo Estado – No início falou que não cabia dois anos. Depois disse que iria comutar a pena por prestação de serviços à comunidade, e depois não me disse mais nada. Ele vem aqui, conversa com o delegado, é amigo dele, e vai embora.
- Que injustiça Senhor. Duas tainhas, dois anos. Um para cada tainha, o seu advogado deve ser um grande bacharel. Mas mesmo com essa dura pena, o Senhor não tem um bom comportamento aqui dentro? Inquiri.
- Uma freira Senhor, tenho me comportado como uma freira.
- Então o Senhor não deveria estar mais aqui.
- Os seus familiares lhe visitam?
- Sim, eles moram aqui pertinho.
- Então eles não o abandonaram, e mesmo que o tivessem feito, nada justificaria o senhor atentar contra a vida. A vida é...
- Ô do gambá, o delegado quer falar contigo, disse um policial abrindo a cela.
Ao ver-me o delegado foi logo falando: - Pelo relatório da Florestal: maus tratos, cativeiro, armadilhas... tu estás enrolado rapaz, no mínimo seis anos, sem falar nas multas.
- Doutor, interrompeu um homem de colete preto entrando pela sala. A comunidade está em polvorosa, querem ver o contrabandista de animais e estão bravos. A coisa pode ficar perigosa.
- Aqueles Florestais não tem jeito, não conseguem calar aquelas matracas. Faz o seguinte: vai ali na lojinha da Kika e depois na peixaria do Xico e conta pra eles que o meliante foi transferido para a Federal. Entendido?
- Sim Senhor! Disse o investigador saindo.
- Por que isso? Indaguei.
- É que daqui a meia hora, a população inteira já sabe que tu não estás mais aqui. E ninguém vem pra cá encher o saco.
Na parede o relógio bateu onze horas.
- Te chamei aqui para a identificação, passa os documentos. Pegando a carteira do bolso falei:
- Doutor, eu tenho direitos, e preciso de um advogado.
- Tenho um conhecido que pode...
- Não, muito obrigado Doutor, posso usar o telefone? O telefone não está funcionando, estão vindo consertar.
- Se te comportares direitinho penso no teu caso. Tinha eu na carteira R$ 200, pus os documentos na mesa e arrisquei: - Doutor, já estou muito tempo sem me alimentar, preciso comer alguma coisa.
- O rango sai às 12h30. Informou-me.
Peguei uma nota de R$ 50 dizendo:
- Será que poderia pedir a alguém para...
- O que queres comer?
- Um peixe, um bom peixe para dois, de preferência assado, com arroz, farofa e muito verde acompanhados por uma boa cerveja.
- Porra, já abusasses. Cerveja não!
Em meia hora eu e o tainha saboreamos uma bela anchova. Senti-me revigorado, deitei-me na tarimba pensando no que fazer e adormeci.
Acordei renovado e com uma idéia. Escrever um bilhete para a mulher do tainha telefonar ao meu advogado para ajudar-nos.
- Senhor, tem caneta e papel? O homem passou-me um caderno com a caneta entre as folhas com algo escrito e fingindo escrever li. Fiquei pasmo com o conteúdo e mais preocupado. Iniciava a escrever o bilhete quando fui interrompido pelo guarda:
- Senhor, por favor, poderia acompanhar-me? Já estava fora quando percebi que trouxe o caderno, do seu José.
- Sente-se, convidou-me o delegado. Ainda de pé falei: - Doutor, eu no seu lugar, colocaria um guarda para cuidar do tainha.
- O homem é inofensivo, já está comigo há muito tempo , e nunca deu problema. E tu uma hora com ele, já fizestes o homem se rebelar?
- Senhor, o seu José está com a alma sangrando.
- Olhe, o telefone já foi ligado, mas tu não vai usar. Se quiseres falar com alguém vá lá no orelhão da esquina e ligue. Estás livre – disse-me rasgando a papelada da acusação e entregando-me os documentos.
Quanto ao Tainha, deixa ele comigo, pelo que sei não és psicólogo para entender de alma.
- Doutor, o Senhor resolveu esquecer as acusações porque viu meus documentos? - irritei o homem.
- Tu estás insinuando que eu só prendo ladrão de tainha e galinha seu filho da mãe? Agora posso prender-te por desacato, e para de me chamar de Doutor! – bravo esmurrou a mesa.
- Eu te liberei porque foi provado que és inocente. Saiba que o nosso serviço de investigação é de primeira.
- Delegado, então teremos de acionar este serviço novamente. Isso irá salvar a pele de muita gente, inclusive a sua.
- Peça para eles a pasta do Tainha falei.
- Mas pelo amor de Deus! Exclamou o Delegado.
- Agora tu queres mandar aqui na minha delegacia. Tu é da OAB? Tu és do Ministério da Justiça? Ou tu és um lunático que aterrisou no Tabuleiro atrás de bichos exóticos? Não, tu não és nada disso, tu és um diabo que o inferno mandou para tirar a paz desta delegacia; e pegando gaveta seu revólver indagou-me com autoridade: O que o Senhor sabe que eu não sei?
- Calma! Disse eu assustado e entregando o caderno aberto no depoimento do seu José. Convidei-o a ler:
“ Companheira, os primeiros dias aqui foram positivos, mostraram-me como a liberdade é boa e como vocês são importantes na minha vida. Coisas que não via quando livre estávamos juntos. Embalado pelas promessas do Doutor fiz planos e ensaiei discursos para pronunciar à vocês quando estivéssemos juntos catando mariscos, pescando siris e a noite preparando a refeição. Vi-me também, já no outro dia saindo À procura de trabalho e a noite retornar dizendo: - Eu consegui, eu consegui! Já estou empregado. Pode abrir uma caderneta na quitanda do Zeca e ir na lojinha da Kika comprar umas roupinhas para as meninas e um belo vestido pra ti. E no domingo ao sair da capela, rumo à peixaria do Xico, sentir os comentários das Senhoras: - Pôxa como o seu José mudou! Parece ser outro homem. O xilindró lhe fez muito bem.
Já no fim do mês ir ao frigorífico pagar o prejuízo e desculpar-me.
Hoje, preso e sem um amigo, a mulher e as filhas do Tainha vem domingo pela manhã na delegacia, à noite com as mesmas roupas surradas , sentam-se no último banco da capela junto a parede. Os discursos que preparei e os sonhos que sonhei; amanhã segunda-feira irão comigo atrás de outro julgamento.
Cuide bem dos meninos, procure perdoar-me.
José – O tainha.”
- Que barbaridade! E se este homem morre aqui dentro? Pensou nele o Delegado.
- Guarda! Fique de olho no Tainha. Pois é, o homem não diz nada, ninguém fala nada por ele, o homem ficou esquecido.
Pegou a pasta do condenado, deu uma olhada e fez uma ligação que assim foi concluída: ... e apareça aqui ainda hoje com o alvará de soltura. Te vira! Se não eu mesmo vou te denunciar.
- Delegado, como descobriu minha inocência?
- A bolsa. Ele respondeu.
- Ao prestar atenção nela, vi que era de origem indígena. Procurei o Neto do Cacique que esclareceu-me tudo. Disse-me que eras um amigo, que gostavas da natureza, que jamais irias prender, maltratar ou caçar algum animal. Que ao contrário tua passagem pela mata deixou-a mais feliz. Isso eu não entendi. Coisas de Índio!
- Já o conhecia? Indaguei.
- Aqui todos o conhecem. E eu o conheço bem, viveu alguns anos com minha irmã.
- A Polaca?
- Sim minha irmã mais velha, a Frida, tem um filho com ele. O Flexa, conhece-os?
- Não, só conheci o Índio e espantei-me com sua atenção dedicada à minha pessoa. E embora não seja psicólogo nem joalheiro, sei que o Neto do Cacique tem um coração de ouro.
- É, nessa altura do campeonato eu não duvido é de mais nada. Só sei que o Índio te livrou a cara, para a tristeza dos Florestais; que agora terão de continuar as buscas, e ainda se quiseres terão de responder a um processo. Soube que eles quase te mataram. Naquele mato devem ter acontecido coisas estranhas, pois vi o Florestal com dois grandes curativos nas orelhas. Tu andastes puxando as orelhas dele!?! E ele não te matou? Disse o Delegado rindo.
- Não Senhor, e depois do puxão de orelhas, o homem caiu foi de joelhos agradecendo. Acredite!
- É, o que faz a falta de um pai. Concluiu.
- Delegado, posso esperar pra ver o desfecho do caso do seu José?
- Claro, e se quiseres descansar um pouco use a cama do plantão.
A cama era bem mais confortável e limpa do que a tarimba, repousei até ser despertado com a chegada de um carro sobre a brita do estacionamento.
Levantei-me, e ao ver-me o Delegado informou: - Olha o advogado do Tainha. Parece que ele só trabalha sob pressão. O homem entrou na sala cumprimentou-me com a cabeça e entregando uma pequena pasta ao Delegado falou: - Ta aí Delegado, o Juiz liberou o homem. Eu havia esquecido dele, sabe “né” muitos compromissos.
- Muito bem Doutor, a injustiça agora vai cessar. Mas para que se faça alguma justiça, vai, apresente este documento ao guarda e diga ao seu cliente: “A partir deste momento, seu José, o senhor está livre. Tire uma semana de férias, e se quiser trabalhar, poderá começar na próxima segunda-feira.”
- Amigo, que bom, o homem merece. Depois desta “cadeiada” toda e com esta crise, não seria fácil o homem arranjar um trabalho. E tu já tens um trabalho para ele, onde?
- Não, eu não tenho nenhum trabalho para ele. O Senhor tem tempo, tem uma semana para encontra-lo.
E pegando um envelope depositou cem reais convidando o ainda atônito homem a imita-lo, disse: - Seu José não pode chegar em casa para as férias sem um tostão no bolso. Concordas?
Também concordando com ele – depositei cinqüenta reais.
Ao sair, seu José com uma grande alegria emocionada voltou-se a mim dizendo:
- Hoje pela manhã eu era um condenado sem esperança. O senhor apareceu, serviu-me a refeição que mais gosto e ao invés de mandar-me para o carrasco , surpreendeu-me com férias remuneradas e já com trabalho garantido, mandou-me para junto dos que mais amo.
- Homem, você é do Ministério da Justiça ou é uma Anjo?
- Não seu José, eu não fiz tudo isso e também não pertenço a nenhuma dessas entidades, segundo o Delegado sou o diabo que veio do inferno para tirar a paz desta delegacia .
Seu José benzeu-se e retirou-se rapidamente.
- Tu és um lunático – Mudou de idéia o Delegado.
- Delegado, o senhor conhece um bom mecânico?
- Ah, sim. O teu carro fico lá com o Índio não é?! O rapaz da oficina ali é muito bom disse-me apontando pela vidraça o outro lado da rua.
Saia da delegacia rumo à oficina quando, surpreso, vi Seu José retornando.
- Resolveu voltar à segurança das grades?! Brinquei.
- Senhor, disse timidamente Seu José; nem seu nome sei e talvez jamais volte a vê-lo. O que poderei fazer para agradecer? Retribuir?
- Jonathan, meu nome é Jonathan. Cuide bem de sua família Seu José, progrida e ajude os outros a fazerem o mesmo. Não se escale para julgar com severidade, e ao lançar-se em defesa de alguma causa, não se amofine, faça-o com todas as suas posses e se preciso, vá além delas e peça ajuda.
Não guarde ressentimentos. Processe o joio para adubar o trigo e assim o Senhor estará ajudando a construir cadeias. Grandes cadeias de solidariedade, com amplas portas abertas. E não haverá em todo o universo agradecimento e retribuição maiores. Eu lhe asseguro.
O homem abraçou-me e sentindo o ombro umedecer ouvi:
- E eu, velho tolo e ingrato por ter desaprendido a brincar; tímido, depois da sua brincadeira com o diabo, quase não volto para agradecê-lo...
Afastou-se e como um acadêmico que acaba de receber o diploma discursou:
- Que julguem os juizes, pois eu José, o Tainha, acabei de ser promovido a construtor e executarei com dedicação este projeto: Cadeias com grandes portas abertas. Cadeias de solidariedade e habitarei nelas, pois agora compreendi que estas cadeias ajudarão a esvaziar as prisões construídas com ferros, pedras, iras, egoísmos, invejas, traições, medos e misérias. As quais tive de conhecer, pois ignorante me portava como um juiz medíocre, um advogado mofino, um pastor fofoqueiro, um plantador de joio. Era um servente que ajudava a construir jaulas para depois enfiar-me nelas.
- E agora com licença Jonathan, preciso por em ação este projeto que não é pequeno. Você sabe...
- Mas Jonathan prosseguiu seu José, eu vim agradecer, retribuir e você acabou dando-me outro presente... Um projeto de vida.
- É que o Senhor fez por merecer, pronunciou palavras mágicas: Agradecer e Retribuir, que quando transformadas em gestos são os alicerces das cadeias de solidariedade.
- Onde aprendeu tudo isto Jonathan? Na universidade?
- Não seu José... Está vendo aquelas belas montanhas azuis, onde o sol agora se põe...?
E lá se foi seu José cantando como um menino. Parodiando “A Montanha” de Roberto Carlos;
Obrigado Senhor por este dia
Obrigado Senhor , já posso ver
Obrigado Senhor, porque tenho um caminho a seguir
Obrigado Senhor pelas montanhas azuis e pelos florestais que prenderam Jonatha
Muito Obrigado Senhor...

Em trinta minutos, chegávamos eu e o mecânico na casa do Neto do Cacique, que ao ver-nos veio ao nosso encontro já com as chaves na mão e entregou-as ao meu acompanhante de uniforme azul. Por conhecê-lo ou deduzir a razão do homem estar ali, dizendo-me:
- Amigo, sei que as últimas 24 horas foram massacrantes, embora proveitosas, espero. Vamos brindar o teu retorno enquanto o mecânico trabalha em paz, pois é horrível trabalhar sob os olhos dos curiosos. Falou o sábio nativo, encaminhando-me para sua casa.
Anoitecia e o Índio acendeu um lampião sobre a rústica mesa ladeado por dois bancos – únicas peças adquiridas depois do arrastão da Polaca, avaliei após olhar em volta.
Sobre a mesa além do lampião havia duas garrafas, uma de pinga e uma de whisky, duas canecas de argila e um envelope.
- Como foi a comemoração da milésima lua? Lembrei-me do senhor lá no mato.
- Eu também lembrei-me de ti e falei para Polaca: A essa hora, o nosso amigo naquele mato... deve estar se borrando todo. Mas falando sério, continuou o Índio, a comemoração foi curta porém muito boa.
- A polaca lhe visita?
- Sim, as vezes em ocasiões especiais. E ontem também veio trazer-me um recado do Flecha.
- Porque curta? Vocês brigaram?
- Não, ninguém vai perder mais o tempo precioso – Isso é tolice. É que tive de olhar por um amigo muito especial... Um ronco de motor, e logo o mecânico interrompeu-nos anunciando que o carro estava pronto.
- Foi rápido hem? Qual era o problema? Inquiri.
- Não tinha nada senhor.
- Como assim nada?!
- É, não tinha nada no tanque de combustível, mas eu já coloquei o suficiente para ir até o posto. – Disse o eficiente mecânico.
O Índio olhava-me com ar de escárnio, enquanto eu acertava as finanças com o rapaz.
Respirando o ar da manhã primaveril do dia anterior, havia esquecido-me de abastecer. Lembrei-me agora.
O Nativo pegou o whisky, serviu-me e quando ia largar a garrafa sobre a mesa redirecionou-a para sua caneca dizendo:
- O Flecha quer que eu troque o produto nacional por estrangeiro, me trazendo essas porcarias, mas hoje eu te acompanho no Scoth. Levantou a caneca cerimoniosamente... A ti, a mim e ao Flecha Ligeira. Que o sol, a lua, as estrelas e todo o universo que emite ou reflete a luz não nos abandone jamais. Porque nós gostamos da luz, da amizade, do amor e da vida.
- Brindemos pois, disse eu, sem jamais esquecer do Criador de tudo ISTO.
- Amigo, retomou o Índio, quero te mostrar uma coisa. Pegou do envelope uma fotografia e entregou-me indagando: Vê se conheces alguém aí?
Surpreso vi que eu estava ali impresso no papel, eu, alguns amigos e muitas colegas. O tempo retrocedeu e muitas lembranças invadiram-me.
- Senhor, esta fotografia é dos formandos de minha turma. Como chegou aqui?
- Muito cuidado quando tirar fotografias em grupo. Nunca se sabe aonde irão parar. Disse-me o civilizado Índio.
- Olhe, mostrei, eu estou aqui e abraçado ao Moreira, meu grande amigo e colega trapalhão. O Moreira. Nuca mais tive notícias dele. Bons tempos aqueles. Mas como esta fotografia veio parar aqui? Reforcei a pergunta.
- Esta fotografia foi teu amigo trapalhão que me deu.
- Não é possível que o Senhor conheça o Moreira.
- Conheço-o e até algumas de suas trapalhadas.
- Conta uma. Desafiei o Índio.
- Contou-me o Moreira, que numa prova final, muito difícil, para a qual ficou estudando por semanas, precisava de sete pontos para conseguir a aprovação. Deu-se a prova, já havia passado mais de uma hora e em pânico coçando a cabeça todo desconcertado ele não conseguia dar início á resolução. Não encontrava o fio da meada. Foi quando o colega de trás vendo o seu desespero tocou-lhe nas costas. Pensando ele que o colega queria copiar alguma coisa, para surpresa geral da classe, levantou-se com a prova na mão, e mostrando o papel em branco bradou: “- Pare de bater nas minhas costas, eu também ainda não resolvi nada!.” Por pouco não foram expulsos da sala. Mesmo assim acalmado os ânimos, o amigo de retaguarda driblou a atenção redobrada do professor e passou-lhe a folha com a chave da questão. Ele contou-me às gargalhadas.
- É, o Senhor conhece o Moreira. Assenti, e esse colega era eu. Aquele filho da mãe quase pôs tudo a perder. O que faz isso é querer ajudar o próximo.
- É filho, disse o velho, para aquele trapalhão filho da mãe tu eras o irmão que ele não teve, eras o companheiro de lutas do mestiço, que sem tradição, carregando apenas o nome da mãe, viajava atrás de um sonho que quando pequeno ele mesmo pronunciara: “- Nós vamos voar pai; Nós vamos voar tão alto como as águias de tuas histórias.
- Estou pasmo! Não posso crer no que ouço. Então o Moreira é o seu filho com a Polaca mão de chumbo? Moreira é o nome civil do Flecha Ligeira? Até rimou Senhor.
- É, mais é rima e muito pobre. E não foi proposital amigo. Riu o poeta.
- Eu compreendo Senhor, isso no mínimo mereceria uma rima rara. – Brinquei.
- Jonathan, quando exilei o menino Flecha, eu tinha no coração a confiança de que em sua jornada iria encontrar sonhadores, que como e com ele, estudariam com objetivos claros : Aprender e realizar. Não tenho a fluidez verbal para expressar o sentimento que me invade, tendo aqui na minha frente você; que há muito tempo já conhecia, pelos relatos do Flecha...
- Senhor, como está o Flecha? Eu indaguei quebrando a emoção.
- O Flecha literalmente voou, amigo. Ele é Engenheiro de vôo e também pilota. Ontem no início da noite, vindo do sul, alterou ligeiramente a rota e fez no céu um círculo acompanhado por um pisca, intermitente de todas as luzes da aeronave para homenagear-me na passagem da minha milésima lua cheia. Você devia ter visto amigo.
- Eu vi, Senhor, eu vi.
O velho levantou-se, tomou um trago e perguntou-me:
- Tens filhos?
- Sim tenho. Tenho quatro filhos.
- Está na hora de parar hem? Brincou, e continuou:
- Cuidado, muito cuidado com o que disseres para eles. Imagine se naquele momento de decisão eu tivesse indagado ao pequeno Flecha: “- E daí Flecha, vamos afundar ou vamos chegar às estrelas? Onde andaria nosso amigo hoje?...
- Eu faço idéia Senhor, eu faço idéia.

Depois de longa despedida, o Índio acompanhou-me até o carro.
- Senhor, como recuperou-a? Como sabia? Indaguei ao perceber minha mochila sobre o banco.
- Recuperar a mochila foi fácil, esbarrei-me com ela. O difícil foi desfazer-me das duas frangas.
- Como assim? Duas frangas!
- A primeira foi a Polaca, dispensei-a após a acrobacia do Flecha, e mais tarde a outra que atropelou-me lá no mato. Muito, mas a muito tempo mesmo, não saboreio uma galinha Nativa. E também não foi dessa vez, pis tive que joga-la na lagoa; dá-la aos jacarés, para eles te darem uma folga amigo. A tua fuga foi coisa de cinema rapaz, contando ninguém acredita. E aquele salto sobre os animais? Impagável. Mas o que me comoveu mesmo, foi o teu gesto após teres saído daquele sufoco. Plantando, protegendo e regando aquela futura árvore que estava condenada a morrer sobre o solo. Senti vontade de aparecer e te abraçar, mas não quis estragar tudo. Interrompendo a tua e somente tua experiência. Contive-me e logo que rumastes para a segurança da rocha, bati em retirada mas para garantir, quando aqui cheguei pela manhã, realizei uma poderosa pajelança.
- Senhor, velho Pajé, meu amigo, aquela árvore também foi plantada em sua homenagem . Muito, muito obrigado por tudo. Na próxima primavera venho e trago um bom peixe para o almoço, tentando assim compensar os seus também impagáveis gestos e frangas. – Disse eu partindo.

As luzes passando por mim, trouxeram-me a lembrança das lanternas na lagoa. Uma imensa fila de predadores, vindo ou indo para a ceia. Jacarés de praia seguindo a trilha betuminosa. Alguns me perseguiam enquanto eu seguia outros; mas agora eu estava forte e seguro, protegido por uma grande carapaça de lata, como uma robótica tartaruga ia eu pela trilha congestionada. Porém mantendo uma distância segura, pois qualquer aproximação mais ousada, qualquer descuido, poderia ser fatal. E potentes mandíbulas entrariam em ação, destroçando impiedosamente a carapaça ferruginosa, e expondo assim minha imensa fragilidade.

***

No ano seguinte, ao invés de dirigir-me à pequena rua, à casa do Índio, segui em frente. Queria cumprir minha promessa. Parei no posto de gasolina da freguesia para informar-me como chegar famosa na peixaria do Xico.
- Senhor, tenho um amigo que hoje, Domingo- lembrou-me- Está inaugurando uma bela peixaria. O homem é esforçado e merece a indicação, vá até lá e comprove. Disse-me o frentista mostrando o caminho que sem dificuldades segui.
Parei em frente ao pequeno estabelecimento com uma ampla porta, ao fundo atrás do balcão com frontais de vidro e tampo branco azulejado um homem manuseava caixas de peixes, enquanto uma mulher bem afeiçoada e confiante atendia uma cliente. Logo aproximaram-se duas mocinhas; uma entregou-me um panfleto enquanto a outra falou-me: “- Senhor, quando quiser fazer uma boa peixada é só passar por aqui, na peixaria do nosso pai. O preço é bom e o produto é de primeira.” Concluiu.
Olhei para a fachada do estabelecimento e lá estava escrito: PEIXARIA DO TAINHA.
Feliz, com cara de turista, e para testar o improviso da simpática menina disparei: - Tainha é o sobrenome do seu pai?
- Não, não meu senhor. Disse a menina com um sorrisinho de “Monalisa”. Tainha é o nome fantasia, um nome inventado, sabe? O nosso sobrenome é Serra.
Lisinha igual a um bagrinho essa filha do seu José. Bem lisinha, pensei alto agora olhando para a menina que surpresa perguntou-me:
- Senhor, como sabe o meu nome?
- Hã?! Embasbaquei-me... Ah sim, Lizinha, Lizinha é o seu nome?!
- Sim, meu nome é Elizabete, mas todos me conhecem por Liza, Lizinha.
- Olha Liza, disse eu recomposto, este nome caiu como uma luva em você. Eu cheguei a adivinha-lo por duas vezes. Acredite, e agora vá, vá ajudar o seu pai a conquistar novos clientes.
Olhando novamente para o interior do estabelecimento, observei que a bem afeiçoada mulher estava com a barriguinha um tanto desenvolvida. Seria muito peixe com pirão? Ou um tanhotezinho para completar o quadro? Deixa para lá, no próximo ano tiro a dúvida.
Peixaria do Tainha. Um bom nome, feliz constatei. E com uma equipe dessas, meu amigo, o Xico vai ter que mudar de ramo. Mas hoje comprarei no concorrente para evitar que o Seu José já comece seu negócio presenteando alguém.

Todas as primaveras retorno à trilha dos nativos, participando e aprendendo com a orquestra da natureza e quando os componentes atingem a casa dos milhões, faço um suave retorno ao meu mundo. Com milhões... milhares... centenas... dezenas... e finalmente aportamos na pequena rua próxima do asfalto, apenas eu e o Maestro, que nunca abandona a mim, nem aos que com Ele tentam harmonizar-se.

Virá um dia porém no qual, quando o sol cruzar o zênite, e os componentes da orquestra atingirem a casa dos milhões, eu não voltarei. Seguirei em frente, para fazer parte definitivamente da “Grande Sinfonia do Universo e da infinita harmonia do Criador.”
Lá onde o amor, só o amor é a Lei. E desta vez, quando o ciclone de luz me envolver, seguirei em profundo silêncio.
Primavera de 2002.
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