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Contos-->Suco Azul - Foi No Verão -- 28/01/2003 - 16:30 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Suco Azul – Foi No Verão


1

Férias de verão, com verão quente e seco. Para a praia foram Julio Werner e os três amigos. Chegaram logo no começo do mês, com a intenção de voltarem sem data determinada. Assim é que era bom.
Ficariam na casa da tia dele, que tinha seus dois filhos, primos de Julio, de mesma idade. A casa ficaria cheia, mas tudo bem, pois era costume da tia e do tio, Gabriel, terem com eles nas férias de fim de ano uma porção de amigos no apartamento do litoral. Era espaçoso, e outra: era uma gente que queria receber todos os amigos que quisessem vir. Tanto que, neste ano, quando a tia Vera chamou Julio pelo telefone, sugeriu que este levasse os amigos pra ficarem por lá. Ele aceitou, empolgado.
Iam todos os anos, muitas vezes passavam a virada do ano lá, vendo os fogos na praia, indo dormir lá pelo meio da madrugada... boas lembranças de Julio.
Dormiriam quase todos em colchões que se espalhavam por todos os cantos da casa. Um primo dormiu uma vez com o corpo metade no corredor metade no banheiro. Foi hilário, e Julio se lembra. Também se lembra e quer sempre se lembrar do sol e do calor da praia, o mar, pelo qual era fascinado, as estrelas à noite, aquele monte de pessoas andando à noite, saindo, tomando sorvete, indo ao parque, namorando...
Alguns dias depois estava marcado para virem alguns amigos dos tios, os de sempre. Uma família meio estranha, por assim dizer, pois viviam meio que sempre atrapalhados com algo, mas um pessoal gente fina. Viriam alguns colegas dos primos, e um parente de outro estado, em férias.
Os amigos do Julio eram Tiago (grande companheiro de escola), Luis e Paulo Henrique. Todos aceitaram ir, pois talvez não viajassem com seus pais estas férias. Na verdade nem os pais de Julio viajariam, não teriam férias.
Assim, partiram em dois carros, um da tia e um do tio. Os garotos todos no do tio. A viagem prometia.
Ao chegarem, foi aquela farra, queriam sair aproveitando as férias, o sol que já brilhava, andar naquelas ruas de praia que tinham até o calçamento variado do de São Paulo.
Já sentiam aquele cheiro de praia, um cheiro de areia, ou de sal de mar, misturado com peixe e frutos do mar, com cheiro de brinquedo de criança usar na praia. Era bom. Foram arrumar as coisas no apartamento, roupas, gavetas, comida, objetos...
Os amigos no início ficaram um pouco acanhados, pois nem conheciam os tios de Julio. Porém logo todos se acostumaram com a situação de convivência junta. Riam.
Os quatro parceiros decidiram que dariam uma volta pelas redondezas, Julio ia mostrar o local pros outros. Se habituar. Tinham doze, onze anos. Logo, os gostos eram quase os mesmos.
O prédio era cheio de jovens, também, tinha um ambiente agradável. Perfeição...
Saíram, animados, com roupas mais soltas, e conversavam.
- Que legal, cara, nem acredito que a gente tá de férias, e na praia... – dizia o Luis, o mais magro e esguio dos quatro.
- É mesmo... foi sorte a gente poder vir junto e poder ficar no apartamento.
- Vocês vão ver, a praia aqui é um barato, nem tem como se enjoar... eu venho aqui desde bem pequeno, sempre gostei – animava Julio, líder.
- Eu quase pego recuperação em História, dessa vez... por pouco não perco metade das férias estudando... – disse Tiago.
- Cê precisa estudar mais, cara. Não custa nada estudar um pouco, o suficiente pra passar de ano, e no fim poder ficar tranqüilo – dizia Paulo Henrique, o que tinha melhores notas.
- Eu sei, isso é verdade – respondeu Tiago – Só que pra mim é sempre difícil conseguir passar.
- Deixa isso pra lá, agora a gente não tem que se preocupar com nada disso... certo? – disse Julio, sorridente, olhando todos eles, que assentiram, animados.
- Julio, quem é aquela menina que veio com a sua prima, aquela com uma blusa azul... – interrompeu Luis.
- Quem, a Taís?
- Acho que sim.
- Ela é amiga da minha prima, da escola dela – respondeu Julio.
- Ihh... o Luis, esse cara já tá de olho na menina, já – zombou Tiago, que não perdia a chance de uma piada.
- Nem vem com essas idéias, Tiago... eu só perguntei – Luis não queria piadas pro seu lado.
- Olha lá, um sorveteiro – disse Julio.
Estavam quase na larga calçada da praia, já se via toda a faixa de areia, brilhante sob o sol do meio-dia, os tantos guarda-sóis coloridos, pessoas, crianças, vendedores... o mar...
Compraram sorvetes e continuaram andando, chegando à extremidade da calçada, antes de se pisar na areia. Contemplaram a emoção. Já tinham ido inúmeras vezes a diversas praias, todos eles, mas esta era especial, era a mais animada, com certeza, e desta vez estavam juntos, os amigos de sempre, em férias despreocupadas.
Perto deles, um grupo de jovens, um pouco mais velhos, riam alto e faziam brincadeiras, muito exaltados.
Um velho passava devagar com um cão na coleira, parou numa palmeira pro cão fazer cocô. Luis era louco por cachorros, e foi agrada-lo – depois do cocô, é claro.
Paulo Henrique desceu pra areia, sentiu a maciez daquela superfície gostosa e quentinha. Andou em voltas, pensativo.
Julio e Tiago falavam das ondas, excitados, ondas que seriam sua diversão por muito tempo. O mar era bravo.
O velho do cão gostou de Luis, papearam um tempo sobre coisas fúteis: Calor, né? Você é de São Paulo? Ah, é um terrier misturado com vira-lata. Tenho outro, o Labrador. Até logo.
Continuaram andando, desta vez paralelos com a faixa de areia. Calor intenso, tiraram as camisas, foram até um orelhão. Cada um ligou para os pais, só para dar um toque de que já tinham chegado. E bem.
Paulo Henrique levava sempre a bombinha pra respirar, tinha asma. A todo momento lá estava ele, bombeando. Isso fez um deles, Tiago, pensar algo. Resolveu falar:
- E se a gente estiver no mar?
- Que? – disse Julio.
- O Paulo Henrique. Ô Paulo, se a gente estiver nadando, como é que faz com a bombinha?
Paulo Henrique ficou sem dizer nada, como se nem tivesse entendido a pergunta, confuso. Mas entendera, e já havia, alguns dias antes, pensado naquilo. E a bombinha? Não poderia levar pra água, de jeito nenhum, mas como ficaria horas se divertindo no mar com os outros, se, de momento em momento, precisava da bombinha? Isso ele não sabia. E foi pego de surpresa. Tiago podia ser o pior aluno nas aulas, entre eles, mas não era bobo, era esperto, e tinha encurralado Paulo Henrique. Tudo isso passou veloz pela cabeça do Paulo.
- A bomba? – repetiu ele, ganhando tempo.
Agora todos olhavam ele, não pressionando Paulo, mas porque ficaram intrigados com a questão. Ele não respondeu, não tinha resposta. E, percebendo isso, os outros três desviaram a atenção de Paulo em si, pois viram que nenhum deles sabia como seria. Pensaram. Passou uma família por eles, o pai brigava com o filho pequeno que queria alguma coisa. A mãe não dizia nada. Se foram.
Paulo Henrique se sentou num banco da calçada, de concreto. Julio do lado, os outros de pé. Julio rodava no dedo indicador o cordão das chaves do prédio, das quais tomava conta. Olhar perdido. Os amigos, distraídos, prestaram atenção no ato dele, e a chave girava, em círculos contínuos. Uma nuvem cobriu o sol. Saiu a luz, podiam abrir os olhos sem franzi-los, como se faz quando não suportamos o sol na cara. Depois o sol voltou, voltaram a semi-cerrar os olhos. Não só por causa do sol, mas também de preocupação, como quando não sabemos a resposta e pensamos...
Um carro com música tocando alto passou.
A chave no dedo se soltou e o cordão voou a alguns passos adiante. Olharam. Julio imóvel. O dedo parado. O mar. Todos eles e o mar. Viam o mar querendo. Mas teriam o mar? Teriam as ondas? Incerteza.
Levantaram-se sem dizer nada, e andaram de volta ao apartamento, devagar. Havia certo silêncio nas ruas do caminho. Um silêncio de depois do almoço, que todo mundo conhece bem. Mas ainda não tinham almoçado, e sentiam fome. Depois voltaram a falar. Luis voltou a falar.
- Quantos anos ela tem?
- Hã? – fez Julio – Quem tem?
- A menina de blusa azul, a Taís amiga da sua prima – disse Luis, olhando sempre pra frente.
- Tem doze.
- Ah.
- Garanhão... – Tiago não resistiu.
Chegaram e almoçaram. Lá dentro era só animação, a família almoçava pela sala, assistindo à Fórmula 1. A tia falou pra eles pegarem e se servirem na cozinha, estava tudo lá. O tio: - É pra comer, rapazeada. Sem cerimônia – e riu.
Eles foram à cozinha, havia um cheiro bom de peixe frito e arroz. Limão. Julio e Tiago se sentaram na própria mesa da cozinha. Já foram comendo, e a comida era boa mesmo. Tiago levantou as sobrancelhas, olhando pra Julio, em sinal de aprovação. Rango bom.
Suco de Limão.
Luis foi pra sala. Não, não dava a mínima pra Fórmula 1. Mas é que a Taís amiga da prima do Julio de blusa azul estava na sala, e aí...
Paulo Henrique, prato na mão, costas caídas, tirou a bombinha de asma do bolso da bermuda. Olhou pra ela como se encarasse o inimigo. Mas triste. Julio parou o garfo, viu o Paulo.
- Senta aí, Paulo.
O Paulo sentou, e pôs a bombinha de volta no bolso. A comida na frente.
Tiago se engasgou com uma espinha. A tia gritou da sala:
- Quem tá morrendo aí, gente? Cuidado que tem bastante espinha, viu?
- Pode deixar, tia – disse Julio. Voltou pro Paulo.
- Paulo.
- Que.
Julio olhou pra uma garrafa que pousava sobre a mesa quadrada. Era cerveja do tio e do amigo do tio. Paulo, desanimado, acompanhou o movimento de Julio. Tiago olhava.
Julio pôs o líquido dourado, espumante, no copo vazio do Paulo, tipo um terço do copo. Paulo olhou pra trás, na direção do corredor que levava à sala. Ninguém.
E tomou, afogou a mágoa. Tiago sorriu e bateu no ombro de Paulo, de boca cheia.


2

À tarde, o sol ainda tinia. Os primos de Julio vieram falar com os garotos, no quarto. Veio também a prima e a amiga da prima, a Taís de azul, e os dois amigos do primo. O primo, o Édson, tinha catorze anos. A prima, Tatiana, doze. Édson falou com Julio, que olhava pela janela do quarto.
- E aí, passou direto?
- A escola? – disse Julio – Passei... e o pessoal da sua escola, como tá?
- Tá legal, lá. Cê ainda lembra da festa no salão do prédio, que estava o Quico, o Leo, né?
- Claro, aquele dia foi o mais legal.
- E a Fernanda, Julio? – perguntou a prima.
- Ah, só estuda agora. Eu falei pra ela vir, mas não adianta. Espera passar essa época de colegial, tudo mais, aí ela volta a sair mais.
- É mesmo, né? – repetiu a prima.
- Ele não parece o Ricardo, lá da minha rua? – Taís falava pra prima, em voz baixa, meio acanhada, apontando o Tiago.
- É mesmo... – respondeu a Tatiana.
Tiago nada falou, só sorriu pras duas e continuou jogando dominó com Luis. Este não gostou da atenção que as garotas tinham dado ao Tiago, mas nada falou. Preferiu colocar mais uma peça no colchão-tabuleiro, e ganhar o jogo. Aí ficou mais satisfeito.
Julio andou pelo quarto.
- Édson, o pessoal aqui do prédio veio, dessa vez?
- Tá todo mundo aí. À noite a gente pode sair, se vocês quiserem, pode sair todo mundo... a gente sempre fica lá embaixo, batendo papo até tarde, se quiser é só chegar lá, tá certo?
- Legal – respondeu Julio.
Os tios avisaram na porta do quarto que iriam sair.
- Tá bom.
Os primos desceram pra baixo do prédio, foram jogar vôlei. Os garotos ficaram pelo apartamento, esperando fazer a digestão.
- Tem uma espécie de feira na outra ponta da praia, lá eles ficam com aquelas barraquinhas, vendem uns troços, a gente pode passar por lá, todo mundo vai – disse Julio.
- Legal, que horas fica aberta? – perguntou Paulo Henrique, descontraído.
- Depende. Acho que no fim da tarde é legal da gente ir, vai ter mais movimento. Que livro é esse? – disse Julio, apontando pra Luis.
- Ah, foi meu tio que me deu. É do... – Luis parou, olhou a capa do livro - ... José de Alencar.
- É bom?
- Se é bom, não sei, mas sei que até agora não entendi nem uma frase do que ele diz.
Tiago assobiou pra três garotas que passavam lá embaixo, na rua. Julio foi olhar. Elas não pararam nem olharam. Tiago riu.
- Vamos até a praia – sugeriu Julio.
Todos se trocaram, colocaram roupas para entrar no mar. Pretendiam nadar, provavelmente. Paulo Henrique também se trocou, e pôs a bombinha no bolso do shorts.
- Você leva. Pelo menos, se precisar, está com ela – disse Julio, se aproximando dele, amistoso. O outro concordou.
Ao descerem passaram pelo grupo animado que jogava vôlei atrás do prédio.
Saíram.
Nas ruas famílias e casais iam indo rumo à praia, com seus chinelos arrastando no chão, crianças barulhentas e braços cheios de cadeiras e esteiras, guarda-sol...
Na avenida da praia sempre tinha movimento. Na esquina, uma sorveteria. Na larga calçada da praia, do outro lado, um dos vários postos policiais da praia, onde dois policiais conversavam, paradões em frente. Os quiosques eram incontáveis. Várias mesas com guarda-sóis, pessoas tomando cerveja, falando alto, música de rádio tocando. Óculos escuros, sol, areia, biquínis... cabelos, vozes, risadas, bundas, pipas e surf.
Pararam num quiosque, perto do qual havia um velho bêbado todo rosa sentado no murinho da praia. Devia estar bebendo desde cedo, estava todo abatido, assonado. Sem camisa, ele mantinha uma posição de cachorro velho, meio curvado, um tanto pançudo, olhando em volta devagar. Olhos vermelhos. Olhava as meninas que passavam e batia palmas para elas. Era um gesto de velho, antigo, que substitui o assobio.
Os garotos compraram uns refrigerantes no quiosque. Um grupo de surfistas conversava com o dono do quiosque, um cara com jeito mal-encarado, meio safado. Depois passaram a discutir. Os surfistas pediam algo, e pareciam estar mais certos do que o cara. Insistiam em algo, até que o sujeito se impacientou, afetado, tirou o avental, limpou as mãos, e foi pros fundos do quiosque, onde se demorou um pouco.
Os garotos se sentaram no murinho, olhando a praia. Julio prestou atenção nos surfistas. Segundos depois o homem retornou, com pressa, e entregou uns embrulhos nas mãos do surfista-chefe, mais velho que os outros, de barba. Pegou os embrulhos e sentiu na mão, olhou receoso pro cara do quiosque. Se foram. Então o surfista se voltou, de repente, e botou um dos pequenos pacotes, o menor, de volta no balcão. O dono do quiosque não quis, xingou eles. Eles zombavam do cara. Ele ficou irritado, disse que zombavam dele. Os surfistas deixaram o pacotinho pra ele, como se tivessem dó dele e deixassem um consolo. Ele, nervoso, levou pros fundos, abriu o quiosque, botou na lata de lixo atrás do local, perto do banheirinho.
Depois foi atender os clientes que chegavam.
Julio olhava tudo isso, depois brincou com os pés na areia quente. Os outros apontavam o mar.
Julio se levantou, meio com preguiça porém interessado, e andou até o quiosque. Os outros nem viram.
Chegou nos fundos, perto do banheirinho. Cheiro de fruta velha.
Fez uma hora, olhou em volta, abriu o lixo. O pacotinho lá dentro, jogado. Ele pôs a mão lá dentro, pegou o pacotinho. Ninguém olhava. Sentiu seu peso, forma, sacudiu. Tiago pôs a mão em seu ombro, ele pulou de susto, o calor aumentou.
- Que susto, pô.
- Vem cá, rápido.
Os quatro desceram pra areia, andaram um pouco mais pra frente, Tiago apontando pro mar, pros outros verem. Era um rapaz, surfista, de prancha debaixo do braço, que estava perto da beira, lá na frente, olhando as ondas, talvez, lá no fundo. Parado.
- Ele vai surfar, tá olhando as ondas – disse Luis.
- Isso é normal, olha só, tem outros surfistas lá na outra ponta – disse Paulo.
- É, mas... – ia dizer Luis, quando Tiago interrompeu o grupo mais uma vez e disse:
- Eu não vejo a hora de entrar na água, deve tá uma delícia... – e se foi dirigindo à água.
Os outros três seguiram, em passos rápidos. Muitas pessoas na faixa de areia da frente, tinham que desviar de esteiras e barracas.
Um pouco mais perto da beira, pararam. Tiraram as camisas, os chinelos, fizeram um montinho na areia, deixariam as coisas por ali. Julio se virou para a cidade, olhou os prédios que despontavam altos, e se guiou para depois saberem onde estavam as coisas. O pacotinho ainda estava no bolso de Julio. Ele tirou, escondeu entre a camiseta. Paulo Henrique não ia, se sentou na areia, triste.
- Eu não! Pra depois morrer de falta de ar? – disse Paulo, usando a bombinha.
- E agora? – disse Julio.
- Vamo lá, Paulo, não vai deixar de aproveitar por causa disso... – insistiu Tiago, aflito para cair na água.
- Como se eu tivesse alguma culpa de ter asma – devolveu Paulo, secamente, para Tiago.
Ficaram mudos. Luis tinha a pele excessivamente branca, era o mais branco. Isso chamava atenção, num local como a praia, cheio de pessoas bronzeadas. As costas e a barriga sem cor fizeram os colegas olharem, porém sem nenhum preconceito, ou acusação. Ele usava uns óculos escuros redondos, enormes, de seu pai.
- Podem ir, seria besteira se vocês não fossem por minha causa... vou tomar sol.
- A gente nem quer ficar muito, na verdade, a gente só vai dar um mergulho... – começou Julio, querendo resolver, mas encontrou o olhar de Tiago, um olhar ansioso, aflito, desesperado, olhar de quem quer ficar horas no mar, nadando, curtindo até enjoar... e não de quem queria só entrar “pra um mergulho”. E o silêncio se fez novamente.
Tiago foi sozinho. Andava rápido. Julio falou, apressado:
- Escuta, tem certeza que não se importa, Paulo?
- Tenho sim – respondeu, já estirado sob o sol, com um chapéu sobre a cara.
Luis e Julio seguiram Tiago.
E Paulo sabia que demorariam.


3

Passaram-se alguns minutos, o corpo de Paulo fervia sob o sol. Levantou-se momentaneamente. Procurou, entre as camisetas, a carteira. Sentia sede, e ia bem um sorvete agora.
Procurou, e deparou com um pequeno pacote, um embrulho de papel. O que era aquilo? Não agüentou de curiosidade, alguém devia ter posto ali, não devia ser de Julio.
Ele abriu, devagar, como o arqueólogo que retira o pó e a sujeira de cima de um objeto antigo. O que viu, em grande número lá dentro, foram várias folhas, plantinhas, algo assim, que eram verdes e que ele não sabia o nome. Estavam enroladas, formavam um bolo dentro do pacote. Uma mulher passou ao lado, indo pro mar, ficou olhando.
Ele ia colocar de volta no lugar, quando veio de trás um homem, de uns trinta e tantos anos, que começou a falar com ele. Tinha um outro, mais jovem, junto com ele, de óculos escuros. O mais velho tinha jeito de índio, ou mexicano, Paulo não soube definir.
Queria comprar as folhinhas, tinha visto e tinha gostado. Paulo, surpreso, disse:
- É sério, quer mesmo?
Ele assentiu, foi pegando a carteira no bolso da bermuda. Paulo começou a imaginar que aquele homem devia ser uma espécie de colecionador de plantas diferentes, algo assim...
Deu-lhe algumas notas de dinheiro, Paulo não quis nem contar. Estava feliz de vender algo a alguém, gostava desta situação de venda, de quando ambas as pessoas envolvidas ficam satisfeitas. Paulo não sabia... mas gostava de ver as pessoas alegres.
- Posso ficar com uma delas? – perguntou ele ao homem.
- Claro, guri.
Paulo guardou uma daquelas folhinhas na bermuda, e o homem se foi.


4

Os três do mar faziam festa na água fresca e brilhosa, em meio a tantas pessoas que nadavam. A água não era muito transparente, na verdade era meio suja, devido aos banhistas ignorantes. Mas era diversão.
- Eu vou querer comprar uma prancha, Julio – falava Tiago.
- A gente pode passar na loja que tem na avenida.
- Olha só, olha só! – Luis gritou. Pulou na água de ponta cabeça, ficou com os pés pra cima, um tempo, depois caiu para o lado, chutando água em cima dos outros dois.
Mergulhavam nas ondas.
Julio olhava as mãos, os membros, os pés, embaixo d’água, pareciam menores, era legal esse efeito que a água causava. Tentou bater palmas bem rápido com as mãos submersas. Era algo que todos nós sabemos que não dá certo, mas que sempre tentamos, por teimosia, ou por vontade de olhar a vida, olhar o movimento.
Viram o surfista novamente, aquele de antes, que agora estava a vários metros deles, longe, olhando o fundo. Ele ficava assim, parado, com a prancha ao lado, com a água na cintura. Parecia olhar não se sabia o que, talvez as ondas do fundo, mas não fazia nada. Não surfava.
Eles olharam durante certo tempo para ele, sem dizer nada. Mas curiosos. E foram interrompidos por Julio, que estava feliz.
Segurava um óculos escuro, de modelo bom, em uma das mãos. Tinha achado assim, à toa, na água, durante um mergulho. Uma onda serena lhe trouxera um presente. Um óculos muito legal, que lhe serviu e ficou muito bem. Houve certa inveja dos outros dois. Afinal, estando os três no mesmo lugar, por que tinha que ser Julio que tinha que achar o óculos?...
- Vou usar toda hora, gostei mesmo. Que sorte – dizia, excitado – Vocês não viram, ele me veio direto na mão, quando eu mergulhei.
- Eu acho é que o cara que perdeu é muito burro pra ficar perdendo óculos caro assim, na água, à toa... – replicou Tiago.
- Vamos voltar – disse Luis.
Os três, alagados até os cabelos, rumavam para a areia, exultantes, porém calados, e Julio de óculos escuros, sempre ajeitando-os no rosto. Tinha ganho do mar, em uma onda, o mais legal presente de verão...


5

Quando escureceu o calor continuava até na rua, e a agitação era imensa, era duvidoso supor-se que haveria, em algum local naquela praia, alguém fechado dentro de casa naquela noite. A cidade estava na rua. Na vida.
Foram à feira de variedades, onde compraram doces numa barraca, que eram muito bons. Devoraram as guloseimas num banco de praça, depois foram olhar as outras barracas.
Uma delas vendia camisetas, bonés, óculos escuros, carteiras, etc. Tiago parou e ficou examinando demoradamente uma corrente de se colocar no pescoço, com uma espécie de dente de animal pendurado na ponta. Vestiu a corrente, olhou num espelho da barraca. Os outros olhavam camisetas. Tiago queria a corrente.
O dono da barraca, um baiano alegre, conversava com o colega da barraca vizinha, falavam de futebol, e o baiano adorava uma discussão esperta.
Tiago olhou para o baiano, que nem notara sua presença ali. Julio se juntou a ele, olhou as outras correntes e falou pro Tiago:
- Vamos?
- Peraí.
Tiago olhava o dente do cordão e passava o dedo sobre ele. Fez menção de tirar o cordão. Luis e Paulo estavam atrás, em outra barraca.
Tiago olhou pro Julio. Este estranhou, parado. Tiago viu o baiano mais uma vez, e até desejou que o baiano estivesse olhando. Queria que estivesse olhando, pois aí o jeito era tirar o cordão, botar de volta no mostrador, ir embora tranqüilo. Mas o baiano explicava uma jogada de seu time pro colega. A tentação puxou Tiago.
Tiago pôs a corrente pra dentro da camiseta, num só gesto, deu as costas e puxou Julio, cuja cabeça demorou pra raciocinar o que se passava. Era rápido demais. Ninguém havia lhe avisado de que a vida transcorria. A vida acontecia.
E Tiago ainda cutucou os outros dois, Luis e Paulo, que estavam conversando. Julio olhou para a barraca da corrente, e viu o baiano voltar a cabeça para o lado dos garotos. Julio seguiu Tiago e precisava falar pra ele. Precisava avisar, o baiano estava olhando! Luis e Paulo foram andando também, porém sem pressa. Uma moça com um perfume gostoso deu uma trombada com Julio, a moça vestia preto, Julio afundou o nariz no vestido preto. Nem ouviu nitidamente as desculpas da moça, mas procurou com os olhos a cabeça de Tiago.
- Tiago!
Luis e Paulo andavam.
Tiago mandou correr.
Tiago mandou correr, Julio.
Corre, Julio.
Um susto:
- Volta aqui, moleque!
Medo, medo.
Julio correu também, e empurrava de leve as pessoas até encontrar novamente Tiago e os outros, já perto da saída da feira. Chegaram à rua. Música, falatório, risadas.
- Moleque!
A voz do baiano era um tiro. Correr.
Os quatro se uniram no asfalto, a passos rápidos, e sumiram na rua da praia.
- Por que você fez isso? – perguntou Julio ao Tiago, que estava meio sem fôlego. Julio alcançou Tiago e cobrou a resposta.
Luis e Paulo vinham logo atrás, sem saber direito o que tinha acontecido.
- Você não trouxe dinheiro? – perguntou Julio, insistindo.
- Trouxe – respondeu Tiago.
- Então por que... – começou Julio, mas não terminou. Pergunta boba, inútil. Nem ele disse mais nada, nem Tiago se viu na obrigação de responder. O silêncio era a prova de que nada havia para se perguntar. Era assim que era, e ele sabia disso. Julio não disse nada mas olhou. Olhou parado o dente de animal pendurado no pescoço de Tiago, na corrente. O dente. O presente de verão de Tiago.


6

Uma garota entregou um convite para os garotos, ela tinha um bolo de convites e os entregava aos passantes. Leram. Uma festa tropical, música boa, jovens. Amanhã, num endereço.


7

Em casa, foram tomar banho, tirar a areia do corpo. Todos estavam pela sala, na varanda ou na cozinha, apenas esperando o próximo tomar banho, para poderem ir. Era uma espera um tanto chata, porque a areia estava no corpo, nos cabelos, e incomodava. Mas ao mesmo tempo era bom. Tomar banho. Na praia.
As garotas conversavam animadas sobre a festa que haveria. Elas iriam. O primo de Julio falava para os garotos saírem com ele e a turma do prédio à noite, iriam andar por aí, fazer algo. Julio disse que tudo bem, os outros também. O sol se pôs, a noite entrou.
Os garotos trocaram de roupa, colocaram seus tênis, se pentearam um pouco melhor, passaram desodorante. Sairiam.
Uma hora Luis saiu do banheiro, do banho, e foi indo até o quarto, para guardar as roupas. Os outros estavam na sala, papeando. Entrou no quarto e pegou a Taís se trocando, sem roupa. Se assustou, gelou na hora. Quase desmaiou, pois a menina gritou de susto. Ela estava perto de uma das camas, e rapidamente pegou as roupas e tentou tapar o corpo, e Luis disse desculpa, realmente sentido, com uma cara de não sei o que, e saiu rapidamente.
Ficou um bom tempo pensando naquilo, no que tinha acontecido. Não se recuperou muito rápido, tinha sido um susto. Embaraçoso. Ficou calado, com os outros amigos, na sala. E agora? Como olharia para Taís novamente? Com que cara? Isso era péssimo. Desconfortável. O tio de Julio ensinava a eles uma mágica com palitos de fósforo, na mesa da cozinha. Ele nem prestou atenção. Taís saiu do quarto, meio sem jeito, olhou de relance para Luis, e não se disseram mais nada.
Todos os garotos iam sair, e já estavam descendo as escadas do prédio. Luis, Paulo Henrique, com sua bombinha, Julio, Tiago, Édson e seus dois amigos, Felipe e Renato. Animados. Luis parou Julio na escada e falou, sem graça:
- É... Julio...
- Fala, Luis. Que que é.
- É que eu... agora há pouco... no apartamento...
- Hã.
- Sabe a Taís?
- Hã.
Luis ficou mudo.
- Fala, cara... que tem ela? – insistiu Julio, divertindo-se com a cara de espanto do amigo.
- Eu vi ela pelada.
- Você viu ela pelada? – Julio também se espantou, agora.
- Vi.
- Quando?
- Agora, quando eu saí do banho e entrei no seu quarto, lembra? Não ouviu ela gritando?
- Não... acho que não – respondeu Julio. Voltaram a descer as escadas.
- Então... ela se assustou, ela tava sem roupa, e eu fiquei uns segundos assim, parado, sem saber o que fazer.
- Hahaha. E tá preocupado com isso, Luis? – disse Julio.
- Não, é que... é...
- Como assim, ficou uns segundos sem saber o que fazer? – Julio achou graça – O que podia ter feito, além de pedir desculpas e sair do quarto?
- Sei lá! – disse Luis – Na hora passou várias coisas pela minha cabeça! Eu podia passar correndo pelo quarto, de olhos tapados, e guardar minhas roupas aquela hora, mesmo... ou virar de costas, esperar ela acabar...
- Não, não, cê tá preocupado à toa, cara... – disse Julio – Mas... ela estava toda pelada, ou tinha alguma coisa por cima?
- Bom... aí é que tá, ela ficou sem graça, porque estava sem nada na parte cima, e estava tirando a calcinha bem nessa hora...
- Estava sem calcinha?
- É – respondeu Luis, mais intrigado ainda. Depois de alguns segundos, continuou – Você já viu ela pelada?
- Eu? Não, claro que não. Ela é amiga da minha prima, quase nunca vejo ela.
- E a sua prima, você já viu pelada?
- Pelada pelada? Sem nada? – perguntou Julio.
- É.
- Já, mais de uma vez – disse Julio.
- E como foi?
- Ela estava tomando banho, e foi aqui na praia. O chuveiro aqui não tem porta, e aí...
- Como você ficou, depois?
- Estranho – respondeu Julio.
Ficaram um tempo sem falar nada, chegaram à portaria do prédio.
- Agora a Taís vai ficar sem jeito e eu também... – disse Luis.
- Ela é bonita, né? – disse Julio, rindo.
Luis fez que sim com a cabeça.


8

Os amigos de Édson estavam todos na rua, prontos para sair por aí em grupo, e se divertirem. Eram uns quatro, e eram um pouco mais velhos que Édson. Um deles estava de carro, e falou para todos irem junto, pois havia outro carro lá. Édson chamou Julio e seus amigos para irem junto.
- Não sei... acho que vamos sair sozinhos mesmo, Édson...
- Tem certeza?
- Tenho sim, obrigado.
Os dois carros arrancaram na rua e saíram cantando pneus, na maior velocidade, pela rua. Os amigos de Édson gritavam, fazendo farra. Aqueles sim, eram verdadeiros caras legais... eles sabiam se divertir... foi isso o que passou pela cabeça de Julio e seus amigos, que preferiram não dizer nada, e seguiram andando pela rua, sem destinos definidos.
- Aonde vamos? – perguntou Paulo Henrique.
- Vamos até a praia, no quiosque, sei lá – disse Julio. E foram, pois nenhum deles tinha sugestão melhor.
Andaram toda a faixa de areia, e chegaram à beira do mar, onde, tirando os chinelos, podiam sentir as pequenas ondinhas baterem gostosamente nos pés, fazendo cócegas de natureza, acariciando-os. Era uma delícia, a praia tinha o ar fresco da noite e da brisa, e o mar, era um manto negro de penumbra e mistério, mistério insolúvel para os garotos. Mal se via as ondas, tamanha a escuridão.
Julio notava o silêncio, e pôde meditar, de uma forma totalmente nova em sua vida. O agito e o barulho haviam ficado lá atrás, na avenida, nas ruas, que ele via de longe, lá da beira. O parquinho, onde se via o tobogã e a montanha-russa, e um burburinho, o som das gritarias dos jovens no parque, transformado em barulhinho. Distância. As luzes também estavam longe, em uma fileira de infinito, que ia até onde a vista pode alcançar, formando uma fileira paralela à praia, na calçada, pela cidade toda. Luzes distantes, vida distante. No entanto, à sua frente, estava o mar e as ondas, assim como a beleza de uma noite estrelada, e no infinito o horizonte que mesclava mar com céu. Mar com noite. Areia fria nos pés, excitação confortável.
Ouviram um som. Tiago gritou. Todos eles se abaixaram, e por eles passou um bando de morcegos da noite, em alta velocidade.
- Meu, vocês viram isso?! – Tiago estava empolgado. Logo perceberam que os bandos de morcegos sempre passavam paralelos e rentes à beira, àquela hora da noite. Era assustador e ao mesmo tempo curioso observar e desviar daqueles bichos.
- E se eles trombarem com a gente? – disse Paulo Henrique.
- Ah, tá com medo dos morcegos? – disse Tiago, zombando.
- Não é isso, Tiago... é que eles são meio perigosos, mesmo...
- Que nada, a gente pode continuar andando aqui, onde eles passam. Eles desviam.
Em silêncio, todos queriam mesmo continuar na rota dos morcegos. Apesar de saberem que podiam ser atingidos pelas asas, ou até atacados. Era o instinto que nos leva de gosto ao perigo. Por que existem os esportes radicais? Por que? E por que mesmo quem tem piscina quer ir ao mar? Ou melhor: por que Tiago roubou a corrente? A resposta era tão evidente... a atração pelo novo e pelo risco eram tão evidentes...
Os morcegos voltaram a passar. Não foram atingidos.
Eles seguiram pela beira, bem devagar, andando pela praia. Às vezes faziam um ou outro comentário, mas o legal era ficar viajando com a mente enquanto se andava pela praia. Uma sensação de sem-destino na praia, passos lentos de despreocupado. A noite soprava-lhes um blues marítimo, litorâneo, repleto de prazeres e sonhos. A noite era vivida.


9

Em certo momento eles passaram pelo velho do cão mais uma vez, quando já estavam no calçadão. Este estava lotado de pessoas passeando, comendo, bebendo e papeando. O velho falou de novo com Luis, mostrou o outro cachorro. E os garotos seguiram, mas pensando: quem era o velho? Todos eram como o velho? Claro que não. Mas por que não? E o velho, o próprio velho... ele pecava? Ele chorava? Ele traía? Roubava? Seria capaz de matar? Impossível, ele era o velho do cão! Era o velho bobo do cão. Ou, para Luis, o velho legal do cão. E não um pecador. Jamais um matador.
Inocência e pouca vivência: os privilégios da infância.
Um policial corria a toda velocidade, armado. Susto.
As pessoas começaram a fazer escândalo, confusão.
Tiros.
Sirenes.
Era um traficante, pego pela polícia vendendo drogas a um turista. O traficante era um latino, e estava junto com um cúmplice mais jovem, de óculos escuros. Foram levados e entrouxados dentro da viatura. Os dois policiais: eram os dois de hoje de manhã, paradões em frente ao posto policial.
Julio e os amigos viam os tiras em atividade. Os tiras existiam, agiam, viviam. Prenderam o homem e o colega do homem. Também prenderam o que comprou a droga. Maconha. Embrulhada num pacote. Um embrulho. Que a polícia levou junto.
Na distância, longe da viatura, que ia embora, no meio da multidão curiosa, lá estava Paulo Henrique. Ele viu o bandido latino, mas o bandido latino era o colecionador de plantas raras. Um colecionador que era bandido, mas o colecionador era gente boa, tinha comprado as plantas de Paulo naquela tarde... mas... o policial tirou a planta dele, e ele foi preso. Paulo Henrique viu isso tudo, e tinha certeza: as plantas estavam com os policiais. As ervas. A maconha. Paulo ainda tinha o dinheiro que ganhara ao vender as plantas ao latino. Dinheiro maldito, não se sabia por que...
E Julio ao lado, olhando da mesma distância aquilo tudo, só que pensando em outro aspecto, enxergando com outros olhos: ele viu bem o pacote. Era, era o pacote do cara do quiosque. Era sim! O pacote que veio dos surfistas, foi pro dono do quiosque, foi pro lixo, de onde ele pegou, e deixou na camiseta quando foi nadar... e agora? Perdera. E a polícia levou. Já era. O mistério ficaria por isso mesmo. Não sabia o que tinha dentro do pacote.


10

Mais tarde passaram dois carros voando pela avenida principal, com música no último volume, e gritaria. Garotos com garrafas. Julio viu o primo Édson dentro do carro, eram os caras! Os caras que tinham a cerveja. E meninas. Mas não tinham os morcegos, o velho do cão, nem o mistério do pacote, nem uma corrente com dente pendurado e nem as plantas raras, e não tinham o óculos-escuro-presente-de-verão. Não tinham uma vida que era dos quatro. Julio e os amigos.


11

De noite arrumaram colchões, e tudo mais, lençóis, pela casa toda. Chegou no começo da noite o parente do outro Estado, em férias, que foi recebido com entusiasmo. Era de Porto Alegre. Era da família. Contou histórias, gostaram dele. Contou, bem mais tarde, uma história de medo. As meninas disseram que não dormiriam. Mas queriam ouvir a história. Ele perguntou se tinham certeza, elas assentiram. É a busca do perigo.
Luis olhava para Taís. Será que ela ainda estava pensando no que aconteceu? Ele vira Taís pelada.
A história de medo era uma que diziam que era verdade e que contavam onde o Marco, o parente de Porto Alegre, morava. Era sobre coisa que dava medo, como espíritos, crianças que foram abandonadas pela mãe, e que voltavam assombrando elas, em forma de espíritos, e as mães ouviam seus choros à noite, e ficavam com medo. Isso tinha acontecido, e poderia voltar a acontecer. Contou essa e outras histórias, até que a tia achou melhor irem dormir, e pararem de falar nestas coisas. Era melhor. Mas já estava feito. O Marco já fizera. Abrira a mente dos mais jovens, que eram cheios de imaginação.
Deitaram-se nos colchões.
A sala tinha Julio e os amigos, e ninguém mais. Ligaram a TV bem baixo, e falavam animados sobre outros casos que conheciam, parecidos com o que Marco contara. Marco era legal. Mas deixara todos assustados. Ninguém admitia.
Desligaram a TV e se conscientizaram de que precisavam dormir. Iriam à praia de manhã. Deitaram e apagaram as luzes, só um abajur aceso num canto.
Mas o sono não vinha. O medo, vinha.
- Ai meu Deus, eu tô com medo – desembuchou logo o Paulo Henrique. Não agüentou, estava pensando nas histórias.
- Eu também – confessou Luis.
- Vocês são chorões, hein? – disse Tiago, tentando se manter calmo, mas a voz saiu meio tremida. Todos perceberam, mas não disseram nada. O medo era público e democrático.
- Por que que a gente foi ficar falando essas coisas, hein? – Julio estava nervoso.
- Eu sempre tenho pesadelo quando isso acontece – disse Luis – É horrível. Eu sonho com cada coisa... já sonhei com...
- Pára, Luis! – disse Paulo Henrique – Não interessa! Ao invés de parar, você continua falando nesse troço!
- Desculpa.
- Estão ouvindo? – disse Julio, em sussurros – um barulho, lá na cozinha! Ai meu Deus...
Todos fizeram silêncio para ouvirem, e havia mesmo um som. Algo batendo.
Luis estremeceu, se cobriu com os lençóis.
- O que é isso? Vai alguém lá, ver – disse Paulo.
- Ah, fica quieto, não é nada – disse Tiago.
- Então vai lá ver, seu besta! – disse Julio, sem paciência com o fingimento do amigo.
- Vou mesmo – Tiago se levantou no colchão, parecendo decidido.
Todos olharam ele. Ele ajeitou a camiseta, colocou os chinelos lentamente, e ainda olhou para os amigos, receoso. O barulho aumentou. Ele saltou pra cima do colchão, desesperado, e bateu o cotovelo na barriga de Luis, que estava todo coberto.
- Ai! Retardado!
- Desculpa, pô! – disse Tiago.
Silêncio.
Um estrondo.
- Ai, que que é isso?! – Luis gritou. Tremeram.
Passos no corredor. O tio de Julio apareceu na porta da sala, assustado com o grito. Acabou assustando ainda mais os garotos.
- Ai, quem é esse?!
- Calma, sou eu! Vim ver o que foi aquele grito!
- Foi o Luis, é que tem alguma coisa na cozinha... – começou Julio.
O tio foi até a cozinha e ajeitou as caixas que tinham caído. Eram caixas.
- Estavam mal colocadas no armário, e caíram – explicou aos garotos.
- Ah, eu falei pra eles, mas eles estavam com medo... – disse Tiago.
Voltaram a deitar, meio com raiva de Tiago, mas mais tranqüilos, pois a cena toda tinha sido engraçada. Dormiram.


12

No dia seguinte acordaram quase todos quando eram umas nove e meia. O sol já lançava um brilho ameno pra dentro do apartamento, o barulho nas ruas já começava, ouvia-se o som de homens trabalhando na construção dum prédio, a buzina de um sorveteiro indo pra praia, as famílias caminhando pela calçada, a combe vendendo sorvete e outros doces: “Olha o carro do moço passando! Sorvete de morango, chocolate, abacaxi, limão, coco e uma novidade: o sabor ‘céu de verão’! Olha o moço passando... olha o carro do moço!!!”...
Julio e sua prima se apoiavam na varanda do apartamento, observando todos estes pequenos detalhes de uma manhã na praia. Era uma coisa tranqüila e animada ao mesmo tempo.
- De que cor será que é? – perguntou, de repente, a prima.
- Hã? O que? – disse Julio, distraído.
- O sorvete céu de verão! – repetiu a prima.
- Ah! Bom, deve ser azul-claro, por causa do céu!
- É mesmo.
Os outros acordaram, e logo já se vestiam para ir à praia. Hoje iriam todos juntos, a família toda levando os apetrechos de praia pela rua.
A praia estava entupida de gente, a maioria turistas. Todos queriam aproveitar o verão, era sempre assim. E a sujeira era algo que tinha cada vez mais, na areia e na água. O ser humano era tão estranho... incompreensível.
Assim foram-se passando os dias naquela típica praia do litoral brasileiro. Era assim que era, e era assim que devia ser... férias.
Luis não chegou a ver Taís sem roupa novamente, porém, dois dias depois de o ter feito, daquela vez, ele se encontrava no banheiro, pronto para ir para o chuveiro, peladão. Pois a ironia desta vida é que justamente a Taís amiga da prima do Julio foi entrar no banheiro, por engano, e justamente neste momento.
Foi ainda mais cômico que da outra vez. Ela assustou o pobre garoto, que estava de frente para a porta, e se encontrava sem roupa. A cara de espanto dele acabou por assustar a própria menina, que, por alguns segundos, permaneceu imóvel, olhando Luis. Ele gritou, muito envergonhado:
- Eu tô aqui!
- Desculpa!
E ficou por isso. Nem conseguiram se falar depois disso. Luis amaldiçoava-se por somente conseguir, com uma garota, uma relação de pequenos desencontros imbecis, sustos rotineiros que não levavam a nada, no fim. E ele queria que fosse diferente. Ele achava Taís tão bonita... e, agora, deve ter estragado tudo.
Tiago comprou uma prancha de body board, numa loja na avenida principal, e mal pôde conter o entusiasmo ao realizar belas manobras em cima das ondas. Ele estava aprendendo a surfar, e, quando fosse mais velho, pretendia comprar uma prancha de surf, das grandes. Ele deixou Julio e Luis usarem a prancha, mas o fato é que estes não tinham muito jeito para a coisa. Tiago estava satisfeito, mas tinha gasto quase todo o dinheiro que tinha trazido, comprando a prancha.
Julio vivia dizendo que sua prima tinha gostado de Tiago, tinha achado ele bonito. Ele se manteve frio, tentando não parecer muito interessado. Mas a verdade é que ele também tinha achado ela muito legal. Uma noite, no prédio, quando todos estavam lá embaixo conversando e ouvindo música, o pessoal começou a querer forçar os dois a ficarem juntos. Eles ficaram muito envergonhados, sem jeito, pois nem se conheciam direito.
Julio estava tentando aproveitar ao máximo a viagem. No mar era pura diversão. No apartamento, se sentia satisfeito pela jovialidade dos tios e dos primos. Achou que seus amigos deviam estar gostando muito de estar ali.
À noite, a melhor coisa, para ele, era sair com os amigos e andar por aí, sem nada de realmente importante para se fazer. Ir à praia, à noite, olhar os morcegos, quem sabe trombar com um. Sentir a maré subindo nos pés, gelada. A areia formava sulcos, à noite, diversos buracos infinitos, negros, cuja profundidade não se podia saber, e estes furos, juntos, pareciam formar vários rostos com olhos e bocas fantasmagóricas, tristes, talvez gritando desesperadas. Era uma experiência.
Paulo Henrique tinha conseguido um bom bronzeado, pois a maior parte do tempo passou deitado sob o sol, enquanto os amigos mergulhavam. É claro que ele chegou a entrar na água uma ou outra vez, na beira, mas não aproveitava o verão tanto quanto seus amigos. Se sentia meio revoltado por isso.
Eles encontravam toda manhã o velho bêbado sentado na mureta da praia, perto do mesmo quiosque, sempre na mesma posição, quase caindo, olhando as meninas que passavam. Era algo muito engraçado, porque eles passavam por lá umas três ou mais vezes por dia, e o coitado estava sempre lá, imóvel. Isso era algo que eles observavam, mas não sabiam explicar. Eram a juventude saindo, andando, atuando, se divertindo, produzindo, vivendo... e passando sempre em frente a um ser que não agia, estava parado, não via o mundo, estava sempre daquele jeito, sem fazer nada. Sentiam uma espécie de pena dele, e ao mesmo tempo se sentiam satisfeitos por estarem fazendo algo, e o velho não. Como se o velho fosse de uma geração que já não prestava pra nada... porque a vida era assim, e era assim que deveria ser, de qualquer forma...
Já o velho do cão, que eles também viam sempre, passava com o cachorro na coleira todos os dias, alegre, taciturno, todo experiente. Parecia que ainda tinha algo a ensinar para os garotos, para a nova geração. Mas o que?
E os surfistas que andavam em bando e haviam dado uma porção de plantinhas para o dono do quiosque, estes estavam sempre por aí, vendendo plantinhas, tirando sarro dos outros, às vezes com suas garotas, ou surfando. Eles passavam ao lado dos três garotos, no mar, uma ou outra vez, e estes paravam, quietos. Olhavam aquele grupo andando em direção ao fundo, em busca de perigo. Despreocupados, confiantes, seguros, soberanos... que seres estranhos, capazes!
Agora, o que mais atraía a atenção dos quatro garotos era o surfista legal. O surfista legal era aquele que passava lá longe, na areia, com a prancha longa em baixo do braço, caminhando decidido e calado, sozinho. Sozinho. Isto era importante.
Ele era alto, esguio, magro, devia ter o que? Vinte e poucos anos? Usava cabelos longos dourados, de verão, tinha uma atitude meio séria. Um cavanhaque loiro no queixo. Não, era uma barba, definitivamente, uma barba. Usava sua bermuda preta, e nunca olhava para trás. Nunca. Ele tinha a pele branca, muito branca, e isso era estranho, os garotos viam aquele surfista com jeito de experiente e cheio de sabedoria, mas ele não tomava sol! Isso intrigava. E outra: o sol não o incomodava nem um pouco. Ele não franzia os olhos mesmo quando o sol estava insuportável, ele continuava andando impassível pela areia, aparecendo e desaparecendo no meio dos tantos guarda-sóis. Quem era ele? Qual era o segredo dele?
Costumavam vê-lo de longe, parado, olhando as ondas lá no fundo. Algumas vezes viram ele lá dentro da água, indo com a prancha até a região mais funda. Ninguém mais prestava atenção nele. Só os garotos pareciam notar a presença mágica dele. Ele olhava o horizonte, sem esperanças. Com a prancha do lado. E não surfava. Mas por que? Só olhava. E depois sumia, os garotos não viam para onde ele ia.
Viam o surfista legal todos os dias, de longe. Calados, não diziam nada, só imaginavam. Cada um formava uma história em sua cabeça, sobre ele. Mas por que surfista legal? Ah, porque... ele era legal, ele não se parecia com nenhum outro ser humano já visto. Ele podia ser um pai, podia ser um irmão legal, um professor companheiro, podia ser um vizinho que, todas as férias, vem à sua casa para brincar e para nadar no lago que tem perto de casa. Ele podia ser um amigo muito legal, que luta ao seu lado.


13

Chegou o Ano Novo. Foi o auge da animação. Haviam mais turistas do que nunca. Era o último dia do ano. Fim e recomeço. Muita gente queria vir à praia para assistir à bonita virada de ano, com muitos fogos e rojões, champanhe, alegria.
Um dia antes houve aquela festa tropical que os garotos tinham o convite. Foram. Foi muito boa, todo mundo estava lá... as garotas, os primos de Julio, surfistas, gente animada. Música, bebida...
Neste dia, o último do ano, os garotos já estavam bem habituados ao ambiente da praia. Algumas coisas tinham acontecido desde que chegaram, algumas boas e outras ruins. Mas estavam levando a vida.
De manhã, foram à praia, e nadaram um pouco. Paulo Henrique ficou na areia. Em certo momento, quando todos os três garotos que nadavam estavam no mar, Paulo sentiu uma desesperada vontade de entrar na água. Pô, aquilo era um absurdo! Justo ele, que sempre gostara do mar, agora não podia nem entrar nele e sentir suas ondas!
Não se conformou desta vez: estava decidido a tentar, nem que fosse uma só vez, entrar na água. Entraria.
Se levantou, e ficou de pé, olhando o mar, parado. Ele usava um óculos escuro meio engraçado, um tanto grande. Pôs as mãos na cintura, pegou a bombinha de asma e olhou pra ela. Encarou. Levou à boca, deu uma intensa respirada. A mais longa que já dera. Pra garantir.
Mas ficou com um medão por dentro, algo que o impedia de continuar. E se desse errado? E se acontecesse algo?
Ele viu os colegas no mar, lá longe. Invejou.
Tomou coragem, deu uma respirada bem forte, e largou a bombinha em cima de sua toalha, na areia. Aquele momento em que a bombinha caía na toalha era importante. Era a conquista de liberdade de Paulo Henrique. Agora talvez ele pudesse realmente viver. Viu o mar. Desafio.
E ele começou a andar, meio em câmera lenta, em direção ao mar, ainda com aqueles óculos engraçados. Algumas pessoas olhavam para ele, prestando atenção. Porque era estranho. Mas ele permanecia decidido, andando sempre em linha reta. O sol lançou-lhe um raio que queimou seus olhos. Um desafio da natureza, com certeza.
Ele chegou na beira. A água era sentida nos dedos do pé. Prosseguiu. Era preciso.
Foi andando e sentindo a água fresca, sem parar. A maré subia, ele já alcançava os joelhos na água.
Conforme ia se aproximando do fundo, foi sentindo algo subir-lhe por dentro do corpo, uma excitação de medo e coragem. Uma ânsia. E foi ao fundo, vendo seus colegas logo adiante.
Os colegas também avistaram Paulo Henrique vindo, meio desorientado. Todos os três pararam. Nem sequer disseram nada entre eles. Era estranha, aquela cena.
Paulo olhou a água à sua frente. Respirou bem fundo, e pensava em dar um mergulho, para acabar com aquele pânico todo.
Fez que ia com o corpo. Mas não foi. Lambeu os lábios. Os amigos não tinham voz para falar. Não falaram. Mas Julio notou um pequeno detalhe na figura de Paulo, lá naquela distância, se preparando pra mergulhar. Julio viu que Paulo Henrique usava uns óculos escuros. Óculos que eram bons, sim, mas eram meio desproporcionais para ele. Algo não estava no lugar.
Julio se sentiu tonto.
Uma tontura de vertigem.
E viu que Paulo desta vez ia pular, ia mergulhar na onda. Mas... algo estava errado! Peraí, o óculos! Julio teve um sobressalto violento, sendo levado pra trás com o choque. Teve uma visão. Uma visão, nossa, meu Deus, esse negócio de visão existia, ele não acreditava! Enxergou, à sua frente, quase desmaiando, ele próprio no mar, alguns dias antes, achando aqueles óculos escuros maravilhosos, aquele seu presente de verão! Na visão, Julio achava os óculos no meio na onda, todo contente. Mas, desta vez... algo diferente... Não pode ser! O mesmo óculos que o que Paulo Henrique usava naquele exato momento, enquanto se preparava para mergulhar! Como pode ser? O que esta visão queria dizer?! Julio estava prestes a desmaiar, não se sentia bem. E algo chegou à sua cabeça, como se fosse uma mensagem vinda do além: “Salve o companheiro, ele vai perder os óculos! Rápido!” E Julio teve um novo sobressalto, como se entendesse o que se passava! Os óculos, eles eram os mesmos! Não existiam dois óculos! Paulo Henrique ia mergulhar! Ia mergulhar, perder os óculos nas ondas e nunca mais voltar! Os óculos eram o aviso, era isso...
- Não! Paulo!
Todos ficaram parados. Imóveis, pois nada podiam fazer. O pobre Paulo Henrique já tinha mergulhado, sumira no meio de uma enorme onda que passava naquele instante. Todos naquele momento sentiram uma sensação de impotência, de não poder fazer nada para parar a vida, para parar a onda maldita na qual o amigo tinha mergulhado! Ah, se algum deles controlasse a natureza, as coisas seriam muito diferentes...
Paulo Henrique não voltava, e os poucos segundos que isso demorou pareciam levar séculos para passar. Nada à sua volta se movia, era tudo um nada absoluto, uma incerteza geral de toda a matéria que existia.
Não se pôde entender mais nada, a partir daí. Uma mistura desconexa de imagens, sensações, sons, vozes e pessoas... muitas pessoas. E uma confusão mental na cabeça de Julio. Ele não podia entender nem aonde estava.
Quanto tempo haveria passado? O que tinha acontecido? Quanto tempo tinha ficado desacordado? E por que ficara desacordado? Por que?
Pessoas estranhas olhavam para ele. E a vista embaçada. Neste confuso sonho de realidade, ele e os três amigos estavam no meio do oceano, sem nenhum contato com a terra. Não viam nada à sua volta, a não ser o mar infinito, e o céu imenso logo acima. As ondas eram violentas. Os quatro estavam juntos, lutando para ficarem perto uns dos outros, e não serem levados pelas ondas. Certa hora, eles olham todos para o horizonte, lá no infinito, aquele horizonte misterioso, muito longe. E lá eles vêem surgir algo das águas do oceano. Algo gigantesco. Mas está muito longe. É uma cabeça. Enorme, maior que uma cidade inteira. Uma cabeça se ergue da água, e lá do horizonte, a cabeça olha para eles. Com olhos que dão medo. A figura chega a tapar o sol da frente deles. E continua se erguendo, mostrando o resto de seu corpo. Eles ficam estarrecidos com o que vêem. É um ser gigante, nunca visto, animalesco, uma espécie de serpente marinha, com braços. O monstro tem muitos quilômetros de altura, e somente com um passo já se aproxima dos quatro, que não podem fazer nada. O monstro solta um urro mortal e imenso, que faz tremer as superfícies do planeta todo. E se prepara para esmagar os quatro garotos, com suas enormes garras que ele mostra. É um pesadelo, algo horrível de se ver. O pior pesadelo, aquele que você não deseja nem para seu pior inimigo! Só quando estão prestes a serem pegos, os garotos conseguem ler o que está escrito nas escamas daquele bicho, em letras medievais. É um nome simples e inconfundível: “Vida”. Aquela é a vida, que chega com todos os seus dentes e garras, para atingir suas esperanças. É o fim! O fim!
Neste momento, finalmente Julio acorda de um sobressalto, todo suado, e gritando, tamanha a realidade daquele pesadelo.


14

Todo suado, Julio estava no meio de seus amigos, e de algumas outras pessoas desconhecidas. Elas perguntavam-lhe se estava bem.
- Eu... estou... mas o que aconteceu?
O local era um daqueles postos policiais na calçada da praia, o mesmo que eles sempre viam quando passavam, todo dia. Os salva-vidas e alguns policiais olhavam para o grupo de garotos. Um médico falava com Paulo Henrique, no outro canto.
- Você desmaiou quando nadava com os seus amigos, garoto – respondeu um homem, meio preocupado.
Nossa, aquilo estava mesmo acontecendo com ele? Parecia outro sonho... ele tinha desmaiado! Mas era real...
- E aquele seu amigo ali com o médico se afogou no mesmo instante. Seus amigos vieram aqui desesperados, com outros banhistas, e o médico está agora vendo se está tudo bem com seu amigo. O que queremos saber, amigo, é se você está se sentindo bem... seu coração está acelerado, e...
- Não, eu estou bem, sim – respondeu Julio, pensativo. Algo mais o preocupava – Acho que foi só o susto.
Aos poucos as pessoas começaram a se afastar um pouco. Julio esfregou o rosto, olhou lá fora. O sol ainda brilhava, as pessoas ainda lotavam a praia.
- Que horas são? – perguntou ele.
- São... quatro e vinte – respondeu Tiago, que se sentava ao seu lado – Meu, cê não sabe o susto que a gente levou... você caiu na água sem mais nem menos, e o outro ainda se afoga do outro lado. Aí eu tive que te levantar, e o Luis foi pegar o Paulo, junto com um salva-vidas que chegou depois.
- Eu tomei o maior susto! – disse Luis – O cara entra na água, de repente, a gente não sabia o que fazer! Ele sabia que não podia entrar!
- É – disse Julio – Mas acho que bronca, ele já ouviu. O médico deve ter dado o maior sermão nele.
Eles olharam para Paulo Henrique, sentado num banco do outro lado. Não tinha se assustado com o afogamento, mas estava com o rosto caído, de tristeza. O mar nunca seria seu...
Eles se levantaram e foram falar com ele.
Mas não disseram nada, pois não havia o que ser dito.
Logo o tio apareceu. Só ele. Não muito preocupado. Perguntou se estavam bem, não ficou bravo, só um pouco sério. Disse para tomarem o maior cuidado, etc., etc. e tal... eles ouviram, deprimidos.
Saíram do posto e novamente viram a praia. Aquela tentação de aproveitar ao máximo aquele verão era agora algo diferente. Como um sonho. Eles não queriam que Paulo tivesse de ficar direto na areia...
O tio foi indo, eles ficaram sentados na calçada, de frente pra praia.
Quietos. O silêncio caía bem.
Avistaram novamente aquele mesmo grupo de surfistas, que passavam sempre com pranchas em baixo do braço. Coisa que eles não entendiam eram as expressões de confiança no rosto deles. Os óculos escuros parece que ocultavam quaisquer amostras de emoção nos rostos daqueles seres. Caminhavam sem desviar os olhos. E os garotos ficavam pensando se algum dia também caminhariam daquele jeito.
Depois, mais tarde, passou o velho do cão. O velho do cão, agora, depois do que acontecera, parecia diferente, não se sabia por quê.
O velho parou para Luis falar com ele. Luis estava silencioso, somente deu uma afagada atrás do pescoço do cão. O velho virou de leve a cabeça, tentando entender por que seu amigo estava triste. Depois se afastou lentamente, e foi deixar o cão fazer cocô.
Uma das coisas que passava pela cabeça deles era... bem... será que os surfistas eram capazes, também, algum dia, de se afogarem? Achavam que não... mas por que?
E o velho...? Afogaria-se? Não...
O velho bêbado estava um pouco longe, hoje. Mas sempre no mesmo local, sentado. Não parava nunca. Luis pensou por um instante... será que o velho tinha casa? E família? Esposa? Filhos? Cão? Onde estariam eles, agora? Achavam certo o que o velho fazia? Provavelmente não...
Tiago sentiu vontade de dizer algo. Perguntar ao Julio se o desmaio teve algo a ver com o afogamento. Mas não perguntou.
Todos eles sabiam, naquele silêncio de fim de tarde, que o desmaio tinha, sim, é claro, algo a ver com o afogamento. Foi conseqüência.
Julio disse, muito distraído:
- Eu tive uma visão...
Demoraram para dizer algo novamente.
- Era sobre o Paulo? – perguntou Tiago.
- Sim... mas quem eu vi foi eu mesmo, achando o óculos escuro... na onda, aquele dia... e, vocês sabem... eu ouvi uma voz me aconselhando... e relacionei tudo com o Paulo, que vinha vindo na nossa direção, pelo mar...
- Eu entendi – disse Luis.
- Tenho medo dessas coisas – disse Paulo.
- Não existe isso – disse Tiago.
- Eu também nunca acreditei, mas depois de hoje... bom... – disse Julio. E aquilo bastava. Para ele, agora aquilo existia. Ele conhecia uns parentes seus que eram de uma religião, eles eram espíritas. E diziam coisas, eles viam coisas... era algo em que Julio nunca acreditou. Mas isso que aconteceu hoje, bem... era difícil pensar sobre isso.
E continuaram sem dizer nada. Julio achava bom tudo isso, pois meio que alertou o amigo que ele se afogaria. Se bem que ele realmente se afogou. Era estranho. Podia ter morrido.
- Eu podia ter morrido – disse Paulo Henrique, como se respondesse aos pensamentos de Julio. Então eles se levantaram e foram andando sem destino pelas ruas. Meio perdidos, chegaram afinal a um tipo de pracinha, um lugar que não tinha movimento nenhum, com uma área cercada por edifícios, com uma parte livre no centro, uma praça, com grama, algumas pedras, e mesas distribuídas no meio. Mesas velhas. Se aproximaram. De lá se via a praia toda, pois a área era meio alta. Não muito.
Se sentaram lentamente em uma das mesas, com quatro lugares. O silencio ali era confortável, muito ameno. Só ouviam alguns pássaros, e só.
As mesas tinham, em sua tampa de concreto, um desenho feito para se poder jogar xadrez em cima, sem precisar de tabuleiro. Era tudo arranhado, meio destruído, descuidado. Ninguém devia vir ali. Eles pelo menos nunca tinham vindo. As mesas eram algo que trazia uma coisa estranha neles. Sentiram uma sensação na mente, algo como o efeito déja vu. Idéias estranhas habitavam suas cabeças.
No meio do silêncio, naquela meditação, Paulo disse algo meio sem pensar, assim, à toa:
- E se a gente morresse hoje?
O que ele disse não foi tido como besteira, nem como algo que despertasse discussões. Mas todos ali ficaram entretidos por um bom tempo em pensar naquela idéia horrível e bizarra que se apossava deles.
A morte não podia existir, não, muito menos durante um verão... aquele verão de ondas douradas por um sol de Dezembro, naquele lindo litoral... não com aquele monte de pessoa animada que circulava por aí de biquíni e de calção. As férias na praia não tinham nada a ver com morte.
Certo, camarada?...
Errado...
Infelizmente... a vida também era morte. Todos sabiam. Mas só pensam nisso na hora em que ela chega. Ou quando ocorre algo como o que ocorreu com o amigo Paulo. O que o amigo Paulo sentiu naquela hora em que estava inconsciente lá embaixo, na água, é algo que só o amigo Paulo sabe, conhece. E não quer compartilhar com os outros. E ninguém lhe perguntou, também.
Quando voltaram pela avenida da praia, era fim de tarde e o sol baixava no horizonte acima do mar. Coisa linda. A cor dourada era um ouro santificado, um titã de esplendor.
As palmeiras na calçada eram tingidas com o brilho, e ficavam meio que “recortadas” na paisagem. Muitos banhistas agora voltavam pra casa, pela areia, devagar.
A luz lançava o lençol dourado em cima da rua, sobre as pessoas, e estas ficavam com uma aura brilhante em um dos lados, como se todas as pessoas fossem gloriosas e cheias de esperança.
Seriam todas as pessoas assim mesmo, santificadas? Oras, todas elas recebiam a luz... por que não seriam? O sol era para todos? Como no nome daquele filme? O sol é para todos mesmo? Claro que era... mas qual o uso que você vai fazer de sua parte iluminada? Você vai simplesmente ocupar seu lugar ao sol? Ou vai compartilha-lo com uma pessoa sem sol? Ou você vai... querer alugar ou vender seu lugar ao sol? Por um preço bem alto. Pra depois abrir uma cadeia de locais ao sol... e possivelmente furtar outros locais ao sol... até chegar a hora em que você nem vai mais ligar para o seu lugar ao sol... ele vai ser tirado de você... e aí você vai ganhar um lugar nas sombras... nas trevas. Entendeu?
Eles foram pra casa.


15

A cidade inteira estava animada, pois esta era a noite de Ano Novo...
No apartamento, a família de Julio conversava empolgada. Os primos e Taís, sentados no sofá da sala, falavam sobre o que fariam esta noite.
- Vamos encher a cara – disse Édson, para impressionar.
- Essa é boa – disse a irmã – Vai lá na cozinha e diz isso pra mamãe, vai. Aí você não fala.
- Ah, fica quieta. Como se você fosse fazer algo muito emocionante, né?
- Claro que vou. Eu e a Taís.
- E o que é?
- Não interessa – disse a prima de Julio, atirando uma almofada em cima de Édson.
Os garotos se sentaram junto com os primos de Julio. Édson perguntou o que eles fariam esta noite.
- Não sabemos ainda – respondeu Tiago – Acho que olhar os fogos na praia, depois comer alguma coisa...
- Seus pais não vão fazer nenhuma ceia, algo assim? – perguntou Julio.
- Ah, eles nunca fazem, a gente prefere aproveitar na rua, mesmo... – disse a prima.
- Ah, já sei! – disse o primo, malicioso – O Luis eu já sei que vai tentar catar a Taís, né Luis?
- Ê, idiota... – disse a prima, para cortar o embaraço de Taís e Luis. Depois virou para Taís – Ele só fala porcaria.
Luis não soube onde pôr a cara.
Depois foram tomar banho.
Estavam todos animados, no íntimo. Até mesmo Paulo Henrique conversava com a prima de Julio, contente com a noite. Uma noite em que ninguém ficaria em casa. Era a noite da curtição.
Havia um grupo na praia, ouviram dizer, que iria surfar à noite, na virada de ano. Eram surfistas de carteirinha, os mais conhecidos do litoral. Eram conhecidos pelas loucuras de fim de ano. Surfariam à meia-noite, e depois iam beber no quiosque. Talvez os garotos pudessem vê-los.
E o surfista legal, onde estaria nesta noite de Ano Novo? Ninguém podia adivinhar.
Julio imaginou que seria legal encontrar o surfista legal.
A família deixou o apartamento, dando as recomendações aos jovens.
Depois saíram Édson e seus amigos, em euforia.
Ficaram no apartamento Julio, seus amigos, sua prima e Taís.
Alguns ainda tomavam banho e se aprontavam. Tatiana, a prima, se trocava, e Taís esperava na sala. Julio tomava banho. Os amigos aguardavam.
Julio tomou um bom banho quente, se sentiu outro. Era muito legal sair com os amigos daquele jeito. Seus tios eram liberais. Isso era bom. Não ficavam tão preocupados.
Julio se lembrou rapidamente de tudo o que tinha acontecido naquela viagem. Podia-se dizer que estavam curtindo.
Se penteou, caprichou no topete, passou seu gel, companheiro de aventuras, colocou uma roupa nova e limpa, pôs os tênis e colocou um perfume que pegou emprestado do primo. Ele não se importaria. Sorriu para o espelho, e se dirigiu à sala, onde encontrou os amigos com uma expressão esquisita. A prima e Taís se sentavam estranhamente. Algo tinha acontecido.


16

- E aí, nós vamos ou não? – disse Julio, esperando uma resposta.
- Não. Pode esquecer tudo – disse a prima, emburrada – Adivinha.
- Não sei o que houve. Estava tomando banho.
A prima não disse mais nada. Taís resolveu dizer.
- Não temos chaves pra ir. Seus tios saíram e esqueceram de deixar a chave que sempre usamos...
- Mas existem duas chaves extras... certo? – disse Julio.
- Claro. Mas o Édson levou a outra – esclareceu Tatiana.
Todos estavam pensativos e tensos, distribuídos pela sala. Alguns andavam de um lado para o outro. Estavam trancados no apartamento. Não podiam chamar ninguém. Sem saída. E era noite de Ano Novo.
- Telefonem para alguém – sugeriu Luis.
- Não tem telefone aqui – respondeu Tatiana – Só o interfone. Precisaríamos chamar alguém pra buscar com o zelador a cópia da chave que ele tem.
- Mas todo mundo já saiu. Mesmo que a gente olhe na janela, ninguém vai passar por ali. A cidade toda está na praia – disse Taís.
- E agora? – Julio sentiu a gravidade do negócio, e ficou inquieto. Ninguém dizia nada. Ele foi falar com Tiago.
- Pô, cara... não tem jeito de abrir a porta...? – perguntou Tiago, preocupado.
- Tô pensando. Temos que abrir a porta. De algum jeito.
Tatiana foi até a porta da sala, que dava para o corredor dos apartamentos, e bateu várias vezes para ver se alguém ouvia. Mas o problema é que não tinha ninguém por ali.
Ela telefonou para o zelador. Ele não estava lá.
Voltaram a se sentar, para pensarem melhor.
Um grupo muito excitado passou lá embaixo pela rua, de carro, fazendo barulho, e tocando música. Eles se sentiram mal.
Estavam num andar muito alto. Longe da rua. Mas nem pensavam em pular, é claro. É que isso os deixava tão longe do mundo, da agitação, de tudo... nunca esperavam que ficariam presos, trancados na noite de Ano Novo.
- A Marcela já deve estar esperando a gente no quiosque – disse Taís.
- Eu sei – respondeu Tatiana, cabisbaixa.
- Que horas são? – perguntou Paulo Henrique.
- Sete e meia – respondeu Luis.
Passaram-se vinte minutos e as esperanças iam por água abaixo. Tatiana ligou a TV. O jeito era passar a virada de ano vendo as comemorações televisionadas. Comendo pipoca.
Então, ouviram um ruído de chave na porta. Se assustaram, e se levantaram por instinto. Quem seria?
A porta se abriu. Se aliviaram. Era o parente de Julio, aquele cara que viera de outro estado e contara histórias de medo uma noite. Estava assustado. E trazia alguém junto.
- Ajudem aqui, rápido! – dizia ele, carregando um velho nas costas – Eu estava aqui perto, com uns conhecidos, e encontramos este senhor caído na rua, tentando ir pra casa. Tragam água, ele não está bem.
Os garotos observavam a cena. O velho era familiar. Um velho deitado no sofá, todo vermelho, mal se agüentando, respirando com dificuldade. Sim, era ele mesmo. O velho bêbado de todos os dias.
- Ele deve ter bebido muito, na praia, e não agüentou andar. Estava sozinho – explicava o parente de Julio.
Fizeram o velho beber a água. Ele melhorou.
Os garotos a as meninas vibraram. Graças a Deus o velho tinha sido encontrado. Pois, caso contrário, nunca sairiam do apartamento.
- Vocês não vão sair? – perguntou o moço para os jovens.
- Claro! Estávamos presos. Precisa de ajuda, tio? – perguntou Tatiana.
- Não, se quiserem podem ir. Ele está se recuperando.
Os garotos mal podiam acreditar! Enquanto deixavam o apartamento junto com as meninas, imaginaram como as coisas podem acontecer por acaso nesta vida. As garotas perguntaram se eles queriam sair com elas, nesta noite. Eles aceitaram. Encontrariam as amigas delas e fariam algo.
O velho bêbado... quem diria, hein? Tão bêbado que caiu, foi encontrado e salvou, sem saber e sem querer, a noite dos garotos a das meninas.
- O negócio agora é sair por aí... – disse Tiago.


17

As luzes da cidade tiniam. O parque de diversões trazia aquela barulheira toda de gritaria, as pessoas passavam pela calçada da praia. A avenida, entupida de carros, turistas que tinham pego trânsito na vinda para o litoral.
Luis se sentia tão bem aquela noite, que chegou a pensar que, realmente, tentaria conversar com Taís neste dia. Era o dia. Era o lugar. E ela estava muito bonita.
O mesmo pensou Tiago de Tatiana. Gostava dela.
Uma coisa eles sabiam: o velho bêbado tinha cruzado a vida deles, e não tinha sido à toa. Não saberiam explicar por que isso ocorreu. Mas... sabiam que o velho não iria parar de beber, nunca. Sempre ficaria fora de si por causa da bebida... e a noite de Ano Novo tinha sido o auge. Agora ia ficar debilitado, se recuperando, e não ia nem poder tomar sequer um champanhe pra comemorar.
Eles passaram na casa da amiga de Tatiana. Era uma garota da idade delas, que morava na praia.
Todos foram para a praia, que estava lotada. Minutos depois, quando conversavam perto do quiosque, ouviram um barulho.
- O que foi isso?
- O que aconteceu? Nossa, eles estão brigando!
- Quem está brigando? Onde?
Houve outro barulho, e em seguida um grito. Toda a massa de pessoas se agitava, falava apavorada. Alguém brigava ali perto. Confusão. Eles foram empurrados. Pessoas corriam.
O grupo de Julio andou até o local em que a agitação ocorria. As pessoas faziam um círculo. Alguém estava no meio. Mas quem?
Havia uma porção de mães doidas, correndo pra tudo que é canto, pela calçada da praia, e gritando:
- Minha filha! Onde está a minha filha?
- Minha filha! Será que é ela, lá no meio? Ai, meu Deus... e agora?
- Não sei! Sei que é uma garota nova! Ele pegou uma menina!
- Que menina?
- É uma menina nova, muito bonita! Ele tá dizendo que vai matar ela! Alguém chama a polícia!
- Ai, eu sei que é a minha filha...
Julio e os garotos viam aquela cena apavorante. Algum maluco tinha brigado com a namorada, talvez, e agora ameaçava mata-la. Mas não se via nada.
- Ele tá armado? Hein?
- Tá. Ele tem uma faca. Alguém, pelo amor de Deus, faça alguma coisa!
Finalmente puderam ver quem estava ali no meio. Foi um choque. Um rapaz segurava uma garota pelo braço, impedindo que ela escapasse. Os dois deviam ter uns dezoito anos. Ele gritava:
- Tão vendo ela? Olha! Ela me traiu, essa cadela! Eu pensando que ela gostava de mim, pessoal! Mas sabe o que aconteceu? A vadia tava com outro! Eu peguei ela no ato. O filho da mãe fugiu, o safado. Mas depois que eu acabar com ela, eu vou atrás dele. Vou matar os dois! Tão ouvindo? Vou matar a cadela, e depois eu vou atrás do queridinho dela! Ouviram?!
- Chamem a polícia! – alguém gritou. O rapaz continuou:
- Podem chamar a polícia, quem quiser. Eu mato qualquer filho da mãe que fique no meu caminho! Eu mato!
A seqüência de fatos que se seguiu foi como um sonho, como um pesadelo. Ninguém percebeu direito o que houve. Julio e seu grupo se manteve afastado, mas mesmo assim estavam no centro da ação. Só se sabe que a polícia chegou logo depois. Dois policiais eram aqueles mesmos que tinham atendido Paulo Henrique quando este se afogou. Aqueles que ficavam de braços cruzados em frente ao posto, fazendo pose.
A polícia atirou nele. Ele nem se mexeu. Dizia que ia esfaquear a cadela. E esfaqueou. Enfiou o facão direto na jugular da menina, que chorava em desespero. O povo gritava pros policiais:
- Não atira! Não! Ele vai matar a moça!
Mas a polícia atirou, e mais duas vezes. Com raiva. Ódio. Queriam acabar com aquele mau elemento da cidade. Balearam o rapaz, que antes de cair tirou a vida da menina.
Provavelmente os policiais estavam de saco cheio do serviço, resumindo. Tinham brigado em casa com suas esposas, tinham parado no bar, virado alguns copos de cachaça, e teriam dito: “Bom... vamos trabalhar”. E foram. Revoltados. Tensos, estressados, injustos. Nem pensaram pra atirar. Não imaginaram, de tão irados e bêbados, que acabariam por causar a morte da garota. A garota cujos pais nem tinham aparecido ainda.
A cena era chocante até para os mais velhos. A facada.
A facada.
O sangue jovem dos dois, o rapaz e a menina. Seus sangues se misturaram na calçada. O pescoço dela se tornou rubro, logo toda sua face estava tingida, escarlate. Triste sangue. Ninguém agüentou. Muitas mulheres desmaiaram só de ver, ou só de ouvir os tiros. Sirenes, gritaria, gemidos.
- Cadê os pais deles? Cadê?
Julio e seu grupo, paralisado, tentava entender bem o que tinha ocorrido. Tinha ocorrido uma desgraça.
Instantes depois, um senhor muito velho chegou no local. Pálido.
Perguntava a todos o que tinha acontecido. Ele se identificou. E levaram ele até o local, depois de informarem que sua neta de dezoito anos tinha sido assassinada pelo namorado, minutos atrás.
Ele chorou como um pobre diabo. Mal podia tocar a neta, que era só sangue e vísceras. Nem pôde abraça-la uma última vez. Um policial cobriu os corpos com plásticos pretos. Fotógrafos tiravam fotos.
O velho se ajoelhou no meio daquela multidão, desamparado. Um policial pôs a mão no ombro dele. Perguntou se havia outro parente na praia. Ele disse que não. Era só ele e a netinha do coração. Os pais dela eram divorciados. Ela cuidava do avô na praia.
Aos poucos o povo se espalhou. Tinham que voltar às suas vidas. Deixaram o velho na tristeza, respondendo inquérito policial. Sua neta foi assassinada por um namorado ciumento. Um namorado que ele nem conhecia.
Julio olhou por um longo tempo para o velho, de longe. Os outros garotos também. Olharam em sinal de luto. Sim, luto, pois, quando viram o cão ao lado do velho, na coleira, sabiam que se tratava do “velho do cão”. Aquele mesmo. O amigo deles. O amigo de Luis. Que agora perdia a neta violentamente, e fazia os garotos descobrirem que o velho do cão era tão humano quanto eles. O velho do cão chorava.
As horas se passaram, eles procuraram se divertir, depois do ocorrido. Decidiram que o melhor era esquecer tudo, se distrair. Mas era difícil.
A noite ia passando. Viram os surfistas malucos, que foram surfar às onze e meia na água fria e escura da noite. Faziam farra. Alguns invejosos assistiam. Não pegaram muitas ondas, é claro, mas serviu pela curtição.
Julio veio a saber, mais tarde, que eles eram os mesmos surfistas que passeavam por aí com as pranchas embaixo dos braços, de óculos escuros, todos os dias, com aquelas expressões confiantes.
Os fogos começaram. Todos na praia. A areia estava apinhada de gente olhando pra cima. Os fogos estavam lindos, às vezes era tanta luz no céu que dava até a impressão de ser de dia. Muito barulho, muitas cores.
Champanhe. O grupo de Julio juntou dinheiro e comprou uma garrafa. Beberiam. Pelo menos uma vez ao ano, não tinha problema algum.
Houve a contagem regressiva, gritos, risadas, abraços, comemorações, etc...
Luis beijou Taís. Deu um beijo nela de leve, quando comemoravam. Alguns deles perceberam, mas não tinha problema. Luis sofreria com as gozações, de qualquer jeito. O beijo foi muito breve, mas foi muito para alguém como ele, sempre em busca de coisas verdadeiras, como o que sentia por Taís. Ela gostou do beijo, ambos ficaram ruborizados, e depois se afastaram. Senão todos começariam a falar...
Beberam toda a champanhe.
Depois encontraram Édson e seus amigos, na rua, que obviamente tinham bebido além da conta.
- Você vai ver só, Édson – dizia Tatiana – O papai vai saber disso...
- Vai nada... você não vai contar – disse ele, alegre.
E era verdade. Aquele dia era para se comemorar, e não se colocar uns contra os outros. A festa toda era um tributo ao velho do cão. O melhor era ficar alegre e não pensar em coisas negativas.
Certa hora, eles andavam pela calçada, quando Paulo Henrique avistou alguém conhecido, no meio da multidão.
Chamou os outros e apontou. Era o surfista legal. Caminhava.
Os garotos pararam por um instante. Ele vinha vindo lá longe, na direção deles.
- Ele vai passar por aqui – disse Julio.
O surfista agora, sem sua prancha, vestia camiseta regata e tinha o mesmo ar impassível. Andava sempre em frente, como quem enxerga algo no infinito.
- Quem é ele? – perguntou Taís.
- Ah, é um surfista – respondeu Luis, olhando para ela. O que mais poderia dizer? Era um surfista. Isso eles sabiam. Mais nada.
- Vocês conhecem ele? – perguntou Tatiana.
O que responder? Nenhum deles achava a resposta certa. Não poderiam dizer que ele fosse um estranho. Mas... não sabiam direito qual era a do surfista legal...
- Não conhecemos – disse Julio, afinal.
Ele passou ao lado deles, sempre andando, sozinho, e virou o rosto por um instante para o lado. Tinha olhos claros, uma barba rala... os garotos também olharam. Mas ninguém disse nada, ele continuou indo em frente. Porém, aquela olhada significava algo...
- Ele com aquele cabelo e aquela barba lembra Jesus, não lembra? – comentou Paulo Henrique.
Os outros fizeram que sim com a cabeça. Não disseram mais nada, e foram aproveitar as primeiras horas do ano que começava.


18

Os próximos dias que se seguiram foram mais ou menos como os anteriores. Os primeiros dias do ano foram como outros primeiros dias do ano, só que um pouco mais brilhantes, mais quentes. O calor era forte, os banhistas eufóricos, e a família de Julio sempre a mesma.
Luis tinha começado uma espécie de namoro com Taís. Eles se viam às vezes. Quando conseguiam ficar sozinhos, no prédio, ficavam de mãos dadas e trocavam um ou dois beijos. Nada mais. Nem sequer saiam juntos. Os garotos chamavam Luis para ir nadar, ele nem pensava duas vezes: não diria que queria ficar com Taís. E ela, quando Tatiana a chamava para sair, não teria coragem de dizer que queria ficar ao lado de Luis. Não se sabia por que, mas ainda não podiam. Era melhor deixar assim. Era bom. Se gostavam. O que mais poderiam querer? Talvez tenha sido tão bom assim justamente porque os dois só se viam às vezes, rapidamente, de modo a deixa-los com mais vontade de se ver novamente.
Paulo Henrique nunca mais tentou entrar no mar. Os próprios amigos avisaram que não iriam aprovar se ele resolvesse fazer aquela loucura novamente. Ele aceitou, ainda triste, pois adorava o mar.
Passou a observar o mar e toda sua poesia, ver as ondas, o balanço... tudo aquilo também era muito bonito de se ver... vê-lo era quase como tê-lo. Era ainda melhor, pois assim a vontade era maior. Num dos dias em que ele ficou tomando sol na areia, achou uma bonita concha enterrada, era linda. Meio roxa, meio azul. A mais bonita. Guardou no calção. Agradeceu por ficar deitado na areia. Só assim pôde achar a bela concha. Chegando no apartamento, deu a concha para Luis. Disse para ele dar à Taís, de presente. Luis vibrou de alegria, e assim fez. Taís adorou. Luis mais tarde pagou uma porção de batatas fritas para Paulo Henrique, em retribuição.
Tiago continuou pegando ondas com sua prancha de body board. Não comprou uma prancha de surf. Era muito caro. Morreu de vontade de ter uma, mas se conformou. Ainda era o único que surfava na turma. Os outros gostavam de vê-lo pegando ondas. Quem sabe no próximo verão, pudesse ter uma prancha de surf?
Quanto a um possível namoro com Tatiana, não aconteceu nada. Tiago até que gostava dela. E ela dele. Mas, por algum motivo, não disseram nada um ao outro. O pessoal do prédio continuou falando. Enchendo o saco dos dois. Eles riam, olhavam um para o outro, e balançavam a cabeça, superiores. Se davam bem.
Julio aproveitou suas férias ao máximo. Nadou com vigor, pegou um belo bronzeado, ficou de olho na outra amiga de sua prima, aquela que morava na praia. Mas ela não deu bola. Paciência. Julio levou tudo numa boa. As boas e as más marés. Era a vida. O mar era a vida... sim, porque no meio dele a gente vê tantas ondas, que são os fatos da vida, fatos bons, ondas agradáveis. Fatos ruins, ondas bruscas que te derrubam. Aí você pode se levantar e nadar novamente pela vida. Muitas vezes nos afogamos. Mas no final somos recompensados. Navegamos, boiamos tranqüilos, surfamos sobre a vida... esse é o surf. Andar sobre a vida, desviar de alguns caminhos e seguir por outros, não tem erro...
Julio continuou usando seus óculos escuros. Eram o máximo. Levaria uma bela lembrança da praia. Tanta coisa tinha acontecido... o velho bêbado, o velho do cão, o surfista legal... e agora tinha chegado o dia de ir embora. Sim, tinha chegado ao fim. Se sentiu triste por isso. Mas ao mesmo tempo satisfeito. Triste, pois, não sabia explicar, mas deixaria a praia. A praia continuaria ali, com seu sol e seu mar, sua areia, suas pessoas inesquecíveis... e é claro que ele voltaria mais cedo ou mais tarde... mas ir embora, assim... ele não sabia por que, mas amava a praia, de certa maneira... todas aquelas emoções ficariam em sua mente. O barulho da noite, os morcegos, a música alta nas últimas horas do dia... as costas queimadas de sol, que ardiam pra caramba à noite, no colchão... a vermelhidão do rosto, as roupas de praia... aquelas ruas especiais que aquela cidade tinha, a areia sempre presente nas calçadas... aqueles tantos restaurantes de frutos do mar, os sorvetes, o surf, o apartamento e os tios, sempre praieros... era inexplicável. Provavelmente ninguém mais entendia aquilo, só ele. Talvez só ele pensasse nestas coisas assim. Ele via coisas que os outros não viam. E sentir aquilo tudo era uma vantagem.
O carro já estava pronto para partir. Levavam as malas para o bagageiro. Todos vestidos para a volta. Iriam em dois carros. Os garotos iriam em um. Com o tio dirigindo. O resto da família iria no outro.
Se despediram do parente de outro estado. Tinha adorado a praia. Iria voltar de trem. E foi.
Os garotos se despediram do pessoal que ia no outro carro. A tia, o primo, os amigos do primo, a prima, a Taís...
Tiago e Tatiana trocaram um beijo amigo, fizeram um tchau e mais nada. Luis ainda quis, desesperadamente, dar um último beijo em Taís. Ela também queria. Mas não puderam, a pressão era muita. Todos estavam apressando, empurrando, e somente disseram um tchau um pro outro, sorrindo. Luis morreu de vontade de se despedir direito. Não era justo. Ficaria se torturando a viagem inteira por causa disso.
Julio e os amigos agradeceram, felizes, aos tios dele. Tinham adorado a viagem. Os tios convidaram todos a voltar com eles da próxima vez. Eles agradeceram.
Julio cumprimentou o primo, e disse que da próxima vez sairiam juntos mais vezes. Concordaram que faziam parte de grupos diferentes. Eram tipos diferentes de jovens. Mas tudo bem.
Eram três da tarde quando partiram os dois carros. O tio de Julio pegou a avenida da praia. O sol estava mais fabuloso do que nunca. Parecia mesmo um adeus de verão. O sol fazia tchau em silêncio. Seus raios tocavam o rosto de Julio e seus amigos dentro do carro.
Eles olhavam as pessoas na praia. O mar, a areia... e o carro foi se afastando.
Uma hora passaram a última vez em frente ao famoso quiosque onde o mesmo velho de sempre enchia a cara, vermelho como sempre, sentado e mexendo com as garotas... o velho nunca aprenderia. Julio olhou para os companheiros, sorriu, eles também viram o velho.
Mas não viram o velho do cão. Que a esta hora devia estar chorando a morte da filha. Essa tinha sido a parte triste deste verão...
Também passaram pelos policiais, frios como sempre em suas profissões. Sempre encarando os surfistas malandros que passavam por ali. Como aquele conhecido grupo de jovens surfistas, que tinham comprado as plantinhas do dono do quiosque, no começo da viagem. Também viram o dono do quiosque. Estaria ele comprando mais plantas para sua coleção? Talvez... ou teria aprendido a lição após a prisão daqueles dois latinos que foram pegos com as ervas?
Luis estava nas nuvens pensando em Taís.
Paulo Henrique olhava o mar.
Tiago percebeu que Julio estava sem os óculos escuros, e disse:
- Ei, você não colocou os óculos?
- Não, eu deixei aqui – respondeu ele, confiante.
- Como assim? Aqui aonde?
- Na praia. Sei lá, é que eu achei no mar... foi sorte minha... e os óculos me ajudaram a perceber aquilo que aconteceu no mar com o Paulo Henrique...decidi devolver ele.
- Você... quando? – Tiago não podia acreditar.
- Hoje de manhã joguei ele numa onda, do jeito que encontrei...
Julio sabia que tinha agido da melhor forma... aquele seu presente de verão, no final, não era bem um presente... era um amuleto muito precioso, que morava na praia... e podia ser achado por outros garotos como ele...
Tiago não entendeu o gesto do amigo, e balançou a cabeça.
Julio olhava o pescoço de Tiago. Ele não usava a corrente roubada. E Julio sabia por que.
Dois dias antes, quando eles saíam à noite, um garoto de rua passou correndo ao lado dos garotos e arrancou com um só gesto a corrente do pescoço de Tiago. Roubou.
Ninguém disse nada na ocasião, e nem depois. Mas Julio se sentiu satisfeito, de certa forma, porque aquilo aconteceu. Por algum motivo, Tiago tinha que aprender algo depois de roubar a corrente. Talvez tenha aprendido. Foi só um susto.
Quando estavam quase deixando a avenida da praia, passaram por um quiosque. Lá perto, um rapaz caminhava. Um surfista caminhava. Julio pôde vê-lo somente por alguns instantes, e logo depois perdeu de vista.
Era o surfista legal. Um surfista que não era ninguém, mas era alguém. Um rapaz que só Julio e seus amigos viam. Quem seria ele, afinal? Eles quatro perceberam naquela hora, no carro, que com certeza nunca saberiam direito quem era ele. Naquele último dia, o surfista ainda andava do mesmo jeito, com a prancha debaixo do braço. Era um mistério, uma lenda criada por um grupo de jovens que a cada dia descobriam um pedaço de vida.
Sob aquele sol de verão, o rádio ligado no carro onde viajavam, Julio ainda se virou uma última vez para trás no acento, e olhou pela janela de trás. Por um instante podia jurar ter visto o surfista olhar para ele, com o polegar para cima, e sorrindo. Não podia ter certeza, mas era bem possível que em todo aquele sonho de verão existisse um cara legal que andava pela praia e que era um surfista que não surfava.



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