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Contos-->Minha aranha de pé de escada -- 28/01/2003 - 16:31 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Minha aranha de pé de escada


A inconstância e o acaso, assim como o espírito curioso e aventureiro, por caráter, me concederam na vida, desde a leve juventude, incontáveis deslocamentos e mudanças de cidades, escolas, prédios e atividades diversas, muitas vezes com a minha família, e outras com amigos, ou sozinho. Algumas vezes por dificuldades econômicas, no início, e, já na maioridade, simplesmente por ser inquieto e ávido por mudanças, um puro-sangue porra-louca, como já fui chamado. Nasci em São Paulo, mas já fui morar em Sorocaba, Santos, no Mato Grosso e outras regiões de São Paulo, durante a adolescência.
Mas o episódio que conto agora, e que me parece muito singular e inesquecível, está situado no momento em que passei a estudar Engenharia Agrícola em São Paulo. Após alguns anos tentando e me estrepando, já sem dinheiro pra quase nada, trabalhando num escritório, consegui afinal entrar. Tinha então vinte anos, e alugava um apê perto do centro. Todo dia ia pra faculdade (a qual não me estimulava muito) e depois pro trabalho, tendo os fins-de-semana livres pra cair na gandaia com o Júnior, o Pedrinho, e outros.
Acontece que alguns anos antes o meu tio tinha adquirido um terreno no interior, na bela cidade de Sumaré. Íamos pra lá passar alguns dias, eu, ele, primos, primas, meu pai... e, muitas vezes, íamos só eu e meu tio Arnaldo, pra eu poder ajudar ele com os trecos da fazenda. A atividade me agradava, e além do mais, aproveitava e aprendia uma meia dúzia de coisas interessantes sobre as lavouras, as verduras, a terra... o que era bom pra minha formação.
Depois de um tempo, quando eu tinha dezoito, comecei a freqüentar o sítio sozinho mesmo, estando a fim e tendo tempo (feriados prolongados, folgas...). Ele me assegurava a chave, ensinava como usar o alarme da casa, me instruía sobre o trabalho rural, cavalos, etc., e eu caía na estrada com o Opala cinza do meu pai, o Ermínio velho de guerra. Aí aproveitava pra me isolar, meditar bastante, pegar na enxada e compor umas canções. Sim, era eu e o meu violão, tão querido, que passávamos noites inteirinhas e madrugadas, eu sentado perto da janela, ou na varanda, sob o luar, e aquele silêncio bonito e saudável do campo. Cigarras, grilos, insetos e violão. Confesso que gostava mais de música, e de inventar minhas letras, composições próprias, do que da idéia de me tornar engenheiro agrônomo. Estudar com afinco era a coisa mais desgastante e mais chata que havia, e nunca fazia sentido pra mim. Mas, sempre que eu podia, relaxava com o violão, sozinho, no final do dia.
Nesta época, também, devido à minha permanência solitária e constante na fazenda, passei a manter contato com amigos de Sumaré de chácaras vizinhas, um pessoal muito animado que sabia como viver com a natureza, longe da cidade. Alguns cidadãos urbanos, de férias, e outros moradores dos sítios. Às vezes dava da gente se reunir nestas noites campestres e irmos até o bar pra tomar umas cervejas ou ir na casa de algumas garotas que por lá moravam. Ainda me lembro bem do Tomate (nasceu lá), Lino, Fábio e o Fá Maior (uma brincadeira com o seu tamanho avantajado e uma diferenciação do amigo homônimo). As meninas, Cíntia, Pati, Babi, grandes amigas. Muitas vezes, cansados, nos deixávamos ficar pela casa, mesmo, tocando e bebendo, conversando, até tarde. E estas eram as noites mais agradáveis.
No início do segundo ano de faculdade deixei a barba crespa, comprei um Corcel usado num leilão e comecei a viajar com meu próprio carro, e mais vezes. Sempre com meu instrumento a tiracolo. Comecei também a lidar mais com os animais da fazenda, principalmente os cavalos, assim que adquiri a experiência necessária. Eu cuidava, domava, cavalgava... e o engraçado é que sempre tive o maior respeito e afinidade com animais, tanto que penso que é preciso um sujeito chegar a um nível muito alto de cabeça, e de caráter, pra ser capaz de tratá-los como eles devem ser tratados. Uma vez, um escritor foi inquirido numa entrevista pelo motivo pelo qual só tinha começado a escrever pras crianças aos setenta anos. Ele respondeu que só tinha adquirido a sabedoria necessária pra escrever pra elas aos setenta anos. Acontece algo parecido com os animais. Não sei se minha divagação é clara e válida.
De qualquer forma, certo dia eu estava em Sumaré, em Fevereiro, e decidi ficar o fim-de-semana. No Sábado trabalhei um pouco na terra e quando escurecia subi de volta à fazenda, exausto. O sol se punha linda e laranjamente atrás dos morros verde-escuro. Entrei, descasquei ervilhas, jantei e me sentei à janela pra tocar algo. Ainda atendia ao curso de violão, sempre avançando pelos clássicos. O negócio agora era pegar pesado no Bach, Villa-Lobos, Chopin... música que agora me agradava, assim como muitas populares brasileiras também.
Esta noite era só minha. Tinha vindo sozinho, e o pessoal dos sítios tinha ido até a cidade dançar. Eu estava meio calado e romântico aquela noite, então preferi a tranqüilidade caseira.
O luar, impecável mais do que nunca. Algumas dezenas de metros além da casa, eu via, pela janela, as copas de ciprestes e pinheiros balançarem ao ventinho fresco. O único som era o abafado das cigarras, lá fora. E eu, confortável, comecei com um noturno do Chopin, que muito me agradava. Naquela noite me sentia disposto e parece que mais criativo e talentoso do que nunca. Meus dedos tinham algo em seus toques, nas cordas, uma energia ágil e mágica, toquei com gosto.
A certa altura da noite, absortamente compenetrado, realizava uma toada melancólica, não me lembro exatamente qual, quando tive um sobressalto enorme. Eis que vejo, a cerca de dois metros da cadeira, uma aranha grandona e horrível sobre o chão de madeira. Por dois ou três segundos, fiquei paralisado e assustado com o animal, tão grotesco e nocivo. Aí parei de tocar, e sem tirar os olhos dela fui me levantando lentamente, com o intuito de lhe dar uma pancada. Ela logo se assustou e correu até um fresta que havia entre o rodapé e o soalho. Era um canto escuro da sala, perto da escada, e o buraco era conseqüência da preguiça de meu tio em reformar a aparência meio gasta da casa de campo.
Pensei um pouco no que tinha visto, um pouco amedrontado, por cinco minutos, e esperando que ela voltasse. Não voltava. Fui até a parede em questão, devagar, meio de lado, e bati com uma vassoura na superfície do piso, em cima do buraco. Se ela saísse, bastava uma forte e certeira vassourada. Não veio mesmo.
Acabei afastando a aranha da cabeça e me sentei novamente em frente à janela. Recordei o que estava tocando quando fora interrompido, continuando no mesmo ritmo, apreciando a noite. Passaram-se cerca de dois minutos, e então, pro meu novo espanto, aparece a perna do bicho de novo saindo da fresta. Devagar, passo a passo. Mais uma vez me assustei. Ela saía sorrateiramente, como da outra vez, sempre avançando alguns centímetros na minha direção. Quando parei a música ela parou de andar, com aquelas longas pernas negras e cabeludas. Aliás, ela era grande e peluda, de fato. Como aquelas aranhas monstruosas que a gente vê em livros com gravuras. Perigosa, de certo. Asquerosa. Ela ainda deu mais uma andada pra frente, e então eu pensei: “Chega. É animal perigoso. Vou matar com um gesto só, de surpresa”. E esperava acertá-la, mas a filha da mãe saiu correndo de volta pro buraco quando eu me impulsionei pra cima dela.
Não havia jeito de tirá-la do maldito esconderijo. Fiquei impaciente e logo recomecei a tocar as canções. Quando por acaso voltei a tocar aquela toada triste, a aranha surge de novo, com a mesma impertinência, com aquelas pernonas horripilantes. Caranguejeira. Senti um calafrio. Olhei nos olhos dela. Parecia tonta, ainda, após a interrupção da música. Bati com o pé fortemente no chão, e fiz menção de me levantar. Ela mais uma vez correu pra toca no canto da parede.
Aí comecei a pensar naquilo de um jeito diferente, porém ainda muito aborrecido pelo contratempo. “Será que é por causa da música?”, pensei, parado. Já com experiência, voltei a tocar pela terceira vez e não tardou pra ela começar a sair novamente, aquela safada e esperta aranha.
Quando ela fugiu desta vez, resolvi ir dormir. Pensei um pouco, e me pareceu que havia algo de familiar, não sei bem ao certo, na aranha. E não sei que raio de coragem, ou sei lá o quê que me deu, pra eu ir dormir tranqüilo sabendo da existência de uma caranguejeira na casa. Mas fui, e procurei esquecer o fato. Não lembro muito bem, mas creio que tinha uma série de coisas na cabeça, preocupações com a faculdade, incertezas de carreira, pepinos profissionais e sentimentais. Além do mais, me sentia cansado demais. Fumei um cigarro e dormi.
No outro dia, acordei com as tarefas do campo na cabeça, e desde bem cedo fiquei pelos lados das plantações, com os fazendeiros vizinhos. O calor era quase que insuportável naquele dia, e o suor nascia a todo momento pelo corpo.
Na hora do almoço passou um rapaz das redondezas por ali, com uns baldes, dizendo que não tinha água pros lados das chácaras. Estava indo pegar num poço, e aproveitamos para ir junto, e almoçar no mato mesmo. Logo, acabei nem retornando à casa durante o dia.
Quando voltamos ao trabalho os outros me falaram, em tom amigável, que eu estava bem calado, talvez pensativo, este dia. Fui pego meio que de surpresa, pois realmente eu me sentia mais distraído do que de costume. Comecei a perceber então que aquilo podia ser devido ao incidente da noite anterior. A aranha. E logo resolvi admitir pra mim mesmo, em pensamento, a relativa importância e preocupação que estava dando, inconscientemente, ao caso. Sim, sim, era isso mesmo. Em certo momento deixei cair ao chão dois baldes cheios de água, por distração, e tivemos que voltar até o poço por minha causa. Mais tarde, na plantação, golpeei o pé do Seu Augusto sem querer com a enxada.
- Ih, rapá. Toma cuidado – advertiu-me o velho, pacífico, parando por um momento seu trabalho e olhando preocupado para mim.
- Desculpa, Seu Augusto. Estava pensando em outras coisas.
Às cinco horas cuidei dos cavalos e ajudei a dar banho, e depois fomos eu e mais três deles, cavalgando, cruzar uns morros baixos que tinha por perto, pra ir levar feijões a um tal de Machado, que morava meio afastado e tinha vastas terras. Fui pra ajudar a levar o feijão e aproveitei como passeio, pra desanuviar a mente. Cavalgar era belo, era bom, era selvagem, e era o que eu mais gostava de fazer em Sumaré. Sentia o ar fresco nos cabelos, enquanto me deslocava pelo mato, por entre as árvores, sob o sol, mexendo e remexendo os músculos do corpo, com vigor. Meu cavalo preto, Numú, era meu mais fiel companheiro.
O seu Machado era um velho rabugento, chato e encrenqueiro, com uma mulher paciente e obediente, e nada mais. Todos nós conhecemos tipos assim, em qualquer canto do país e do mundo. Mas acontece que o seu Machado me causou uma forte impressão em suas atitudes. Eu, que estava particularmente pensativo neste dia, notei como o sujeito era infeliz, no fundo, e como não queria admitir isto. Por exemplo, ele ficava pelas terras, o dia todo, olhando os trabalhadores e caseiros em suas tarefas, e dando palpites rabugentos e reprovadores, sendo que ele mesmo nem sequer dava duro por ali.
Estávamos olhando seus legumes, na terra, e o seu Machado junto, orgulhoso, mostrando tudo. Sempre que precisava de algo, qualquer coisa da casa, soltava um berro infernal chamando a mulher, uma velha muito simpática e paciente. Ela, prestativa, vinha sempre lhe trazer o que ele queria, sem reclamar. E o imbecil nem dizia obrigado, nem nada, só dizia: “Que horas o jantar vai estar pronto?” ou “Vou chegar com muita fome hoje. Acho bom ter uma janta boa me esperando, Teresa.”
Só sei que, observando o comportamento dele, daquele velho, comecei a ficar deprimido: “E se eu ficar assim, conforme for envelhecendo? Será que eu vou ser assim?”, eu pensava. Porque às vezes estes sujeitos são carentes, ou revoltados, ou sofreram tantas injustiças na vida que acabaram se tornando desagradáveis com os próximos. Tentei afastar a idéia da cabeça, eu não iria ser assim, não mesmo, eu seria uma boa pessoa, quando velho. Além disso, Machado vivia chutando o cachorro e xingando os cavalos, quando se enfurecia. Não éramos iguais.
Ficamos lá pelo Seu Machado até o sol se pôr, e então começamos a montar pra voltar. E eu pensando, desde cedo, e de um modo que até a mim me assustou: “E a aranha? Será que ela vem? Será que não vem?”. Era um modo estranho de pensar, mas era assim. Ela. A aranha. “Será que ela vai voltar?”. E é claro que não confiei a nenhum dos fazendeiros os motivos de meu silêncio, pois tinha como certo o escárnio de que seria vítima.
O dia acabava, e eu me apressei em guardar logo todas as peças de montaria, fechar o celeiro, etc. Certa pressa havia em minha cabeça, me forçando de volta pra fazenda o mais cedo possível. No caminho de volta houveram trechos em que andei quase correndo, como se fosse morrer antes de poder chegar à casa. Tudo isso era inconsciente.
Tomei banho com pressa, jantei afobado e não demorei até estar novamente sentado à janela, como todas as noites. Só que este dia era diferente. Me atrevo a dizer que era especial. Eu sempre fora o “artista solitário” do campo, tocando para a noite e pra mim mesmo. E, agora, eis que de repente o acaso me traz uma platéia bizarra em forma de inseto. Mas será que ela ainda está lá? Me senti como o violonista em noite de estréia, nervoso, aflito. Pus à mesa um vinho doce e tomei um pouco, para me soltar mais. Trêmulo, comecei as canções da noite.
Atacando diretamente no noturno de Chopin, mais uma vez, sabia que seria infalível. A música fez-se ouvir pela casa, e aí, para a minha total euforia interior, a bichona saiu pra fora! Sim, a teoria se comprovava, indubitavelmente. Adquirida a manha, eu parei de tocar, já sabendo que ela parava também com a música. Entrou no buraco. Agora eu já sabia, era certeza, e esta noite só serviu mesmo foi pra comprovar meus pensamentos hesitantes.
Era estranho, era bizarro, mas era agradável e me satisfazia. Eu passara o dia todo na incerteza, e agora a dúvida já não existia! A aranha gostava de me ouvir tocar, era sim, e gostava mais era desta em especial, a melancólica.
Bem, eu passei então a todos os dias “me apresentar” pra ela, no mesmo local, mais ou menos ao mesmo horário, sempre lançando melodias das mais belas e mais apreciadas, e o engraçado era que eu sabia exatamente como era o gosto dela, tanto que sabia como prender a atenção dela o máximo possível com as músicas. É aquela história. Quando conhecemos uma pessoa, começamos a conversar com ela, e, após certo tempo, conhecendo sua personalidade, passamos a formular em nossas mentes o próprio gosto que a pessoa tem em relação a filmes, músicas, etc. Parece que sabemos o que ela vai certamente gostar e o que não lhe agradará. E, no caso de serem pessoas de quem gostamos, procuramos sempre agradá-las. O que acontecia com a aranha era que eu procurava cada vez mais atrair a atenção dela, me esforçando por lhe penetrar no espírito através das músicas. E, se às vezes ela parecia entediada e se escondia no meio da apresentação, eu logo começava com a velha e bela toada triste e os noturnos, e aí era infalível, lá vinha ela, devagar, atraída como que magicamente pela melodia.
E não demorou muito pra que nós (eu, meu violão e minha aranha) nos tornássemos famosos pelas redondezas. O troço todo era bem divertido, quando penso. Os amigos começaram a vir, todos os dias, até a casa, sempre tarde da noite, pra assistirem àquela proeza musical, e animal. Queriam todos ver a aranha que gostava de clássicos, a aranha romântica e o violonista mágico. E trazia amigos e amigas, convidava as garotas, vizinhos de outros sítios, e não faltava a cerveja, a animação e o bom ambiente, nas frescas noites. A casa de campo do tio Arnaldo era o point mais quente da cidade, era uma atração. As meninas viam a aranha, e no começo se assustavam muito, algumas (principalmente a Babi) costumavam até gritar de medo, mas, ao verem que eu mantinha completo controle das vontades do animal, logo todos relaxavam, achavam graça e se interessavam pela intrigante atração.
A aranha era minha fixação. Por sorte (ou azar), nesta época estávamos tendo longas greves de professores na faculdade, e não tínhamos aulas. Durante um bom tempo, pude assim permanecer na chácara, tranqüilo, e foi nesta ocasião que “conheci” a aranha. Também tinha perdido o emprego, pois mandara o chefe pra vários lugares impróprios, numa discussão. Agi imprudentemente, é claro, mas o leite foi derramado, então, paciência. Por isso, acho que atravessava um momento intenso de frustrações, meditações e importantes mudanças em minha juventude. E acho que não foi à toa que acabei me ligando de forma especial àquela aranha caranguejeira. Agora, quando penso profundamente nisso, creio que tratava-se de um fator bem psicológico, se não me equivoco.
Uma vez, numa das longas noitadas, conversávamos animadamente com as garotas, que se achavam, como posso dizer? Um tanto afetadas pelo efeito do álcool. Aos poucos, eu, o Fábio e o Tomate conquistamos a afinidade delas, e preparávamos a base para nos aproximarmos ainda mais. Mas confesso que não me sentia nem um pouco atraído ou interessado pela situação. É claro que sempre gostei de namorar e de “pequenos casos” com meninas, mas naquela noite em especial me sentia mal falando com elas. E, no momento derradeiro, eu falava com a Cíntia sobre os cavalos que ela tinha na fazenda dela. Só que o interesse dela era em mim.
- Ah, não sabia que gostava tanto de cavalos – me disse ela, íntima, enquanto os outros já se agarravam na outra parte da sala.
- É, eu gosto.
- Olha só, por que que a gente não vai agora mesmo pra minha casa, e eu te mostro eles?
Eu fiquei calado, não sabia, realmente, o que dizer. Ela achou que eu estava preocupado com os pais dela.
- Meus pais saíram, e vão passar a noite no Zé Cabira.
Certo, era a última “dica” que se pode imaginar que uma garota nos dê, nestas situações. Ainda mais considerando o olhar dela no momento. Mas não provocou o efeito esperado em mim, e eu disse, com um misto de desânimo e rabugice:
- Hã... não, obrigado. Eu preciso dormir cedo, hoje, não dormi direito a última noite. Desculpe – e dei um sorrisinho fraco de canto.
Se alguém conhece uma resposta mais merda do que esta para se dar, por favor me avise. A Cíntia me olhou confusa e quase incrédula, como que querendo ouvir de novo as minhas palavras. Logo ela perdeu aquele porte sensual, se recostou na cadeira e olhou para as amigas, constrangida, que, animadas, estavam com os caras na sala. Não dissemos mais nada, e ela saiu.
Não me senti mal por ter feito aquilo. Na verdade, logo peguei de novo o violão e chamei minha aranha pra perto de mim, pra me ouvir tocar. E ela veio, eu nem precisava insistir. Veio, para o meu conforto.
Logo o interesse dos amigos e vizinhos pela aranha musical desapareceu, gradativamente. Já não vinham nos ver, à noite, e já nem falavam mais nisso. Eu, é claro, ao contrário, ainda nutria o mesmo apego a ela. “Eles enjoaram da gente, Gabi (pús um nome nela, inevitavelmente), mas não tem problema, a gente continua sempre em frente”, dizia eu, conversando com ela.
Quando fui passar outra temporada na fazenda, em Julho, certa noite fiquei de receber na chácara um amigo lá de São Paulo. Na verdade, conhecido do meu tio, visita. Meu tio chegaria dali a dois dias, e eu servi de anfitrião.
Naquela noite me entreti profundamente na conversação com o homem, que me contava uma porção de fatos interessantes de seu trabalho na cidade. Problemas, cotidiano, lucros...
Tomamos vinho, mais tarde peguei do violão, distraidamente, pra brincar um pouco, enquanto ouvia ele falar, animado. Eu, profundamente compenetrado.
Não notei quando a aranha começou a aparecer pelo chão, sorrateira, por causa da música. Me esqueci completamente dela. Ele viu o bicho, se assustou, e eu me lamentei mais do que profundamente por não ter contado a ele sobre a aranha, quando vi, pálido de horror, a minha amiga ser destruída pelo sapato do visitante, justamente quando eu tocava a toada melancólica.
Ele sorriu, suado.
- Que perigo, hein?
***

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