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Contos-->Tequinho´s Christmas -- 28/01/2003 - 16:33 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tequinho’s Christmas


1 – Tequinho de Natal

Não adianta falar. A noite de Natal é assim mesmo, camarada. É assim mesmo. O Natal é isso aí que você vê, e, por mais que se critique, sempre vai ser isso mesmo, porque é assim é que as coisas são...
Na noite tão esperada do dia 24, todas, ou quase todas as casas da cidade estão iluminadas e esperançosas, com suas numerosas famílias reunidas ao redor da árvore de Natal, ou em volta da bonita mesa da ceia de Natal, a farta e egoísta ceia de Natal. É porque o espírito natalino chegou trazendo toda a paz e a cooperação para as pessoas... por um dia somente. No dia 26 a vida volta a ser a mesma coisa, e aí vem o Ano-Novo, e é outro fingimento, e aí o ano começa pra ser igual a todos os outros...
Mas concentremo-nos numa destas casas onde, esta noite, ocorrem as festanças natalinas. É uma grande e bonita casa no Planalto Paulista, toda iluminada e com musiquinhas de Natal. É a casa dos Antolini, uma família “feliz” na noite de Natal como tantas outras...
- Tequinho, deixa eu te contar sobre o que é o Natal – dizia o velho Antolini ao neto, de pé, em tom grave, como se fizesse um discurso muito importante. É, esse era o velho Antolini de guerra. Sempre dramático e asmático, cof cof. Ele tinha sido padre por cinco anos quando morou em Capateúva Mirim, interior, décadas atrás. Por isso falava em tom de discurso. Era um sujeito alto pra diabo, velho pra caramba e careca pra cachorro.
Estavam neto e avô paterno num quartinho velho na casa dos avós de Tequinho, o garoto. O avô havia insistido pra que fossem conversar no quartinho, que, na verdade, tinha pertencido ao tio de Tequinho, o Tutu. Tio Tutu peidava muito, e isso causava náuseas no Tequinho. Agora, no antigo quarto do tio, parece que sentia o cheiro ruim do Tutu. E isso tornava tudo ainda mais tedioso. É que o Tequinho não agüentava mais todo aquele troço de Natal, é Natal pra cá, é Papai Noel pra lá... e agora, o avô inventava de prendê-lo num quarto fedido pra discursar longa e tediosamente sobre o que era o espírito natalino. Coisa que se tornava insuportável, pois Tequinho queria ir embora, e tinha que agüentar aquele velho chato falando com aquela voz de garça, com aquela roupa esquisita, de calça puxada até o peito, suspensórios que o velho ficava alisando e puxando, e uma camisa semi-aberta, de onde Tequinho podia distinguir o peito encaroçado e branco do avô. Isso era no mínimo muito deprimente para o jovem. O avô na sua frente, vira e mexe cuspindo-lhe no rosto com pequenas gotículas de saliva, e com aquela dentadura, e a careca saliente no topo. Tequinho sentado na velha cama do tio Tutu.
- É sobre a paz e toda a felicidade provinda do Deus-menino. É sobre Jesus, Tequinho, o Natal é... gasp... cof, raaak... ham... é sobre o Deus-menino, é esperança – continuava o velho, naquela agonia de tosse, e com o mamilo pra fora da camisa. Ele não se tocava.
E Tequinho sentia muita agonia, não só pela situação incômoda em que seu avô o colocara, mas também porque sentia uma enorme vontade de interromper o avô e dizer um monte pra ele, dizer que o Natal não era e nunca foi paz, e amor, e alegria, e felicidades... isso não acontecia hoje em dia, não mesmo. Sentia vontade de dizer pro avô que na verdade o Natal era um maldito dum feriado egoísta, e consumista, onde a sociedade estava cada vez mais preocupada com todo aquele monte de merda. E é Papai Noel, é ceia de Natal, comida, comida, peru, pernil, presentes, e dinheiro, e árvore de Natal, e castanhas e o diabo. Sim, era isso mesmo, infelizmente era. Era o que Tequinho já podia perceber, aos treze anos. Podia ver todos aqueles comerciais na TV, a televisão querendo vender todos os produtos, e os outdoors, todo mundo pensando em vender, e em ganhar, e em obter lucro... era uma palhaçada. O mais idiota e mais fútil, e mais chamativo, era o que mais vendia, era o que todos queriam no Natal... quem gritasse mais alto, desde Outubro, nas ofertas, era o felizardo... peças publicitárias misturando sentimentos humanos verdadeiros com o consumismo e o capitalismo crescente. Neste quadro, observar os países de Terceiro Mundo durante as festas natalinas era até engraçado, ridículo. Dá-lhe importação. E o Japão? EUA? Há, há. Mas não é pra menos... se importamos, se herdamos o próprio Natal americano, assim como a maioria dos outros países, por que não haveríamos de importar também os presentes, e todo o monte de porcaria que se vende?... A american culture fora de tal forma assimilada pela gente, com tanto orgulho e boas-vindas, que agora parecia que não tínhamos e nunca tivemos identidade brasileira. Ter, tem. Mas está escondida sob tantos papais noéis de brinquedo e tantos discos da Madonna.
Tudo isso passou pela cabeça de Tequinho, enquanto fingia que ouvia o discurso do Antolini velho de guerra. Pensou nisso, mas depois desencanou geral... o negócio era desencanar mesmo.
- Tequinho, eu quando menino pé no chão era como você, garoto... eu era como você. Só que eu era um garoto singular, era sim. Eu tinha mãos enormes, e pés maiores ainda, e um cabeção deste tamanho... ficava todo atrapalhado com o tamanho dos membros... – e o velho Antolini começou a andar feito um zumbi, com as mãos na cabeça, como se tivesse um cabeção. Já não tinha nada a ver com Natal, agora. E Tequinho, com sua imaginação dos inferno, começou a imaginar o velho Antolini pequeno, aos dez anos de idade, com os pézões. Visualizou o Antolini entrando num ônibus e atrapalhando e tropeçando em todo mundo por causa do tamanho dos pés, e todo mundo incomodado, dizendo pra ele sair do ônibus. Era um pensamento cruel. Mas é que a loucura já dominava a mente de Tequinho, a estas alturas.
De repente o pai do Tequinho, filho do velho, põe a cara na porta do quartinho.
- Pai, Tequinho... a ceia vai ser daqui a pouco, hein? – o pai de Tequinho estava visivelmente entediado, também.
- Hã? – o velho era surdo.
- A ceia, pai... a ceia.
O velho Antolini era uma dessas pessoas que, no meio de uma conversa, de repente corta a outra pessoa e interrompe com um assunto que não tem nada a ver com o anterior.
- Filho – disse Antolini, para o pai de Tequinho – Já começou o Faustão? Já?
- Não, pai. No Natal não tem Faustão.
- Como não? Eu sempre vejo o Faustão no Natal – o velho era teimoso – Como não tem?
- Não tem.
- E o que é que tem no Natal então?
- Roberto Carlos, pai – respondeu o pai de Tequinho, aborrecido.
- Ah, mas antes era Faustão, não era?
O filho não disse mais nada e simplesmente acenou com a cabeça. E avisou novamente da ceia.
- Já vamos. Estou falando com o Tequinho – disse o avô.
Logo eles ouviram, vindo lá da cozinha, o som da TV: “São tantas emoções...”. Sim, realmente, era o Roberto Carlos.
Tequinho a ponto de explodir.
- Tenho algo pra você – disse o velho, misterioso. Foi até o grande guarda-roupa, cheio de tranqueiras velhas, e ficou lá, de costas, fuçando um tempão. Tequinho querendo ir comer. O velho ficou tendo um acesso de tosse, e espirrando, por causa da poeira, nariz escorrendo gosma, até que se virou e abriu um sorriso asmático e doentio para o netinho. Trazia na mão um pequeno objeto. Alguma porcaria velha que com certeza ia querer se livrar dando pro neto.
- O que é isso? – perguntou o Teco, sem vontade alguma.
- Isso – o velho olhava o objeto com um brilho nos olhos de cachorro – É um chaveirinho – ele fez uma longa pausa. Senta que lá vem a história – Este chaveirinho é especial, Tequinho. É, sim. E tem a ver com o Natal, tem, sim. Olha só, quero que preste bastante atenção na história que vou contar.
O velho começou a contar toda a trajetória do humilde patriarca da família, Rugiero Antolini, que chegara da Itália, no início do século, sem um tostão no bolso. Toda aquela ladainha que era uma mistura de O Rei do Gado com Godfather. A esperança... e a bondade... a honestidade... o tédio. Aí o tal do Rugiero teve filhos, com uma italiana que fugiu de casa, pois os pais eram fascistas. O Rugiero, anarquista. Aí um destes filhos veio a ser o velho Antolini, e o tempo passou mais ainda, vieram os anos 60 e ele teve filhos também. O pai morreu. Don Corleone, Don Peperone, Francesco e Giovanni. Um dos filhos do velho era o pai de Tequinho. Seria o Michael, no filme do Coppola. Grande roteiro. O velho sabia aumentar e dramatizar uma história quando queria. Aí falou e falou de trabalho, de bondade, de Natal... e disse que o chaveirinho passava de geração pra geração, desde o século passado, na Sicília, e nunca um membro da família tinha perdido ou esquecido o chaveiro. Rugiero, por exemplo, certa vez escondeu-o no ânus durante uma invasão de Mussolini. E seu filho, Genaro, uma vez partiu do Brasil e foi até a África. No meio do caminho lembrou que tinha esquecido o chaveiro. Voltou. Pegou o chaveiro. Aí viajou tranqüilo. Que honra. O chaveiro era sempre passado para o filho homem mais velho. Era Tequinho.
- Aqui está.
Ele ficou segurando o chaveiro no dedo, suspenso, um tempão, olhando fixo pro Teco. Este não agüentava mais.
O tal do chaveirinho era uma madeirinha velha talhada a mão presa numa correntinha e uma argola. Tequinho enfiou no bolso e disse, a voz fraca:
- Vamos comer, vô.
- Tá.
O velho quase deixou cair uma lágrima.
Na mesa, aquele inferno. Todos preocupados com uma coisa: a comida. O peru, o peru, o peru! Loucura. Todos brigando indiretamente por fatias tenras e macias. O vinho logo ia se esvaindo goelas abaixo. Crianças correndo, presas atrás das cadeiras ou embaixo da mesa. Uma tia grita. Espetaram ela com um garfo. Quem foi? O Juquinha. Cadê aquele rato? Quem? O Juquinha. É o meu filho, olha como fala, sua cadela! Sua o que? Ela é minha mulher, não vou admitir... Jorge, deixa que eu me defendo, seu... Sua... Ora... Parem... Socorro! Juquinha! Cale a boca! Dá meu frango. Tequinho, como você cresceu!
Ou sua família era o cúmulo da inconveniência, ou Tequinho é que era um desajustado na sociedade. Ele precisava fugir dali. Mas pra onde...?
Foi pro banheiro. Lá podia ficar sossegado.
Depois não tinha onde ir e resolveu ir até a sala. Lá dava até medo: Papais Noéis e a árvore enfeitavam o lugar, com suas luzes e musiquinhas pertinentes. Tudo brilhando, tudo lindamente preparado para o Natal...
Tequinho foi até o Papai Noel de brinquedo e notou que, de dentro dele, vinha uma música natalina que era um saco, e ele resolveu desligar, pegando-o nas mãos. Aonde será que desligava? De repente, tec! A cabeça caiu. Ai meu Deus e agora? Quebrou o Papai Noel de brinquedo. Meu Deus. Vão brigar com ele. Como é que encaixa? Assim? Não. Ele recolocou a cabeça, equilibrou-a sobre o corpo do Noel decapitado e deixou ele quieto na mesinha.
Essa foi por pouco.
Depois olhou pela janela. A cidade inteira brilhava. As escolas, enfeitadas, brilhantes, bonitonas. As casas do bairro impecáveis. Era a coisa mais deprimente deste mundo, para Tequinho.
De repente, ele ouve um som diferente, tipo um baque pesado, vindo lá de fora, no quintal. E resolve ver o que é, já que não quer voltar pra cozinha mesmo.
Ele abre a porta, olha lá fora e não acha nada. De repente, outra vez. Um barulho. Foi lá atrás.
Tequinho andou até o quintal dos fundos, onde havia um jardim. A casa dos avós era realmente grande. Explorou tudo, até que teve um sobressalto. Tinha alguém escondido nas figueiras.



2 – A trupe de gnomos

Tequinho estava assustado, mas pensou que não tinha nada a perder. Foi andando até que viu: tinha três ou quatro pessoas estendidas no jardim, de onde vinha um barulho de rádio, também. Os vultos perceberam sua presença, e desligaram a música. Tinha fumaça no ar.
Teco já ia se preparando pra correr pra dentro de casa, quando ouviu uma voz:
- Ei, guri... vem cá! Vem cá, anda! – disse uma voz estranha, no meio do mato. Ele parou e olhou.
- Quem são vocês? Vou chamar a polícia! Se vieram roubar a casa, eu...
- Fica quieto, guri... chega mais! Anda! Não somos ladrões...
- É, confia na gente, vai... por favor... – disse uma voz de garota.
- Ele está assustado! Dá pra passar o fumo ou tá difícil? – disse uma terceira voz.
- Cala a boca, Barone! Deixa eu falar com ele.
- Mas eu não disse nada, eu só...
- Ah, olha só, o Barone está me cutucando! Pára, seu besta.
- Não.
Tequinho foi andando lentamente até eles, até que pôde realmente distinguir as sombras. Eram três adolescentes, mas não adolescentes normais. E havia um grande saco ao lado deles.
- Quem são vocês?
- Somos duendes de Natal – disse aquele que parecia ser o mais velho – Me chamo Lennon. Prazer.
Eles se apertaram as mãos.
- Esta é a Pri.
- Olá, como se chama?
- Eu sou o Tequinho. Prazer.
A garota tinha lindos olhos claros que brilhavam no escuro do jardim.
- Este aí é o Barone, esta anta – disse ela, sorrindo e tragando o fumo.
- Cala a boca, Priscila, senão eu vou...
- Ai!
- Fiquem quietos, estou tentando conversar com ele – disse Lennon, sério e atento aos gestos de Tequinho.
- O que estão fazendo aqui? – perguntou Tequinho, muito confuso.
- Bem, nós... ah, fala você, Lennon.
- Nós estamos fugindo, na verdade, amigo. Somos duendes de Natal, sabe, e esta noite nós deveríamos estar...
- Como é que é? Vocês são o quê?
- Duendes...
- Como assim, duendes?
- Duendes! Nunca viu?!
- Não! – Tequinho se aproximou ainda mais e notou as orelhas pontudas, as feições distintas e as roupas estranhas que o grupo usava – Pelo menos, não na minha frente! Achei que isso nem existisse!
- Pois então nos subestimou! – disse Lennon.
- Ei, não acredita na gente, seu tonto? – disse Barone, o imbecil, e levou um tapa na cabeça dado por Pri.
- Deixa ele em paz, ele só está confuso! Barone, você não presta.
- Cala a boca, sua chata! Lennon, ela me bateu!
- Calem a boca! Tequinho, vou explicar tudo pra você!
- Acho bom. Não estou entendendo nada, até agora – Tequinho se aproximou mais e se sentou perto deles. O cheiro da fumaça era insuportável.
- Bem, somos duendes e, se você não sabe, nós deveríamos estar trabalhando hoje, porque é véspera de Natal, e todos os adolescentes duendes estão entregando presentes e fazendo todo o serviço. Nós resolvemos fugir e nos esconder em algum lugar pra fumar uma erva...
- Como?! Vocês invadiram a casa do meu avô pra fumar ma...
- Não... pode até ser parecida, mas não é como esta erva que vocês, humanos trouxas, fumam. Essa aqui vem da nossa terra – disse Barone, cujos olhos já estavam caídos e vermelhos. Pri bebia de uma garrafa roxa. O líquido era estranho.
- E qual é a sua terra? – Tequinho tinha mil perguntas a fazer.
- É muito complicado, Tequinho. Vocês humanos trouxas não entendem muito bem... mas vou tentar explicar. Sabe tudo o que você vê em livros e na TV sobre gnomos, e duendes, e tudo o mais?
- Sei.
- Pois é tudo verdade, é sim, só que pra vocês o assunto já se banalizou, vocês não levam a sério, entende? Virou desenho animado.
- Percebo.
- Mas, se fossem inteligentes (não falo de você, Tequinho, e sim de toda a raça humana), parariam pra pensar e perceberiam que é tudo real, só que é uma outra realidade. Pense bem. O Natal é uma puta duma coisa imbecil também, não é?
- É – concordou Tequinho, suspirando.
- Então. Mas mesmo assim vocês idolatram o Natal como sendo um treco super importante. Pensam o ano todo na comida, nos presentes, no Papai Noel, na decoração... e é tudo tão materialista. Pois bem, nós também parecemos ser algo que surgiu da fantasia, mas não, nós existimos. E se vocês dão tanto crédito pra Natal, poderiam muito bem acreditar que nós existimos.
- É, só que, se alguém chegar, entre nós, e dizer que acredita em duendes, ou vai ser chamado de louco ou vão rir dele – disse Tequinho – Por isso ninguém se compromete em ir além deste mundo material que nos cerca.
- Exatamente. Vejo que compreendeu bem o paradoxo – disse Lennon – Quer fumar, Tequinho?
- Não, obrigado... aqui, isso é considerado droga... eu acho. Se me vissem com isso, eu iria preso, porque a imagem que fazem, em geral, deste tipo de substância, é uma imagem distorcida, entendem?
- Claro. Conhecemos a sua raça, ele pensam pequeno.
- Talvez mais tarde.
- Certo. Muito bem, onde eu estava? – disse Lennon.
- Você dizia que nós existimos de verdade, Lennon.
- Obrigado, Pri. Bem, Tequinho, não vivemos na Terra, mas também não vivemos fora dela...
- Como é que é?!
- Calma, depois você vai entender isso melhor... já sei. Pri, vai lá e pega o saco. Faz uma demonstração pra ele.
- Certo.
A garota, bela e graciosa, se levantou e foi até o grande saco de pano que estava por perto. Enfiou a mão lá dentro e começou a tirar, aos poucos, uma escada de dentro. A escada tinha uns vinte metros.
- Não é possível... – balbuciou Tequinho.
- Claro que é! – disse Lennon.
- Tudo é possível – disse Pri, com aquele brilho nos olhos, sorridente, olhando fixamente para Tequinho. Como ela era linda...
- Pronto, Pri. Pode parar. Bom, Tequinho, tudo isso é pra você acreditar na gente.
- Eu acredito!
- Porque precisamos de um favor seu, cara – Lennon falava em tom amistoso.
- É muito importante pra nós... – disse Pri, docemente.
- Que raio de nome é Tequinho? – perguntou Barone, em tom sarcástico.
- Na verdade me chamo Theodoro. Mas minha família me chama de Tequinho.
- Já sei! Podemos chamar de Tim? – sugeriu Pri, divertida.
- Tim?!
- É. Tim!
- Mas... espere. Qual o favor que vocês precisam de mim?
- Estamos com um problema, Tim... como sabe, fugimos dos supervisores do Natal... e viemos aqui no seu quintal fumar uma erva e esconder um negócio... – explicou Lennon.
- Que negócio? – Tim estava confuso.
- Ele – Lennon apontou para o corpo de um outro adolescente que, até agora, permanecera oculto pelas plantas, deitado no jardim.
- Quem é ele?
- Esse é o Led. Ele bebeu demais. Veja só: tomou vinte doses de Trinca – explicou Pri.
- O que é Trinca?
- Trinca é uma bebida muito forte que só a gente, duende, toma – disse Barone.
- Precisamos deixar o Led em algum lugar, Tim – dizia Pri – É urgente. Se não acharmos um local pra deixar ele, não poderemos nos divertir na noite de Natal.
- O que vocês planejam fazer? – perguntou Tim.
- Nós vamos cair na gandaia por aí – disse Barone, chapado. Seu corpo estava mole.
- Por favor, cara – Lennon parecia sincero – Podemos ajudar você a sair daqui, se quiser.
- Quem disse que eu quero sair de casa na noite de Natal? – retrucou Tequinho, contrariado.
- E não quer?
Tim ficou calado. É claro que queria escapar daquele tédio de Natal, aquela hipocrisia toda. Era o que ele queria: se ver livre dos parentes, da ceia, do avô Antolini, dos primos insuportáveis. Este Natal poderia ser diferente. Só dependia dele.
- Quero – respondeu ele, afinal – Mas... onde posso deixar ele?
Tim olhou em volta do quintal: havia um pequeno quartinho com coisas velhas onde ninguém entrava mais. Poderia deixar o coitado do Led por ali, até voltarem.
Os outros ajudaram Tequinho a levar o amigo desmaiado. Tequinho entrou em casa novamente, uma última vez, para pegar a chave do quartinho. Passou pela mesa cheia de familiares entretidos e ocupados em serem melhores uns que os outros. Ninguém notou sua presença e sua ausência. Pegou a chave. Alguns cantavam “Noite Feliz” perto da árvore de Natal, fingindo estarem felizes.
Mais uma vez lá fora, Tim abriu o quartinho e guardou Led lá dentro, no meio das ferramentas do avô. Led era grande, cabeludo e cheirava a pinga. Vestia uma camiseta de rock.
Os duendes adolescentes eram especiais: tinham orelhas pontudas como demônios, cabelos claros e compridos, olhos igualmente claros e estranhamente diferentes, e vestiam roupas coloridas e remendadas.
Pri era particularmente especial. Era loira, tinha um rosto suave e tranqüilo. Inspirava poesia em Tim. Ela tinha uma espécie de magia em volta dela.
Terminada a tarefa, eles se reuniram novamente no jardim:
- Bem, muito obrigado, Tim – disse Lennon, apertando a mão dele – Você salvou a nossa noite.
- Valeu mesmo!
- É.
- Mas... – continuou Lennon – Se quiser vir com a gente...
- Vem, Tim... vai ser divertido... confie em mim... – disse Pri, com aquela voz de veludo.
- Não tenha medo... – disse Barone, mexendo as mãos no ar e soltando uma magia roxa em volta de Tim. Eram estrelinhas brilhantes e cintilantes num fluído colorido que parecia anti-matéria.
- Não sei...
- Venha!
- Tá bem, eu topo – disse, afinal, Tim.
- Legal!
- Eu sabia que ele ia aceitar!
- Sabia nada, Pri! Você não sabe de nad...
- Cala a boca, Bobone!
- Lennon, ela me chamou de Bobone! Eu vou bater nela!
- Calem a boca! – mandou Lennon – Tequinho, você não vai se arrepender! Eles lá dentro nem vão perceber que você foi conosco. E outra: prometo que te conto mais coisas sobre a gente durante a viagem...
- Legal – Tim ainda parecia meio preocupado.
- Apaga o baseado, Pri.
- Já apaguei.
- Ei, Tim – lembrou Lennon – Acho que você ainda não conheceu o Ramone, né?
Tim somente agora percebeu que havia mais um jovem duende no jardim. Ele dormia.
- Acorda o Ramone!
- Ei, Ramone! Vamos, tá na hora!
Ramone acordou e se espantou ao ver Tequinho.
- Ramone é meu irmão – disse Barone, abraçando o sonolento irmão.
- Ramone e Barone?
- Isso mesmo.
- Vamos indo – disse Lennon – Temos a noite toda pela frente!
Tim pareceu perdido:
- Espera aí... como que vocês vão sair daqui? Escalando o muro? Voando?
- Mais ou menos isso – disse Pri, que começou a levitar lentamente e deixar um rastro de poeira dourada em baixo dela. Então ela levitou Tim no ar também, e todos fizeram igual.
- Ei! Me põe no chão!
- Calma, Teco! Você está flutuando! – explicou Barone.
Todos foram levitando até o telhado da casa dos Antolini. Lá em cima, eles embarcaram num grande trenó de ferro acolchoado por dentro, e com luzes de magia em volta. Na frente, três renas se preparavam para levantar vôo.
Eles foram até o céu e começaram a voar pela brisa noturna da noite de Natal, atravessando por cima aquela cidade iluminada pelo espírito natalino.




3 – Boemia e psicodelia

Nas alturas, a vista dava até medo. Tequinho nunca sequer tinha voado de avião, nem nada que saísse do chão. Sentiu um frio na barriga igual quando ele ia na montanha russa. Só que era melhor ainda.
Os outros comentavam o que fariam durante a noite de Natal, enquanto que Tim só ouvia e deixava a imaginação fluir... será que isso está realmente acontecendo? Ou ele estaria sonhando? Não, era real demais...
- Eu queria que o Chatão de Natal visse a gente agora! Ele ia entrar em parafuso! – gritou Barone, extasiado.
- Quem é Chatão de Natal? – perguntou Tim, interessado.
- Ué, o Chatão! Também conhecido como o Idiota! – disse Pri, divertida.
- Claro que conhece, Tim! Peraí, como é mesmo que eles chamam o Chatão por aqui...? Você sabe, Ramone? – perguntou Barone, confuso.
- Ah, aqui eles chamam de Papai Noel – informou Ramone, que era calado, distraído, porém muito culto.
- Papai Noel?! Ta brincando comigo? Que nome estúpido! – espantou-se Barone, que não conhecia muita coisa sobre os humanos.
- Papai Noel é o Chatão? – disse Tim, confuso – Mas por que?
- Porque ele é o maior imbecil no mundo inteiro! Um sacana – disse Pri, abrindo uma garrafa de champanhe e enchendo um copo.
- Um canalha – emendou Barone, pegando também um copo.
Neste momento o trenó atingia uma velocidade de 100 Km/h, uma velocidade consideravelmente alta para se guiar no céu. Quem guiava era Lennon. Ele adorava correr no trenó. O veículo fez uma curva por trás de um prédio e balançou todo, fazendo com que todos caíssem lá dentro.
- Ei, barbeiro, cuidado aí! – reclamou Barone, irritado.
- Não foi culpa minha! Estou tonto! Doidão – disse Lennon, atordoado.
- Deixa eu guiar – pediu Pri, preocupada.
- Nem ferrando.
- Não liga não – disse ela ao Tim – Ele sempre faz essas doideiras, mas é um bom líder.
- Como assim, líder? – quis saber Tim, tomando champanhe também.
- Bem, ia demorar um tempão pra gente poder te explicar tudo nos mínimos detalhes, Teco... por isso, vamos resumir bem – disse Pri.
- Somos um grupo, Tim – continuou Barone – Um dos milhares de grupos que servem única e exclusivamente a uma pessoa: o canalha do Chatão. Vocês humanos costumam nos chamar de gnomos... ou duendes, como preferir. Mas na verdade não somos nada disso... somos ajudantes do Chatão. Certo? Como somos jovens, somos obrigados a freqüentar uma espécie de escola preparatória onde se estuda, como vocês fazem, mas onde também aprendemos a sermos ajudantes de Natal. É uma droga... odiamos ter que ir pra escola Jutenia, mas precisamos. Às vezes matamos aula pra fumar um Pelo.
- O que é Pelo?
- Beck.
- Ah.
- Bem, a gente se prepara o ano todo pra quando chegar o Natal nos dividirmos em grupos, com líderes, e sairmos pelo mundo todo entregando as porcarias dos presentes e garantindo toda a “alegria” do Natal!
- Tim – prosseguiu Pri – Tudo o que você vê por aí, à sua volta, no Natal, é obra nossa. Tudo! Pode não acreditar, até entendemos, mas é verdade: enfeites, comida, ceias, árvores de Natal, luzes, decorações, presentes, é tudo obra da nossa comunidade, chamada Comunidade Herbbie.
- Comunidade Herbbie?
- Isso mesmo. Bem, resumindo, Herbbie era um velho lá da Noruega que, lá pela Idade Média, criou o Natal, ou “Nathaw”, e iniciou toda essa lenga-lenga que vemos hoje. Só que o que aconteceu foi o seguinte: ele criou um povo pra ajudar nos afazeres de Natal. Tipo uma religião, sacou?
- Saquei.
- Aí, passados alguns séculos, surgiu um outro velho que continuou a longa linhagem do outro velhinho. Este era gordo e egoísta, e era um saco. Ficava se achando só porque não podia morrer nunca. Trata-se do Chatão. Ou Papi-Noel!
- Que?! Quer dizer que ele é imortal?! – assustou-se Tim. Barone continuou:
- Isso mesmo. Uma vez ele foi atropelado por vinte renas, na estação Belleteron. Foi pro hospital. Em uma hora estava pulando e fazendo piadas, perfeitamente são. Já foi envenenado, esfaqueado, esquartejado... se fosse pra morrer, já teria morrido. E se acha só por causa disto.
- Incrível.
- Pois é. E até hoje ele fica lá na mansão dele, sentado o dia todo comendo panetone e assistindo na TV todos os filmes sobre o Natal que já foram feitos por vocês, humanos. É o maior fã de “Férias Frustradas de Natal”.
- Puxa vida... – Tim já se sentia meio estranho por causa da champanhe.
- Quem quer um cigarro? Quer fumar, Tim? – ofereceu Ramone.
- Não, obrigado. Mas peraí... são vocês quem entregam os presentes de Natal, então?
- Isso. Só que hoje é um Natal muito mais especial... porque fugimos do trabalho, estamos com você, que é um cara muito legal e diferente dos outros humanos, e vamos nos divertir a noite toda... – disse Lennon, dando uma pirueta no ar com o trenó.
- Onde vamos?
- Espere, Tim... com certeza vai ser o lugar mais emocionante que você já foi... – disse Lennon, misterioso.


Quando era quase meia-noite o trenó do grupo de Lennon seguiu reto em direção ao céu. Subia cada vez mais, para cima. Até que entraram numa espécie de cúpula lá no meio das nuvens, sobre a cidade, onde Tim descobriu que existia um novo mundo...
- Como é que a gente lá embaixo nunca vê vocês? – perguntou Teco, maravilhado.
- A gente se esconde bem.
- Isto não é nada, Tim... é somente o Bar Tequila, um dos nossos points preferidos de Sábado à noite... espere até conhecer os shoppings, praças, edifícios... cada um deles está escondido em diferentes partes da cidade. Vocês humanos são incapazes de nos localizar... – disse Pri.
Eles pararam numa espécie de estacionamento para trenós.
Mais adiante, havia uma plataforma flutuante no ar, que devia ter uns três quilômetros quadrados. Nesta área ficava o tal do Bar Tequila, que, a esta hora, estava apinhado de gnomos e duendes da sociedade Herbbie, dançando, bebendo, comendo e se divertindo no clube...
- Vamos. A noite ainda é criança...
Eles desceram e se dirigiram à entrada do local, onde um segurança verificava cartões de acesso mostrados pelos clientes. Pri usou uma tal de Magia Louca para criar um cartão falso para Tim. Segundo Lennon, esta era uma magia proibida no mundo Herbbie, pois permitia que um sujeito criasse matéria baseado em sua própria imaginação. Era contra a lei, mas eles não tinham alternativa.
Lá dentro tudo era fantástico.
Ao andar pelo Tequila, seguindo o grupo de adolescentes, Tim ficou atordoado, e até tonto, pelo movimento e pelas pessoas que se agitavam no local. Ele já tinha visto clubes e discotecas típicas dos humanos, mas aquilo era sensacional.
Pra começar, o espaço era enorme. Um salão gigante central, com luzes piscando no escuro, servia de pista de dança para os farristas. Num dos cantos, ficava o grande bar, com mesas de restaurante flutuantes e um longo balcão com clientes sentados. No outro canto ficava o restaurante, mais fino e mais iluminado, e na extremidade do salão, um palco com uma banda tocando instrumentos nunca vistos por Tim. Eram parecidos com os nossos. Um sujeito, na frente, cantava e usava uma série de tubos que iam até o teto como instrumento de sopro. Um outro, perto dele, tocava algo parecido com um violão. Era uma tábua dura que ele segurava inclinada apoiada no chão, com três cordas amarradas nas pontas. Para fazer vibrar as cordas ele usava uma espécie de escova de metal. Todos na banda usavam fones especiais de ouvido e microfones instalados em seus pescoços. As roupas eram as mais estranhas possíveis. Ninguém se vestia igual ali. Mais atrás, um rapaz cercado por uma série de teclados hipersensíveis ao calor humano. Ele se movia no ar, flutuando, e seus movimentos faziam os botões vibrarem e produzirem sons amplificados por grandes tubos acústicos pelo salão, sons parecidos com um órgão, só que mais penetrantes. E um quarto músico tocava um tipo de bateria, composta somente por dois grandes tambores de aço.
O ritmo era alucinante, impossível ficar parado.
O grupo deixou-se ficar um pouco na pista, dançando e cantando para começar a descontrair o astral. Tim tentou acompanhar. Pri dava-lhe dicas de como os Herbbies dançavam nos clubes. Os outros procuravam conhecidos entre a massa de pessoas.
Havia uma nova droga circulando pelos clubes noturnos na comunidade Herbbie: o lithium fosfórico. Eram pílulas alucinógenas que faziam o sujeito enxergar coisas e permanecer enérgico a noite toda. Do grupo deles, somente Barone e Lennon, os mais loucos, experimentaram.
Depois resolveram ir para o bar. No bar foram se juntar a um grupo de amigos deles, composto por: Toldo, o gigante fortinho; Melissa, a líder do grupo, muito atraente e mais velha que os outros; Tintin, uma das mais novas no Bar Tequila, ainda inexperiente; Tereza, uma garota muito animada; e Gus, um rapaz que sempre carregava seu violão nos ombros.
O grupo era animado e sempre se reunia lá no Natal. A turma de Lennon foi se juntar à mesa deles.
Bebidas foram pedidas, e o papo colocado em dia. Saudações, cumprimentos, beijos, perguntas, respostas... a novidade era que Toldo estava namorando agora com Tintin, a duende de doze anos. Toldo era conhecido como o garanhão do grupo, e do clube também, pois já tinha saído com quase todas as meninas que conhecia ali. Era um tanto rude com os outros, e vivia bebendo.
Gus disse que o barulho estava incomodando, e ele estava pensando em sair do Tequila e ir tocar violão nas nuvens. Os amigos insistiram para que ficasse pelo menos até a meia-noite, para comemorarem este Natal juntos.
Por incrível que pareça, na comunidade Herbbie eles também consumiam muita música terrestre, dos humanos. Muitos deles eram fãs de Elvis, rock n’ roll, heavy metal, Pink Floyd, blues, valsas, jazz... assim como também tinham seus próprios artistas. Infelizmente os humanos não conheciam seus músicos.
Naquele momento em que todos conversavam e riam juntos, o DJ colocou nas caixas What a Wonderful World. Era uma música muito especial para se tocar naquela hora, pois era um momento de confraternização: o Natal. Se bem que no mundo Herbbie os duendes sempre enxergaram o Natal de modo diferente, nunca se preocupando com presentes e comida, como os humanos, e sim com a alegria e a paz, as festas, o amor, a diversão. Isso é que valia mais.
Uma banda de jazz especialmente contratada começou a tocar, relembrando os velhos tempos das big bands dos anos da guerra nos EUA.
Gus disse que ia ao banheiro. Barone se aproximou de Tim e veio lhe contar algo.
- Ei, Tim... sabe o Gus, o carinha do violão?
- Sei.
- Deixa eu te contar um negócio, só pra não dar gafe depois...
- Hã.
- Bem, ele... ele é doente.
- Sério?
- É. Se você perceber ele se comportando estranhamente, não zombe dele... ele tem uma doença, um mal muito raro, chamado Telequelite, que faz a pessoa ficar com um jeitão meio estranho, alienada... falou?
- Pode deixar, eu compreendo.
- Ele é do grupo há anos, e todos gostam muito dele... só que fora do grupo ele sofre preconceito com a doença.
- Pobre Gus...
- Você quer vinho?
- Vou tomar um pouco.
Tim se arriscava no mundo da bebida. Era algo muito comum para os jovens duendes, mas não para ele. Sabia que não podia ficar tomando muita bebida alcoólica, mas acabou tomando para ver se se divertia tanto quanto os outros.
Quando Gus voltou todos foram dançar. Somente Tintin e Tequinho permaneceram em seus lugares, e disseram que não queriam dançar.
Toldo insistiu, mas Tintin não quis mesmo.
Quando perceberam, estavam sozinhos na mesa Tim e Tintin.
- Você é o Tim, então? – perguntou ela, com sua voz doce de doze anos, bebericando um uísque Tony Runner, o melhor do clube, e fumando um Cherokee, cigarro de marca cara no mundo Herbbie.
- Sou. E você, é a Tereza, certo? – Tim procurou puxar papo também.
Ela demorou para responder, olhou para Tim por um momento, calada.
- Não... Tereza é aquela ali, a altona... ta vendo? Ali, ao lado do Gus.
- Ah, sim. Desculpe.
- Eu sou Tintin.
- Tintin? Bonito nome.
- Obrigado. O seu também.
- Mas o seu é mais... – disse Tim, brincalhão, enchendo o copo.
- Por que o meu é mais bonito?
- Porque o seu nome é o meu repetido duas vezes. Tintin.
- Certo – ela sorriu, tragando a fumaça do Cherokee.
Eles ficaram em silêncio por um momento. Ela observava a pista de dança e parecia olhar sempre para alguém lá no meio. Toldo às vezes olhava na direção da mesa, para conferir a namorada. Tintin encontrava os olhos de Toldo e virava novamente.
- Não vai pedir mais bebida? – disse ela, vendo que a garrafa de vinho estava seca há muitos minutos.
- Eu? Não, acho que não devo beber muito...
- Como não? Aqui é assim mesmo, bebemos constantemente, sem parar... uma garrafa atrás da outra. Afinal, é Natal... temos que aproveitar – continuou ela, olhando novamente para a pista – Garçom!
- Pois não.
- Traga Jerryff bem gelada.
- O que é isso? – perguntou Tim.
- Cerveja. Das boas.
- Certo.
- Eu sei que você é um artista.
- Como? – Tim pareceu não entender.
- Eu sei que você é um artista. Me desenhe.
Tim sacou. Não sabia como, mas ela tinha descoberto de algum jeito que ele desenhava. Tim sempre gostara de desenhar, durante toda sua infância.
- Como sabe?
- Eu sei. Me desenhe.
Ele pensou por um instante.
- Estou sem papel, e...
Tintin recurvou-se sobre a mesa, agarrou um guardanapo e jogou para ele.
- Me desenho nisso – e voltou a fumar delicadamente, desviando ligeiramente o olhar para o pessoal na pista de dança.
- Eu desenharia se pudesse, mas eu não tenho lápis nenhum comigo...
Ela tirou um lápis da orelha de uma garçonete que passava a lado da mesa e deu a ele.
- Me desenhe...
Ele ficou pensando por um momento e então fez alguns traços no guardanapo, sobre a mesa, observando o rosto de Tintin à sua frente, belo e misterioso. Seus cabelos eram finos, alaranjados, e seus olhos azuis. Provavelmente a menina mais bonita, ou mais jeitosa do local... ou uma das mais belas. Suas mãos eram delicadas, branquíssimas e pequenas. Não usava maquiagem nenhuma, só um par de brincos azuis. Suas roupas, talvez um tanto vulgares para seus doze anos, mas muito atraentes. Um vestido preto com um decote exagerado e bem curto. Tim analisou tudo isso enquanto a desenhava.
Então mostrou o desenho à menina, que pegou o guardanapo e jogou a ele de volta.
- Não se parece nada comigo – disse isso séria, fumando, a postura ereta na cadeira. Olhando nos olhos de Tim. Este pegou novamente o papel e olhou.
- Não, não se parece mesmo – concordou ele.
- Você não é artista coisa nenhuma... – riu-se ela, virando a cabeça de lado sem tirar os olhos dele e sorrindo com o canto da boca, o pulso pendente segurando o cigarro.
- Não sou. Mas isso faz alguma diferença para você? – perguntou ele, também com um sorriso maroto se formando.
- Não...
Ela apagou o cigarro e disse que ia ao toalete.
- Ei, Tim, faça um favor enquanto vou ao banheiro: chame o garçon e peça mais vinho pra gente... já acabou.
- Pode deixar.
Neste momento, Tim não percebeu, mas Toldo voltava da pista de dança, sozinho. Veio devagar, fumando, e se sentou ao lado de Tim. Tintin já tinha ido ao banheiro.
- Que noite, hein? – disse Toldo, olhando fixamente para Teco.
- É mesmo... movimentada!
- Você curte cair na farra, não curte...? Timmy, o seu nome?
- Tim. Isso.
- Bem, Timmy, você curte ou não curte cair na farra?
- Eu curto sim. Mas não vou muito a danceterias... tenho que acordar cedo todos os dias...
- Claro. E garotas, Timmie? E as garotas? – Toldo abriu-lhe um extenso sorriso com seus dentes brancos.
- Sim?...
- Não há coisa melhor, não é mesmo?...
- Não, não há...
- Quero dizer, não tem coisa melhor que a gente ter a nossa garota, ao nosso lado, não é verdade, Timmy?
- É.
Tim começou a suar.
- Namorar é muito bom. É claro, quando as garotas são fiéis... você não acha também?
- Acho, eu concordo com...
- Grande Timmy! – Toldo bateu nos ombros de Tim, animadamente – E aí, está agarrando alguém daqui?
- Eu? Não estou...
- Alguém que eu conheça? Hein? Hein? Ah, garanhão! Aposto que ganha todas, não ganha? Há! Ah... Timmy, Timmy...
Tim não disse nada, somente concentrava o olhar na direção do banheiro feminino. Fixamente. Toldo ficou sério de repente, pareceu pensar profundamente sobre algo.
- Sabe, eu respeito todo mundo quando... sabe, quando conheço alguém novo, sabe, eu... eu realmente tento respeitar todo mundo à minha volta...
Ele parou por um momento, e olhou em volta. Depois voltou o olhar a Tim.
- Mas deixo de respeitar... a partir do momento em que não me respeitam igualmente... sabe, eu não tolero isso... não mesmo... costumam dizer que sou temperamental demais... que preciso me controlar melhor... mas acho isso um monte de conversa fiada. Sou como sou... exijo respeito... coerência.
- Está certo.
- Não está mesmo? Bom – ele se levantou, e deu outra palmada vigorosa nas costas de Tim – Acho que vou lá dançar mais um pouco... até mais tarde, Timmy!
- Até.
Tim suspirou. Estava tremendo um pouco. Se recostou na cadeira e serviu-se de vinho, enquanto Tintin retornava e voltava a se sentar à sua frente. Sempre desviando o olhar para as pessoas dançando.
- E Toldo? Voltou pra lá?
- Sim, é, ele voltou... veio aqui por um instante, mas já se foi de novo... você queria falar com ele?
- Não... – disse ela, com desdém, acendendo outro cigarro. Tragou uma vez e disse, inabalável e madura: - E você?
- Eu?... não, acho que não...
- Ótimo.
Ramone e Barone, os irmãos, voltaram para a mesa e se juntaram a Tim e Tintin.
- Ufa! Que loucura, cara! – ofegou Barone, bebendo vinho a grandes goles – Você não imagina o que eu estou vendo!
- O que você está vendo? – perguntou Tim.
- Eu estou vendo tudo... o que vocês não vêem... dancei chapado, e as luzes... as luzes eram... – Barone calou-se, com o olhar fixo no infinito, abobalhado. Viajava com as novas pílulas alucinógenas.
- Ta, já entendi – disse Tim, afinal.
Ramone fumava.
Tintin foi dançar.
Em seguida, Tereza e Gus também voltaram. Estavam cansados e resolveram pedir algo para todos comerem. A idéia era boa, afinal, já devia ser hora da ceia. A meia-noite se aproximava. Mas na verdade nenhum deles dava muita importância para o fato. Alguns, bêbados, dançavam sem nem saber que horas eram.
A meia-noite chegou.
- Vocês não saúdam, não celebram a meia-noite de Natal? – perguntou Tim ao Gus, durante a refeição.
- Não, isso vem de vocês humanos, sempre com estas manias de comemorar as coisas erradas...
- O que vocês comemoram?
- A saúde, a felicidade... nada mais – dizia Gus – Fora isso, nada mais é importante. Amizade...
- Você toca violão? – perguntou Tim.
- Toco, o dia todo. Aqui não posso tocar... a música eletrônica abafa qualquer ruído.
- É verdade.
Havia um rebuliço geral na mesa.
- Parece que Tereza está apaixonada – disse Tim, referindo-se à animada garota que era alvo de brincadeiras na mesa, perto dele.
- Sim, ela sempre quis namorar a nossa líder, a Melissa. Também, ela é linda, não é?
- Peraí, a Tereza é apaixonada pela Melissa? – espantou-se Tim.
- Sim. Por que?
- Bem, eu acho estranho que...
- Os seres humanos também são assim... alguns gostam de pessoas do mesmo sexo... a diferença é que vocês têm muito preconceito contra este tipo de pessoa... pra gente, é muito natural...
- Não consigo entender seu povo... vocês são muito mais vivos... não sei dizer... mais... sabem viver melhor.
- Talvez. É que nossa filosofia é muito liberal e ao mesmo tempo destrutiva...
- Como assim, destrutiva? – perguntou Tim.
- Quero dizer que é muito difícil encontrar alguém, na comunidade Herbbie, que não seja um boêmio, que não beba, fume ou se drogue constantemente, que não seja poeta, liberalista, ou, como vocês dizem, “hippie”. Adoramos música, poesia, beleza, amizade... estamos sempre juntos, fazendo algo juntos... somos unidos.
- Isso é interessante – Tim tentava imaginar as noites e madrugadas dentro da comunidade Herbbie. Ele queria que na Terra as coisas também fossem assim.
Finalmente chegou um momento muito especial na noite. Era a hora da troca de presentes. Mas era muito diferente do Natal que conhecemos. Para os duendes, presentes não eram coisas materiais, e sim sentimentos e emoções. Trocaram, naquela noite, muitos abraços, beijos, poesias, sorrisos, confidências e sonhos em comum. Quando Tim começou a ver tudo aquilo, quando viu uma pessoa escrevendo poemas para dar ao amigo de presente, ou dando abraços em todo mundo, distribuindo frases sábias e saudações, quando viu tudo isso acontecer, ele teve certeza: aquele era o verdadeiro Natal. Sim, era sim. Só podia ser... e lamentou que, talvez, ele fosse o único ser humano a conhecer de perto o verdadeiro Natal. E sorriu neste momento, ao mesmo tempo triste e contente.
Em seguida o DJ natalino anunciou que iam começar as valsas e danças românticas de Natal. Ele não entendeu, e Lennon veio explicar para ele:
- É assim, Tim: as valsas e danças românticas de Natal começam após a troca de presentes. Toca-se músicas lentas, para se dançar com um par que a pessoa deve escolher. Uma pessoa de quem goste muito. E estas danças são especiais, pois temos a chance de conversar e ficar junto da pessoa que estimamos, Tim.
- Entendi.
- Vou te contar um segredo: estou apaixonado por uma garota do nosso grupo aqui... – disse Lennon em voz abafada, antes da música começar. Os pares já se aprontavam.
- Quem é? – perguntou Tim, curioso.
- Observe. Vou chamar ela para dançar. Preste atenção e saberá quem é.
Lennon seguiu reto em direção de Pri, segundos depois. Pri aceitou a dança. Provavelmente os dois começariam um namoro hoje, pensou Tim. Na verdade Tim tinha achado Pri muito bonita desde o início, mas percebeu algo entra ela e Lennon. Além do mais, uma outra pessoa ocupava os pensamentos de Tim esta noite. Tintin.
Tim não sabia com quem dançar. Antes que pudesse pensar, porém, foi agarrado por uma mão pequena e clarinha, que só poderia pertencer a uma garota: Tintin. Ela levou Tim até o meio do salão, e eles esperaram a música.
- Eu... não sei o que dizer... e o Toldo? – perguntou Tim, abraçado a ela.
- Toldo? Olhe ele lá – apontou ela, séria. Toldo estava um pouco afastado, agarrando uma garota mais velha que Tintin, e mais experiente – Não quero mais olhar para ele, nunca mais. Ele me deixou sozinha, me fez de trouxa desde o começo... ele não é como você, artista...
- E como é que eu sou, Tintin?
- Você é quieto e brilhante, Tim...
- E você, Tintin... você brilha duas vezes mais... sabe por que?
- Já sei... porque meu nome é o seu, repetido duas vezes.
O DJ mandou ver em Smoke Gets in Your Eyes, clássico dos anos 50 que inaugurava as danças românticas da noite.
Eles dançaram colados, em silêncio, no escuro do salão repleto de casais unidos. Mas uma hora Tim viu que Gus estava sozinho num canto do salão. Provavelmente estava deprimido com sua doença e nem quis dançar com ninguém. Tim queria ajuda-lo, mas Tintin também precisava de sua companhia.
O perfume dela era tão perfeito quanto ela mesma. Ela tinha cheiro de garota, cheiro de mulher imatura e sensual, aroma perfumado e silvestre. Tim sonhou naquele momento com mil coisas sobre a comunidade Herbbie.
Seguiu-se Only You, The Great Pretender e uma do Sinatra.
Depois começou a parte mais agitada da noite, onde os pares se misturavam e dançavam ao ritmo de Chubby Checker, Haley, Jerry Lee Lewis, Berry e Elvis. Tim e Tintin saíram do salão para conversar lá fora, no estacionamento.
Lá fora estava um pouco frio. Tim deu seu casaco para ela vestir. Os dois estavam numa varanda, próxima a uma fonte. Quando se sentaram no banco, Tim sentiu que precisava beijar a menina-duende. E o fez. O beijo foi como uma bênção. Os dois calados, grudados e apaixonados um pelo outro, sob uma enorme e brilhante lua branca.
As horas que se seguiram, pela madrugada, foram como um sonho confuso e interminável, em que Tim perdeu totalmente a noção das horas e do que acontecia. Ele se lembra somente de ter dançado e ficado junto de Tintin por muito tempo. E de ver seus amigos Lennon e Ramone discutirem o destino de Tim e agradecerem a ele por guardar Led do jardim. Depois viu de relance um brilho colorido transportar Led, o bêbado, de volta para o clube, junto de seus amigos. Agora ele estava sóbrio, acordado. Tim tentava falar, mas não conseguia. Foi levado de volta à sua casa em São Paulo, talvez teletransportado. Perdeu o senso de tempo e espaço, delirou. Disseram que talvez a viagem afetasse o tempo e o espaço. Tim acordou na Terra, ao lado de uma árvore de Natal e de um Chatão de brinquedo sem cabeça. Ninguém notara sua falta, é claro. Será que um dia voltará à comunidade Herbbie? Sim, seus amigos não se esquecerão dele... voltarão ano que vem, ou quem sabe no outro... lembrou-se de ter visto todos se despedindo, fazendo tchau, brilhantes e vivos. Deu voltas e voltas pelo salão, beijos em Tintin e vivas aos amigos de Natal.
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