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Contos-->Templo underground Madame Satã dos anos 80 -- 28/01/2003 - 16:37 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Palpitação 1
Templo Underground Madame Satã dos Anos 80


















W. H. Pereira























Palpitação 1
Templo Underground Madame Satã dos Anos 80



1 - No Madame

Há tempos a meia-noite já tinha se afastado do tétrico horizonte de altos prédios e edifícios da grande cidade e o que no momento se vivia era a pura e eterna madrugada.
No meio de ruas entrouxadas entre si em escalapiféricos labirintos urbanos com seus nomes e lojas e sapatos e bocas e dentes e catarros escarros e cuspe e carteira e passes e latas de cerveja e fumaças de cigarro, estes tresloucados cidadãos-caricaturas de um antro sub-cultural divididos em tribos canibais passeiam matando e sendo mortos, trucidando cachorro a grito e empurrando para trás os ponteiros do relógio a pontapés de bota de bico de ferro... perde-se a noção de tempo, poucos lembram a uma hora destas se realmente estamos 1984 ou se estamos no passado.
Ninguém ali é normal, mesmo, porque o ciclo “normal” daqueles ditos “loucos”, ao meio-dia, começa somente depois da midnight hour. E disso todo mundo sabe.
Existem tantos bares e tantos clubes, e tantos locais para claustrofobicamente meter-se noite adentro, que não se pode coloca-los num guia ou algo parecido, não cabe nem na cabeça de um indivíduo...
Mas o que importa agora é que em um destes cantos amalucados a esta hora os ânimos fervilham no cérebro humano em ponto de ebulição e se preparam para se dividirem em trilhas de fumaça quente pairando sobre os próprios indivíduos. É o Templo, Templo Underground dos animais, situado na esquina do quinto dos infernos com a Rua 12. É a garagem dos demônios urbanos alcoolizados e hipocondríacos no ar boêmio noturno.
Lá dentro o clima escuro ofusca parcialmente aqueles esboçados clientes esfumaçados em suas canetas esfumaçadas pendentes de lábios trincados, rachados, molhados, suados ou secos de tanto beber... sim, secos de tanto beber, pois parece que este mal necessário que vem dentro da garrafa não nos faz nada, às vezes, além de um grande vazio no ser, um vácuo-seca enorme no ego pós-noitada. Sim. E as dançarinas se contorcem em epicêntricos círculos e canos brilhantes em plataformas giratórias e luzes vermelhas cegantes ao mero ser humano normal. Clubinho ferrado, exposição noventista do que é arte pro cérebro de hoje... quero ser o estilhaçado ouvido de uma rapariga sentada no bar consumindo endiabrados acordes de uma banda eletrificada e martíni. O poeta precisa estar aqui para passar a vida inteira escrevendo ininterruptamente às putas de Platão. A cozinha do inferno.
Rolling Stones, cuba-libre, Blade Runner, você viu este filme?, geração beat em ponto The Balla, Smiths. Dor de cabeça o dia inteiro, Give Some Of That Old Blues For Me...
Ester Descartes subiu a escada até o balcão suando e viu Holmes descendo.
- Oi.
- Onde você estava? - pergunta o rapaz, estilhaçado.
- Lá. Vamos tomar alguma coisa?
- Só se for agora.
No bar mal se pode enfiar-se entre os pedaços humanos empilhados procurando álcool e morte. Seria mais fácil dizer: “Me vê uma faca afiada que possa perfurar minha enferrujada jugular, barman-Othelo!”
- Quem diria... não achava isso aqui um lixo? - ele fixa os olhos nela, quando já estão com os drinques.
- É... - ela distraída ajeita o decote próximo aos seios, onde caiu cupidamente uma cinza de cigarro - Mudei de idéia. O pessoal veio, aí...
- Ah entendi. Quem está aí?
- Gustavo, Kik-Füller, Sarah, a Lílian, Finger-Sucker, Sofia, McSilva... todos.
- Que merda. Odeio eles. Por que você...
- Por que ando com eles?...
- É...
- Porque não tenho opção. Escuta, Holmes... - ela se engasgou com o uísque.
- Diz.
- Você mexe com a branca ou tá ainda só no verde?
- No verde... mas sempre digerindo o experimental... tudo pelo novo, né?
- É. Só que...
- Por que?...
- Ah, é que...
- Já sei, você quer um pouco e não sabe pra quem chegar... - disse o rapaz, estalando os dedos - Eu sabia! Finger-Sucker e os outros nunca cheiraram nada, puxam fumo desde a quinta sé...
- Fica quieto um pouco, Holmes, não é nada disso! Eu não curto. Pára de querer adivinhar tudo antes de ouvir. Agora ouve. Olha. Tem um mancebo no Satã aqui hoje, ele veio falar comigo... ele me falou de um lance do pó, saca só... um pó dele lá. Que ele quer...
- ... passar? - arriscou Holmes, protegendo o rosto.
- Isso. Muito bem, Holmes.
- Elementar meu caro...
- Escuta. É sério. Ele veio ver se eu fazia pra ele...
- Por que você? Quero dizer, o que fez ele vir até justamente você pra repassar o treco...? Você nem sequer parece junkie, Ester...
- Não sei por quê. Porque eu sou boa - brincou ela, soltando a fumaça de lado.
- Hum... desculpa então.
- Mas sem brincadeira. Aí eu disse que não dava...
- Como assim? Você não vai querer que eu acredite agora que você recusou uma barganha dessas e...
- Recusei.
- Por que?
- Porque eu quero ficar com o Machone Hid, hoje...
- Você vai ficar com o Machone?!
- Claro... não te interessa, na verdade.
- Como assim, não...
- Péra, Holmes... aí eu falei que eu conhecia um carinha, sabe, um... um colega que talvez fizesse o troço todo... talvez... porque sei que você... aceita, geralmente, este tipo de...
- O que?! Peraí. Você...
- Calma, Holmes! Eu não disse quem era você! Só falei que você procurava ele se interessasse... interessa?
Holmes ficou por alguns segundos calado, de olhar penetrado no ar.
- Não sei... não sei. Quem é a figura?...
- Eu te indico... deve estar lá embaixo, dançando...
I. Não sei, não sei.
II. Ah, caso o traficante fique pra outro dia... descolei uma garotinha pra você que é o seu tipo...
III. Ei, que história é essa? Quem te pediu pra...
IV. Ninguém me pediu, eu fiz porque quis.
V. Vá se danar então.
VI. De nada.
VII. Ah, e quer ainda que eu agradeça? Sai dessa!
VIII. Se não quer, paciência.
IX. Não é isso. É que... você é que é a minha girl... ou não?
X. Depende... depende do seu conceito de girl... hoje não sou sua...
XI. Ah não? E escuta aqui, espertinha... como é que você sabe qual o meu tipo, pra falar com essa menina aí?
XII. Eu simplesmente sei, Holmes. Eu sei.
Ficaram mudos, olhando em volta, mas pensando. Holmes quebrou o silêncio.



2.1 – Vamos ao que interessa

XIII. Ele é confiável?
XIV. Quem...?
XV. O carinha da coca, porra!
- É. Deve ser!
- Deve ser?!... como é que você me...
- Não sei! Como vou conhecer o cara?
- Tá legal, me mostra. Eu vou.
- Sério?
- Vai, levanta daí, Ester.
- Calma! Nossa, Holmes, você é muito agitado!
- Claro que sou - disse ele, pegando o casaco - E é por isso que eu sou legal. Não sou?
Ele esticou o pescoço até ela, de pé, e iniciou um beijo na boca sem compromisso em Ester, que sorriu mas afastou o rapaz.
- É sim. Só que hoje eu sou do Machone, não esqueça disso...



3 - Surfin’ Bird

- Lá.
- Aquele?!
- É. Vai lá.
- Nem um beijo de boa sor...
- Não, vai lá. Tchau, Holmes.
A bebida fazia-o caminhar numa apertada e agoniada tontura míope e numa original descontração espiritual que lhe confiria especial aptidão para certas atividades liberadoras de grande quantidade de adrenalina...
- Ei.
- Você é...
- Sou Holmes, como vai, camarada?
O sujeito o tal do traficante era um homem de trinta e poucos anos de pele bronzeada, provavelmente um daqueles surfistas de férias na cidade sem-mar, só que metido num terno puído fora de moda e listrado, de olhos espertos e furtivos. Logo sacou toda a transação.
- Tem o treco?
- Tenho.
- Que que eu faço?
- Peraí, Holmes... você tá limpo?
- Estou.
- Tem certeza?
- Toda.
- Tudo bem. Seguinte, eu te deixo o pacote lá na segunda cabine do banheiro masculino... eu saio. Você vai lá, entra na cabine, tranca a porta...
- E se não tiver tranca? - interrompeu Holmes, tonto.
- Tem. Eu já vi. Aí você pega o negócio lá, atrás da maldita privada, e guarda num lugar seguro com você... entendeu?
- Entendi.
- Muito bem. Eu quero que você entregue esse material hoje ainda, escutou bem? Hoje. E isso é importante.
- Certo. Pra quem?
- Vou te dar um papel agora com o nome do sujeito e um endereço... aí o resto é com você.
- Tudo bem, xará. E como é o seu nome?
- Por que?
- Porque eu te disse o meu.
Ficaram em silêncio. Cedeu:
- Passarinho.
- OK, Passarinho, pode confiar em mim.
- Toma o papel.
- Peguei.
- Vou te pagar agora. Se o treco todo falhar, eu volto aqui pra você me devolver a grana... de acordo?
- OK.
- Não tente me enganar...
- Certo, se não der certo eu volto amanhã aqui e te devolvo o dinheiro.
- Até mais... a gente se vê.
- Falou, Bird.
- Como disse?
- Bird.
- Ah. Entendi outra coisa.
- O que você entendeu?
- Esquece.



4 - O pó e a maldita privada

Os movimentos são agora meros flashbacks em ângulos consecutivos e intercalados por vozes ecoantes no ouvido, e luzes piscando. Tudo muito rápido e ao mesmo tempo muito lento.
Bar, bebida. Cigarro. Isqueiro. Fumaça. Cabeça. Cabeça. Braço, perna. Coxas. Pernas. Coxas. Cabeça, mão, cintura, cabelo. Punk. Piranha. Gótico. Punk. Punk. Escada. Menina. Menina. Ester. Machone. Beijos. Olhares. Desvios. Extintor. Banheiro masculino. Porta. Maçaneta. Espelho. Segunda porta. Tranca. Privada. Maldita privada. Cocaína. Saquinho. Sorriso! Bolso do casaco. Zíper. Porta. Desespero. Pânico. Porta. Porta! Burrice. Tranca fechada. Tranca destrancada, porta aberta, liberdade, banheiro, torneira, cabelo, sorriso, pista de dança, Ester e Machone:
- Falô, Ester! Tchau, pessoal! Tô indo! Preciso ganhar uma grana fácil, depois te conto como foi!
Saída.



5 - Pé na estrada

Holmes pegou o carro estacionado e arrancou com tudo, o brilho no olhar. Seu carro era uma bala de revólver na trilha da avenida iluminada da cidade movimentada, o gatilho estava na mão, era só apertar agora.
Sinal fechado. 100 por hora, tchau, trouxas.
Ele corre a toda velocidade, aumentando sempre. Ele olha por um instante o tal do endereço que tem nas mãos. Não é tão longe assim, pouco trânsito... vinte minutos feitos.
A polícia. Holmes começa a suar. Por que tinha que correr tanto? Não precisava ter corrido assim... achou que não ia ter nenhuma viatura por perto, mas... nunca se sabe realmente.
Muito bem, nada de pânico. O que fazer agora?
Ele pode simplesmente sair correndo até deixar os trouxas pra trás. É a primeira opção.
Ou ele pode parar o carro obedientemente como um bom cidadão, tomar sua multa por excesso de velocidade e ficar tranqüilo. Afinal, os tiras nem vão querer revistar o cara só porque ele estava correndo... ou vão?
Eu pareço como quem carrega cocaína?
Eu pareço como alguém que está carregando drogas?
Olha-se no espelho. Pela aparência qualquer um percebe que está alcoolizado. Olhos caídos, vermelhos, olheiras de pouco sono, nariz vermelho pelo ar frio da madrugada, boca seca, sede. Ele sua. Começa o pânico.




6.1 - Se Holmes realmente deixa os tiras desorientados


Dane-se. Vou fugir.
E ele pisa no maldito acelerador, mandando tudo para todos os lugares.
Pela larga e longa avenida ele se distancia da viatura. Porém, dois minutos depois, percebe pelo retrovisor que mais um carro da polícia se juntou ao outro e estão em sua cola, ainda.
Precisa achar ruas que lhe sejam familiares e ao mesmo tempo sejam desconhecidas para os tiras, para se esconder e despista-los. Que cagada. Dá até vontade de parar o carro, cheirar toda aquela porcaria daquele pó de uma só vez e morrer de overdose ali mesmo. Calma. Sem pânico.
Holmes pegou o papel que o passarinho surfista tinha lhe dado e leu:
“Wilson - Rua Ramos Correa, No. 67
Entregar em mãos, e somente em mãos”
Holmes tentava se lembrar onde era essa tal de Ramos Correa, mas não conseguia, de tanto nervosismo.
Continuou guiando por um tempo. Precisava tirar os malditos tiras de trás dele. De repente, lembrou-se de um lugar meio afastado e meio deserto no bairro. Sim! A casa de uma amiga, a Vitória!
Holmes, de tão bêbado, começou a ter flashbacks e relembrar um trecho de sua vida, alguns anos atrás.
Conhecera Vitória ainda no ginásio, nas diárias rodas que faziam perto da escola pra fumarem a erva. Lembra-se bem do Alberto, do Júlio, o Kamikase, a Paola, Júlia, Vitória... ah, Vitória era uma das mais fantásticas garotas com quem ele já havia namorado. Simplesmente ela era o tipo de garota que todos querem conhecer, que todos querem ter como amiga ou como parceira. Ela era tão legal, que você podia falar com ela sobre qualquer coisa mesmo, podia falar sobre os pesadelos que teve na última noite, falar sobre um filme que passou semana passada e que é uma porcaria, falar sobre o que você sentia quando fumava ou bebia, ou até mesmo sobre seu órgão sexual. Ela era desencanada, uma menina-moleque que entendia o que você dizia como ninguém e você se sentia confortável com ela. Ao mesmo tempo, era linda e muito atraente. Se bem que a fama que tinha na escola e entre os amigos era de que era uma verdadeira puta, mas isso não era verdade. Acontece que ela era... digamos, aberta... a todos. E isso não é problema algum.
Holmes custou a se lembrar de onde era a casa dela. Fazia muito tempo que não se viam. Ah, sim, ela morava numa pequena rua depois do Casarão. O Casarão era outra maravilha adolescente. Lá eles costumavam se encontrar também para puxar um fumo, naquele ambiente escuro e sombrio.


7.1 – A casa da Vitória

Ele parou o carro em frente à casa e gritou:
- Vitória!
E se aquela não fosse a Casa da Vitória? Será que ele estava tão bêbado que tinha errado de endereço?... era bem possível.
Ninguém respondia.
- Vitória! Vitória!
Apareceu um rosto sonolento na janela. Era a mãe dela. Sim, sim, era a Dona Augusta, a mãe da amiga dele! Graças a Deus.
- Pois não?
- A Vitória está?! É urgente!
- Quem é... espere aí... você não é aquele amigo dela, o... como era mesmo... ah, o Holmes...?
- Isso mesmo! Eu também me lembro muito bem da senhora! Será que eu...
- Ah, Holmes, por que parou de vir aqui? Por que deixou minha Vitória sozinha? Faz muito tempo que não vemos...
- Dona Augusta, por favor, desculpe, mas eu estou numa emergência, e... preciso ver a Vitória agora, senão...
- Claro, claro, não saia daí, já vou abrir.
- Tá.
Fazia frio na rua. Holmes olhava nervosamente para trás, esperando a qualquer momento enxergar a viatura. Vai logo, Dona...
Ela veio.
- Posso colocar meu carro na sua garagem, Dona Augusta?...
- Claro que pode. Nós não usamos mesmo ela! Mas Holmes, menino, por que está tão branco? É o frio? Está muito frio aqui, menino... por que veio esta hora?
- Lá dentro eu explico pra senhora... é muito complicado...
Holmes entrou no carro e enfiou-o na garagem da casa. Morria de medo que a polícia chegasse agora...
Eles entraram, e Holmes se sentiu muito mais seguro.
- Como está, Dona Augusta? Tudo bem?
- Tudo. Agora me diga, menino, por que a correria?
- Eu fui assaltado.
- É mesmo?... onde?
- Perto do centro.
Ele não queria alarmar a pobre senhora.
- Mas está tudo bem mesmo, Holmes?
- Está. Na verdade eu só queria falar com a sua filha, se não for incomodar muito...
- Está bem. Vocês se entendem melhor... ela está dormindo, mas acho que não vai se importar de receber um amigo agora...
- Certo.
Dona Augusta saiu da sala e deixou Holmes fumando no escuro, aguardando impaciente.
Alguns minutos depois uma sonolenta Vitória chegou na sala, devagar, ainda sem entender bem o que se passava. Vestia uma camisola velha. Seus cabelos pretos ondulados e longos estavam esparramados pelo rosto inchado de sono, e quando ela viu o amigo sentado no sofá, arregalou os olhos.
- Holmes...?
- Oi, Vitória. Te acordei?
- Magina...
- Desculpa aí, é que...
- Não tem problema, cara... é que eu tô curiosa, por que você veio esta hora? Minha mãe me falou que cê foi assaltado, mas eu duvido que seja verdade... você, assaltado?
- É mentira. Eu não queria assustar tua mãe.
- Mas agora está me assustando! Por que está branco assim?
- Ela está por perto?
- Quem?
- Sua mãe?
- Não, ela voltou a dormir. Mandou um abraço pra você.
- Obrigado. Senta aí. Quer fumar?
- Não.
- A polícia tá na minha cola...
- Cê tá fodido?
- Mais ou menos.
- Como assim...
- Eu me meti num passe de pó, lá no Madame, momentos atrás, e no meio da entrega os malditos me viram correndo a toda pela avenida... aí vieram atrás, mas acho que consegui confundir eles...
- Vindo aqui?
- Vitória, pra onde eu podia ir? Pra minha casa?! Lembrei de você na fuga e resolvi vir, mas eu nunca ia trazer os tiras pra cá, acho que sou louco?
- Você é louco, Holmes. Sempre foi. Mas agora cê me deixou incomodada. Quer dizer que você cheira, agora, Holmes?
- Não!
- Olha...
- Juro por Deus! Eu cheirei duas vezes na vida, e nunca mais pretendo! Você me conhece! Acontece que tinha um cara com coca lá e me pagou pra entregar, só isso.
- Eu acredito em você. Acho que você ainda acredita no nosso velho ditado...
- “Mexeu com química, a chance é pouca”.
- Isso mesmo. Nunca se esqueça. Se existe o natural, por que se meter com química? A química fode tudo.
- Só fode.
Eles ficaram um momento em silêncio, pensativos. Ele de olhar perdido na sala e ela fixa no rosto dele.
- E aí, Holmes, por que não aparece mais aqui? Senti a maior saudade de você, sabia?
- Eu também! É que eu tô com uns horários meio estranhos, agora... trabalhando sem hora certa...
- Fumando com o seu novo pessoal...
- Que nada! Que novo pessoal?
- A Ester, os caras daquela droga de faculdade...
- Eu odeio eles. Se ando com aquele grupo, é por falta de opção, mesmo. Pode acreditar.
- Mas você precisa voltar a aparecer por aqui. O pessoal ainda vem. Você esqueceu de como a gente se dava bem, e de como era bom juntar o pessoal aqui?
- Não esqueci de nada, Vitória. Não mesmo. E a gente sempre vai se dar muito bem, porque eu adoro você.
- Eu também te adoro. Mudando de assunto, tá saindo com alguém em especial?
- De vez em quando... mas até hoje, nada sério...
- Hum.
- E você?
- Nunca. Só ando com esse pessoal, só fico com estes caras...
- Como sempre.
- Pois é.
Holmes se levantou.
- Foi mal te acordar.
- Não tem problema.
- Você ainda vai dormir?
- Sei lá. Talvez sim.
- Acho que já vou então.
- Quer café?
- Não... valeu.
Ela se levantou também, e foi até a porta.
- Holmes...
- Fala.
- Tem certeza que só veio aqui pra se esconder dos polícia?
- Não. Na verdade eu podia ter ido pra casa de várias pessoas.
- E por que veio aqui?
- Porque queria te ver, sob algum pretexto.
- Pode vir quando quiser.
- Eu sei.
Ele beijou Vitória demoradamente e saiu.
- Tenho que entregar essa bosta!
- Toma cuidado!




6.2 - Se Holmes desencana de fugir


OK, o melhor é parar. Parar e escutar a ladainha dos tiras, e depois continuar o serviço numa boa. Afinal, essa multa não vai deixar ele mais pobre.
Holmes encosta no lado direito da avenida. A viatura se aproxima, mais devagar agora.
Enquanto ele espera, parece que o pânico aumenta. As mãos suam frio, apesar da temperatura baixa da madrugada. A pálpebra do olho treme de nervoso. Ele engole e tenta parecer tranqüilo.
O policial chega na janela.



6.2.1 - O tira é Dado, para a sorte de Holmes

- Boa noite - diz logo Holmes. O tira funga. É gordinho e lembra o Sancho Pança.
- Bom dia.
Holmes sente a frieza e o sarcasmo do policial revoltado por ter de trabalhar a esta hora. E se prepara para receber a multa, levando a mão até a janela.
- Por acaso, senhor...
- Paulo.
- Por acaso, senhor Paulo... você não viu nada de anormal hoje à noite?
- Como disse, senhor...?
- Eu perguntei se, esta noite... se o senhor não viu nada de estranho ou anormal.
- Eu... não vi não, senhor. Não vi nada.
- Não tem visto nada mesmo? Tem certeza absoluta?
- Tenho, sim, senhor...
- Sabe por que pergunto a você?
- Não.
- Porque sei que você, ou melhor, presumi, que você é um cara que anda por aí, sabe como é que é? Anda por aí à noite e deve estar por dentro de tudo que se passa... se é que me entende.
- Não entendo não, senhor. Estou por fora de tudo.
- É mesmo?
- Pois é.
- Quer dizer que está por fora de tudo?
- Já te disse que sim.
- Tu é folgado, sabia, meu?... manera, hein!
- Eu?
- Vou direto ao assunto, senhor...
- Paulo.
- Paulo. Vou dizer pra você que a gente... digo, nós, os “tiras”... estamos com uma pedra bem grande no pé...
- No sapato.
- Como disse?
- Desculpe. É “no sapato”, e não “pedra no pé”. Sacou?
- Saquei. Que engraçadinho que você é, senhor Paulo. Mas eu gostei de você, sabe?
- Obrigado.
- Não precisa agradecer. Como eu dizia, a gente tem uma grande pedra... no sapato. Tá? É um caso... estamos “na cola” de um grupo... achamos que é um grupo... de traficantes, uns bandidões ferrados mesmo... você sabe do que estou falando. Só que são caras com dinheiro, e que querem ganhar mais dinheiro. É simples. Queremos saber se o senhor tem ouvido algo a respeito nos meios que freqüenta...
- Não tenho ouvido nada.
- Calma, nem acabei de falar, caramba. Odeio quando não me deixam terminar o que estou dizendo.
- Desculpe.
- Não precisa pedir desculpa, porra. Basta não fazer de novo. Como ia dizendo, talvez você pudesse nos ajudar, Paulo... pois seria de grande vantagem para a polícia ter alguém deste meio noturno, desse meio malandro, ajudando a gente. Sabe como é que é?
- Sei.
- E aí, o que me diz?
- Não posso. Sou um cara muito correto.
- É mesmo, senhor Paulo? Pois não parece muito, sabia?
- É mesmo? Não sabia...
- Mas é. Pra mim, você não é limpinho.
- Como disse, senhor?
- Eu disse que pra mim você é até bem sujo, viu?...
- Não sei.
- É. Bom... acho que já vou indo. Estou tentando segurar um iminente impulso de te dar uma geral... dar uma olhadinha em tudo...
Holmes ficou calado, olhando pra frente. O tira fungou, insinuante.
- O que me diz?
- De que?
- Deu te dar uma geral agorinha.
- Agora?
- É.
- Sei lá. O senhor é quem sabe.
- Me chama de Dado.
- Que?
- Pode me chamar de Dado.
- Sim, senhor.
- Engraçadinho. Bem... vou te deixar em paz dessa vez, mas veja bem, na próxima vez que eu cismar com tu, meu amigo... já viu.
- Tá.
- Então bom dia pro senhor.
- Boa noite.
O tira se afastou, com um sorriso de canto, ajeitando o cinto, e Holmes se segurava pra não começar a rir. Por pouco não se ferra legal.
Sua cabeça está pesada, ele mal pode raciocinar. O tira o deixou nervoso, tremulo, em pânico. Agora ele começa a imaginar umas loucuras, parece que tomou LSD. Porra, ele só experimentou o treco duas ou três vezes na vida, e isso foi no primeiro colegial! O que será toda essa confusão mental? O pior é que o tira o observa de longe, prestes a entrar na viatura. Ele só vai entrar na viatura quando o Holmes arrancar dali. Só pra conferir pra que lado ele vai. A única coisa que ele precisa fazer é coordenar os movimentos pra poder ligar o carro e sair do acostamento. Agora! Anda! Parece que seu braço se move lentamente, em câmera lenta... até chegar no volante, e depois a marcha... onde é mesmo a marcha? De repente descobre que não sabe mais dirigir. Esqueceu. Porra. Que porra é essa? O rádio está ligado... ou é impressão? Que fita é essa? Breakfast in America? Quem colocou essa droga aí, pelamor de Deus?...
Quando percebe, sem noção de tempo, já está longe do carro de polícia, bem afastado. Sem querer ligou o carro, inconscientemente. Onde está? Ah, a algumas quadras da avenida.
Holmes não entende por que isso aconteceu. Deve ser a bebida. Podia ter batido o carro, pois esteve todo esse tempo em estado de transe, sonhando. Foi por pouco. Ainda bem que quem veio ter com ele foi o tal do Dado, um tira menos filho da puta que a maioria. Porque se fosse um mais...



6.2.2 - Mas se o tira é Donovan, para o total azar de Holmes

Ele caminhava como aqueles carinhas de filme, peitudo, fortinho, invocado. Alto e com uma barriga de chope. Puxava o cinto pra cima, e limpava um ranho molhado do nariz. Todo mundo nesta maldita cidade estava resfriado. Holmes aguardou tentando demonstrar a maior frieza.
O policial nada disse de princípio. Encarava Holmes sem desviar o olhar. Este disfarçava o nervosismo.
O fortinho tirou um chiclete já sem cor da boca e tacou na rua. Aí afinal falou.
- Posso ver sua carteira?
- Minha carteira de motorista?
- É claro que é sua carteira de motorista, achou que eu estava pedindo sua carteira pra te roubar? Acha que eu sou o que, um vagabundo que veio te assaltar? Eu sou a lei aqui, panaca.
Holmes estremeceu. Aquele era um desses tiras que dá vontade de matar, encher de porrada. Ignorantão, metido a valentinho. Mas Holmes tinha que fazer o jogo dele, por causa da cocaína. Em outra ocasião, teria respondido a ele na mesma dose.
Pegou a carteira.
- Esse aqui é você? - o tira tinha um risinho no canto da boca ao ver a foto da carteira de Holmes. Este tinha os cabelos compridos na época.
- Sou.
- Hum...
O que queria dizer aquele maldito “hum”? Hein? Peraí, esse filho da puta queria era tirar um sarro da cara dele, isso sim. Ficou um tempão contemplando a 3X4 e em seguida a cara de Holmes, alternadamente. Um outro policial olhava os dois de dentro da viatura, tomando Coca-cola. Um gordinho. Parecia Bob Hoskins, ou coisa parecida, em Dom Quixote. Ou Burt Young novo.
Holmes sentiu um suor escorrer perto da costeleta. Que merda.
O tira devolveu o documento com desprezo, como que sentindo dó daquele rapaz naquela situação podre, ao mesmo tempo rindo dele com o olhar.
- O que faz na rua no meio da madrugada?
- Estou voltando de uma festa.
- Sério? Que festa?
- Uma festa, por aí... de uns amigos.
- Ah é? Aonde?
- No... no Galileo Saloon.
- É mesmo? Puxa vida, eu adoro festas também. Não é o máximo este Galileo? Não sabia que estava tendo uma festa lá.
- Pois é.
- Quero dizer... eu geralmente fico sabendo destas festas... quando tem.
Holmes ficou calado.
- Sabe... costumo ir em algumas com a Greta.
Não houve resposta. Holmes fingia que coçava o braço.
- Greta é minha namorada. Alemã.
- Hum.
- E como estava a festa? Legal?
- É, legal.
- Muitas garotas?
- Tinha.
- Muitas bocetinhas?
- Sim... - Holmes forçou um risinho meio que pra simpatizar com o tira. Este mantinha a expressão fixa, irremovível.
- No duro? Quer dizer... você deu umas trepadas?
- Eu? Sim, claro.
- Fala aí. Não existe coisa melhor do que uma bocetona bem grande e cheirosa pra dar uma metida, não é verdade?
- É sim.
- Eu mesmo, com a Greta, o negócio é complicado, sabe? Tem dias que ela quer estudar pra faculdade de direito e eu não consigo fazer ela ir pra cama comigo. Eu louco pra meter.
- Entendo.
- Eu poderia falar durante horas, pra você, sobre como é boa a chupada que ela faz, e como ela é ativa na cama, e as loucuras que ela faz com um cara durante o sexo, mas... acontece, Sr. Paulo... que eu preciso falar de outra coisa agora.
- Sim?
Holmes já cantava vitória. Achou que o tira no final das contas fosse só um tanto pedante. Mas percebeu que só enrolava pra chegar ao que interessa.
- Por que tu tava correndo, mermão? Hein?
- Como?
- Não se faz de bobo ou surdo, porque eu não sou trouxa, cara. Tu correndo que nem um loco aí e eu não ia ver nada? Não vou perguntar se tu bebeu... cê bebeu, e não foi pouco. Tá a fim de vim comigo e com o Dado ali? Tá? Hein? Tem uma porrada de carinha lá no xadrez que não vê uma bunda há meses, ou há anos... a sua viria bem a calhar numa noite bonita como essa. E faz tanto tempo que a gente não prende ninguém por aqui, amigo... que eu sinto um impulso quase incontrolável de te levar. Que tu acha? Que tu pensa disso tudo?
Holmes não tinha idéia do que fazer agora. Mas entrou em desespero.
- Hein, Sr. Paulo? A festa foi boa, não foi? Mas não é por isso que você deve se achar no direito de folgar com...
- Quer me multar multa logo, quer me prender, não enrola, sua bicha uniformizada.
O sangue ferveu. Ferveu não só no rosto de Holmes, mas ainda mais no de Donovan, o tira. Este ficou vermelho, podia-se notar algumas veias no pescoço, vibrando. Maldita boca! Tudo virou, rodou, girou em volta de Holmes.
- Seu filho da puta! Vem cá! - Donovan enfiou o bração dentro do carro e agarrou o pescoço dele. Holmes mordeu a mão peluda do policial com toda a força. Nisso o outro tira já deixou cair a Coca no chão e veio vindo. Donovan rugia de ódio. Poderia matar Holmes num só golpe. Holmes pegou a mão do tira, que ia girar seu pescoço, e pegou um de seus dedos. Donovan pareceu não sacar a intenção de Holmes por uns segundos. Este simplesmente levou o dedo médio até atrás, quebrando-o. Agora o tira berrava de dor, inconformado. Pegou a arma. Foi o suficiente pra Holmes arrancar com o carro, se bem que o policial não desistiria tão fácil assim e correu ao lado do carro de Holmes numa incrível velocidade, o dedo médio da mão direita pendendo pra trás, quebrado. Seu rosto era horrível, dava medo. Atirou duas vezes, quebrou o vidro de trás do rapaz. Holmes acelerou o máximo que pôde, mas o gordinho o perseguia com a viatura. O grandão, Donovan, caiu no chão de dor.
- Filho duma puta! Porra! - gritava Holmes, desviando dos carros que vinham vindo no sentido contrário. Estava indo na contra mão! Rapidamente saiu pra pista ao lado antes que um ônibus (um dos primeiros do dia) jogasse seu automóvel longe.
O gordinho ligou a sirene, e foi aí que Holmes viu que precisava encontrar um local pra se esconder.
E rápido.
Ele pensou em sua própria casa (mas logo esqueceu), no apartamento de sua tia, no bairro dos frescos (era sacanagem acordar a coitada, se bem que ele poderia aproveitar e dar uma comidinha na sua prima), pensou na casa da Vitória (mas não podia nem se lembrar onde era, devido ao sufoco e à tontura), no Lino (não, ele certamente ficaria fodido), no Parque Verde...
Mas é claro, o Parque Verde. Ou... ou ele podia arriscar passar no carinha que ia receber o pó. Só tentando. Assim já se livrava da droga e ficava tranqüilo. Se bem que os tiras podiam seguir ele até lá.
Holmes tinha várias opções, como sempre acontece. Mas tinha que escolher uma.


2.2 – Regressão e indecisão – o ponto de fuga

I. Não sei não... – repetiu Holmes novamente.
II. Se você não sabe, eu muito menos... vai ficar a noite toda nisso, ou vai se decidir, cara?...
III. Me deixa, eu decido a hora que quiser.
O álcool começava a fazer mudanças nas cabeças deles.
Passaram-se mais quinze minutos naquela enrolação, e finalmente Holmes se decidiu.
IV. Tá legal, eu não quero me envolver nisso.
V. Nisso o que?!
VI. Coca.
VII. Tu pode pegar uma graninha, bobo.
VIII. Não quero!
IX. Cequisabe.
X. Quem é a garota?...
XI. Vem cá.

Mas, por mero acaso ou ocasião... isso talvez não acontecesse.




7.2 - Entre as árvores e os pássaros do Parque Verde

“E-very-bo-dy... loves my babe! Everybody...” Break on Thru?! Não... peraí, era “Everybody... need somebody... to love!”... mas isso era... Stones?! Uma regravação... foda-se, não importa, que diabo, por que tentar lembrar uma porcaria duma música justo agora, quando ele tem que pensar direito?...
“Try to run... try to fly...” Esqueça isso, por favor! Pense na fuga! Onde foi mesmo que ele ouviu essa música? Ah, estavam tocando no Madame.
O Parque Verde, sim, basta seguir pela avenida, a longa avenida, que ele nem lembra o nome agora, mas lembra do parque, pois costumava vir tocar violão e fumar com os amigos no fim-de-semana.
Precisa chegar lá antes que a viatura volte a encontra-lo. Se encontrar, já era. Jogar a farinha pela janela?! Não!
Logo ele chega ao parque e estaciona o carro num local bem escondido, já no meio do mato. Não há como alguém chegar ali, não mesmo... é uma parte do parque que só ele conhece, só ele e seus amigos vinham ali anos atrás, matar aula. O mato quase cobre o carro.
Depois ele pega a farinha e bota no bolso, bem escondida. Desce do carro, olha em volta. O silencio... ah, o silencio do parque... isso faz ele delirar, se lembrar abruptamente daquela época. Era bom.
Holmes segue andando por uma parte mais aberta do parque. Quase ninguém por lá, pudera, o parque nem deve ter aberto ainda... ótimo. Nesta área há um laguinho, um tanto sujo, e depois umas clareiras com várias árvores cheias de folhas secas caídas pelo chão, e de tronco seco, com uma porção de pássaros escondidos nos galhos mais altos cantando gostosamente. Isso agrada a alma de Holmes, de repente sensibilizado por um lugar de seu passado, encontrado agora intocado, imodificável. Ele olha em volta, sozinho, e até se esquece de por que está ali, se esquece da polícia. Avança mais um pouco e cai sob uma árvore enorme de tronco grosso, sobre um tapete de folhas marrons. O cheiro... é de grama molhada, cheiro de natureza. Fazia tempo que Holmes não fazia isso. Deitar no mato. Ele precisava disso faz tempo, mas não sabia onde encontrar. Sempre achou que fosse vontade de fumar erva. Pode até ser. Mas agora não era. Era esse súbito bem-estar do Parque Verde.
Com a tontura que estava, não demorou a cochilar deitado ali. Acordou meia hora depois, por acaso, pra checar a cocaína no bolso. Teve uma idéia. Era melhor esconde-la em algumas folhas, ou nos galhos, até que voltasse pro carro. Nunca se sabe, podia chegar um guardinha do parque. Levantou-se com preguiça e escondeu o pacote numa brecha dum monte de galhos e folhas grande. Então ficou uns segundos memorizando o local pra não esquecer. E voltou a deitar no mesmo local, pra continuar seu repouso. Podia entregar aquilo daqui a umas horas, não tinha problema.
Holmes sonhou muitas coisas naquele sono tranqüilo. Aquela dormida foi muito agradável, fez um bem danando a ele. O sonho era repleto de animais estranhos, feras como onças, leopardos, leões, todos eles de papel, ou celofane, não se sabe ao certo. Eles caminhavam pela relva, por trás duns arbustos, lentamente, como se fossem de fumaça. E eram lindos, suas cores eram distorcidas, pareciam falsas, uns tons produzidos pelo arco-íris, um sonho maluco, parecia que a luz era diferente, branca, sólida. Luz sólida, sim... e a floresta não tinha dimensões definidas, não se via horizonte, nem céu, nem paredes... Holmes caminhava pela mata no meio dos bichos. Estes somente olhavam para ele, taciturnos, e não reagiam, não tencionavam ataca-lo. Ele se sentiu bem no sonho, com a respiração diluída... até que encontrou alguém. Era Ester. Sim, era ela! Que legal, e já não era a primeira vez que sonhava com ela. Na maioria eram sonhos eróticos. Este não. Mas ela estava nua. Veio andando até ele, sem roupa, e tremendo, horrível. Olhos petrificados, brilhosos, cara de choro. Ela tremia muito de frio. Holmes foi perguntar o que ela tinha, e ela mal podia gemer. Os olhos vermelhos... Holmes percebeu - ela tinha cheirado, com certeza. E muito. No sonho ela era viciada, estava altamente dependente e queria mais pó pra cheirar. Ela tentava falar pra ele que queria mais.
- Me dá... ma dá, Holmes... eu sei que você tem um pó escondido aí com você... anda, me dá...
- Não posso. Senão te dava, juro.
- Vai, desgraçado, será que não está vendo que preciso disso, muito?! Por favor! Me dááááááá’!!!
Ela berrava como louca, e os animais começaram a parar.
Ela ajoelhou no mato, caiu, chorando, pedindo cocaína, como se fosse tirar ela da terra.
Os animais perceberam o rebuliço e prestaram atenção na cena, perturbados. O terror aumentava, a voz dela ecoava na cabeça de Holmes, e este sabia que, mais cedo ou mais tarde, as feras atacariam a garota. E ele nada poderia fazer. Com certeza matariam Ester. Estavam incomodados. Quem era aquela vadia viciada atrapalhando a paz da natureza?
Holmes falou pra parar. Ela não conseguia. Em choque, tremia toda, esfregando os braços em Holmes. Ele viu a aproximação de uma onça pintada, linda, e depois de uma pantera. E então um leão. Holmes empurrou a garota no chão, pra não ser atacado também. Ela ficou irada, e quando foi avançar sobre ele, os animais pularam de uma só vez na direção dela, soltando gritos e rugidos assustadores, horríveis. Holmes desmaiou neste momento e ficou num estado semi-consciente, no chão. Só ouvia o som da floresta ao seu redor, o som da morte, da natureza e do sangue (o sangue tinha som, e era horrível, era medonho), tudo ao redor, dançando que nem uma loucura de pesadelo, um grito feminino interminável, o som de um trem partindo da estação a toda velocidade, e por fim o som da destruição total, como se o mundo todo morresse e se destruísse, e a voz de Deus gritasse a mandasse a morte dele e da amiga, no meio da selva. Depois, o silencio. Total. Por um bom tempo.
O silencio da manhã. Puro e inofensivo. Ele percebeu que estava acordando, abrindo os olhos. A calma voltou, tudo estava em seu lugar.
Com esforço se levantou, quase caiu, desorientado, e recobrou o controle. Respirou. Algumas vozes no parque. Já era de manhã. Bem... agora tinha que pegar o pacote escondido, que ele lembrava muito bem onde estava.
Vasculhou o buraco e não achou nada.
Seu inconformismo era tão grande que ele começou a chutar uma árvore com toda a força, se jogando contra ela em seguida, sempre caindo no chão cheio de mato. Sua fúria só foi abaixar depois de uns minutos. Então chegou à conclusão de que ficara louco, pois ninguém tinha visto ele colocar ali o embrulho, tinha certeza, e sabia que não estava mais lá. Jamais alguém encontraria aquilo por acaso, era impossível. No entanto tinham-no roubado, não restava dúvida.



8.1 - De volta ao Madame Satã

Holmes retornou ao Madame Satã naquela noite com a intenção de reencontrar o tal do Passarinho e inventar uma desculpa bem idiota pra ter estragado os planos dele. Mas não diria que adormecera no parque e perdera a mercadoria. Jamais.
Não viu o Passarinho, e já eram onze e meia.
Lá se juntou a Ester.
XII. E aí, rapaz? Tudo certinho?
XIII. Hum-hum – ele deu um beijo no rosto da amiga e se sentou junto dela.
Eles tomavam umas batidas.
- Ah, sabia que hoje eu sonhei com você? Foi um sonho muito esquisito.
- É mesmo? Conta como foi – disse Ester, interessada.
Holmes percebeu o impulso que tivera. Não tinha pensado nisso. Era melhor não falar. Ou contar depois. Afinal, o sonho era um tanto chocante, talvez ela o interpretasse de forma errada.
- Ah, eu esqueci. Foi muito estranho.
- Esqueceu? Você e sua cabeça de bagre, Holmes.
- Calaboca.
- Seu folgado. Ah, olha lá o pessoal.
- Não estou vendo o seu Machone.
- Ele não veio.
- Por que? Desistiu de você?
XIV. Como?!
XV. Perguntei se o Machone desistiu de você – repetiu Holmes, com ironia, acendendo um cigarro.
XVI. Vai te catar, Holmes. Desde quando eu estou a fim dele?
XVII. Como assim, sua safada? Ontem mesmo você...
XVIII. Tem fogo aí?
Holmes deu um risinho. Algo estava errado.
Ester desviara-se do assunto como se não soubesse do que ele estava falando, realmente. Concluiu que ela simplesmente queria mudar mesmo de assunto. Vai ver, o treco com o Machone não tinha dado certo.
Em seguida lembrou-se de negócio do Passarinho.
XIX. Escuta, Ester...
XX. Fala.
XXI. Você não sabe se o tal do Passarinho apareceu por aqui hoje?...
XXII. Passarinho? Quem é Passarinho?
Ester talvez não soubesse o nome do carinha.
XXIII. O sujeito da coca, de ontem, lembra? Ele se chama Passarinho. Eu queira saber se você não...
XXIV. Que coca, Holmes? Tu ta com febre? – e pôs a mão na testa dele, sorrindo - Num conheço nenhum Passarinho...
XXV. Como... – Holmes parou, sugando lentamente o seu copo de uísque. Tinha o olhar fixo no nada, parado.
XXVI. Deixeu ir lá, tão me chamando – Ester pegou a bolsa e cumprimentou o pessoal de longe, acenando – Fiquei de passar 5 paus pra Cíntia.
XXVII. Não, não vai ainda, Ester... eu preciso saber se... – Holmes não completava as frases. Mas parou. Parece que começava a perceber algo.
XXVIII. Fala! Fala logo, Holmes, pô! Não tenho a noite toda pra esse papo de louquinho não!
XXIX. Esquece. Vai lá. Vai.



9.1 – Um fim

Ele ficou na mesa, terminando o uísque, enquanto algo parecia fazer sentido na mente dele.
Em seguida terminou o drinque e se levantou.
- Vai aonde?
- Já to indo.
- Como assim? São só duas horas!
- Eu sei. Tô a fim de ir pra casa...
- Fica aí.
- Não... tô cansado. A gente se fala!
XXX. Tá bom então... tchau, Holmes.
Ele não foi ainda. Foi até o balcão. Falou com o barman.
XXXI. Ei, Jô.
XXXII. Fala, Holmes.
XXXIII. Manda um martini.
XXXIV. Tá não mão.
XXXV. Jô.
XXXVI. Fala.
XXXVII. Cê conhece um tal de Passarinho, que vem sempre aqui?
XXXVIII. Não... Passarinho?!
XXXIX. Isso.
XL. Nunca ouvi falar. E olha que eu conheço todo mundo aqui, rapaz...
Holmes não ouvia mais nada. Não adiantava ouvir.
E, conforme a bebida descia-lhe pelas entranhas, ele ia tendo aquela estranha certeza de que mais uma vez o álcool começava já a criar coisas em sua cabeça que depois ele não ia saber se foram ou não foram de verdade.




7.3 – A Casa da Vitória

Subitamente Holmes se lembrou onde ficava a casa de sua velha amiga, a Vitória. Sim, não ficava tão longe dali. Ainda ponderou se não era melhor ir pro Parque Verde. Não. Iria na casa da amiga, mesmo.


8.2 – Mais uma vez... a Vitória

Ver 7.1.



8.3 – Depois da Vitória, a coca

Entrou no carro um pouco com pressa, queria acabar logo com aquilo. A lembrança que a casa da Vitória lhe trouxe foi muito forte, mas agora ele precisava esquecer aquilo um pouquinho.
Pra esquecer ligou o rádio. Lembrou-se de uma fita de Jazz que trazia sempre no carro, com os grandes nomes do Jazz raiz. Tinha Bnny Goodman, sim senhor, rapaz, tinha Duke Ellington Orchestra também e toda essa turma.
Agora o negócio era ficar esperto com os tiras, e achar a casa do tal do Wilson.
O endereço era fácil de achar. Em quinze minutos ele despontava na rua do cara.
“Wilson - Rua Ramos Correa, No. 67
Entregar em mãos, e somente em mãos”
Estacionou em frente, era um prédio! Mas e o apartamento? Não tinha numero de apartamento no papel, porra. Mais contratempo. Teria que perguntar qual era o apartamento do Wilson.
Desceu, colocou os óculos escuros (ainda que fossem cinco da madrugada), pra disfarçar as olheiras vermelhas da bebida.
Foi até o carinha, o porteiro, e falou com ele.
XLI. Wilson?!... mas qual é o apartamento?
XLII. É... não sei. O senhor não sabe?
XLIII. Sei. Mas por que você não sabe, se conhece ele?
Ficaram os dois se olhando de olhos arregalados. O mulato era divertido.
XLIV. Tô te sacaneando, né? Vou chamar o Wilson. É o 32.
XLV. Valeu, cara.
O mulato apertou um botão.
XLVI. Oi, o Wilson se encontra? Tá. É um cara...
XLVII. Fala que o Passarinho me mandou.
XLVIII. O... Passarinho mandou ele...
Desligou.
XLIX. Pode subir.
L. Falou.
Holmes seguiu pela fachada, subiu a escadinha, entrou no saguão. Achou os elevadores e esperou, ao lado de uma família comportada. Eles olhavam Holmes de óculos escuros, jaqueta e cigarro, com um nojo próprio de gente metida e com dinheiro. Afinal, o prédio realmente não era ruim não. Era enorme. Um cara chegou suando, com uma raquete e uma bolinha de squash.
O elevador chegou, ele subiu, e lá dentro ficou numa situação de pânico, sentia que alguém o seguia, não se sabia por quê. Parecia que aquelas pessoas sabiam. Mas sabiam do quê?! Porra! Isso era paranóia. Desceu e procurou o 32.
No corredor, a porta do 32 esperava-o aberta. Ele entrou devagar.


9.2 – Wilson

Wilson veio receber ele na porta.
Wilson era um cara engraçado. Altão, magro, mãos ossudas e uma cabeçona rodeada de cabelos enrolados, sebosos e brilhantes. O rosto cadavérico, grandes olhos caídos e lânguidos, insolentes. Um ar de vagabundo e de estudante problemático. Deveria ter no mínimo 25 anos, o Wilson. Vestia um pijama surrado, com bolinhas (devia ter acordado naquele momento), um tanto curto pro seu tamanho, e Raider com meia.
LI. Oi, entra aí, cara.
Holmes entrou, e contemplou o grande apartamento por dentro. O que ele viu foi uma imensa sala de estar, com TV, estante, sofá, tapete, carpete e uma pequena nivelação no chão que levava à sala de jantar, sem porta alguma separando. Havia uma varanda, uma grande sacada dando vista pra cidade. A cozinha, totalmente arruinada, cheia de garrafas, louça suja, copos, pratos, pacotes e sacos plásticos espalhados. Havia chocolate no azulejo. E a sala não era muito diferente não. Restos de fast-food, garrafas de vinho, TV’s e rádios desmontados, quadros e saquinhos de cocaína pelo chão e pelos sofás. Uma garota cheirava que nem uma louca no meio, sobre a mesinha de vidro, assistindo à missa das seis da manhã. Era bonita, porém via-se que ela provavelmente estava se acabando cada vez mais através das drogas. Seu estado era impecável.
Wilson foi até a cozinha, apagou um cigarro na pia e continuou o que estava fazendo no momento em que Holmes chegara – levava um corpo pelo corredor, até um quarto. Um cadáver recentemente baleado, pelo que Holmes pôde constatar.
Holmes parou na entrada estarrecido. Wilson correu pra fechar a porta, e explicou em seguida.
LII. Não posso fazer barulho com aquela porra. Aquele porra tinha que escolher justo a cozinha pra morrer, saco?! É foda. Cê me dá só um minuto, rapaz, eu não demoro com o nosso amigo ali... hehe... parece que ele sofreu um grande acidente, hein? Não vai demorar nadinha. Fique à vontade...
Holmes ficou mudo. Wilson arrastava o morto, de terno, ensangüentado, pelo carpete, com esforço, e guardava uma arma numa gaveta. O sangue estava espalhado pela cozinha toda, espirrado nas paredes.
O procedimento demorou uns sete minutos. Holmes ficou um tanto assustado, mas achou melhor não comentar nada. Deviam ser os podres de Wilson. Algum devedor, ou coisa parecida. Depois Wilson voltou pra sala de mãos limpinhas e suspirou.
LIII. Senta, rapaz. Puxa vida, você é bem novo, hein? O Passarinho me arranjou um garotinho, não é isso mesmo? – dizia Wilson, olhos fixos em Holmes, num jeito brincalhão, não conseguindo ser muito ameaçador. Era seu jeito de simpatizar com as pessoas. Deu a mão para Holmes. Este cumprimentou e sentou.
Holmes estava um pouco acanhado. Olhou sem querer meio que insinuante para a garota. Ela nem tchum, continuava na viagem, cada vez mais afarinhada.
LIV. Meu nome é Wilson, ou “Lebrinha”, como você quiser...
LV. “Lebrinha”? – confirmou Holmes, quase sorrindo.
LVI. Isso mesmo – Wilson disse, orgulhoso e acanhado – Todos nós, nesse grupo, temos apelidos assim. Você conheceu o Passarinho.
LVII. Sim.
LVIII. Pois eu sou o Lebrinha. E tem também o Cãozinho, a Oncinha, que é uma gostosona, baby, ahhh..., e tem o Jacarezinho, não queira conhecer o Putinho.
LIX. Putinho? Mas Putinho não é animal.
LX. Mas é puto. E muito puto, meu amigo – e Wilson fungou, quase sério. Putinho era alguém que deveria realmente botar medo. Em seguida voltou a sorrir amigavelmente – Agora, ela... – e foi pra perto da garota junkie, apertando-a com os braços e beijando-a - ... ela é a Antinha.
A garota se revoltou, se soltando de Wilson, concentrada em ajeitar direitinho uma carreirinha.
LXI. Vai tomar no cu, Lebrinha.
Wilson caiu na gargalhada mais gostosa, relaxando pra trás no sofá, tirando ramela do olho. Ela cheirava.
LXII. Vai se matar.
LXIII. Me deixa.
Holmes ficou constrangido. Achou que era melhor entregar o treco e dar no pé.
Wilson meio que adivinhou as intenções dele e lembrou-se.
LXIV. Sim, sim, a coca. Você tá com ela aí?
LXV. Tô.
Holmes já ia pegar no casaco.
LXVI. Peraí, peraí, podexá, eu só queira saber... relaxa. Depois cê me dá. Escuta... – Wilson ruminava alguma idéia no pensamento – É... sabe, com todo esse papo de animaizinhos... eu não posso deixar de observar...
LXVII. Holmes.
LXVIII. Holmes. Observar que temos que considerar a possibilidade de você se juntar ao grupo.
LXIX. Eu?!
LXX. Isso mesmo.
Ouviu-se um estrondo pesado vindo de um dos quartos do apartamento. Todos se entreolharam. Wilson se impacientou.
LXXI. Puta merda, aquele maldito cadáver agora fica se mexendo... deixa, depois eu arrumo... deve ter caído do maleiro. Onde eu estava mesmo...?
LXXII. Você falava dos seus serviços – ajudou Holmes, pálido.
LXXIII. Você sabe... sempre precisamos de mais uma ajudinha... o grupo é grande, mas você sabe que o negocio cresce, e cresce muito. E o Passarinho me falou de você. Falou que você parece manjar da coisa toda.
LXXIV. Na verdade, não, cara, eu não entendo muito não de...
LXXV. Certo, certo, o que não falta é tempo pra aprender. Certo? Certo. Então eu gostaria que você pensasse seriamente a respeito disso, xará. Vai sair ganhando. Estou com o Passarinho há dois anos, somente, mas posso te dizer que estou satisfeito. Acabei conhecendo a Mayara aqui, esse vadiazinha, andando com os caras. É assim, entendeu? Quem sabe você também não conhece alguém na mesma linha, e faz uns serviços, dá umas trepadas, e fica feliz da vida?! Quem sabe, Holmes...?
Holmes não sabia o que dizer. O cara era um papagaio, e era um bocado franco, e amigável, também. Mas Holmes não queria se envolver nisso.
Wilson olhava pra ele profundamente, entre sério e cordial. De repente falou.
LXXVI. Cê quer dar uma cheirada?
LXXVII. Não.
LXXVIII. Não cheira?
LXXIX. Não, não estou a fim.
LXXX. Cheira um pouco, dá um tiro aí, rapaz, e pensa com mais cabeça.
Mayara, a vadiazinha, estendeu-lhe lenta e sofregamente um espelhinho com pó em cima, encarreirado. Ofereceu.
Ele recusou. Agradeceu, sorrindo.
LXXXI. OK. Quer fazer o negócio, então? – Wilson veio pra frente, desencostou do sofá, se endireitou e cruzou as mãos. Paciente.
LXXXII. Vamos.
Holmes tirou do casaco a cocaína, e entregou na mão do Lebrinha. Este pegou uma balança que Antinha lhe estendeu, e pesou a droga. Pareceu satisfeito. Em seguida testou a química do pó. Sorriu.
LXXXIII. Perfeito. O Passarinho sempre me passa o que tem de melhor. Ei, Holmes, cheira aí, vai. É da boa, aproveita que é de graça.
LXXXIV. Obrigado. Não quero não.
Ficaram todos em silêncio. Wilson pela primeira vez pareceu distante. Pensativo, olhar penetrante, preocupado. Ficou assim por uns três minutos, e depois falou de repente.
LXXXV. Por que “Holmes”?
LXXXVI. O que?! – assustou-se Holmes.
LXXXVII. Você se chama Holmes mesmo, cara? Ou você é fã do detetive?
LXXXVIII. Não, não... é só apelido, me chamam assim desde o ginásio...
LXXXIX. Que legal. Mas você gosta de Conan Doyle?
XC. Eu... não conheço muito, sabe...
XCI. Pois eu conheço. Tudo. Pode me perguntar qualquer coisa do Sherlock, anda, pergunta. Eu sei tudo, rapaz. Tenho a coleção de ouro do Sherlock Holmes, mais os contos avulsos de colecionador, e todos os outros romances do Conan Doyle. Juro por Deus. Você quer ver minha coleção?
XCII. Eu... não sei... talvez outra hora... eu...
XCIII. Não, não, veja agora, Holmes. Holmes! Eu nem acredito! Estou chamando um sujeito de Holmes, nunca pensei que isso fosse acontecer algum dia. Sabe... uma vez eu representei uma peça na escola, e fiz o papel do Sherlock, foi ótimo. Todos aplaudiram, foi excelente mesmo, você devia estar lá pra ver. Tem que ver minha coleção, preciso te mostrar...
XCIV. Eu... tenho que ir. Desculpe, talvez outro dia...
XCV. É rapidinho, você nem...
XCVI. Ele não quer ver sua coleção, Wilson – disse Mayara, cínica, entre uma cheirada e outra.
XCVII. Você cala a boca, Anta. Estou falando com ele.
Ficaram em silêncio mais uma vez. Holmes aos poucos se apiedou de Wilson. Que diabo, por que o cara insistia tanto em mostrar os tais livros? Talvez significassem muito pra ele. Que droga, viu? Foda-se. Não custa nada, não tinha nada pra fazer mesmo! Resolveu olhar.
XCVIII. OK.
Wilson correu pelo corredor, radiante, de meia, e foi pegar os livros. Ainda deu um grito lá do quarto, feliz e anfitrião.
XCIX. Enquanto isso, se quiser dar uma trepada com a Mayara, sinta-se à vontade!
Holmes se encabulou. Mayara ficou irritada.
Wilson voltou, mostrou a coleção, serviu uísque pra todos. Começaram a beber. Wilson deu uma palestra completa sobre literatura policial, tremendamente empolgado. Sabia tudo. E os drinques iam descendo. Bebendo. Bebendo. Holmes ficou tonto novamente, quando o efeito da bebida da noite anterior começava a ir embora.
No auge da excitação, Wilson e Mayara insistiram ainda mais pra Holmes provar um pouco da farinha. Só um pouquinho. E este, maleável, cedeu após mil recusas. Quase voltou atrás. Mas achou que uma vez na vida e outra na morte não tinha nada de mais. A cocaína percorreu seu sangue ferozmente. Ele nunca cheirava, por isso, o efeito foi novo, forte, muito potente.
Meia hora depois disse que precisava ir mesmo. Deu um beijo gostoso em Mayara, disse que queria conhecer ela melhor, apertou a mão do Wilson, agradeceu a recepção formidável, disse que pensava no caso do serviço e foi embora satisfeito, viajando, a ponto de explodir.



10.1 - De volta ao Madame, com a missão cumprida

Nesta noite, como na grande maioria das noites, o Templo Madame Satã estava infernal, lotado, queimando no inferno, literalmente. Os jovens pulavam num ritmo frenético, animados, na pista de dança. Rolava Straycats.
Holmes chegou cedo este dia, internamente satisfeito consigo mesmo. Tinha entregue a coca certinho. Agora era só encontrar o tal do Passarinho, só pra confirmar com ele. Quando eram onze horas avistou o tal, bebendo com uma garota numa mesa. Foi até lá.
C. Olá, estou atrapalhando?...
CI. Que nada, senta aí, Holmes. Esta é a Sheila.
Uma garota de vermelho sentava-se ao lado dele, lambendo-lhe as orelhas. Desviou o olhar lascivo pra Holmes, e fez um movimento sensual com a língua, que deixou Holmes um tanto perturbado.
CII. Fez tudo direitinho?
CIII. Fiz, sim, Passarinho.
CIV. Conheceu o Wilson e a Mayara? O que achou deles?
CV. Legais. São legais, eles.
CVI. Ele te falou da proposta?
CVII. Que prop... ah... sim, ele citou sim.
CVIII. E o que você acha? – perguntou Passarinho, calmo, acendendo o cigarro com o isqueiro. A luz da chama refletiu seu rosto queimado de sol envolto no sobretudo escuro. A fumaça esvoaçou como uma ave no ar. A ave. O Pássaro. Passarinho. Poderia ser efeito das luzes e da fumaça excessiva, mas Holmes podia jurar que vira o Passarinho de olhar fixo atrás dele, num grupo de pessoas do clube, como se estivesse assustado ou atento.
CIX. Eu... já pensei bem, Passarinho... e já decidi, por enquanto não pretendo entrar para o seu...
Passarinho fez menção de levantar bruscamente da mesa e talvez tentar algo perigoso com um objeto que levava na calça, mas ficou no lugar quando o policial chegou perto da mesa e sorriu pra eles, um brilho no olhar.
Apoiou as mãos no tampo. Sorriu mais ainda, e agora Holmes pôde ver. Era Donovan.
CX. Boa noite, rapazes! Uauaua! E que noite, baby! – ele dançava ao som da musica, mirando Sheila agora – Como é, não me respondem nada? Vocês, farristas, boêmios, têm sempre uma resposta pra tudo, ou não têm? Hum?
CXI. O que você quer, Donovan? – perguntou o Passarinho, lentamente, calmo, frio, com intimidade. Ainda bebia.
O tira grandão ajeitou o cinto e encarou o surfista.
CXII. Escutaqui, esperto... tu ta fodido, e sabe muito bem por que estou aqui. Só que o que me surpreende, ou melhor, não me surpreende tanto assim... é o fato de encontrar você com este garoto aqui... Sr. Paulo, não é mesmo?... tive o prazer de conhecer você, Sr. Paulo, ontem de madrugada...
Holmes engoliu um seco. Ia ser preso, com certeza ia ser preso.
CXIII. Estou atrás do teu bando faz tempo, Passarinho – disse Donovan, cruzando os braços – Mas tu num me escapa nessa encarnação não, tá ouvindo?
CXIV. Isso depende da sua capacidade, como tira – rasgou o Passarinho, cínico, controlado.
O tira olhou fundo nos olhos do surfista e proclamou algumas palavras que eles não entenderam muito bem.
- “O passarinho não está cantando porque está feliz... ele está feliz porque canta.” Provérbio Japonês, turma. Pense nisso.
Donovan piscou. Deu um passo pra trás, cruzou as mãos pra trás da cintura e saiu andando lentamente, sabido das coisas, e se perdeu na multidão depois de gritar pra todos ouvirem.
CXV. Meu pessoal tá aqui em volta, ta por aí... aproveita essa noite, turminha, que pode ser a última de vocês três.
E sumiu.
Na mesa, o silêncio.
Ainda assim, apesar do pânico de Holmes, o Passarinho permanecia calmo. Se levantou, ajeitou a gola do casaco, pegou a namorada, chegou no ouvido de Holmes.
CXVI. Escuta, rapaz... não esquenta. Eu sei como sair dessa. Vai por mim. Faz o que eu mandar e a gente não se fode. Se você for ignorante, vai ser pego. Esses merdas não botam a mão na gente, é só fazer o que eu te digo.
CXVII. Sim... – Holmes somente concordava, apavorado, trêmulo, tonto não sabia se de medo ou de bebida – Estou ouvindo, Passarinho... fala o que eu tenho que fazer...
CXVIII. Espere sentado aqui... entendeu? Fique aqui, eu já volto. Não demoro. Não saia daqui até eu mandar.
CXIX. Pode deixar. Eu fico aqui.
E o Passarinho foi se afastando, se metendo no meio da multidão dançante, com a namorada, até se perder de vista.
O mundo de Holmes virou inteiro. Chacoalhou sua cabeça. Ele sonhou, viu coisas, ficou apavorado, olhava de cinco em cinco minutos em volta.
Onde teria ido o Passarinho?
Quanto tempo já se passara?... ele perdeu a noção de tempo.
Meia hora? Uma hora? Duas? Quinze minutos?...
...
Sentiu finalmente uma mão em seu ombro. Já ia se levantar, pensou que era o Passarinho. Mas aí veio uma voz de menina, muito conhecida.
CXX. Holmes, que tu tá fazendo aí bebendo sozinho? Você tá legal?!
Era Ester. Parecia tudo normal no Madame. Ele teria dormido sentado ou fora só alucinação?



11 – Confusão mental, e um final psico-machadiano

Ver 9.1.

Holmes saiu cambaleante do clube e andou trôpego pela calçada até que o som animado da música foi ficando pra trás. Ele botou as mãos nos bolsos, pois estava frio, e quase não percebeu um passarinho morto no asfalto, atropelado, iluminado pelo poste de luz amarela.



7.4 – Se Holmes vai pra casa da tia dele

Ele mal podia raciocinar direito, tampouco dirigir em linha reta. Por isso tinha que optar pelo caminho mais curto, o local mais próximo. Qual era o local mais próximo? Ah, era a casa da tia dele. Foda-se. Podia inventar qualquer desculpa pra chegar aquela hora. O tio dele não morava lá, ainda bem. Assim a coitada não ia desconfiar de nada, e de quebra ele ainda podia bater um papinho com a prima, aquela linda da prima dele.
Entrou na rua com tudo e estacionou. Buzinou no meio da madrugada, acordando a rua toda. Ainda olhou pra trás. Os tiras podiam ter seguido ele até lá. Não viu nada.
Desceu, tocou a campainha, apareceu Júlia, a tia dele. Apavorada.
CXXI. Oi, tia!
Ia ter que explicar tudo pra ela, a essa hora da madrugada. Mas tudo bem, compensava. Porque, depois, prima!...



8.4 – Aliviada a tensão

Procurou o relógio todo eufórico, só o rosto e a mão pra fora do lençol. Puta que o pariu! Dez horas da manhã! Precisava ter entregue o pacote de coca na parte da manhã, não tinha mais tempo a perder!
Saltou de um pulo da cama, arrancando o lençol. Pelado, procurou as calças. A prima acordou.
CXXII. Onde cê vai, Holmes?
CXXIII. Preciso ir, perdi a hora.
CXXIV. Aonde vai? São dez horas, ainda! Dá tempo de mais uma...
CXXV. Tenho uma correria pra fazer agora! Depois eu venho te comer mais um pouco, se você quiser.
Beijou a testa dela anjelicalmente e voou pra fora da casa da tia sem ao menos se despedir. A desculpa que ele tinha dado pra ter chego lá àquela hora da madrugada foi um problema grave no carro que obrigara-o a ir até lá pra chamar um mecânico. Gozado, porque agora, quando ele arrancou, às dez horas, o carro correu que era uma beleza... realmente, a tia achou aquilo muito, mas muito estranho mesmo...


9.3 – Wilson quatro horas depois

Puta merda, dez e quinze agora! O que o tal do Wilson diria? Que furo... deveria passar lá pelas seis da manhã, e passava quatro horas depois. Esses caras que mexem com coca devem ser um bocado exigentes, talvez queiram matá-lo pela mancada. Não, é melhor ser otimista nestas horas.
Parou o carro em frente ao prédio de Wilson. Precisava descobrir agora qual era o apartamento, pois não dizia no bilhete.
Perguntou ao porteiro. Precisava manter a calma.
O porteiro, um mulato brincalhão, disse que não havia ninguém no apartamento do Wilson.
CXXVI. Como não? Eu fiquei de vir, ele sabia!
CXXVII. Bom, não tem ninguém lá não... ele saiu com uma guria três horas atrás... diz que deixou um bilhete por aí, com o rapaz da recepção... não custa checar se é pra tu o bilhete, rapaz.
CXXVIII. Certo. Onde eu falo com o rapaz da recepção?
CXXIX. Entra aí, branquelo. He,he.
Holmes foi até o saguão, encontrou um balcão. Veio um rapaz loiro e perguntou o que queria.
CXXX. É... o Wilson do 32... me disseram que ele me deixou um recado, eu...
CXXXI. “Disseram”? Como assim, disseram? Quem disse isso?
CXXXII. Foi o porteiro, aquele carinha ali, ó.
CXXXIII. Hum – o rapaz era azedo – E quem garante que o recado é pra você? – e mirou Holmes dos pés à cabeça.
CXXXIV. Eu conheço ele.
O rapaz nada disse, só torceu o nariz e entregou-lhe um papel dobrado.
CXXXV. Fazer o que, né – disse, com afetação.
CXXXVI. Obrigado.
CXXXVII. De nada.
Holmes foi até a porta ler na claridade. O bilhete dizia o seguinte.

“Caro Sr. Holmes (ou seja lá como é que te chamam por aí, rapaz),

Esperei até as sete e meia por você, o Passarinho disse que tu vinha cedinho, tu num apareceu, porra, eu geralmente sou um cara calmo, só que quando alguém pisa na bola assim, meu, é foda, viu. Escuta, eu precisava do pó mesmo era pra hoje, tinha que vender e passar prum pessoal que ia provar o treco. Sacou? E chegou a hora de ir, tu não tinha aparecido, falei pra minha mina – porra, esquece. E esqueci. Quero que se foda, não negocio mais porra nenhuma com o Passarinho. Faz dois anos que to com ele, dois, mas o cara vem fodendo assim, é foda. A culpa nem sua é, é falha do Passarinho. Pois se tu encontrar ele hoje, lá no tal de Senhora Satanás, diz que eu to fora e parti pra outra. Só isso. A coca, ele que enfie na bunda.

Tchau

Ass – Wilson (Lebrinha)”

Holmes mal podia se mover. Petrificado, foi saindo do prédio e entrando no carro sem destino certo. Estava fodido até o pescoço. Porra, se tivesse chego algumas horas antes no apartamento, encontraria Wilson lá. Tudo por causa da vadia da prima dele... maldito sexo!
E o pior é que não adiantava fugir... era melhor ele aparecer no Madame de noite, e tentar concertar as coisas com o Passarinho. Só não sabia como.



10.2 – Fim do dia

Meia-noite na região central.
O Madame pela primeira vez, em sete anos aberto, fecha mais cedo. Um garoto foi achado seriamente debilitado no banheiro masculino. Alguns dos jovens do local identificaram o amigo, aos choros, mal podendo crer na cena que viam. O rapaz estava cheio de sangue, diversos ossos quebrados e um corte na garganta.
Dois policiais que chegaram para a investigação acham que o conhecem, e se lembram de tê-lo multado por excesso de velocidade na noite anterior. Não estavam certos, mas achavam que podia se tratar de rixas entre traficantes, ou viciados endividados. De qualquer forma, achavam que era mais um caso perdido desta juventude podre de hoje em dia.
Ah, e ninguém deu atenção, mas tinha um desenho rabiscado às pressas na parede do banheiro ao lado do rapaz. Era uma rolinha.




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