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Contos-->Sherlock Holmes e o paradoxo da ficção policial -- 28/01/2003 - 16:52 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Sherlock Holmes e o paradoxo da ficção policial


Sherlock Holmes sentava-se afundado em sua poltrona preferida, com o queixo metido no peito, e o nariz aquilino apontando para a frente. Seus olhos, semi-cerrados, deixavam a dúvida se ele não estaria dormindo. Mas não estava. Refletia. As grandes mãos, atadas, com seus longos dedos finos. As pernas estiradas até a lareira, sobre o grosso tapete.
Saturno entrava em órbita com a Lua de Marte que fica à direita do meio do Sol com a casa quatro em ascendente com Londres. Os deuses eram tolos e o homem era a anta. Kafka se sacudia em seu túmulo, e The Dark Side of the Moon agora virava hino escolar. Era a metafísica, a discordância e a prosa modernista entrando em conflito com o byronismo, o bucolismo e a poesia gótica. A loucura na arte e na vida.
Ele fumava seu cachimbo preferido, talhado manualmente, de madre pérola. Só que dentro dele não havia o fumo tradicional para cachimbos, e sim a amiga mais fiel e mais íntima de Holmes: a cannabis sativa. Dava mais prazer, e, segundo Holmes, deixava a pessoa mais criativa e mais inteligente. Além disso, não era tão prejudicial quanto as outras drogas geralmente consumidas por ele, como a heroína injetada nas veias dos braços e a cocaína inalada. Mas, para ele, era como parte de sua profissão: precisava, muitas vezes, ficar acordado a noite toda, pensando e fazendo deduções mentais, e isso só a cocaína ou a morfina lhe permitia.
- Watson, quer chá?
Watson entrava na sala naquele momento. Chegava de seu consultório, todo molhado por causa da chuva e do nevoeiro.
- Vejo que andou pelas proximidades do parque e da ferroviária, Watson, se não me engano.
Watson pendurou a capa e o chapéu, atônito, e em seguida pulou até o teto, machucando a cabeça, de tanto horror que a dedução do amigo lhe causou. Até hoje ainda se impressionava com a sutileza do detetive.
- Céus, Holmes, como descobriu isto?
Holmes costumava adivinhar o lugar onde as pessoas tinham ido simplesmente analisando sua aparência, suas roupas, marcas, terra nos sapatos, etc. Watson olhou para o próprio terno, procurando algo que denunciasse onde tinha ido aquela tarde.
- Ah, é que você me falou que ia lá antes de ir – respondeu o detetive, com um sorriso maroto.
Watson preferiu não dizer mais nada.
- Essa é boa. Pensei que ia notar marcas de terra de determinada região londrina nas minhas roupas...
- Que nada. Mal enxergo um palmo diante do rosto, Watson... de tanta erva que ando fumando, cara.
- Ah.
- Quer chá de cogumelo?
- Não.
- Quer fumar?
- Quero.
Os dois acenderam mais um baseado, e Watson relaxou no sofá.
Neste momento alguém bateu à porta.
- Entre – disse Holmes, com uma voz abafada e sôfrega.
- Sou eu. Chegou uma carta, Sr. Holmes.
Era a governanta. Ele pegou a carta e despachou-a.
- De quem é? – perguntou Watson, muito curioso, como sempre.
- Calma, tá? Nem abri o troço, e já quer saber, seu xarope?
- Seu o que?
Holmes leu o carta e ficou muito pensativo. O papel, segundo Watson pôde comprovar depois, dizia o seguinte:

“Caro Sherlock Holmes,

Não sei se o senhor irá se lembrar de mim, mas eu com certeza me lembro muito bem do senhor. Estudamos juntos no ginásio, durante uns quatro anos, e tínhamos aulas de Biologia com o professor Samanta. Lembra do Samanta, Holmes? Não pode ter esquecido, era o mais gozado dos professores do colégio. De qualquer forma, com certeza irá se lembrar de mim através do meu velho apelido: eu sou o Demônio Dengoso. Isso mesmo, era um apelido muito engraçado e singular. Caçoavam de mim. E o motivo do apelido era a cor dos meus cabelos, vermelhos, e minha pele rosada. Mas não se assuste, Holmes. Meu comportamento nunca foi e não é como o de um demônio. Era só um apelido.
Bem, não disse ainda o motivo pelo qual lhe escrevo. Na verdade não mantemos contato desde a grande despedida no final da oitava série. Lembra-se? Ah, bons tempos aqueles, né? Pois bem, lhe escrevo para pedir um grande favor, Sherlock. E se não puder me atender, amigo, entenderei e não haverá problema algum. É o seguinte: estou indo morar aí em Campinas por algum tempo, pois me surgiu uma oportunidade de emprego por aí. Atualmente resido no Rio. Aí pensei: puxa vida, seria muito mais econômico e proveitoso se houvesse um amigo por lá para pelo menos dividir o aluguel de um quarto comigo, pois estou meio apertado, Holmes. E subitamente me lembrei de você, e me lembrei também de que o senhor era um garoto brilhante na escola, sempre me passando colas nas provas e tudo mais, e que não haveria sujeito melhor pra se morar junto em Campinas. Gostaria de saber se posso ficar com você por um tempo até as coisas se acertarem melhor. Se houver problema, tudo bem. Mas penso que seria proveitoso para ambos. Agradeço desde já, Sherlock! Mande-me a resposta para o endereço no envelope.

Marcus Pong (Demônio Dengoso)”

Watson estava absolutamente arrepiado ao terminar de ler a carta. Deu um pulo até o teto e depois voltou, branco. Holmes segurava a fumaça, pensativo, o olhar penetrante.
- É claro que me lembro do Demônio Dengoso. Era meu amigo. Éramos a dupla infalível no ataque da nossa equipe de handball. Era tão legal, Watson, nem te conto...
- Ah, conta sim, vai...
- Vou ver se me lembro dos episódios de minha pré-adolescência... eram tempos incríveis, Watson...
- O certo é Anos Incríveis, Sherlock, e não Tempos Incríveis.
- O que?
- O seriado, ué. Lembra? Kevin Arnold, Paul, Winnie...
Sherlock olhava o amigo com um olhar estranho. Watson estava louco.
- Ai, era meu seriado preferido... eu não perdia nenhum dia! E tinha o irmão dele, lembra? Aquele panacão.
Holmes resolveu entrar na onda:
- Claro que lembro. A irmã dele era hippie, e saiu de casa, não é isso?
- É. Só que se não me engano, só no terceiro ano da série que ela vai embora de casa.
- Lembra do Paul, que era um nerd?
- O melhor amigo dele – disse Watson, fã número um do seriado.
- Lembra de um episódio em que eles vão comprar um carro novo?
- Quem?
- A família Arnold. Aí eles escolhem o carro, na loja, e todos os vizinhos ficam em cima, querendo se meter no meio, sempre opinando sobre as coisas dos outros...
- E tem o pai dele, o tradicional pai dos anos 60 na América.
- Eu odeio a América. É isso que eu sempre falo, Watson... olha só como eles são irritantes. Têm esse treco de vizinhança, jardinzinho e portãozinho branco, casas iguais e ruas iguais, e pessoas nojentas e arrogantes... odeio o sonho americano...
- Pois é, eles são meio dominadores...
- Por isso que meu filme favorito é Sem Destino, ou “Easy Rider” – comentou Holmes, comendo umas uvas passas claras sem sementes – Já assistiu?
- Claro.
- É demais, bicho. Assisti quatro vezes.
- Eu assisti Três Solteirões e um Bebê quinze vezes – disse Watson, com um olhar penetrante e sinistro.
Holmes preferiu não dizer mais nada. Quando começavam a falar sobre filmes, Watson sempre citava o filme Três Solteirões e um Bebê, ou Olha quem está falando. Era uma mania. Watson era um aficionado por filmes do gênero. E ai de quem chegasse e pusesse em dúvida o valor questionável de tais filmes. Watson virava bicho.
- Quer vinho tinto? – desviou Holmes, pegando a garrafa.
- Não.
Holmes sentou-se numa pequena mesa de carvalho num canto da sala, pegou umas folhas e começou a escrever uma carta. Antes de prosseguir, olhou para Watson.
- John, você se importaria de ter conosco, por alguns dias, a companhia de meu velho amigo?
- De modo algum. Espere. Ele gosta de carne?
- Como?
- O seu amigo. Ele gosta de carne?
- Gosta. Acho que gosta, sim... mas por que, Watson?
- Então tá bom. Ele pode ficar.
- Mas... o que isso...
- Esquece, Holmes! Chega! Eu só queria saber isso! – gritou Watson, molhando o bico no vinho tinto. Estava irritado e inquieto.
Holmes achou melhor não cutucar a onça com vara curta. Embora achasse que sua vara não era tão curta assim. Afinal, Holmes era campeão de boxe e de esgrima, e não deixava a desejar no quesito combate. Mas preferiu continuar a carta.
No dia seguinte, já à noite, chega em Baker Street, em Campinas, um homem jovial, alegre e espirituoso, ativo, conhecido em seus meios íntimos como “Demônio Dengoso”.
Foi recebido por Sherlock e Watson com muita alegria. Os dois estavam no meio de um jogo de pôquer, e haviam aberto um uísque escocês para tomarem com o novo colega. Os planos para a noite eram bons: telefonar para a Gabriela e a Cris, papear um pouco com elas no apartamento, talvez arriscar um drinque ou um beck, e, lá pelas dez, dez e meia, pegar um metrô até o centro da cidade e cair na gandaia noite afora. Mal podiam esperar. Resolveram que era uma boa levar o Demônio junto, já que agora seria companheiro de moradia. Podiam arranjar uma garota pra ele, também.
- Olá, amigos! Como estão? – o Demônio Dengoso entrou, animado, cumprimentando os dois.
- Estamos bem, e você? Ah, você está mudado, Marcus! – disse Holmes, fechando a porta e pondo mais lenha na lareira.
- Pois é, o tempo passa! Você continua o mesmo, Sherlock! E aí? Se casou?
- Não, não... prefiro me divertir enquanto puder...
- Eu também... não sirvo pra vida de casado...
- Watson é casado, mas mesmo assim dá umas escapadas – disse Holmes, batendo nas costas do doutor.
- Sou jovem, não devo me prender à urgência de um casamento, de uma vida fechada...
- Concordo com você, doutor – disse Marcus Pong, sentando-se e aceitando o vinho que Holmes lhe estendia.
- E aí? Conta tudo, Marcus, conta o que aconteceu com você todos estes anos...
- Muita coisa, Sherlock. Muita coisa mesmo... andei me aventurando por aí...
- Como nós, né, Holmes? – disse Watson, referindo-se aos casos de mistério e investigação em que freqüentemente se envolvem, e às noites mal dormidas devido à boemia em Campinas.
- Pois é, Watson. Mas as aventuras do meu amigo são um pouco diferentes. Pelo que sei, parece que ele andou se metendo em explorações pelo país e pelo mundo nos últimos anos...
- É verdade. Como adivinhou, Sherlock?
- Sua pele está demasiadamente queimada, seu cabelo se tornou mais laranja do que era, e, devido a estas intrigantes marcas de picada de mosquitos exóticos que você tem pelos braços, pude deduzir que só pode ter andando por muito tempo nas florestas brasileiras, como a Amazônica.
- Incrível. Vejo que não perdeu o hábito de deduzir tudo com a força da observação, Holmes.
Eles ouviam Bob Marley na vitrola, relaxavam com seus cigarros e cachimbos, no conforto do apartamento bem aquecido, quando a campainha tocou.
- Devem ser nossas amigas! Atende lá, Watson.
Entraram na sala duas jovens belas e bem vestidas. Eram Gabi e Cris, as amigas de Holmes e Watson.
Holmes se aproximou de Cris, sua garota, e lhe deu um beijo na boca. Ela era loira, de cabelos lisos e compridos, e olhos claros. A outra, que se sentou perto de Watson, Gabi, era morena e tinha olhos escuros. Ambas eram sensacionais.
- Este é Marcus Pong, meu amigo... seu apelido é Demônio Dengoso – apresentou Holmes, alegre – Marcus, estas são Cristina e Gabriela, nossas super amigas.
Todos se cumprimentaram e então o clima ficou mais descontraído.
- E aí, Sherlock, onde vamos hoje? – quis saber Cristina, pegando um copo e servindo-se de martíni.
- Não sei... vocês decidem... vamos até a cidade, e lá podemos escolher entre os bares Gatuzzo´s, o Rizzo, o Mercúrio, ou os clubes... temos muitas opções. Mas enquanto é cedo, gostaria de ouvir o relato das aventuras de meu amigo Marcus, que veio do Rio e tem uma porção de coisas interessantes para contar.
Marcus virou o drinque goela abaixo e sorriu. Em seguida começou a falar.
- Muito bem. Deixa eu ver por onde eu começo. Ah, sim, a última vez que Holmes e eu nos vimos foi quando estávamos no Colegial, já em colégios diferentes. Eu continuei estudando até o segundo ano, e parei no final do ano. Já não agëntava mais... a escola era um saco, pra mim. Percebi que não servia para estudar e me formar. Então tentei formar um grupo de rock. Eu tocava baixo, fazia aulas, e já estava tocando bem. Aí pensei: vou reunir um pessoal maneiro e a gente pode tocar as nossas próprias músicas, vai ser legal! Aí tinha o meu amigo, que também parou de estudar e também virou vagabundo e maconheiro, o Tony Cabana. Ele estava pra comprar uma guitarra, mas já tocava violão há bastante tempo. Poderia ser o guitarrista. Era um cara muito criativo, de muita imaginação. E bebia muito, também, mais do que eu. Muito bem. Começamos a nos reunir na casa dele por um tempo, sempre tocando o que mais gostávamos no mundo do rock. Tirando músicas, inventando solos, e tudo mais. Aí achamos que seria melhor arranjar outros músicos, e acabamos conhecendo um baterista no bar de rock Leroy, na Gávea. Morávamos em Ipanema. O baterista, Bobby Tucano, era bom, e tinha uma garagem enorme disponível para ensaios. Entrou pra banda na hora. Depois viemos a conhecer um amigo dele que cantava bem pra caramba, tinha uma melodia incrível e uma voz legal. Chamamos ele, ensaiamos muitas vezes e então vimos que a banda estava formada. Isso aconteceu quando eu tinha dezessete anos. Começamos a fazer cover das bandas que mais gostávamos, tocando Sabbath, Led, Deep Purple, Supertramp, Creendence... e tocamos nos bares das redondezas, toda noite. Aí eu e o vocalista, Juca Amaral, começamos a compor. Fizemos muitas músicas juntos, escrevíamos e ensaiávamos com a banda todo dia... havia muita criatividade em volta da banda. Ele começou a tocar teclado, e aí o som ficou até diferente a partir de então. Só que aí o baterista entrou na faculdade, no ano seguinte, e teve que sair da banda. O resto de nós não estudava. Chamamos um rapaz de São Paulo pra tocar bateria e resolvemos o problema. Só sei que ficamos tocando por uns quatro anos, nos quais fizemos uma porção de outras coisas, é claro. Comecei a trabalhar com instrumentos musicais, numa loja, e aprendi muito com isso. Fizemos viagens a toda hora, pra Sorocaba, Santos, São Vicente, Litoral Norte paulista, pro Sul... praias da Bahia, Fortaleza... era pura diversão. Às vezes exagerávamos nas bebidas e no fumo, e tínhamos períodos difíceis na banda. Mas seguimos em frente. Quando estava com vinte e um anos resolvi viajar pra fora. Foi aí que conheci a Europa. Era uma excursão, mas acabei ficando por lá um ano. Passamos pela Alemanha, Espanha, Inglaterra, e, quando conheci a França, vi que eu tinha muito em comum com aquele país. Conheci uma garota lá e namorei com ela. Morei num apartamento em Paris e fiquei noivo dela. Éramos loucos, só fazíamos sexo, comíamos, bebíamos e fumávamos. Ela era como eu. Lá fiz alguns amigos. Os caras da banda tinham ido junto comigo, mas depois de um mês voltaram. A banda deu uma parada, cada um tinha um projeto diferente. Depois disso fui para a África com minha garota e fizemos várias expedições pelo continente, em especial na África do Sul, onde achamos ouro, e no Marrocos, onde piramos. Fui pra Holanda. Em Amsterdã fiquei viciado em cocaína e entrei em crise. A recuperação me tomou um ano, acabei o noivado com a francesa e ela voltou pra casa. Aí voltei pro Rio, e virei surfista. Entrei na onda da surf music, e formei uma banda nova com o guitarrista da banda antiga. O baterista quase morreu num acidente de moto. Nossa banda era legal. Ficamos tocando pelas praias cariocas e conhecemos dezenas de garotas fantásticas em cada lugar que tocamos. Enjoei do surf, fiquei paradão um tempo e depois comprei um jeep. Várias trilhas off-road da pesada pelo país. Meses depois vendi o jeep, comprei equipamento de hipismo e fui escalar uns picos altos do Brasil e da América do Sul. Chile, Bolívia, Pico da Neblina, Peru e muita maconha. Comprei uma moto no México e fiquei lá um pouco. Aí troquei por um barco pequeno e fui sozinho pro mar, fiquei navegando por dois anos, direto, achei muitas ilhas no Oceano Pacífico, acabei ancorando no Tahiti, vivi entre os nativos, parti pra Califórnia, depois fui conhecer Nova Iorque, o Texas, Louisiana no Mardi Grass, o Mississipi e Washington. Dali fui pra Índia, comprei uma cítara, aprendi a tocar, vivi na Índia por dois anos. Saí de lá, voltei pro Brasil, fui pro exército por vontade própria, por falta do que fazer, lá aprendi uma porção de coisas, mas saí antes de subir muito de cargo. Depois reencontrei meus amigos da banda, também mais velhos, e formamos uma banda de blues. Foi uma fase incrível. Quase fomos contratados, mas continuamos tocando em festas, bares, restaurantes... aí comecei a namorar e fiquei noivo pela quinta vez. Conheci a Jaqueline nas noites cariocas, e estou meio enrolado com ela, agora. Vou começar a trabalhar aqui em Campinas, vim aqui uma vez e adorei a cidade... não sei se vou morar mesmo aqui, mas prefiro nem saber o que vai acontecer...
- Fascinante.
- Incrível.
- Que vida.
- E com quantos anos está?
- Trinta.
- Jovem.
- Sua vida também é sensacional, Holmes – disse Marcus, tímido – A vida de detetive deve ser uma aventura...
- E é. Mas faz poucos anos que pratico como profissão – Holmes fumava lentamente – Antes eu tinha uma banda.
- É mesmo? Que tipo?
- Era uma big band. Fui criado num ambiente de muito jazz, sabem? Meus pais tocavam piano, aí aprendi sax e violoncelo, também. Além do violino.
- Como se chamava a banda de jazz? – perguntou Marcus.
- Big Heads. Fizemos diversas canções, mas hoje em dia não tocamos mais. E a sua banda de rock, a primeira, como se chamava?
- Kafka. Em homenagem ao escritor.
- E a de surf music?
- Sokomo.
- E a última, de blues?
- The Wave.
- Que legal – disse Holmes, fascinado.
- Vamos sair? – sugeriu uma das meninas, animada.
- Vamos! – Holmes deu um salto da poltrona, vestiu o sobretudo e todos eles se mandaram rumo à noite que os aguardava.



A noite campineira era o máximo. Muitos estudantes da UNICamp, a popular faculdade de Campinas, saíam à noite em bandos, ou em pares, em busca de diversão pela cidade. E as “atividades” iam até o fim da madrugada. Podia-se encontrar bons bares, restaurantes, cinema, teatro, música, cultura... era só saber chegar onde se queria, e, é claro... estar bem acompanhado.
No caso, pode-se dizer que o maior detetive de todos os tempos e seu fiel amigo doutor Watson estavam acompanhados, e muito bem, obrigado. Tinham garotas a tira-colo e um amigo sociável e falante ao lado, pronto para qualquer agito da noite.
O grupinho estava muito animado. Pegaram imediatamente um metrô rumo ao centrão, a Meca cultural campineira, e, logo no metrô, o papo já se tornou meio cult:
- Quem lembra do Bozo? – disse a Cris, repentinamente.
- Ah, quem não lembra? – entusiasmou-se Marcus, que também curtia relembrar as coisas da infância – Eu assistia todo dia. Era o maior fãzaço dele.
- E eu tinha todo o merchandising disponível do palhaço – disse Watson, afobado, pois tinha uma porção de coisas pra falar sobre o tema.
- Eu era apaixonada pela Vovó Mafalda – comentou Gabi, de olhar perdido e carismático.
O metrô deu um solavanco que quase derrubou o rechonchudo John Watson.
- Ops!
- Lembra que tinha o Papai Papudo?
- Quem?... – Cris não se lembrava deste.
- Oras, como “quem”? Aquele de barba, todo paternal! Não lembra?! – espantou-se Gabi.
- Não me lembro...
- Ele usava um terno amarelo, não é? – ajudou Watson, amistoso.
- Isso mesmo! – disse Gabi.
- Nada. Mas lembro bem da Vovó Mafalda! Muito legal! – animou-se Cris, sorridente.
- Quem tinha o xampoo do Bozo? Eu tinha! – gritou Watson.
- Eu também!
- Todo mundo tinha! – completou Marcus Pong – É incrível como as crianças sempre precisam destes estímulos da TV, dos brinquedos... tenho saudades daquela época.
- Eu também.
- Tenho saudades do Sérgio Mallandro, quando ele fazia programa infantil... – lamentou Cris, com o olhar perdido.
- Pois é...
- Ei, eu fico triste toda vez que lembro do Bozo... – disse Gabi, triste.
- Por que?
- Oras, por causa do fim que ele teve... quer dizer, era tudo uma tragédia disfarçada, no final... – Gabi se emocionava.
- Eu lembro que havia dois Bozos, na verdade. Quando o primeiro teve overdose de cocaína, o outro substituiu – lembrou Watson.
- É. Só que o original era o mestre, igual a ele, nunca mais... – disse Cris.
- Esta história de coca é lenda! É lenda! – protestou Marcus.
- Não é não – Watson estava sério – Ele realmente era um viciado em cocaína, e cheirava antes de entrar no palco.
- Tinha que cheirar pra agüentar o sucesso, as crianças...
- Vai ver que é por isso que ele usava o nariz vermelho... pra disfarçar! – brincou Watson, mas ninguém achou graça.
- Não brinque com isso, John – disse Cris, melancólica.
- Não é uma ironia? Um palhaço, que deveria ser tão alegre, era tão trágico... – disse Gabi, séria.
- E você, Holmes? – disse Cris, vendo que o detetive não participava do papo.
- Sim? – Holmes parecia distraído, pensativo.
- Você não curte um papo nostalgia?
- Não gostava do Bozo?
- Claro que gostava – Holmes estava sinistro, de repente – Mas é que... bem, tenho más lembranças...
- Explica isso direito... – disse Marcus.
- Prefiro não falar, vocês não iriam entender...
- Fala, Holmes. É melhor se abrir – disse Gabi, aproximando-se dele.
- OK. Bem, uma época, pintou uma oportunidade maneira de ir ver o Bozo ao vivo, no programa... eu e mais outros quatro garotinhos – Holmes se abria pela primeira vez sobre este caso – Aí fomos. Muito animados. Durante o show, foi um sucesso. Estávamos animados. Aí, de repente, me chamaram pra participar de uma brincadeira.
- Que divertido.
- E eu fui, é claro. Estava orgulhoso, meus amigos me invejavam. Aí a brincadeira começou. Tinha que correr, passar por vários obstáculos e chegar até o fim antes do adversário. Pois quando fui escorregar num tubo que havia no meio dos obstáculos, capotei pelo escorregador, fui rolando e fui cair lá embaixo, de cara no chão duro. Minha cara começou a sangrar na hora, comecei a chorar ao vivo na TV... todos me olhavam, com pena de mim. Foi horrível. Tive que ir pro pronto-socorro, e foi o pior dia da minha vida – finalizou Holmes, visivelmente abatido.
- Não fique assim... é passado! Estas coisas acontecem! – consolou Gabi, pegando na mão de Holmes.
- É um trauma de infância.
- Mas é normal, relaxa...
- Nossa estação. Vamos descer.
O centro da cidade estava muito movimentado esta noite. As pessoas andavam de um lado para o outro, rindo, conversando, namorando, se divertindo...
Eles fumaram uns cigarros numa praça que havia no final de uma avenida, conversando, e então resolveram ir até o Rizzo, um bar de rock muito popular entre os estudantes.
O lugar estava cheio, já eram dez e meia. Eles se sentaram numa mesa perto do palco, onde uma banda de rock se apresentava. O pessoal lá era tudo da faculdade, e tinha desde rockeiros, hippies e nerds, até punks, o pessoal cult e os moderninhos.
- Quem vai tocar hoje? – perguntou Holmes, pendurando o sobretudo na cadeira.
- É uma banda londrina, The Killers. São cover do The Who, dos Stones e do Creedence – informou Cris, sempre atualizada musicalmente.
- Que demais! Adoro The Who – disse Marcus, olhando em volta animado.
Eles pediram uísque e vinho, e, enquanto esperavam chegar, as meninas foram ao toalete.
- Já voltamos.
Os homens, sozinhos, se sentiram à vontade para falar de qualquer assunto diferente.
- E aí, quer que eu arranje alguém pra você, Marcus? – disse Holmes, com cara de safado.
- O pessoal aqui é legal. Se tiver alguém interessante por aí, me avisa, Sherlock – Marcus não queria ficar sozinho esta noite.
- Se eu avistar alguém, pode contar comigo, hein? – Watson queria ajudar também.
- Ei, Watson, você quer a Cris ou a Gabi? – perguntou Sherlock, olhando para trás para ver se elas vinham vindo.
- Não sei... peraí, qual é a Gabi e qual é a Cris? – Watson estava visivelmente chapado, nem se lembrar quem era quem.
- Você não sabe, Watson? Que coisa, hein?... Escuta, fica com a mais alta, certo? A de piercing. Eu pego a outra. Combinado?
- Tá certo. Valeu. Desculpa, eu tô meio tontão...
- Percebi.
Os drinques chegaram, e eles começaram a beber.
- Hoje eu tô a fim de tomar um porre.
- Só.
As meninas voltaram, e se sentaram.
- Vende cigarro aqui? – perguntou Marcus.
- Vende. Mas fuma do meu. Aqui – ofereceu Holmes.
- Obrigado, Holmes. Mas estou precisando comprar, senão me sinto estranho, sabe?
- Quanto você fuma por dia? – perguntou Cris.
- Dois maços.
Ele se levantou e foi comprar cigarro.
Watson queria apostar com Holmes que ele virava o copo de uísque de uma só vez. Cheio. Holmes disse que pagava pra ver.
- Um, dois, três... vai!
Watson virou. Orgulhoso, ganhou a aposta, e Holmes teve de pagar.
Cris e Gabi bebiam muito, e, logo, já pediam mais uma garrafa de vinho.
A banda começou o show, e iniciou logo com My Generation. Foi um sucesso. O bar inteiro cantava e aplaudia.
- Vamos lá na frente dançar? Quem topa? – sugeriu Watson, eufórico. Em frente ao palco havia um espaço para se dançar ao som do bom rock que tocava.
- Vamos!
Sherlock, Watson, Cris e Gabi foram dançar. Marcus disse que logo se juntaria a eles, e queria somente terminar o drinque.
- Mas vai lá, hein, meu? – disse Sherlock, antes de ser puxado por Gabi rumo à pista de dança.
- Pode deixar.
Na verdade, Marcus Pong estava era de olho numa garota linda que ele não parava de olhar, numa mesa próxima. Ela estava sozinha, sem namorado nem nada. Provavelmente o panaca tinha se atrasado, ou dado o cano nela. Marcus pensou que esta podia ser uma grande oportunidade, pois a garota estaria muito sensível e carente num momento desses. Parecia chateada e entediada, apesar da barulheira do show.
Ele se preparou. Tomou o resto do uísque, testou o bafo, ajeitou a camisa. Cabelo. Era a hora. Se levantou e foi até a mesa dela.
- Olá. Posso me sentar do seu lado?
- Pode.
Ela parecia realmente chateada.
- Por que você está assim? Brigou com seu namorado?
- Ele foi embora só porque eu falei que era um ET.
- Quem?
- Eu.
- Você é um...?
- ET. Está vendo só? Ninguém acredita em mim! Ninguém aceita minha etnia, só porque me pareço com vocês terráqueos.
- Você não andou assistindo muito Arquivo X? – perguntou Marcus.
- Não! É verdade, acredite!
- Eu acredito em você, fique calma... é que você é tão linda... seus olhos azuis são tão graciosos... que esta idéia nem passou pela minha cabeça. Como se chama?
- Azmitium. Sou Gukliana. Conhece meu planeta?
- Não, mas acho que já ouvi falar...
Marcus aproximou seu rosto do dela lentamente, e eles se beijaram.
- Também gostei de você – disse ela, um tempo depois – É o único que me entende, aqui em Campinas. Qual o seu nome?
- Marcus Pong. Mas sou conhecido como Demônio Dengoso. Escuta... você tem poderes?
- Tenho... quer ver?
- Eu quero.
A garota, que devia ter uns dezoito anos, na mesma hora mudou a cor de sua pele, passando do verde para o roxo e do laranja para o vermelho intenso.
- Uau! Estou chocado!
- Gostou? – ela parecia animada, agora. Em seguida voltou à forma humana – Posso me transformar em animais, também. Me beija.
Os dois se beijaram infinitamente e depois Marcus sugeriu que ela fosse com ele para a mesa dele para conhecer seus amigos.
- Eles são legais?
- São sim, vamos lá.
O casal encontrou o grupo, que estava cansado de dançar.
Os dois se sentaram, e Marcus apresentou a menina:
- Pessoal, esta é a Azmitium. Azzy... posso te chamar de Azzy?
- Pode.
- Azzy, este é o Doutor Watson, renomado médico de Londres... esta é a Cris... aquela a Gabi, amiga dela... e este, você deve conhecer... Sherlock Holmes, o detetive!
- Conheço de nome. Já vi no jornal – disse Azmitium, contente e enturmada.
- Seja bem-vinda ao grupo – disse Gabi, amistosa – Não temos preconceitos contra ninguém, muito menos contra ET´s.
- Fico feliz de saber disso – sorriu Azzy.
- Adoro ET´s. Já solucionei milhares de casos envolvendo os povos Tegupianos, Marcianos, Alexianos, Kikios... – disse Holmes, muito à vontade e fumando cachimbo.
- Que demais! Você conhece os Kikios? – Azzy estava super contente – Já fui até o planeta deles, um vez.
- Holmes, você nunca me contou nada sobre estes casos em planetas diferentes! Como pode? – Watson falava em voz baixa, indignado e bêbado.
- Oras, você nunca me perguntou, John. Qualquer hora dessas eu te conto tudo. É muito interessante...
- Muito engraçado. Nem me conta as aventuras que eu não participo... como posso escrever os relatos de nossos casos se não me conta tudo?
- Prometo que a partir de agora conto tudo – disse Holmes, sorrindo.
- Que droga você curte, Azzy? – perguntou Cris, fazendo amizade.
- Ah, olha, eu já experimentei de tudo um pouco, mas... o que mais me atrai, no seu planeta, são os chás de cogumelos... fico loucona com eles...
- Só! É muito louco – completou Gabi – As viagens são as mais esquisitas, né?
- Pois é – disse Cris – Azzy, você tomou chá hoje?
- Tomei, há poucos minutos atrás. Por que, parece que eu tomei? – ela começou a rir, desvairada.
- Parece, mas tudo bem, relaxa! – disse Cris, animada.
Todos na mesa começaram a rir, achando o episódio engraçado. Azzy também caiu na gargalhada, loucona.
Neste momento entrou no bar, no meio da agitação, um homem vestido com roupas negras, de sobretudo e chapéu. Ele tinha grandes bigodes. Era Lestrade, o inspetor da polícia, que tanto gostava de importunar Holmes em seus casos.
- Olha lá quem está chegando! É o Lestrade! – gritou Watson, sacudindo o chapéu e chamando o policial pra junto deles.
- Ei, Holmes! – Lestrade estava vindo, no meio da multidão. Mal se ouvia alguma coisa, pois o som de Satisfaction abafava qualquer outro barulho.
- Quem é? – perguntou Cris, confusa.
- É Lestrade, da polícia. Amigo de Holmes – explicou Gabi, que já tinha visto o inspetor algumas vezes.
- Ei, como vão? – Lestrade cumprimentou um por um e pegou uma cadeira – E aí, Holmes? Como vão seus casos?
- Vão bem, obrigado. E o trabalho na polícia?
- Melhor do que nunca – Lestrade estava alegre, e parecia já estar bêbado.
- Cadê o Hopkins, aquele seu guardinha que sempre te segue pra tudo que é lado? – perguntou Watson, tonto de tanto vinho.
- Hopkins? Não sei. Acho que tirou folga.
- Você está trabalhando? – perguntou Holmes.
- Na verdade sim. Mas dei uma fugidinha, sabe? – ele bebericava um copo de cerveja.
- O que o traz aqui? – perguntou Holmes, curioso, enquanto Gabi acariciava seus cabelos.
- Ah, vim me divertir um pouco... esses rapazes tocam muito! – Lestrade dançava parado na cadeira, enquanto a banda de rock mandava Proud Mary do Creedence.
- Fala sério – disse Holmes, esperto – Que que tá havendo?
- Muito astuto, hein, Sherlock? Parece que adivinha quando estou no meio de uma investigação!
- Minha especialidade não é adivinhar, e sim deduzir.
- E como deduziu que estou aqui a trabalho? – Lestrade desafiava o detetive particular, seu eterno rival.
- Estou com preguiça de falar – disse Holmes, tomando vinho.
- Fala!
- Não quero!
- Fala!
- Sherlock, fala pra ele, senão ele não vai parar de te encher – disse Gabi em seu ouvido, carinhosa.
- Tudo bem... acontece que você, Lestrade, é o cara mais vaidoso e mais garanhão que eu conheço.
Todos riram de Lestrade, que ficou sem jeito. Holmes continuou:
- Sabendo disso, reparei que você não está vestido socialmente, ou com roupas de sair à noite... e sim com este sobretudo preto, que usa durante a semana no trabalho. Vendo que não estava preocupado com a aparência, deduzi que não queria cortejar menininhas da faculdade hoje, e sim investigar algum crime por aqui!
- Parabéns!
- Viva Holmes!
- Ainda é o maior detetive de todos os tempos!
- Eu jamais teria pensado nisso!
- Estou certo ou estou errado? – provocou Sherlock, olhando fixo para Lestrade. Este baixou a cabeça e admitiu:
- Está certo.
- Bem, vai nos contar ou não do que se trata?
- Vou. É um caso singular. Sabe, no decorrer de minha carreira me deparei com casos da mais notória estranheza, do ridículo ao anormal, do doentio ao inexplicável. Mas este caso é diferente, pessoal. É algo novo, original, entendem? Estou na cola de duas garotas de quinze anos.
- Uau! – disse Watson, que deu um pulo até a cobertura do local.
- Que exótico! – comentavam as meninas, excitadas – Conta mais, inspetor.
- Bem. A história é meio longa. Sugiro que peçamos, antes, mais uma rodada deste bom vinho, e que acendamos, agora, mais cigarros e mais cachimbos...
O vinho foi pedido. Ele continuou:
- Na semana passada, eu estava no meu escritório na delegacia. Recebi um telefonema de uma senhora que estava assustada, em sua casa, pois na sua rua, naquele momento, segundo ela, estavam sendo praticados rituais de magia negra.
- Nossa!
- Pois é. Ela disse que um grupo de jovens estava “queimando coisas e cantando coisas estranhas” em frente a sua casa. E ela estava com medo. Eu cá nem sabia se esse tipo de coisa é considerada crime, mas, já que estava incomodando tanto a pobre senhora, resolvi ir ver. Fiquei até curioso pra ver o tal do ritual, admito. Bem, eu e Hopkins, meu parceiro, saímos de carro e fomos até o bairro da velha. Era numa região bem afastada daqui do centro, perto de uma estrada, numa região que tem muito mato, entendem? Bem isolada. Achamos a tal casa. Era casa de velha. Inutilmente grande e bizarramente decorada.
- Não fale assim das velhinhas – reclamou Cris, chateada.
- Desculpe. Bem, do outro lado da estrada não havia nada, a não ser uma fogueira e uns objetos estranhos queimados. Era o ritual. Resolvi primeiro ir falar com a velha. Tocamos, e quem atendeu foi um homem, que logo informou ser o filho da tal senhora. Ele estava muito aborrecido, pois a velha não parava de falar nos “rituais satânicos”. Entramos. Ele disse que a velha não ia falar nada, pois estava em choque. Então ele mesmo contou que, uma horas atrás, tinham chegado, no mato em frente à sua casa, duas meninas que pareciam à primeira vista normais. Só que vestiam roupas negras e macabras. A velha tinha ficado observando, por curiosidade. Descreveu-as como sendo ambas jovens, em torno dos quatorze ou quinze anos, e muito bonitinhas, aparentemente decentes. Tinham olhos e cabelos castanhos, uma delas usava tranças e a outra tinha o cabelo curto. Ela disse que, com certeza, eram irmãs, pois eram muito parecidas. Peguei as descrições e anotei no caderninho. Aí ela me falou que atrás de suas roupas havia uma letra. Atrás da de tranças tinha um grande “C”, e, atrás da outra, um “B”. Poderiam ser seus nomes. Aí ela falou que as garotas traziam vários objetos e começaram a fazer uma fogueira no mato, e jogar um monte de bonecas de brinquedo sobre o fogo, e rezar, e dançar e cantar em volta da fogueira. Segundo a velha, eram bruxas. Uma começou a morder o braço da outra, até que fizeram um pacto de sangue. Aí deixaram a fogueira lá e fugiram. Em seguida a velha se calou. Agradeci e saímos da casa. Eu e Hopkins fomos investigar o terreno. Fazia muito frio. Olhei em volta, analisei o espaço utilizado para os rituais. Cheirava a carniça. E plástico queimado. Bonecas sem cabeça em toda parte, queimadas, e cinzas, restos da fogueira. Fincada no meio, uma madeira, onde se lia: Wicca. E as iniciais delas, C e B. Ficamos horrorizados. Hopkins disse que achava que se tratava da Wicca, uma espécie de culto, bruxaria muito praticada por jovens, em especial garotas, e comumente confundida com outras coisas muito diferentes, como o culto dark, a magia negra, o espiritismo, a “macuma” e o movimento gótico. Eu havia feito um estudo sobre o tema, um ano atrás, e concordei com Hopkins. Tratava-se da Wicca, com certeza. Era um tema sobrenatural, com direito a rituais, cultos e feitiços. Mas nunca acreditei muito nestas coisas. Colhi pistas, guardei e nos mandamos. No dia seguinte eu recebi mais duas chamadas que denunciavam a prática de rituais quase idênticos a este. Um na região Leste e outro próximo ao Aeroporto de Viracopos. Averiguamos. Testemunhas disseram que se tratava das mesmas garotas, as tais “irmãs bruxas”. Rituais iguais. Bruxaria. O negócio se tornava sério. Nos próximos três dias o treco cresceu. Mais cinco ocorrências. Aí identifiquei as tais meninas. Achei seus dados através de inquéritos com cidadãos, e achei sua casa. A mãe disse que elas haviam fugido de casa há uma semana, revoltadas com a vida que tinham. Mas levavam uma vida muito boa, por sinal. Só que não estavam satisfeitas. Ela falou que primeiro a mais velha começou a se interessar por magia e bruxaria, no ano passado. Adorava esse tipo de coisa, e também gostava muito de rock. Curte Metallica.
- Eu não curto.
- Nem eu. Como ia dizendo, ela acabou influenciando a irmã e esta aderiu ao culto. Se tornaram estranhas. Aí, em Janeiro agora, no último verão, foram para o litoral paulista.
- Que cidade?
- Praia Grande.
- Já fui – disse Sherlock, interessado – Minha tia tem um apartamento lá.
- Legal. Então, elas foram para a praia e parece que foi lá que elas ficaram mais loucas do que antes. Fizeram centenas de rituais na areia, à noite, mas não foram pegas pela polícia litorânea. Diz a mãe delas que elas conheceram dois rapazes durante a viagem, e que eles as cortejaram. Disseram que iam vir visitar elas aqui em Campinas algum dia, vê se pode. Aí elas voltaram pra cá, a garota mais velha começou a se comunicar com o garoto que conheceu via Internet, pelo ICQ. Quem aqui tem ICQ, por falar nisso?
- Eu tenho!
- Idem!
Todos na mesa trocaram números e nicks de ICQ. Sherlock usava o nick “Garanhão Londrino”, para evitar assédios de admiradores. Lestrade voltou ao relato:
- Muito bem. Foi então que fugiram de casa. E eu fui duplamente incumbido de: achá-las, pelo bem de sua pobre mãezinha; e cobrar uma multa bem caprichada por perturbar a paz pública com rituais estranhos e bruxaria...
- Que errado... eu acho tão interessante, esse papo de bruxaria... queria ser bruxa! – disse Gabi, com pena das garotas.
- Eu também. Minha prima é bruxa. Anda com um pessoal meio maluco, que faz Artes num colégio técnico – disse Cris.
- Ah, eu acho que conheço ela! Como ela chama? – interessou-se Gabi.
- É a Bárbara.
- Já conheci ela.
- Pois é. Essa minha prima... sempre com feitiços, encantos... não sei se acredito nisso.
- No meu planeta a bruxaria é bem difundida – disse Azzy, envolvida no papo.
- Mas vejam bem, não vou prender as meninas. Quero primeiro encontrá-las, entendem? – explicou Lestrade, alisando os bigodes e tomando a cerva.
- E onde elas estão? – perguntou Holmes.
- Bem, eu vim aqui porque a mãe dela disse que antes delas fugirem, costumavam vir aqui todo fim-de-semana...
- Vou no banheiro – disse Watson.
- Salta mais uma rodada, garçom! – gritou Holmes, de copo vazio e olheiras profundas.
- Bem, vou indo. Acho que vou procurar melhor no Shopping – disse Lestrade, se levantando.
- OK. Boa sorte!
- Tchau!
Dois minutos depois Watson volta do banheiro horrorizado.
- O que foi, que cara é essa? – perguntou Holmes, preocupado.
- No banheiro... vocês não vão acreditar... um ritual... de bruxas! Como o que Lestrade descreveu! Com as iniciais C e B pixadas na parede! E tinha um monte de bonecas queimadas...
- No banheiro?!
- É! Dentro do banheiro! E parece que no feminino também acharam um igual! -
Watson ofegava – Cadê o Lestrade?!
- Foi embora, já está longe! – disse Cris – Precisamos achar as meninas, antes que elas vão embora do Rizzo!
- É, acho que temos como dever encontrar a dupla e levá-las pra casa – disse Azzy, a ET.
- Já sei! – gritou Holmes.
- O que?
- Azzy! Você tem poderes, certo? – Holmes falava pausadamente.
- Tenho.
- Pode ouvir as vibrações sonoras com a mente?
- Posso! – disse a ET, entendendo a idéia.
- Então concentre-se, amiga, e tente encontrar os pensamentos das garotas aqui dentro. Como o lugar é muito grande, podemos achar as duas com seus poderes!
- Grande, Holmes! Genial!
A extraterrestre fechou os olhos, baixou a cabeça e se concentrou. Estava captando os sons do lugar inteiro através do pensamento. Só que era uma tarefa árdua, todos teriam que ser pacientes.
A vários metros dali, numa mesa nos fundos do salão, sentavam-se cinco pessoas. Eles bebiam, fumavam e conversavam em voz baixa. Duas delas eram garotas, duas irmãs muito parecidas. E muito bonitas. Ao lado, estava um rapaz alto e magro, de cabelos longos, com um violão ao lado. Havia mais dois rapazes na mesa, da mesma idade, ambos com instrumentos musicais. Pareciam voltar de algum show. Neste momento chega mais um garoto, com uma menina, e eles se juntam ao grupo. Este não carrega instrumentos, mas tem nas mãos duas baquetas de bateria. Eles tomam vinho. Um dos rapazes diz:
- Vocês querem ir embora?
As garotas pensam e respondem:
- Não, vamos ficar mais um tempo pra não dar na cara, aí a gente vai.
- Tá bom – diz outro deles – Podemos ir no Jack´s, quando sairmos daqui. Ainda é cedo.
- Que horas são? – pergunta um que parece ser japonês, chinês talvez.
- Uma e quinze.
- Que que vocês acham da gente tentar tocar aqui? – sugere o baterista, animado.
- Aqui?!
- É!
- Não sei, tem o problema dos rituais no banheiro. Já pensou se a polícia cisma com a gente? – disse uma das garotas, a mais velha. O rapaz de cabelos compridos olha para ela.
- A gente pode tocar no Jack´s, também... – diz o outro.
- É, está certo. Esquece – diz o baterista, acendendo um cigarro.
- Que que a gente vai fazer amanhã? – perguntou o rapaz do violão.
- Já sei. Que tal ir até o aeroporto... como é que chama mesmo aquele aeroporto, Bia?
- Viracopos.
- Isso – continua um dos rapazes – Eu queria ir até lá e fazer aquele tal curso de pára-quedismo. Topas?
- Eu topo!
- Tô nessa!
- Eu proponho um brinde ao salto de pára-quedas!
- E à nossa banda!
- Saúde!
E eles brindam.
Lá perto suas vozes são sutilmente captadas pelo cérebro astuto de Azzy, que tem um sobressalto.
- São eles! Achei!
- Tem certeza? – pergunta Watson, atencioso.
- Onde estão? – indaga Holmes, pronto para a ação.
- Espere... ah. Estão nos fundos. Mas... são seis ou sete pessoas! Acho que elas estão acompanhadas dos namorados, ou amigos.
- Vamos!
- Peraí, vamos ligar no celular do Lestrade! Chama ele! – sugeriu Cris.
- Boa! – disse Holmes, pegando seu celular pré-pago e discando. Depois de falar com o inspetor, que já estava a caminho, o grupo se levantou da mesa.
O grupo (Sherlock Holmes, Watson, Cristina Lima, Gabriela Lamielli, Azmitium e Marcus Pong) saiu correndo, só que foi como se estivessem correndo em câmera lenta. O som era o de The time is on my side, dos Stones. Só que o som que chegava aos seus ouvidos era diferente, era uma mistura louca, parecia um pesadelo. Os seis mal podiam correr dentro do imenso bar, que agora parecia um labirinto de pessoas dançando, garçons caindo ao chão e dezenas de alucinações psicodélicas, psicotrópicas, causadas pelos tantos copos de chá de cogumelo, as ervas fumadas e as bebidas tomadas... eram zumbis do vício, que mal podiam enxergar o que vinha no caminho. A queda do numeroso grupo foi um desastre, foi lenta, eles viram vultos coloridos e perfumados em volta, e rostos assustadores em suas viagens bem loucas. Caíram, rolaram e foram pisoteados. Holmes bateu a cabeça. Watson ficou entupido no meio das cadeiras do lugar. O tempo passou como se não fosse o tempo. Perderam a noção das horas e da realidade. O que estavam fazendo ali? Quem eram eles?...
Tudo se apagou numa madrugada louca e interminável num fim-de-semana em Campinas.
No dia seguinte todos acordaram com ressaca no apartamento de Holmes, jogados pelos sofás, pelos cantos, com dores de cabeça e diarréias. Todos passando mal, sem poderem lembrar o que tinha ocorrido na noite anterior.
O sol entrava ameno pela persiana, o relógio piscava, os zumbis se levantavam lentamente.
Lestrade acordou junto com eles.
- Lestrade... – resmungou Holmes, grogue – O que faz aqui esta hora?
Já eram onze da manhã.
- Eu que trouxe vocês aqui, ontem, às quatro ou cinco da madruga, nem lembro mais... – disse Lestrade.
- Obrigado, cara – disse Watson – Mas o que aconteceu?
- Vocês desmaiaram... todos vocês. Cheguei no Rizzo, tive que chamar uns caras da polícia pra ajudar a trazer vocês aqui. E quando fui ver, as garotas já não estavam mais lá. Fugiram.
- Fugiram?! – lamentou-se Gabi.
- Suponho que sim. E não voltaram para casa – disse Lestrade.
- Como fica o seu caso agora?
- Não sei. Só sei que hoje, às sete, não consegui dormir e fui caminhar pelas ruas. Fui na vizinhança das irmãs bruxas e interroguei os vizinhos que já tinham acordado. Muitos me disseram que corria um boato por ali de que elas tinham fugido de vez esta manhã, depois que saíram do Rizzo com alguns rapazes. Dizem que todos eles caíram na estrada e foram para o México cultivar cannabis no campo, passar as férias na Califórnia e difundir a bruxaria pelo mundo. Sumiram de vez...
- Meu Deus... – Marcus estava infeliz com o ocorrido.
- Outros vizinhos – continuou Lestrade, se preparando para ir embora - dizem ter visto, lá pelas seis horas hoje de manhã, da janela de seus apartamentos, um grupo saltar de pára-quedas de um helicóptero lá do Aeroporto de Viracopos. Acreditam ser o mesmo grupo que fugiu. Caíram no mato e depois partiram da cidade. Fui investigar o terreno onde dizem que eles caíram de pára-quedas. Encontrei inscrições familiares numa árvore: “C”, “B”, “WHP”, “DEKW”... coisas que me parecem muito sinistras. Acho que vou me aposentar. Bom dia para vocês.
E ele bateu a porta.
O silêncio se fez na sala de Holmes. Este se levantou, preparou uma injeção de heroína e declarou, alegremente, para os amigos:
- Vocês sabem o que eu queria fazer hoje?
- O que, Holmes? – perguntou Watson, espantado.
- Elementar, meu caro Watson... eu tenho vontade de fazer o tal do curso de pára-quedismo. Quem topa?
É claro que todos toparam. E, naquele momento, arregaçando a manga do sobretudo, Sherlock Holmes deu uma boa injetada de heroína na veia mais grossa que pôde encontrar...


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