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Contos-->Cuisine du Cirque -- 28/01/2003 - 16:52 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Cuisine du Cirque


Na auto-estrada Leste do município de Grant-Belouise, em Marselha, sul da França, existe um restaurante de beira que serve basicamente a caminhoneiros comerciantes ou aos trabalhadores do vilarejo que existe mais ao Sul, um local que lembra as velhas cidades dos westerns americanos, só que com uma ponta de modernidade e desenvolvimento.
Eu vim a conhecer o restaurante, Popirot, assim como a cidade, em uma de minhas estranhas e peculiares experiências pelo mundo afora, após a minha tão comentada guinada na vida, em 1969, quando ganhei aquele prêmio de 2 milhões num concurso, ainda no Brasil.
De qualquer forma, era um restaurante como qualquer outro de beira de estrada. O chão era totalmente feito de madeira, as mesas de carvalho, o aspecto muito doméstico e aconchegante, e, graças a Deus, aquecido. O pessoal parecia ser amistoso. Mas pude averiguar depois que não era bem assim.
- A senhora tem café?
- Acabou o café – respondeu-me a mulher que ficava no balcão, servindo. Me sentei no balcão – Só tem leite, se quiser.
- Me dá um daqueles salgados ali, e leite sem açúcar, por favor...
- Mais alguma coisa? – ela anotava o pedido num papel.
- Ah, e café.
- Não tem café.
- Ah, desculpe, eu tinha esquecido.
Minha cabeça estava meio atordoada, devido aos dias agitados pelos quais eu tinha passado naquela época. Senti-me envergonhado pelo esquecimento tão imbecil a respeito do café.
Meu francês era mais ou menos, por isso procurei falar o mínimo possível. Além disso, não estava nem a fim de falar muito, pois estava com a mão enfaixada. Tinha levado uma mordida de cachorro três dias antes. Um doberman, solto na rua, tinha me perseguido pelo subúrbio de Marselha por meia hora. Quando me alcançou, resolvi me defender, e chutei a cabeça dele. Ele rosnou e ficou irado, e pulou em cima de mim. Levantei a mão pra me proteger, e ele quase a arrancou com os dentes. Ainda estava doendo.
- Obrigado – ela tinha me trazido o leite e o salgado, e então comecei a comer. No restaurante havia mais umas seis ou sete pessoas, todas sentadas nas mesas. No balcão só eu. Logo entrou uma mulher jovem, que veio se sentar também ao balcão.
Ela era realmente bonita, devia ter em torno de vinte e cinco anos, não mais do que trinta. Era loira, cabelos longos e muito finos e lisos, usava um gorro preto na cabeça, e roupas de inverno. A calça dela era particularmente atraente, não sei nem dizer por quê. Sei que foi atrevimento meu desde o início ter me fixado tão insinuantemente nas calças da moça, afinal, essa gente de respeito, os franceses, não merecem a falta de educação de indivíduos machos vindos de países tão safados como o Brasil. Mas é que ela usava uma calça azul bem agarrada às pernas, e que pernas...! Um tecido muito fino, realmente colado à pele. E ficava tão gracioso na mulher, que não consegui tirar os olhos dela. Ela deve ter se sentido até sem graça com minha atitude. Mas é que eram pernas de garota, pernas de dezoito anos, e não de vinte e tantos, ou trinta. Perfeitas, lisas, não tão magras, e muito menos gordas. Só que a calça era muitíssimo apertada. Desculpem-me se estou sendo repetitivo demais, ao enfatizar a espécie de vestimenta da mulher. Mas o que eu posso fazer? Era uma coisa bonita de se ver. E não é só isso. Fico até meio encabulado ao relatar também que, na região de seu órgão sexual, a calça não era menos justa. Perdoem-me a clareza: a calça era enfiada em todos os orifícios de suas “partes”. E que partes! Desculpem-me.
Ela pediu pão.
Ah, sim... agora me lembro. Seus olhos eram uma maravilha. Claros, muito claros, meio azuis, mas quase pardos. Olhos grandes, cílios longos, um rosto encantador, de uma ternura inexplicável. Com certeza era francesa de nascença. E não devia ser pobre, deduzi por intuição.
Era o ser mais belamente feminino e excitante, seja física, erótica ou psicologicamente, que eu já tinha visto desde minha chegada no país. Senti o coração acelerar a batida, e senti também uma súbita e nova alegria de viver, por dentro, causada pela linda presença da garota.
Em certo momento, ela notou o meu olhar insistente e também olhou pra mim. Seu olhar era inibidor, era muito lindo. Me senti encabulado, mas aí ela sorriu pra mim. Retribuí o sorriso. E fui ter com ela.



Me sentei ao lado dela no balcão, e ofereci um cigarro. Ela aceitou, e eu acendi pra ela. Começou a fumar graciosamente, com aquela mão tão delicada e limpa, e soltando a fumaça devagar, sem tragar nem nada. Maravilhosa.
- Você é daqui mesmo? – perguntei. Precisava manter uma conversa com ela.
- Não. Sou de Lyon, e você? – a voz dela era igualmente linda. O francês era muito acentuado, voz delicada de veludo, e ela fazia um movimento engraçado com a boca ao falar. Fazia biquinho. Era a coisa mais preciosa neste mundo.
- Na verdade sou brasileiro, mas estou passando este ano aqui em Marselha. Você está de férias?
- Mais ou menos isso – ela me respondeu a esta última pergunta com um tom de hesitação e de medo, talvez. Insegura. A voz dela tremeu um pouco. Parecia que não queria falar sobre o motivo de estar lá.
- Eu estou fazendo pesquisas pro meu livro... – disse eu, modesto.
- Ah é? Você escreve, então?
- Isso. Você gosta de ler?
- Gosto, mas leio pouco, sabe.
- Falta tempo? – perguntei, sorrindo.
- É... – ela parecia preocupada com algo, pois baixou os olhos e pareceu abatida.
- Escuta – disse eu, limpando as mãos no guardanapo, e pegando minha mochila – Vou pegar uma coisa aqui pra você.
Procurei e entreguei pra ela um exemplar de meu último livro, “Palpitação”, que saiu no Brasil.
- Aqui. Pra você. Quero muito que fique com um exemplar. Este eu escrevi ano retrasado, em Miami, e foi publicado no Brasil e em Portugal.
- Puxa, obrigada, obrigada mesmo... que graça – ela pegou o livro nas mãos e ficou apreciando a capa, lendo o nome do livro e do autor – Você é muito gentil.
- De nada. É meu quarto livro. Estou escrevendo o quinto aqui na França.
- Já tem nome? Quero comprar, quando sair.
- Acho que vai ser “Suco Azul”, mas pode ser que mude.
- Genial. E sobre o que você escreve, escritor? – aquele jeito dela falar estava me deixando caidaço por ela.
- Depende. Palpitação é uma coletânea de três contos que apresentam uma ligação entre si. É sobre grupos de gângsters, é meio policial. Já Suco Azul será um livro pra adolescentes, sobre adolescentes, drogas, violência, surf...
- Drogas? Você vai pesquisar sobre drogas aqui na França? – perguntou-me ela, interessada.
- Sim, pretendo pegar material de estudo com especialistas, mas não só aqui. Pretendo também ir à Escócia, Inglaterra, Holanda...
- Nossa, você viaja bastante, então?
- Viajo, sempre que posso.
- Você gosta dos The Beatles? Gostei da sua camiseta – disse ela. Eu vestia uma camiseta preta com a capa do “Abbey Road”, por baixo da minha jaqueta jeans velha.
- Adoro. Você também?
- Muito. Sempre gostei. E do Elvis, você gosta?
- Gosto também. Tenho a coleção completa do Elvis, dos Beatles, dos Stones, do Chuck Berry...
- Ah, sim, o Chuck Berry... é o negro, não é mesmo?
- É – respondi. Eu não desgrudava os olhos dela. Uma gracinha. O jeito dela falar aqueles nomes em inglês, com o sotaque francês, era muito peculiar. Fiquei feliz de ver que gostávamos do mesmo tipo de música.
- O Chuck Berry negro é rock n’ roll dos Estados Unidos da América, como o Elvis?
- É sim – eu delirava com a menina. “Rock n’ roll dos Estados Unidos da América”... era um barato.
- Já ouviu “Roll Over Beethoven”? Eu gosto.
- Claro. É uma das mais populares dele. E o que você gosta de ler?
- Coisas diversas, não sei bem os nomes dos autores... dos franceses, gosto do Guy de Maupassant, do Flaubert, e outros... também o Gabriel García Marquez, Júlio Cortazar...
- Eu também gosto dele.
- Adorei “O colhedor no campo de centeio”, daquele americano...
- É “apanhador”.
- Ah é. Isso.
- E você, o que você faz? – perguntei, subitamente.
- Nada.
- Nada?
- Quer dizer... eu tenho um trabalho, mas prefiro não falar sobre ele – ela disse isso como uma criança, de um jeito todo gracioso. Se debruçou sobre o balcão e mordeu o lábio, visivelmente envergonhada. Corou em seguida, e riu, nervosa.
- Tudo bem. Mas vive sozinha? É casada? Não consigo imaginar uma moça tão linda como você sozinha. Não estou te cantando, e desculpe se...
- Não tem problema, pode dizer o que pensa, escritor... – ela me sorriu – Obrigada, muito obrigada. É sério, você me achou bonita?
- Todo mundo já deve ter te dito isso, não tenho dúvidas. É muito bonita. Ainda não vi aqui na França uma garota com um rosto tão artístico quanto o seu...
- Obrigada... mas você me deixou com vergonha, escritor – era verdade, ela ficara vermelha e ria sem parar, com as mãos enfiadas nas pernas, protegidas do frio.
- Não devia ter vergonha de ser bela... devia ter orgulho. Mas não me respondeu, garota-envergonhada... é casada, tem namorado...?
- Não tenho nada.
- Não acredito. Não namora?
- Não. Pode acreditar.
- Qual o seu nome? O meu você já sabe, viu no livro...
- Salette.
- Vive sozinha?
- Mais ou menos isso.
- Como, mais ou menos? – disse eu, bem humorado – Não tem certeza?
- É que é um pouco complicado para mim...
- Desculpe, eu é que não deveria ficar me intrometendo assim na sua...
- Não tem problema, escritor... não foi nada...
- É que, não sei... estávamos conversando, e eu falei um monte de coisas sobre a minha vida pra você, e não que você tenha a obrigação de contar também alguma coisa, mas só pensei que...
- Eu é que me desculpo, escritor... relaxa.
Pela primeira vez, ficamos os dois em silêncio. A conversa tinha murchado.




Momentos depois, nos conscientizamos de que o tempo passava, e já deviam ser umas onze da manhã. O tempo corre quando estamos em outro país, conversando com uma pessoa legal.
Paguei minha conta e também a dela, sob veementes protestos dela, é claro. Ela era muito simpática, mas havia ainda algo no jeito dela que me intrigava. Algo havia de errado.
Saímos do restaurante conversando, e então eu me lembrei que tinha coisas para fazer naquela cidade. Afinal, tinha que continuar minhas pesquisas diárias para o livro, o que incluía entrevistas, pesquisa de documentos, resumos e análises do material, etc. Foi muito difícil me separar dela. Me senti demasiadamente atraído. Era uma pena deixá-la, ali, em frente ao restaurante na estrada. A estrada era de ida e volta, ou seja, uma que ia para a cidade e outra que voltava, indo para a Estrada Principal. Era o meio do nada, mas era também um cenário onde se encontravam vários personagens peculiares da França Moderna pelas ruas...
O sol, muito ameno, nos atingia e nos dourava, em frente à estrada, parados. Era um sol da manhã, leve e calmo. Resolvi arriscar uma aproximação:
- Hã... você tem telefone aqui? – perguntei, um tanto cauteloso com ela.
- Eu? Tenho sim.
Eu não disse mais nada, mas ela logo já sorriu pra mim e levou a mão à bolsa, pegando em seguida, toda amigável, um cartão.
- Aqui – disse ela, apontando com o dedinho delicado – O telefone do hotel. Estou lá no Bing Tyler. Onde você está?
- Fiquei numa pousada a uns trinta quilômetros daqui, na estrada mesmo. Não ligo muito pra conforto, essas coisas... um lugar assim já é suficiente.
- Legal... qual pousada?
- É o Wanzo.
- Vai me ligar?
- Vou sim – eu disse, já me preparando para me distanciar.
- Então até mais.
- Até.
Eu aproximei o rosto do dela, por instinto, e beijei-lhe a face, e ela retribuiu. Éramos estranhos, é verdade, praticamente nem nos conhecíamos. Mas, não sei, eu me sentia muito confortável com ela, como se fôssemos já grandes amigos. Gostei de ter beijado Salette aquele dia, aquilo me encheu com uma sensação muito pura e diferente. Caminhei em direção ao ponto de ônibus, na estrada, e me demorei um pouco no passo, para aproveitar aquele fim de manhã. Salette pegou um táxi para o hotel.




Mais tarde almocei no hotel e fiquei a ler um jornal francês que tinha lá no meu quarto. O “bell-boy”, o garoto das malas, era o perfeito Jerry Lewis naquele filme em que ele faz um funcionário trapalhão num hotel. Era uma comédia. Sempre deixava a moeda cair no tapete, e aí se abaixava rapidamente pra pegar, e então o chapeuzinho é que caía. Eu me segurei para não rir na cara dele.
Era um hotel, mas com ares de pousada. Era meio doméstico demais, digamos. A comida era razoável, o serviço médio, o quarto era até que bem simpático, para uma pousada de estrada. Meu quarto era no segundo andar, minha janela era uma das que tinham a melhor vista, lá de cima. Eu via a estrada.
De qualquer forma, almocei e senti cansaço. Mas não podia dormir, não mesmo. Além do trabalho que tinha pra continuar, ainda não tirava a garota da minha cabeça. Tomei um champanhe depois, e me senti pior ainda, me senti tonto e mais cansado.
A preguiça bateu. Eu não conseguia me levantar pra ir até a biblioteca. Estava cansado demais. No dia anterior, tinha feito uma caminhada com um grupo que conheci na editora do meu livro em Portugal, e fomos de carona até o campo. O campo, no sul da França, é lindo e compensa a viajem até lá, que é longa. Fomos num caminhãozinho, e chegamos ainda de dia. A viajem não foi puro passeio, tinha motivos mais profissionais. Fomos estudar as plantas e os cogumelos que fornecem drogas como o chá de cogumelo, pois um dos assuntos de meu próximo livro são as drogas em geral. Um estudo extremamente interessante para mim. Agora, à tarde, eu deveria ir até a biblioteca coletar material, mas a verdade é que acabei não indo.
Às três horas, o telefone tocou.
- Alô.
- Alô, escritor?
Aquela vozinha era inconfundível.
- Salette?
- Isso mesmo.
- Como achou meu número?
- Pra que serve a lista, bobinho?
- Ah. Eu ia te ligar mesmo, eu... eu não fui trabalhar.
- Vamos nos encontrar?
- Onde?
- Vem até o hotel, escritor, é só pegar um ônibus do outro lado da estrada.
- Tem certeza?
- Claro. Quero conversar.
- Está bem.
- Tem o endereço?
- Tenho.
Confesso que me senti meio que aliviado, ou talvez satisfeito, quando ouvi a voz dela ao telefone. Era uma salvação. E quando ela disse que queria me ver, vibrei por dentro. Quer dizer que ela tinha gostado de mim, provavelmente. Me senti bem, pois tinha adorado a Salette quando falei com ela. E senti algo na voz dela, como se ela estivesse talvez carente, não sei. A melhor coisa era ir até lá, e tentar descobrir o que é que afligia a mulher...
Dei graças a Deus por não ter ido trabalhar naquele dia. Se tivesse ido, não iria ser convidado por Salette. Parece que foi um aviso. Aquela moleza após o almoço, a bebida... tudo pra me segurar em casa. Eu louco de vontade de vê-la de novo.




O hotel dela era muito bonito, ficava numa travessa da estrada, num lugarejo muito arborizado, e era uma construção bonita, limpa, aparentemente nova.
Subi até o 4o andar, procurei o apartamento 43 e fui encontrá-lo com a porta aberta. Ela me sorriu do espaço entreaberto e me deixou entrar, sorridente.
Por dentro, o negócio não era diferente. O quarto dela era lindo, todo branco e perfumado. Era como o paraíso. E ali estava a musa, com seus loiros cabelos.
- Quer tomar alguma coisa? – ela usava um robe azul claro e mais nada por baixo, provavelmente tinha saído do banho há pouco tempo. Aceitei uma dosezinha de uísque, e me sentei numa poltrona na sala de estar. Ela ligou a TV pra mim, falou pra eu assistir enquanto ela ia se trocar, e se arrumar, e tudo.
Estava passando aquele velho seriado do Batman, dos anos 60. Aquilo já era bem atrasadinho, mas até que eu gostava de ver coisas velhas na TV. Era bem melhor do que aquele monte de programas de auditório que existem pelo mundo todo.
O som que eu ouvi vindo do quarto dela era do chuveiro, bem abafado. A sala era bem decorada, muito aconchegante.
Imaginei quem seria aquela garota, aquela mulher hesitante, indecisa no olhar, mas bonita e sensual daquele jeito... e fiquei pensando... o que seria que ela queria falar comigo? Mal nos conhecíamos... será que ela era alguma ladra, ou algo assim, querendo me dar o golpe? Não podia ser... não mesmo.
Aquele tempo em que fiquei na sala, vendo TV e bebericando o uísque, parece-me agora ter durado séculos... não sei por quê, mas me senti meio atordoado, naquela espera toda, sem contar os problemas que tinha pra resolver. Aquilo pareceu uma eternidade. Pensei um tudo e em nada naquele tempo.
Em certo momento comecei a fazer um balanço da minha atual situação. Eu estava na França, com dinheiro. Certo, estes eram os fatores positivos. Mas havia mais negativos. Eu passava por uma fase muito complicada, principalmente no aspecto ético e moral do meu ser. Enfrentava por exemplo o cigarro e principalmente a bebida, meu grande mal. Comecei a beber muito cedo, pré-adolescente, e nunca parei. O vício me alcançou quando eu tinha vinte anos. A partir de então passou a trazer problemas.
Quanto às mulheres, agora estava meio enrolado. Esse assunto sempre foi muito confuso na minha cabeça. Nós que não entendemos as mulheres ou elas é que não entendem o mundo? Elas que são muito femininas ou nós que somos mais burros? Dúvidas eternas, das coisas que Deus colocou no mundo pra fazer o homem pensar.
Tive poucas namoradas, confesso, mas acrescento que justamente por serem poucos, é que foram casos complicados. A coisa foi dura em certos momentos. Tive por exemplo uma namorada, Andréa, com a qual fiquei junto por dois anos. Foi meu grande amor. Éramos apaixonados um pelo outro, e eu sempre dizia que íamos nos casar. A coisa durou, até que a porcaria da bebida e das drogas começaram a atrapalhar a relação. Tá certo que todo mundo na nossa idade ou bebia ou fumava maconha na época. Era tudo um bando de louco, era mesmo... no Brasil as drogas nunca foram menos freqüentes que em outros países, como os EUA ou a Europa. O negócio era bravo. Todo mundo fumava, mas... o negócio é que não dá pra controlar. Fiquei um longo tempo em estágio de recuperação da maconha, um tempo bem sofrido pra mim. A namorada estava do lado, apoiando, mas mesmo assim achei que fosse morrer. Quando comecei a usar drogas pesadas foi que pirei. Foi a pior coisa que já fiz. Aí é que entrei neste estado de transe. As coisas pioravam, e foi aí que ela me deixou. Brigávamos o tempo todo, pelos motivos mais idiotas. O negócio era que ela só sabia me dar sermões a respeito do mal das drogas, e eu, muito teimoso, só sabia discutir com ela, e me defender, dizendo que ela própria fumava baseado de vez em quando. Era verdade. Mas eu não tinha razão em fazer aquilo. Ela queria me ajudar, e além disso, nunca foi usuária freqüente de nenhuma droga, pois tinha juízo. Brigamos, depois de muitos perdões e choros, definitivamente. Ela foi embora, e a minha recuperação se tornou pior ainda. Sozinho, eu perdi minha motivação. Demorei muito pra voltar a sair e conhecer outras garotas.
Mas, quando finalmente tinha me recuperado, surgiu a Taís, e essa também me deixou bem maluco, só que eu já estava bem melhor, com relação às drogas. Tinha me tornado um usuário muito contido, fumando só de vez em quando e bebendo somente em festas. Aliás, festas não faltavam, e foi numa delas, dada por um amigo de colégio, que conheci a Taís. Uma morena linda e mais velha do que eu, alta. Era uma maravilha, dócil e frágil. Amei esta garota. Saíamos todos os dias, praticamente, e a guria era genial. Inteligentíssima. Conhecia tudo de teatro, de cinema, de literatura... conversávamos avidamente sobre estes assuntos. Lemos o Kama Sutra juntos, e partilhamos tanto a parte teórica quanto a prática do livro. Eu ainda era louco, nesta época. Na verdade, foi quando comecei a escrever. Até ali, havia estudado e começado a faculdade de Letras. Parei no terceiro ano, não agüentava estudar. Decidi apostar no emprego de assistente de redação, de onde pulei pra redator-chefe cinco anos depois. Sempre escrevendo. A danada da Taís só me ajudou, neste período.
Só que as coisas começaram a dar errado. Vou ser direto e sincero: eu traí ela. Eu admito que era uma garota e tanto, e que sou um verme por ter feito isso com ela. Ela não mereceu. Ficou parecendo que ela não era suficiente pra mim. Mas era. Traí ela com uma puta que conheci na faculdade, e com quem fumava maconha.
Um tempo depois, após diversas tentativas de reconquistar a Taís, todas fracassadas, acabei tendo sorte. Só que no dinheiro. Ganhei o prêmio de dois milhões em dinheiro em um concurso que um programa estava promovendo. Foi a coisa mais excepcional que já me aconteceu na vida, sem contar as viagens que fiz depois que ganhei a grana. Passei a conhecer o mundo, e apostar na profissão de escritor. Subiu a minha popularidade, pelo menos entre os editores do país, e passei a escrever em outros países, como a Inglaterra, a Escócia e a Índia. Nestes países conheci dezenas de mulheres, dos mais variados tipos. Ricas, pobres, bonitas, doentes (namorei com uma aidética em Miami), drogadas, caloteiras, madames, estudantes... uma loucura.
Mas agora me pergunto: isso tudo valeu a pena? Não, não valeu. Me diverti, mas até agora não construí nada. Não sei se estou sendo claro. Ainda não mantive uma relação pura e firme, séria mesmo. Na verdade, quase cheguei a me casar, mas foi só uma vez, há pouco tempo, na Inglaterra.
Conheci uma turista, também brasileira, num daqueles pubs noturnos de Londres. Ela dançava muito bem. Bonita, simples, muito cativante. Tatiana. Acabamos namorando por alguns meses. Fazíamos planos, começamos a morar juntos num apartamento na Inglaterra. Ela era estudante, ainda. Faculdade. Fizemos projetos, que não saíram do papel, que não saíram mesmo da cama. Não demorei a perceber que o que eu queria não era aquilo. Casar, me fixar num lugar... concluí que a vida tinha que ser aproveitada de outra forma, agora... e acabamos o namoro. Ela ficou profundamente abalada, e eu só procurei esquecer tudo. Como sempre fiz.
Agora tinha o problema do álcool, o stress do trabalho, que era bem pesado... essas coisas agora me afligem, mesmo quando estou viajando pelo mundo. Uma vez passei numa consulta com um psiquiatra, isso foi dois anos atrás. Conversamos por um tempo, e, quando discutimos o meu trabalho, ele constatou que eu era um caso muito comum hoje em dia de viciado em trabalho, ou “workaholic”. Eu era um sujeito super-ativo, mas também muito nervoso, e se não descansasse um pouco mais, e trabalhasse menos, iria ter problemas futuramente. A partir de então tenho trabalhado ainda mais, ao invés de seguir o conselho. Não consigo ficar parado.
E agora, sentado naquela sala do apartamento de Salette, esperando a moça, quieto, comecei a pensar em tudo isso e pensar em algo interessante: depois que conhecera ela, estava me sentindo diferente por dentro, mais calmo e mais satisfeito. Gostei dela. Ela me fez acordar um pouco desse mundo louco em que vivo, e me fez enxergar sua beleza, todo esse jeito dela...
Passou um bom tempo, e comecei a estranhar. Ela já deveria ter voltado. Mas o som do chuveiro continuava. E percebi também que, na verdade, era estranho ela ter me chamado ali e só então ter resolvido tomar banho. Parecia que estava esperando algo, não sei, fazendo hora, como se precisasse decidir alguma coisa. Disse que queria conversar. Bem, ali estava eu. Impaciente.
Fui olhar pela janela, e vi que já eram umas cinco, pelo movimento do trânsito. Servi-me de mais uísque, e acendi um cigarro. Andei pelo tapete da sala, impaciente, observando os quadros. Um deles, um dos mais bonitos, mostrava uma mulher como Salette, bonita, jovem, deitada em cima de umas almofadas, coberta somente com uma manta vinho. Era um belo quadro.
Peguei minha carteira, comecei a fuçar, e de repente me lembrei que não avisara meus amigos de que não estaria na pousada à tarde. Eles provavelmente iriam passar por lá, para me encontrar e para irmos à noite em algum lugar. Eles estavam todos muito longe, em outra cidade, e vinham às vezes me procurar. Amigos escritores.
Resolvi ligar pra eles. Afinal, não seria grande incômodo para Salette, pensei. Procurei o cartão do hotel e liguei. Fellipe, que eu conhecia já há anos, e que era poeta, atendeu.
- Alô, quem é?
- Sou eu, Fellipe, estou ligando pra avisar que não estou no hotel.
- Nós vamos no Ceffine, o pessoal tá aqui... quer ir?
- Não, estou meio longe, não estou na pousada.
- Vamos, é aniversário do primo do Marine. Não?
- Não, acho que não... dá meus parabéns pra ele, Fellipe, e explica que eu não tô muito bem pra ir hoje... fica pra amanhã, ou depois.
- Tá certo. Mas onde você tá?
- Num hotel. Uma amiga.
- Amiga? Bom, qualquer coisa, aparece lá mais tarde.
- Tá.
- Até logo.



Meia hora depois ela voltou do banheiro, toda perfumada, e ainda vestindo aquele robe azul. Mais linda do que nunca. Dava pra ver suas pernas e seus pés descalços saindo do robe, graciosos. Ela se sentou em frente, no sofá. Fumava.
- Você queria conversar?
- É... você estava ocupado? Espero que não tenha...
- Não, não mesmo. Não ia fazer nada por lá...
- Preciso dizer algumas coisas, que não consigo dizer pra mais ninguém. Só pra você.
- Diz.
- É que... eu não sei se você vai entender... estou meio abatida, deprimida, estes dias, devido ao que aconteceu – ela tinha a voz trêmula. Deixei que ela continuasse.
Depois de alguns minutos, ela resolveu falar:
- Olha. Eu fugi de casa, eu fugi de Lyon...
Eu não disse nada. Só esperei que ela continuasse, enquanto eu tomava outra dose.
- Tenho uns problemas meio graves lá em casa, na minha cidade, coisas que não me sinto à vontade para falar...
- Então não fale, Salette.
- Mas quero falar. Agora que o conheci, não sei, sinto que preciso falar. Pra você. Sou uma prostituta, escritor.




Aquilo, como não poderia deixar de ser, me abalou um bocado. Quase deixei cair o copo, e senti a Salette vacilar um pouco com a voz. Parecia muito triste.
- Eu fugi porque me meti em muita encrenca lá na minha cidade. Meu trabalho não tem honra alguma, sou uma pessoa suja, e acabei me dando mal com...
- Não diga isso, não, Salette... – coloquei a mão no ombro dela, e fiz um afago no robe dela.
- Vou contar tudo, escritor, já que comecei.
Aguardei. Ela chorava um pouco.
- Eu trabalhava, até a semana passada, para um homem, Liseau. Ele era o dono do local onde eu e as minhas colegas garotas trabalhávamos. O prostíbulo. Ele é um daqueles homens ignorantes e sacanas, e aproveitadores, e extremamente machistas, que a gente vê por aí. Muito diferente de você, meu amigo escritor muito gentil...
- Obrigado – disse eu, envergonhado.
- Bom, a gente trabalhava lá há mais de um ano... eu morava lá, pois sou órfã desde os dez anos, e desde então sempre fui uma puta.
- Não fale assim, Salette...
- Mas é a verdade! Estou acostumada a este tipo de vida, acredite. Nenhum dos homens que já entraram naquele lugar teriam um mínimo de respeito ou educação com nós, as putas, e nem poderiam. Estão lá é pra fazer sexo sujo e barato, e abusar da gente, e pedir pra gente fazer todo tipo de coisa, as coisas mais repugnantes, e pra bater na gente...
- Os clientes batiam em vocês?
- Batiam. Os clientes batiam na gente, o Liseau cachorro batia na gente, todo mundo... – de repente a moça começou a chorar silenciosamente. Peguei a mão dela dentro da minha e me aproximei da Salette. Ela não parou de falar – Achavam que a gente era umas burras, e que a gente não fazia nada direito, e diziam que qualquer hora iam botar a gente na rua, aqueles miseráveis...
- Vocês não reclamavam dos maus tratos? – perguntei.
- O que adiantava reclamar? Não podíamos fazer nada, pois nos batiam, e, além disso, éramos prostitutas, a lei nunca nos defenderia perante o Liseau. Quem está errado é a gente, as garotas, vendendo nosso corpo assim... mas, veja, não tínhamos opção... nunca consegui arranjar um emprego decente... dependia do Liseau... por isso, obedecíamos a ele.
- Eu entendo sua posição, Salette, acredite...
- Você é muito compreensivo... me beija...
Beijei Salette nos lábios, um demorado beijo de língua que buscava curar o peito ferido daquela ave tão linda que ela era...
Viajei.



Naquela noite dormi com Salette. Foi inesquecível. Até me esqueci dos meus problemas, esqueci até que estava na França. Parecia estar no paraíso.
Ela me acordou, no dia seguinte, sorridente. Parecia mais alegre depois da conversa e da companhia que fiz a ela durante a noite.
- Dormiu bem? – perguntou-me ela, encantadora. Como era bom ser acordado de manhã por uma garota tão doce...
- Eu? Claro. Dormi muito bem. E você...? Tudo bem?
- Tudo bem – respondeu ela com um sorriso. Depois foi abrir a janela, e a luz da manhã entrou dentro do quarto, me cegando. Pude ver a paisagem francesa lá fora, o lindo campo e o horizonte.
- Que horas são?
- Nove horas – respondeu ela, e veio se sentar ao meu lado na cama.
Beijei ela na boca e lhe sorri. Ela disse, quase sussurrando:
- Obrigado, escritor...
- Por que?
Ela não disse mais nada, só pareceu muito radiante, e se levantou, de camisola, indo para o banheiro.
- Posso usar seu telefone? – gritei-lhe da cama.
- Claro. Fique à vontade – disse ela, já entrando no banho.
- Obrigado.
Precisava ligar para meus colegas. Tinha que dar uma satisfação. Afinal, nem tinha trabalhado e nem me encontrado com meus amigos. Deviam estar um tanto irritados comigo.
- Alô, por favor o Sonzzini?
- Ele não está – disse uma recepcionista.
- Você pode deixar um recado, por favor?
- Sim?
- Diga a ele pra me encontrar no restaurante Gifon, na Linus Terrence, número 83. Por favor.
- Darei o recado.
- Obrigado.



Eu disse à Salette que precisava me encontrar com meu amigo Sonzzini e ela compreendeu. Tomei café com ela embaixo do prédio e então deixei ela na piscina, relaxando.
Tentei então me concentrar no encontro com meu colega de trabalho, pois tinha me esquecido completamente dos meus afazeres e de minha vida profissional.
Entrei no Gifon ao meio-dia e me sentei numa das mesas próximas à janela, como de costume. Comecei a ler o jornal até que Sonzzini aparecesse. Pedi café.
Quando comecei a fumar, senti algo estranho. Era como uma pontada no pulmão. Me senti nesta hora realmente mal, achei até que fosse desmaiar.
A garçonete veio ver se eu estava bem. Disse que sim, mas na verdade não me sentia tão bem. Estranhei muito aquela dor, mas logo ela começou a amenizar. Continuei fumando e lendo meu jornal.
Quinze minutos depois chega Sonzzini.
- Ah, Julio Sonzzini, o editor! – saudei ele enquanto se sentava, e o cumprimentei.
- Olá. Por que não apareceu mais lá?
- Não pude. Tive alguns imprevistos com a passagem.
- Sério? Que tipo?
- Ah, uns problemas com os documentos, mas nada importante. Já resolvi...
- Tive uma idéia para o livro. Se você gostar, coloque. Senão esqueça, é só uma sugestão.
- Fale – disse eu, e ouvi o que ele tinha a sugerir. Sonzzini era um cara legal, muito amigo meu, e editor de meus livros. Só que tinha um defeito incorrigível: não conseguia ficar calado sem dar palpites. Sempre aceitei sugestões de todo mundo, principalmente dele. Só que às vezes ele falava demais e acabava enchendo a minha paciência. Suas idéias nem sempre eram tão brilhantes...
- Escute só: é a respeito de Sopi, o personagem principal...
- Sim?
- Bem, ele é um rebelde, certo? Revoltado com o mundo... descrente, cético, cínico e arrogante com todos ao seu redor... até aí o personagem é aquele que você me mostrou.
- Certo.
- Bem, a minha idéia é a seguinte: que tal se, durante a história, Sopi de repente virasse o sujeito mais pacífico do mundo e começasse a entender as pessoas à sua volta? Como um renascimento! Como se acordasse um dia e pensasse: “Bem, pro inferno com tudo isso! A partir de agora sou outra pessoa!”, e então ele poderia se inscrever na Cruz Vermelha, ou no Greenpeace, sei lá eu... o que acha? Eu acho a idéia muito boa, pois Sopi certamente surpeenderia todos os leitores. E isso venderia mu...
- Peraí, Julio... mas isto iria destruir completamente o personagem, você não acha? Quer dizer... isso pode pôr o resto da história por água abaixo...
- Bem, talvez sim... não sei...
- Eu pensava em desenvolver melhor a idéia do revoltado, delinqüente...
- Bem, faça como achar melhor então...
- Mas estou aberto a sugestões, Julio, e você sabe disso...
- Certo.
- Obrigado pela dica... talvez eu a use... não sei realmente se...
- Tudo bem... mudando de assunto... me disseram que você está saindo com uma garota francesa... é verdade?
- Não... quer dizer, estou e não estou... na verdade estou vendo ela, sabe...
- Hã. Ela é daqui?
- Não... não, acho que é do Sul.
- O que ela faz?
- Ela... ahãm... ela é arquiteta.
- Arquiteta? Jura?
- É.
- Puxa vida, você está saindo com uma arquiteta...
- Bem, não estou realmente saindo...
- Certo, certo.
- E ela... ela não é arquiteta não.
- Não é?
- Não. Ela é uma garota de programa. Você já assistiu Despedida em Las Vegas?



Passei o almoço todo confidenciando ao Julio toda a minha situação. Contei sobre Salette. Ele gostou da história, mas só meio que me aconselhou que eu não me deixasse levar por algum empecilho que por acaso a garota pudesse me colocar e que pudesse me prejudicar. Aceitei o conselho com sinceridade, e então me despedi de Sonzzini.
Na rua fazia muito frio. Eu vestia um sobretudo grosso até os joelhos e luvas. A maioria dos cidadãos estava enfiada dentro de casa, pois não agüentava a neblina fria que envolvia as ruas naquela tarde.
Fui até um bar perto do hotel, um tal de Fernandetto´s, e lá pedi uísque. Tomei três doses e mal percebi que me embebedava. Comecei um papo empolgante com um ator italiano que se sentava ao meu lado no balcão. Falamos da vida, da arte, do mundo, da política, das mulheres... e, quando o sol baixava, resolvi que era hora de voltar para o hotel. Quando fui pegar meu casaco no cabide, senti uma outra forte pontada, desta vez no coração. Mal pude ficar de pé, e caí ao chão sem forças. Vieram me socorrer. O ator italiano trouxe gelo e colocou na minha cabeça. Tentei me recompor. A dor continuava. Era muito mais forte agora. Consegui me levantar, e disse a todos que precisava descansar. Consegui andar e agradeci a eles pela ajuda. Deixei o bar.
Na rua a dor piorou. Algo estava errado. Aquela dor sem motivo, de uma hora para a outra...
Cheguei no hotel e a recepcionista meio ter comigo, trazendo um pequeno papel na mão.
- Uma senhorita esteve aqui à tarde e deixou este bilhete para o senhor. Ela disse que era de extrema importância, e parecia muito perturbada.
- O que mais ela disse?
- Só isso. E depois saiu, apressada, e tomou um táxi lá fora.
- Como ela era?
- Loira. Muito bonita...
- Certo.
Peguei o bilhete e fui para o saguão, me sentando num dos sofás. Abri o bilhete. Era perfumado e escrito em letras bem femininas. Dizia o seguinte:

“Querido escritor,
Estou em apuros. Preciso de sua ajuda. Por favor, venha até a Alameda Jus Denté, que é um viela paralela à Rua Chateau Rinoh, no centro. Matei Liseau. Por favor, venha direto e não diga nada a ninguém.

Com amor,
Salette.”

Guardei o papel no sobretudo e imediatamente pulei do sofá. Perguntei à moça onde ficava a tal da Alameda, e deixei o hotel, ainda com dor no peito, e morrendo de preocupação e curiosidade.
Peguei o primeiro carro que passou.



Não sei como, mas adormeci no táxi. De repente acordei num hospital. Eu estava numa mesa de cirurgia, sem camisa, e um médico me olhava gravemente, com piedade.
- O que eu tenho, doutor? – disse eu. As palavras saíram automáticas de minha boca. Parecia um sonho.
- Sinto que a notícia possa abalar muito profundamente o senhor...
- Estou doente?
- Está.
- O que é?
- Um tumor.
- Câncer?
- Não. Na verdade é pior. Algo raríssimo, pouco presenciado em meu dia-a-dia como médico. Um mal conhecido apenas como Non-sense, pra ser exato.
- Non-sense?!...
- Isso mesmo... trata-se de um verme que atacou sua região cerebral e se alojou ali como um vírus. Está dominando seu sistema nervoso aos poucos e a situação pode se agravar muito.
- É fatal?
- Não sabemos. Pouco se conhece sobre este mal...
O médico se afastou, sombrio, e foi preencher umas fichas na sala de cirurgia. Eu me levantei da mesa e vesti minha camisa, dizendo:
- Eu tenho Non-sense...
A dor agora me latejava as entranhas todas do meu corpo. Tudo formigava sem parar. Minha cabeça sacudia sozinha por dentro, e eu tinha constantemente a sensação de desmaio.
Comecei a perder os sentidos aos poucos. A visão se tornou turva, tudo pipocando como a tela da TV sem transmissão. Nos ouvidos me chegavam somente ruídos disformes de gritos e gemidos. Uma voz de mulher lânguida parecia cochichar segredos em meu ouvido. A boca, seca. Devo ter dormido então.



Comecei a ter um sonho. Ou alguma espécie de delírio, não sei dizer. Talvez fosse a imaginação também, quem sabe?
Eu estava num corredor, correndo. Fugindo não sei de quem. Eu corria como um louco, sempre pelo corredor extenso, entre portas e janelas de algum edifício. Alguém vinha vindo atrás. Eu não enxergava quem era. Quando ele se aproximou mais, pude ver. Era um homem de terno, bem vestido e bem penteado, com feições francesas. Sulista, provavelmente. Cabelos claros e olhos penetrantes. Havia um outro, este baixinho, também de terno, seguindo ele. Pareciam bandidos.
O homem me perseguia com tamanho ódio, que mal pude me mover. Aquela dor me estrangulava os órgãos.
Ele chegou perto de mim e bateu em minha cabeça com um ferro. O cano pareceu ter entortado com o golpe. Minha cabeça girou pelo recinto. Caí ao chão. O baixinho estalava os dedos e olhava em volta, nervoso. O alto veio, me agarrou, prendeu meus braços e cuspiu na minha cara, dizendo:
- Você, seu miserável! Idiota! Está protegendo a cadela, por acaso, ou o quê?!... responda! O que vocês dois têm juntos, um caso? Meu chefe não vai gostar disso, pode apostar.
E me deu um murro no estômago.



De um momento para o outro, o homem não era mais o homem, e sim Salette.
- Pare! Pare, Salette, por que está me batendo assim?!... – gritei, sacudindo os braços. Salette me olhou espantada.
- Batendo?... escritor, eu não estou te baten...
Tudo sumiu e eu acordei no meu hotel, no meio da noite, suado. Olhei em volta. Numa das paredes, no escuro, vi um vulto se mexendo. Era a criatura mais horrível que já vi. Parecia ter saído daqueles filmes estilo Alien, ou os Gremlins. A criatura tinha um longo rabo e pulava como um animal enjaulado. Quando ele começou a vir para cima de mim, gritei e vi uma imagem passar pela minha mente de um modo muito engraçado, pois nunca tinha sentido coisa parecida.
Não era sonho. Talvez flashbacks...
Certamente todos conhecem o efeito déja vu. Era mais ou menos isso. Só que parecia que acontecia só na minha visão, enquanto eu ainda estava no quarto do hotel... ou no táxi... ou no hospital, não sei...
Eu me vi no saguão do hotel, à tarde, lendo o bilhete de Salette. Exatamente a mesma cena, passando como um filme na minha frente... mas o som das vozes era diferente, robotizado, metálico. Entrei em delírio quando li: “Matei Liseau. Por favor, me ajude”. Então acordei na Alameda Jus Denté. Salette me olhava, esperando.
- O que foi? Você está bem, escritor?
- Eu... acho que sim... na verdade... bem, depois eu falo. Por que deixou aquele bilhete estranho? Não entendi muito bem aquilo...
- É a pura verdade. Me ajude, por favor, eu não sei o que fazer – os olhos dela brilhavam, ela estava quase chorando – Eu assassinei Liseau.
- Não brinque com estas coisas...
- Você tem que acreditar em mim... escute, escritor: Liseau veio me procurar aqui, juro por Deus, veio lá do Sul atrás de mim... ele queria me matar, pois ficou com raiva de mim quando fugi. Provavelmente me seguiu, ou mandou seus homens me seguirem. Você sabe, meu amigo... ele é como um mafioso, aquele bandido... já assistiu Os Bons Parceiros?
- Os Bons Companheiros.
- Isso!
- Já...
- Bem, Liseau e seus capangas são mais ou menos como os personagens dos filmes de Martin Scorcese, são crápulas... bandidos da pior qualidade...
- Eles vieram te matar aqui?!
- Sim. Hoje, quando você foi embora, um carro escuro parou em frente ao prédio. Um homem de preto saiu de dentro e entrou no prédio. Segunds depois ele batia na minha porta. Eu gelei. Por instinto, senti que vinha atrás de mim. E me lembrei de Liseau. Foi então que ele arrombou a porta e eu corri para o meu quarto. Eram dois homens.
- Como eles eram?
- Eles? Bem, se me lembro bem, um era alto e magro, loiro, e o outro bem baixo... estavam bem vestidos...
- O baixinho estalava os dedos?
- Como...?
- Eu perguntei se o baixinho estalava os dedos!
- Não sei... ah, agora que você disse, escritor... sim, tenho quase certeza que o mais baixo estalava os dedos a toda hora...
- Acho que sonhei com estes capangas hoje. Tive um delírio ao vir para cá... lembro-me bem destes dois... acho que me torturavam para saber onde você estava... capangas de Liseau... continue, Salette.
Estávamos eu e Salette numa viela estreita no centro da cidade, parados em frente a um prédio. Ninguém mais passava pela rua.
- Depois eles acabaram me encontrando... e entraram no quarto.
- E depois?
- Depois, quando eles se aproximavam, escutei uma voz vinda de trás deles. Uma voz que reconheci na hora.
- Liseau.
- Exato. O truculento Liseau vinha vindo, todo pomposo, arrumado, por trás deles. Mandou que se afastassem, e disse que queria ele mesmo resolver o problema. Os homens ficaram atrás e ele veio ter comigo, enfurecido, vermelho de raiva, suando como um porco. Começou a tirar o cinto.
- Ele te bateu?
- Ele começou a usar o cinto para me bater. E eu não sabia se reagia ou não.
- Por que?
- Porque temia que o pior acontecesse.
- E o que é o pior?
- Calma. Aí ele falou que adoraria me dar uma boa surra e acabar comigo por ter feito ele de palhaço, e disse que antes disso ainda queria me aproveitar um pouquinho mais... e tirou as calças. Os homens dele vigiavam o corredor do apartamento. Liseau arrancou minhas roupas. Eu tremia. Ele me puxou para perto dele, e começou a se esfregar em mim... eu tentando me segurar para não reagir... e quando ele finalmente ia penetrar aquela coisa nojenta dentro de mim, eu não me segurei mais e fiz a burrada.
- Que burrada?!
- Escritor... prometa que não vai se zangar comigo depois que ouvir isto... prometa que irá me ajudar mesmo assim... você promete?
- Prometo. De todo o meu coração, Salette... confie em mim. O que você fez?
- Eu me transformei.
- Como...?
- Me transformei no que realmente sou – disse ela, mordendo o lábio inferior.
- E o que você realmente é, Salette?!
- Um alien. Sou um alienígena.
Fiquei mudo. A garota devia estar delirando, só podia estar. Mas disse aquilo com tanta convicção e seriedade, que suspeitei de sua sanidade mental.
- Você sabe o que está dizendo, Salette?
- Sei. Observe.
Naquele momento ela olhou pra ver se tinha alguém vindo, e então fechou os olhos. Se concentrou e seu corpo se iluminou todo com uma luz rosa. A luz era cegante. Ouvi um som, um assovio agudo vindo dela, e a garota de uma hora para a outra se metamorfoseou num monstro. Eu estava diante de uma criatura, uma aberração monstruosa, viscosa, com um longo rabo e tentáculos, e presas afiadas, e olhos brilhantes. De seu corpo escorria uma gosma rosa. O animal parecia uma mistura de lagarto com urso. E falava como uma pessoa normal, com a voz de Salette:
- Viu? Agora acredita em mim?
- Meu Deus, o que é isso? Salette, onde você foi?!
- Estou aqui. Sou eu – disse ela, e logo retornou à forma de mulher – Hoje à tarde fui obrigada a revelar minha verdadeira natureza ao ser agredida por Liseau. Quando ele me agarrou, lancei minha língua dentro do estômago dele e extraí o estômago. Ele morreu no mesmo momento. Os capangas dele vieram em seguida, e, ao me verem, saíram em disparada e fugiram horrorizados. Então, liguei para você e não tinha ninguém no seu quarto de hotel. Passei lá e deixei o cartão. E vim para cá. Sei que pequei, e devia ser castigada, afinal matei um ser humano. Mas acontece que eu não sou um ser humano.
- O que você é?
- Um alienígena. Acredite. Cheguei em seu planeta há muitos anos atrás. Sou de outra galáxia. Vim para cá porque fui expulsa de meu planeta após ter assaltado o tesouro do Império... e chegando aqui aprendi sua língua, sua cultura... vim parar na França, e acabei me tornando prostituta... sob a forma de uma mulher jovem e bonita. A Salette que você vê não existe. Foi criada pela minha imaginação. Meu nome é Dardelis, e não tenho sexo definido. Ninguém tem no meu planeta. Somos seres hermafroditas, capazes de reprodução individual. Tenho os dois sexos. Como pode ver, tenho os dois órgãos sexuais. Só que nós, do nosso planeta, temos uma qualidade muito peculiar. Temos necessidade de sexo o dia todo, nunca estamos satisfeitos. Afinal, podemos fazer sexo sozinhos mesmo. E no seu mundo passaram a me chamar de ninfomaníaca. Viciada em seco. Pense bem: eu tinha que viver na forma humana. A sua forma humana tem um só sexo. E eu precisava praticar o sexo constantemente. Então o que fiz? Procurei a profissão que me proporcionava ao mesmo tempo dinheiro e prazer sexual... me tornei prostituta.
- Ainda estou tonto com a descoberta. Quer dizer que a garota linda que eu conheci na França, por quem tinha me apaixonado, não existe?...
- Sinto muito, escritor... não tenho culpa... preciso de ajuda agora... pois matei Liseau no meu apartamento...
- Vamos até lá.
- Tem certeza?
- Tenho. Me mostre o corpo de Liseau, daremos um jeito de esconder.



No apartamento de Salete, ou melhor, Dardelis, jazia o corpo perfurado e ensangüentado de Liseau. Um homem gordo, forte, enorme. Quase vomitei ao ver suas entranhas expostas no carpete, ao lado da cama.
Juntos carregamos o cadáver pelo apartamento. Eu pensava num lugar apropriado para leva-lo.
- Tem forno a lenha neste prédio?
- Sim. Na cozinha, que fica ao lado da sala de jantar. É lá no primeiro andar.
- Salette... digo, Dardelis... eu estou morrendo.
- Como assim?
- Estou doente, descobri isso hoje.
- Foi ao médico?
- Sim.
- O que ele disse?
- Que tenho Non-sense.
- Isso é terrível... sente-se mal?
- Sim... meu corpo está sendo consumido por um verme alojado no meu cérebro...
- Sabe, escritor... – ia dizendo Salette, enquanto levávamos o corpo pelo corredor, até o elevador – Era mais ou menos assim que eu me sentia quando era garota de programa no bordel...
- Assim como?
- Como você... como se algo me devorasse tudo por dentro, meus pensamentos, minha cabeça... como se fosse morrer a qualquer momento, como se vendesse meu corpo aos piores animais, aos vermes mais sujos deste mundo...
- Entendo.
- E eu nunca havia me sentido assim antes... pois, no meu planeta, não existem prostitutas... as pessoas fazem sexo independentemente. Sozinhas. E aqui eu me senti mal, pois a cada dia o Liseau me batia e me mandava ceder minha pseudo-vagina a qualquer sujeito que entrasse em seu bordel...
- Sei. Sim, estou sendo devorado... às vezes acho que preciso sofrer um pouco. Sabe, sempre tive sorte como escritor. Bem, na verdade nasci numa família com dinheiro, estudei em colégios bons, me formei, comecei a escrever... depois ganhei na loteria, fiquei rico... e comecei a não fazer mais nada além de escrever livros e viajar pelo mundo todo conhecendo as melhores mulheres, bebidas, comida e hotéis... escrevi livros que venderam como água no Brasil. Nunca sofri, realmente...
- Talvez o sofrimento seja algo bom, no final das contas...
Colocamos o corpo do maldito dentro do forno, e o acendemos. O fogo consumiu a carne gordurosa e maciça de Liseau. Observamos a prova do crime, ou melhor, a vítima do crime, ser eliminada.



Dois dias depois estávamos na praia eu, Sonzzini e Salette... ou Dardelis. Conversávamos pouco, era um momento de despedida.
O sol brilhava fracamente por trás das nuvens, às duas da tarde. Estávamos na beira do mar e poucas pessoas se aventuravam num banho frio na água.
- E então, o que resolveu? – perguntei a Dardelis, depois de um longo silêncio. Ela mantinha a forma humana de Salette.
- Vou cair no espaço... procurar um novo planeta... uma nova galáxia... uma nova vida. Não posso ficar aqui sendo procurada pela polícia. E não posso ficar me transformando toda hora, isso me tira muita energia. E você, escritor, o que vai fazer?
- Acho que vou morrer doente, ou de tédio... não me dou mais que um mês.
Sonzzini, que já estava a par de toda a situação, interviu:
- Opa! Mas vai primeiro terminar Suco Azul... estou prevendo a estréia para o final do ano.
Sonzzini só pensava mesmo no dinheiro...
- Acho que vou parar de escrever... estou pensando em ser pintor – disse eu, de propósito, para provocar ele.
- Nem pense nisso... temos que acabar Suco Azul.
- Um dia voltarei, escritor... e vou querer um exemplar de seu novo livro! – disse-me Salette, com lágrimas nos olhos.
- Pode deixar, você já tem um exemplar garantido... mas volte. Mesmo que eu tenha morrido. Como será que é a morte?
- Não dá pra saber... não se sabe nem se é melhor que a vida... – filosofou ela, se preparando para ir embora.
- Ei, isso dá um puta enredo pra um próximo livro... um questionamento sobre a morte... – interrompeu Sonzzini, sonhador.
Dardelis veio pra perto de mim sob a forma encantadora da garota que dias atrás havia me encantado numa lanchonete de estrada. Eu jamais conseguiria esquecer aquele sorriso, aqueles olhos, aquelas pernas inigualáveis... a voz, os cabelos... mesmo que fosse tudo falso.
Nos beijamos demoradamente. Sonzzini enfiava o dedo no nariz.
- Até algum dia.
- Adeus – disse eu, por fim.
- Tchau, Dardelis.
- Tchau, Sonzzini.
Eu sorri para ela, e a garota entrou na água, afastando-se aos poucos. Começou a afundar na água, conforme se distanciava, até que uma hora só a cabeça ficou para fora. Ainda virou pra trás e gritou pra mim:
- It´s All Over Now, Baby Blue.
Ela citava Dylan. Revidei.
- Be Bop a Lula – disse eu, e ela partiu.



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