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Contos-->Sociedade Bobby -- 29/01/2003 - 00:39 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SOCIEDADE BOBBY


1

Bobby encostou a testa em frangalhos contra a parede branca e geladinha, e deixou-se estar assim, apoiando o corpo, e de olhos fechados, por alguns momentos. O suor já tinha embaçado o cabelo seboso há horas, e o rosto estivera gordurento e rugoso pelos últimos quatro dias. Os olhos, esbugalhados, avermelhados e com olheiras tão permanentes que já haviam adquirido um tom roxo. Na boca tinha um hálito de quando se fica sem escovar os dentes, misturado com cigarro, pinga e ópio. Bobby comera ópio.
A situação, grave.
Ele ficou lá por cinco minutos, esperando as veias das têmporas pararem de latejar tão abruptamente. Também tentou amenizar a ânsia de vômito subindo azeda pelo esôfago, desesperadora, e as pontadas agudas no coração.
Afinal, pôde mover a cabeça e se desgrudou da gordura suada que depositara na parede do corredor com o corpo. Permaneceu ainda imóvel, cabeça em órbita, sobre o carpete cinza. Olhou para um quadro na parede, e viu que imagens (e provavelmente sons, também) lhe chegavam de forma diferente ao cérebro e à vista. O quadro mostrava uns cubos coloridos, arte pós-moderna, tendo como segundo plano um céu azul.
Bobby estava com uma camisa social branca já toda molhada por dentro de suor, amassada, que não trocava há uma semana, e de cuecas, somente. Os pés precisavam ficar descalços, sem dúvida. Do pescoço pendia um resto de gravata listrada, amarrotada.
Engoliu uma saliva com esforço. Pra onde ir? O que fazer? Este corredor não pára quieto... fica se mexendo tanto, esse corredor...
Aí a voz lânguida, feminina, gritou em japonês:
- Bobby! Bobby, vem cá!
E ele não queria responder, nem podia. Vaca. Vaca. Puta escrota.
- Puta escrota... – balbuciou, em português – Puta escrota! – agora gritava.
Adquiriu forças suficientes para andar até o quarto, uma das portas no corredor. Lá dentro a japonesa se esfregava nos lençóis, melosa, com a cara misteriosa de sempre, o cabelo preto comprido caído rebeldemente sobre os olhos. Ela ficou satisfeita ao vê-lo retornar, e logo se debruçou, e se sentou na cama, pelada. Esfregava a vagina com a mão, vigorosamente, e chamava:
- Vai, Bobby, você voltou, vamos mais uma vez, Bobby... vamos?
Bobby mal podia pensar, mas meio que pensou que era engraçado como aquela galinha não calava a boca. Mas não disse nada, era muito esforço. Mudo. Ela olhou bem ele e virou a cabeça de lado. Suspirou:
- Bobby, que foi, menino?... cansado, né? Mas não tem problema, Bobby, olha só, o seu menino vai levantar de novo, quer apostar? Vai, sim, Bobby, eu vou fazer ele levantar... vem...
Ela aproximou a mão do pênis dele, toda excitada, e ele realmente se encheu, desta vez.
- Puta que o pariu! – esquecera completamente o idioma que sabia bem até poucos minutos atrás – Merda, vaca, merda! – deu um tapa no braço dela, e se esquivou - Sai daqui, sua suja, sai agora, antes que... eu... te... – Bobby adquirira energia do fundo da alma para sair jogando todos os móveis que viu à sua frente para todos os lados, inclusive sobre a puta japonesa.
- O que é isso, Bobby? O que...
- Cala a boca! Não diz nada, cala a boca – ele se transformara cruelmente, irado, neurótico, e jogou contra a parede uma mesinha com pequenos pratos e talheres japoneses em cima, que voaram por todos os cantos. A TV, ligada, recebeu um pontapé e caiu pra trás, desligando-se com a queda violenta – Não agüento mais.
Ela, assustada, pálida, foi se esquivar num canto do quarto, com muito medo.
Mas ela não entendia nada, essa piranha, pensou Bobby. Era uma vadia sem valor algum e só queria seu dinheiro.
- Cai fora, porra. Cai fora – e arremessou uma garrafa de bebida sobre ela. A japonesa gritou, e saiu correndo. Ele puxou ela de volta, pegou as roupas da prostituta no chão e jogou-as em cima dela. Depois jogou dinheiro também. O telefone tocou.
Ele tremia todo, e não pôde se controlar para atender o telefone.
Pegou o gancho, a respiração violenta e o suor atrapalhando.
- Alô.
- Senhor Bento, aí? Aqui, gerente de hotel. Recebe chamada?
- O que?
- Senhor Bento recebe chamada local?
- Eu... recebo, sim.
- Vou passar.
Houve um sinal.
- Alô, Bobby?
- Isso.
- É o Jorge. Tô no Yotu, você vem?
Bobby demorou pra responder, delirava fundo. Imagens coloridas tapavam sua visão e o impediam de responder.
- Que?
- Você vem? Estou no Yotu, eu disse.
- Pra que?
- ... tá tudo bem com você? Que voz é...
- A sua está igualzinha.
- Desculpa. Você vem?
- Pra que?...
- Como, pra que? Pirou? A gente precisa conversar sério, é o papo de sempre.
- Essa merda toda.
- Essa merda toda – repetiu Jorge, também afetado.
- O que aconteceu ontem? – perguntou Bobby, perdido no tempo e espaço.
- Como assim?
- Ontem. Estávamos no clube, e eu tinha bebido, e fumado também... e você também bebeu, e o Cláudio fumou também, não foi isso?...
- Acho que sim. Eu também não lembro bem, Bobby. Juro.
- Mas... o que aconteceu?
- Hã... eu acho que você comeu ópio, quando eram umas quatro da madru...
- Comi ópio, Jorge?
- Isso mesmo, disso eu me lembro. Aí a gente dançou, e o camarada, o Kitori, chapado, gritava quando você vinha do banheiro: “Olha lá, o comedor de ópio, o comedor de ópio!”, e a gente se matava de rir. Foi isso, Bobby, acho que era isso que você queria lembrar.
- Quando que essa merda vai acabar, Jorge?
- Hã? Não sei, Bobby.
- Me responde, quando vai terminar tudo isso? Quando? É o que eu quero saber. Quando?
- Eu não sei, Bobby, eu não sei. Se soubesse, eu te falaria – disse Jorge, preocupado e tenso.
- Sabe o que eu reparei hoje, Jorge? Sabe? – a voz de Bobby tremmia violentamente, como se ele fosse ter um ataque histérico a qualquer momento.
- Não. O que você reparou hoje, Bobby?
- Reparei que tudo isso parece... parece um pesadelo, Jorge... é como um pesadelo...
- Eu sei, Bobby... eu sei.
Houve um silêncio.
- Jorge, eu sonhei com as contas das firmas, antes de ontem. Foi a última vez que eu dormi, consegui deitar por menos de três horas, e mal dormidas. Tá entendendo? Loucura. Estou louco. Eu tive pesadelos, e sem parar ficava aquelas contas, e os números todos, tudo na minha cabeça. Todos os cálculos e as ações que a gente fez, as cifras, tudo me amontoando e atacando pra cima de mim, um sufoco. Acordei podre e até agora nem pensei mais em dormir.
- Eu também não tô dormindo. Ontem aconteceu aquela loucura, e eu também estou mal, mas escuta... a gente só sai dessa se conversar e...
- Me fala o endereço, eu esqueci.
- O endereço do Yotu? Ah, Bobby, você veio ontem mesmo com a gen... é... anota aí, pode falar?... – Jorge suspirou, esgotado.
- Hum.
Ele rabiscou num papel, e de soslaio, percebeu a presença da puta ainda no quarto.
- Daqui a pouco eu apareço.
Virou-se pra ela, depois de desligar:
- Que foi, tá faltando dinheiro, nojenta?
- Não, tudo em ordem.
- Já se vestiu?
- Já.
- Então por que está parada que nem imbecil no meu quarto?
- Queria saber se amanhã à tarde quer que eu venha de novo...
- Não quero bosta nenhuma, sai daqui, vai! – e quase chutou a garota, que se mandou do quarto de hotel – Ah, peraí, volta.
Ela parou à porta e olhou assustada.
- Quando descer, faz alguma coisa de útil, e manda vir aqui o funcionário, qualquer merda, e fala pra ele limpar tudo isso aqui. Vai, anda.
O quarto estava em seu auge de desordem e imundície. No corredor, havia bebida espalhada pelo chão, e contas. Papéis, cartas... no quarto, todo o espaço era ocupado por pratos de plástico, bandejas de material vagabundo, ohashis, restos de comida japonesa, revistas, montes, pilhas de jornais, e, principalmente, papéis, contas, recibos, carnês, cheques, cartas e afins. Sobre a cama, lençóis sujos e amarrotados. Bobby não deixava nenhum funcionário do hotel entrar no quarto pra trocar a roupa de cama, porque dizia que eles iam tirar sua concentração no trabalho. O resto dos móveis quebrados.
“Com certeza, desta vez vão querer me processar”, pensou ele, olhando o estado do quarto. O hotel já havia alertado a ele sobre sua conduta imprópria, quando, dois dias antes, trouxe amigos e prostitutas para o hotel, de madrugada, e realizou uma verdadeira orgia em seu quarto, com bebida, comida e sexo farto.
Houveram períodos, quando ainda estava no Brasil, em que pensava em se suicidar por causa da pressão profissional. Sim, já tentara a morte, sim. E isso quando a situação era mais amena do que agora, em novas condições. Só que no Japão tinha descoberto o verdadeiro pesadelo. Sim. Já nem pensava em se matar, a idéia não achava espaço em sua cabeça prestes a explodir, ele não achava tempo pra pensar em se matar. Mas sabia que, quando achasse, ia enlouquecer de vez e explodir.
Ele pegou a garrafa de saquê do chão, olhou e viu que tinha um resto. Virou goela abaixo. O gosto ele já nem sentia, de tantas garrafas que estava tomando todos os dias. O sabor era neutro, precisava cada vez tomar mais para ficar bêbado, pois foi adquirindo imunidade aos efeitos, conforme bebia. Lembrou-se do que acontecia com a pinga, em seu país natal, quando os sujeitos bebiam tanta pinga que já nem sentiam mais o álcool cortar a garganta. Quando isso acontecia era porque o cara estava viciado, realmente alcoólatra. E agora Bobby precisava tomar cada vez mais. A bebida subia rapidamente, certamente era forte. Ainda mais porque ele agora não comia mais nada. Sua última refeição foi quatro dias atrás, num bar. Agora só bebia, fumava cigarro, fumava ópio, comia ópio, em acessos de loucura, vomitava, tomava uns chás, e começava tudo de novo.
Começou a procurar umas contas, na bagunça, papéis importantes pra entregar ao colega Jorge. Mas não achava nada, mal podia pensar direito.
Resolveu ir. Só que quando pensou nisso, teve tontura, no meio do quarto, a visão clareou, e ele caiu que nem um boneco no carpete. Desmaiou brevemente, por cerca de dez minutos, sem ter noção alguma do tempo, e então foi acordado pelo rapaz que viera limpar o quarto, com a cópia da chave. O japonês, assustado, dizia:
- O senhor está bem? Bebeu muito, né? Quer remédio?
- Não quero nada.
A cabeça era a parte do corpo que mais doía.
Vestiu calça, sapato e paletó, abaixou o cabelo com a mão, pegou cigarros, carteira e seringas, e saiu.
Lá embaixo, na recepção, o gerente olhou torto, grave. Sabia de seus hábitos, e esperava a oportunidade certa para chutá-lo pra fora de seu hotel.
“Foda-se, azar dele. Tô preocupado com coisa mais séria”, pensou Bobby, saindo pra rua e esperando um táxi.




2

Colocou um cigarro na boca, pela metade. Tinha começado a fumar ele, esta noite, quando a puta chegou no quarto. Teve que apagar pra comer ela, e guardou pra continuar depois. Economizava cada cigarro rigorosamente. Era um homem de economia, e da economia. Tudo era gasto nesta vida, tudo era prejuízo, perda.
A mão trêmula não conseguia acender o cigarro. Ficou com ele apagado mesmo. Então, com aquele gosto repetitivo e seco de alcatrão, foi obrigado a vomitar desesperado na calçada, após violentas ânsias. Havia só álcool e ópio no vômito dele. Uma família de japoneses pobres ficou olhando, quando passou por ele, e apontavam para a sujeira fétida no chão.
- Que foi, seus porcos? Estou vomitando, não se pode vomitar, nessa merda? – gritou Bobby, engasgado e rouco. Tossiu descontrolado, e alguns instantes depois chamou o táxi.
Enquanto ia sentado no banco de trás, calado, preocupado e deprimido, Bobby alucinou novamente.
Parecia que seu corpo, ao mesmo tempo inanimado e pesado demais para ser seu próprio corpo, caía por um abismo escuro e sem dimensão ou profundidade definidas. Mas ele não sabia se era um sonho ou se ele realmente enxergava aquilo, acordado, ou se... (imagine só) ... ou se aquilo realmente estava acontecendo.
O estado era de dormência, mas ainda havia algo de consciente no fundo de sua mente, só que apagada. Começou a sentir breves flashs, luzes piscantes em volta deste escuro em que se encontrava, em longa queda. Flashs que iam direto para sua mente, davam dor de cabeça toda vez que voltavam. E erma tantos... que não dava para agüentar. A dor era real, era sim, isso ele sabia que ele, Bobby Bento, realmente sentia. Mas... a sensação de náusea, e enjôo, constante tontura, cegueira e confusão mental. Não podia pensar em nada, pois tudo o que ocupava os pensamentos era a sua situação estranha. Porém, pareciam haver dois Bobbys neste corpo, como se sua alma houvesse se dividido em duas metades, uma longe da outra: uma caía e alucinava com cores e formas estranhas, tonalidades roxas e desenhos, manchas no escuro que piscavam sem parar, e sons, vozes, ecos no vazio que não se calavam, e uma estranha música que latejava ao fundo, suave e desconhecida... e o outro Bobby parecia um Bobby consciente, lúcido e sóbrio, racional, que observava toda esta situação de fora, de longe, como se observasse o delírio do sósia através de uma redoma, um aquário. Este Bobby ainda pensava e não se abalava com nada. Refletia meio que longinquamente sobre aquilo tudo, pensava calado sobre o que poderia ser aquilo. Um era Bobby mesmo. O outro era a consciência, uma anti-matéria psicológica e lívida.
Ele estava numa sala escura, sim, ele estava lá. Era sonho? Ou não? Acordou da queda sem fim e estava sentado num banco num salão do qual não se via nada, nenhuma dimensão, nenhuma parede ou chão. Só uma sinistra fumaça arroxeada e meio vermelha, semitransparente, que fluía aqui e ali vinda do chão e indo até o teto, constantemente, num ritmo quase que musical, numa velocidade bem lenta, e, no meio delas, Bobby sentia que via formas, vultos escuros, que podiam ser pessoas, ou não. Ele não podia ter certeza de nada, pois seus sentidos foram afetados. Não se mexia, permanecia imobilizado no banco, recostado, virando os olhos em volta e tentando enxergar o que parecia não ter forma e solidez. Queria tocar algo, sentir, mas tudo ficou naquela sensação abstrata. E os sons que ouvia à sua volta, era como num pesadelo, num sonho, com ecos vindos de longe e vozes mais próximas, umas agradáveis e outras não, dizendo coisas numa língua que não lhe era estranha, mas da qual ele já não lembrava quase nada. Queria falar, e até que conseguia, mas o fato é que o som não saía, ou melhor, saía somente dentro de sua cabeça, mas parecia não ir ao exterior, não se fazia ouvir muito bem. Sentia agonia por dentro, coceira na alma, cegueira nos sentidos. E dor.
Ouviu seu nome, ou pensou ter ouvido. Seria só sua mente? Não, não podia. Parecia ser uma mulher falando, agora, e dentro de si mesmo. Uma voz suave, porém penetrante. Vinha com eco, clara porém embromada, congestionada. E algo surgiu na sua frente, em meio à fumaça. Um lenço, outro lenço... um lenço... dois lenços... de cores distintas, não podia discernir um do outro. Onde começava um e onde terminava o outro. E uma seda branca roçou em seu rosto... por trás da ceda... alguém... tem alguém aí... quem...
- Eu, Bobby! – gritou o próprio Bobby, abrindo os olhos e tendo uma confusão visual ao acordar. Tudo embaçado, confuso a princípio, e vultos que se regularizavam muito devagar. Ele suava, tremia e estava mais tonto do que nunca.
- O que foi? Está bem? – o taxista olhava em seus olhos, já sem paciência. Devia estar perguntando há um bom tempo, sem saber o que fazer – Andou de porre, hein, turista? O senhor... turista?
Bobby não entendia nada. Demorou dois minutos para enxugar o suor e se lembrar de onde estava. Ah, sim, no táxi. Táxi? Que táxi? Ah, aquele que ele mesmo pegou... duas horas atrás... duas? Não. O bar fica a quinze minutos do hotel... ou não? Duas horas? Não, ainda era muito cedo, ele levara somente vinte e dois minutos até ali, disse o taxista. Ele falava alguma coisa... o que? O que você disse? O taxista não respondia, porque não ouvia o que Bobby dizia. Era difícil de entender, mas era assim. O que Bobby pensava ter dito era apenas imaginado... o taxista não ouvia, porque não podia ouvir mesmo a mente de Bobby. E este entrava em pânico, porque queria ouvir o que o japonês falava e não conseguia acordar completamente, nem se levantar.
Fez um esforço que não parecia ser seu, como se alguém puxasse o corpo pra fora do carro, e sentiu mais tontura depois disso.
- Que merda... o que está...
- Não entendo inglês. Falo só japonês – disse o taxista, em sua língua, e Bobby fez um esforço para entender e se lembrar da língua.
- Não estou falando inglês... estou falando português, eu me esqueci como...
- Não falo português também. Só japonês. Dinheiro.
Ele fez um gesto com a mão, pedindo o dinheiro, ligeiramente nervoso.
Bobby enfiou a mão no bolso, sem ver o dinheiro, e largou algo na mão dele. Pela cara dele, era dinheiro, sim.
Nem notou o táxi indo embora, e nem sabia onde estava e o que tinha vindo fazer ali. Dois minutos depois, mas que pareciam ter sido três horas inteiras, ele se virou e só então se lembrou do que tinha vindo fazer. Era o bar, à sua frente. Claro! A reunião! Chamaram ele ali.
Ficou parado mais um tempo daquele mesmo jeito com que descera do táxi, sem nem notar os pedestres que olhavam para ele, e então entrou devagar no bar.



3

Precisava achar seu amigo. Onde estava seu amigo? Ah, devia estar no fundo, como sempre, perto do bilhar...
Foi ter com ele.
- Jorge...
- Senta. O que houve?
- Por que? Ah, fala português, por favor, tá? – disse Bobby, agitado, mudando de idioma.
O garçom apareceu.
- Traz duas vodcas, por favor.
A iluminação do Yotu era bem fraca, o ambiente praticamente escuro. A esta hora da manhã poucos clientes ocupavam as mesas. As dançarinas da boate, vestidas e arrumadas, tomavam um drinque no balcão antes de irem embora.
- Você não dormiu nada, né? – perguntou Jorge, cuja aparência era mais ou menos como a de Bobby. Ele era menos magro, mais alto e robusto, e o aspecto era o de uma pessoa que não dorme e não descansa há meses.
- Não. Passei as últimas horas com uma puta.
- De novo?...
- O que você queria dizer? – Bobby batia os dedos sobre a mesa, inquieto, e os olhos doloridos passeavam pelo interior do Yotu, frenéticos.
Jorge viu o estado do colega e amigo que o acompanhava na profissão desde que se formaram juntos no Brasil, em economia. Ambos sabiam bem o que o outro passava, e nestes tempos já não tinham mais tempo nem para consolarem-se uns aos outros. Jorge resolveu falar de trabalho porque sabia que a vida pessoal já tinha ficado em segundo plano há muito tempo.
- Ontem eu conversei com Takahashi, da Niko.
- Eu sei. Vi vocês dois no balcão logo que chegamos – respondeu Bobby.
- As ações dele vão pro céu este ano, e é questão de dois meses, no máximo, pra coisa começar a engatilhar.
- E?
- Bom, a gente é a Hashimoto – Jorge começou a esboçar uns rabiscos no guardanapo usando uma caneta que tirou do bolso da camisa – Aqui está a Hashimoto. Não tem mistério. A Niko procura investidores e compradores agora... aqui está a Niko. Certo. A idéia é simples. Vamos nos unir à Niko este mês como sócios e como investidores...
- Você está louco? Nós não podemos assumir nem a gerência da Hashimoto do jeito que as coisas estão...
- Espera aí, Bobby. Deixa eu falar. Estou tentando te explicar, vê se ouve, faz um esforço. Olha só. A gente vai ser independente e esse vai ser o nosso negócio – Jorge desenhava no guardanapo. Eu... você... o Cláudio... penso em chamar Kitori... e mais alguém, precisamos de mais um sócio.
- Põe um anúncio no periódico.
Jorge olhou Bobby com seriedade e respirou fundo.
- Não vai dar nada errado! Acredite em mim! Será que você não confia em si mesmo? Por que acha que andamos nos matando, nestes últimos meses neste maldito país? À toa? Eu sei o que estou fazendo aqui! Estou ganhando dinheiro, estou indo atrás de dinheiro! Está me entendendo? Porra. Estamos dando nossa saúde e nossos neurônios em troca de lucro, no final...
- O maldito dinheiro, sempre o maldito dinheiro... – resmungou Bobby, acendendo um cigarro.
- Você não quer dinheiro? Se não quisesse, acho que nunca teria vindo para o Japão. É ambição. É perspectiva de futuro...
- Eu vou te falar umas coisas sobre ambição, Jorge, coisas que você já sabe mas que precisa ouvir... a ambição me tirou uma vida tranqüila, antes de mais nada. Tudo bem. Aí comecei me esquecer de que estou vivo e que precisava relaxar. Quase me matei. Tudo bem. Aí começou toda essa porra, comecei com isso aqui... – Bobby mostrou duas seringas na mão, tiradas do bolso da calça - ... e aí, a merda aconteceu, cara, porque eu perdi a mulher que eu amava, a única coisa que amava que nem um louco nesta vida... um casamento arruinado por causa da ambição!
- Não grita.
Bobby deu um murro na mesa.
Estava uma pilha de nervos.
- As coisas vão mudar, não estou falando isso em vão.
- Não sei se vão mudar. Aliás, vão sim, só que pra pior.
Jorge se calou.
- Desculpa, Jorge – Bobby baixou o tom de voz e baixou os olhos – Desculpa, cara. Vamos parar de brigar por isso. Não quero brigar com você.
- Nem eu.
Bobby virou a bebida e se debruçou na mesa, olhando nos olhos de Jorge.
- Continua.
- O que?
- Fala esse treco da Niko. Tudo.
- Certo – Jorge retomou a explicação – Em cinco caras a gente monta uma empresa. É lucro quase certo, vai depender da nossa administração. Mas vou ser realista e sincero. Vai ser mais duro do que estes últimos dias. Vai levar alguns meses, vai valer a pena. Vamos nos matar o dobro, vamos trabalhar na porra da bolsa, Bobby, e no escritório. Vamos calcular, vender e comprar até vomitar... não vai ser agradável... mas, como você sabe, muitos já nos falaram que temos capacidade e jeito pra coisa.
- E o Hashimoto?
- Vou explicar. A Hashimoto vai ser duas. A do Hashimoto continua sendo dele. Nós seremos a outra parte, em parceria com a Niko. O velho Hashimoto não sabe de nada dessa história da Niko estourar daqui alguns meses. E realmente vai. Passei horas vendo as tabelas deles, junto com aquele sujeito... vai subir, Bobby. Vai subir.
Neste momento entrou no salão de trás um homem japonês de terno e maleta na mão, jovem e aparentemente muito ativo.
Era Kitori.
- Como estão? Ressaca? – falou ele, sentando-se à mesa. A conversa passou a ser em japonês.
- É...
- Peguei uma porção de papéis no centro, e algumas coisas da bolsa, também... – Kitori abriu a maleta em cima da mesa, pediu um saquê e começou a tirar uns papéis para fora, entregando-os a Bobby e Jorge.
- Eu estava falando com o Bobby, Kitori.
- E o que ele achou? – Kitori olhou para Bobby, interrogativo.
- Gostei.
- Gostou?
- Sim, gostei da idéia – Bobby tomava seu drinque.
- Ótimo.
- E o Cláudio? – perguntou Jorge.
- Está vindo.
Bobby e Jorge se levantaram e foram ao banheiro.
Lá dentro, enquanto Bobby lavava as mãos, Jorge olhou-o e disse, inseguro:
- Ei, Bobby... se você estiver mal, pode falar comigo, certo? Pode mesmo.
Bobby somente olhou para o amigo, pensativo.
- Sei que aquele negócio da sua ex-mulher te perturba, por isso, se estiver difícil de agüentar...
- Obrigado.
Ficaram parados um tempo.
- Eu penso nela todos os dias, como se nunca tivéssemos nos separado.
- E ela? Você não fala com ela?
- Não, não consigo. Ela deixou de gostar de mim, e já deve estar casada de novo.
- Para onde ela foi?
- Acho que pro Rio. Não sei. Sabe o que eu sei, Jorge?
- O que?
- Eu sei é que, hoje à noite, eu quero comer umas gostosas nesta porra de clube!
Bobby começou a rir sem parar, enquanto saía do banheiro, e o amigo sorriu para ele, seguindo-o.



4

O grupo voltou a se reunir, depois do almoço, em um restaurante. Lá fizeram alguns projetos, todos juntos, e discutiram a presença de um novo sócio entre eles, a ser encontrado. Também fizeram contas e mais contas, especulando-se sempre os possíveis lucros, prejuízos e quedas da bolsa nestes próximos tempos.
Logo tiveram que voltar ao trabalho, pois este seria um dia dos mais estressantes para os economistas. Bancos, escritórios, táxis, metrô, cheques, maletas, senhas, computadores, contas... um mundo de informações repetidas e renovadas a cada instante, mas que sempre parecem ser iguais, porque estão no meio de uma população-economista de terno e gravata, viciados em trabalho e cegos ao que se passa em suas almas... não podem parar para pensar humanamente, pois, se o fizerem, colocarão em risco os cálculos matemáticos tão importantes para seu progresso material.
Mais tarde, no começo da noite, Bobby, Cláudio e Jorge foram a um novo lugar onde se fumava ópio. Este era diferente. Era um teatro de cultura japonesa, num local mal iluminado e espaçoso, cheio de camas para se relaxar e fumar a substância.
Foram recebidos por uma velha japonesa que os levou até três camas vagas, e os deitou ali, dizendo que ia mandar trazer os cachimbos e o fogo. Perguntou se queriam mulheres, e eles disseram que sim.
Eles se deitaram em suas camas, em silêncio, olhando os outros corpos ao redor, em suas camas, que descansavam e deliravam ao sabor do ópio. No escuro só se viam vultos que às vezes se mexiam, languidamente, ora roncando, ora resmungando coisas ininteligíveis.
Bobby entrou em transe inexplicavelmente. Não entendia o que se passava. Como poderia estar viajando se nem havia começado a fumar ainda? Era a primeira vez do dia, como...?
Bobby se lembrou de algumas coisas que já tinha ouvido. Quando um sujeito usa drogas, por exemplo, ou até mesmo álcool, mesmo, durante certo tempo, com muita freqüência, o organismo se acostuma à situação e também o cérebro. Assim, pode ocorrer de o sujeito sofrer os efeitos desta droga, ou da bebida, mesmo quando não as consumiu, pois o efeito psicológico permanece na memória da pessoa. Principalmente se esta pessoa estava habituada a tomar a droga sempre no mesmo horário, na mesma dosagem e na mesma rotina, todos os dias. Por isso, ele achava que, devido ao excessivo consumo de ópio nestas últimas semanas, ele poderia estar começando a ter efeitos psicológicos subsequentes, agora.
Sua vista foi se distorcendo e ele já não enxergava as coisas ao redor como elas eram. Aquele rostos amarelados, moles e trincados em volta dele, inclusive seus amigos, pareciam-lhe todos monstruosos, figuras horríveis, caras de demônio por todos os lados, rostos que estavam lhe causando pavor. E ele não podia se mexer, se levantar, e nem falar. Parecia um sonho, ou uma viagem de ópio.
A mulher chegou com seu cachimbo e ele começou a fumar, sem nem perceber o que fazia. Era estranho. Ele se movimentava por instinto e não por consciência própria. A velha adquiriu um aspecto diabólico, olhava-lhe lá do fundo das trevas, calada e satânica, como se quisesse mata-lo.
- Não me mate... – balbuciou Bobby, em pensamento ou na realidade, não sabia mais – Você vai me matar? Hein?... Fala... comigo... eu...
Ele sonhava. A mulher abriu a boca e disse:
- Você anda sendo muito mau, muito mesmo, Sakushi. Você está sendo uma pessoa má...
Como podia ser?! Não era verdade! Ou era? A mulher falara com ele. Onde estavam seus amigos? Onde...? Em volta, ele via somente aquela fumaças brancas, subindo, e uma névoa que ia até o infinito... e o lugar... o lugar era como se fosse o salão de ópio, só que mais escuro e as pessoas pareciam estar mortas ao seu redor.
Novamente a música. Que música era aquela? Bobby não podia Ter certeza, mas, de alguma forma, sabia que nunca tinha ouvido som parecido. Era relaxante e assustador ao mesmo tempo. Vinha de algum eco distante, e ficava rodeando sua cabeça... era como uma música oriental, especificamente da cultura japonesa... qual era o instrumento? Qual era mesmo o instrumento que eles usavam?...
A velha abriu-lhe os olhos malignos, e Bobby gelou até a alma, de medo. Ela dizia algo.
- Sakushi... pare ou vai se arrepender... pare com tudo isso que está fazendo ou vamos ter que te ensinar... tome cuidado, seu mau... você é mau, Sakushi...
Um lençol azul caiu sobre a velha, e era um pano muito suave, uma seda macia, leve. A velha sumiu na névoa, de forma estranha, se afastando ciente da presença de Bobby. E este não podia se mexer.
Foi aí que ele ouviu uma voz que tinha ouvido algumas vezes antes, mas de forma muito estranha, somente em sonhos e viagens com drogas...
Era uma mulher.
Uma voz de japonesa que parecia vir do além, mas que deixava-o tranqüilo. A voz ficava na sua cabeça, rodando em volta dos ouvidos, sem nunca tomar forma humana. E ele podia quase que distinguir...
- Alô... alô...
- Quem é?... quem... – Bobby gemia, tentava o grito que não saía. Nunca.
- Alô...
Voz virando eco, entrando pela cabeça e virando cheiro, perfume de japonesa, sensação de conforto, o tato sentia pele de veludo e carpete macio... tapete macio... cabeça girando... loucura...
E a queda, de novo... a queda, sem fim... era horrível, ele não sabia onde ia dar.
Um túnel sem tempo e correndo, perdendo, saindo, caindo, até o fim, sem fim, girando em volta, no meio...
Sem sentido, era imagem e som abafado, tudo embaçado e demorado demais para ser verdade, e aí chegou a tristeza.
Ele assistia um filme num projetor no meio das trevas, da escuridão... a tela ia até o céu, e ele, no escuro, lá embaixo, assistia. Ele. Era ele, na tela. A mulher abraçando-o, sentindo-o com a mão... era uma mulher de cabelos claros, brasileira... um cabelo inconfundível... Beatriz, sua esposa de outrora... mulher... mulher... minha mulher... minha vida... mulher perdida... está acariciando seus cabelos, na cama... eles acordaram juntos... estão juntos... pra sempre? Não sei...
A mulher se levanta da cama, se espreguiça... levanta. Anda até o corredor, e aí pára. Sorri para ele. Marido. Ele fala “fica aqui comigo”, ela fala “já volto”, ele insiste “não vai”, ela insiste “não posso”, ele grita, “vem cá”, ela fala “preciso”, e vai... e ela foi... sumiu no corredor, não tem luz no corredor, é escuridão... ele grita.
O grito penetra no sonho, vai até o fim, a música, lá no fundo, dá pra ouvir... a música japonesa começou... ele sua, grita, arranca o lençol, mas não pode se levantar da cama. Demônios com máscaras verdes em volta do leito, a luz apagada, aqueles olhos vermelhos de dragão maldito... medo... pavor, solidão, desespero... eles dão risada, se matam de rir, rir alto... e ele olha em volta, do lado, na cama, ao seu lado... quem está lá? O sangue. Um monte de sangue escorrendo nervoso do leito, derramando todo vermelho e tingindo seu corpo. Sangue e gargalhadas ridículas em volta... e aí uma batida, um gongo estrondoso, enorme em sua cabeça.
Nesta hora a música aumenta de volume, e ele continua caindo, só que agora nesta queda sem fim está cheio de números à sua volta... cifras e vírgulas, zeros e somas... nas paredes, tudo correndo muito rápido, e quando ele fecha os olhos, em sua cabeça continua o aperto dos números querendo pegá-lo... lucro, despesa, rotina, perdas, quedas e calculadoras... no meio de tudo isso o rosto de sua mulher aparece gigante, gritando... ela tem flores em volta dos cabelos, e panos coloridos, no corpo, como em Woodstock... só que tudo isso é destruído... porque os números invadem a cabeça dela, e a dele, e invadem o cérebro, e esmagam, apertam, até matar a esposa...!
Escuridão de novo. Ele acorda num escritório. Agora é um sonho, com certeza. Só pode ser. Só que nebuloso, tudo meio esbranquiçado em volta, uma neblina naquela sala... mal pode perceber quem está atrás da mesa, encarando-o. Parece seu pai... seu falecido pai... ele veste gravata e camisa... está velho e cansado, sim... mas ele já morreu, o pai querido... falecido... olhando para ele.
Em suas mãos, só agora ele percebe que há um papel. Bobby olha o papel, tentando distinguir as letras, mas é muito difícil... não enxerga... seu pai lhe dá uma caneta. Agora ele entendeu. Começa a escrever no papel, e a primeira coisa é seu nome... e depois é seu endereço... mas qual é seu endereço? Ele não tem endereço, mora num hotel... e o bairro... e seu número de telefone... Bobby pára de escrever.
- Por que o senhor quer saber tudo isso, pai? Por que...?
- Escreve, filho.
- Por que eu estou te dando meu nome, e dando o meu endereço... o senhor sabe o meu nome, não sabe, pai?
- Sei.
- Então por que...
- Escreve, por favor...
Bobby escuta um grito vindo de alguma sala contígua àquela. Devem haver outras salas como aquela, mas o que se passa por ali... e por que tudo é tão nebuloso...?
Ele recomeça a escrever com muito esforço... porque a mão parece estar presa, dura como pedra... e ele está tonto por causa do ópio... ou não é o ópio? O que está acontecendo? Pare de pensar, escreva, Bobby... Pára um pouco, precisa escrever, maldito... a mão está presa... o que eu fiz esta manhã? E ontem? Não me lembro!... Não!
Escreve, Bobby... isso...
Data de nascimento... data... data... data de... data do quê?! O que é isso, pai? O que é isso aqui? Está escrito uma coisa aqui que eu não posso acreditar...
- Continua, passa pra próxima – diz o pai, sempre olhando Bobby fixamente e de mãos cruzadas sobre a mesa, sério – Esse campo eles preenchem...
- Eles quem?! Pai!
- Escreve, filho.
Cidade, Estado... o nome do pai, o nome da mãe...
Bobby pára aterrorizado com algo, mas demora para identificar o que o assustou.
Sua mão... Deus! Ele está escrevendo com a mão errada... não era essa... quem disse que Bobby é canhoto? Nunca foi!
- Eu não sou canhoto, mas por que que eu tenho que escrever com essa mão? Por que? Estou escrevendo bem com a minha mão esquerda, pai, mas eu sempre fui destro, o senhor sabe...
Entrou um outro homem na sala, este desconhecido. Ele manda Bobby terminar logo de escrever para poder levar sua ficha.
- Espere, eu... não entendo... alguém me ajude...
- Escreve, anda logo – diz o outro homem, de braços cruzados, olhando sério para Bobby.
- Pai. Diz pra ele. Diz que eu nunca escrevi com a mão esquerda. Eu escrevo com a direita, só que agora, a direita não é a que eu escrevo... olha... eu escrevi bem com a esquerda, mas eu não sou canhoto, o senhor sabe...
- Sakushi, temos pressa! Anda logo, miserável!
- Quem é Sakushi? Eu me chamo Bobby... meu nome é Roberto, o senhor deve...
O pai de Bobby não dizia nada. O outro homem gritava, irritado, sacudindo Bobby pelos ombros.
- Você nos deu trabalho, Sakushi, e não quer cooperar! Vamos Ter que ser duros!
- O que é isso?!... pai! Me larga, eu vou...
Um lapso afetou a vista de Bobby e ele voltou a estar deitado num sala cheia de fumaças e lenços coloridos... um pano cobriu seu corpo e uma mulher apareceu. A mulher da voz de veludo. A japonesa. E a música, sempre...
Ela tinha o olhar fixo e perdido ao mesmo tempo, mas falava com Bobby. A cara branca, a maquiagem... é uma gueixa, é muito provável que seja... e a roupa de seda vermelha e laranja, comprida, até o chão... parece que ela sempre baila, em volta dele, e não anda, flutua. Está no ar, com certeza está. Querendo falar com Bobby naquela voz macia, em japonês. O cheiro é de perfume... e restaurante japonês.
A sala em que ele está só pode ser um clube, pois está cheia de pessoas deitadas ou sentadas em mesas, em grupos, lembra o Yotu, lembra também o salão do ópio, lembra o quarto do hotel, e um salão de bilhar, e estas pessoas estão numa festa, ou o que? O que se passa? Elas andam e nem vêem que Bobby está ali, com a japonesa. Todos falam baixo, conversam de coisas que parecem ser importantes... todos arrumados, penteados... sóbrios.
Há um lustre no teto, que vem não se sabe de onde, e que fica sobre a cabeça de Bobby... ele é dourado, bonito, e tão lustroso que faísca seu brilho e parece produzir pequenos estalidos suaves de cristal, como se se fossem sinos psicodélicos em volta dele.
A japonesa fala.
- Alô... Bobby... como você está?
- Eu... não... consig... – ele mal pode falar, de tanta tontura e embriaguez.
- Como está? Alô... escuta. Escuta, Bobby.
- Estou ouvindo... eu...
- Escute a música, mas escute com atenção, Bobby, e assim a dor vai passar, certo? Mas se lembre de ouvir os sons suaves... não ouça os gritos... não ouça o aeroporto, Bobby...
- Que aeroporto? Espere, que aeroporto?!
As imagens de repente começam a sumir, como que sugadas por uma fenda no espaço. Parece que o sonho se esvai para longe...
- O avião, não ouça eles chegando e partindo, a toda hora, no aeroporto... Bobby... você é lindo... e eu te amo, está bem? Ouça a música...
- Não! Não!
Um som extremamente agudo no cérebro. Vozes distorcidas e uma correria desgraçada num túnel. Parece que ele volta.
Bobby acorda.
O teatro japonês.
A velha.
O cachimbo.
Seus amigos.
Isso sim é real, ele pode sentir isso. Com certeza agora ele está acordado.
Jorge está chamando.
- Socorro!
- Calma, sou eu, Bobby. Sou eu, o Jorge...
O amigo tem a voz lenta devido ao fumo. Bobby sente que também está sob efeito. Delira. Só que agora ouve o barulho das pessoas ao redor, tudo muito mais real.
Percebe que está suando, e seu coração, disparado.
- Quanto tempo eu dormi? Quanto tempo eu dormi, Jorge?
- Calma, Bobby... você deve ter fumado muito, eu acho...
- Não, Jorge, vocês é que fumaram! Veja! Eu estou normal, estou... eu nem fum...
Jorge mostrou o cachimbo de Bobby, que estava vazio, e Bobby ficou mudo. Tinha fumado, sim, até não poder mais.
- Você não entende, Jorge, eu viajei, mas não foi com o ópio não... acredita em mim... eu sei! Tenho certeza!
- Bobby, relaxa. Está tudo bem! O que você precisa é descansar, porque o trabalho está te matando, ouviu?... deita aí.
- Não, eu já dormi.
- Você não dormiu, Bobby. Esteve com ela o tempo todo.
- Ela quem?
- Ela – Jorge apontou para uma prostituta que estava deitada, sem roupa, perto de Bobby. Ela olhava para o parceiro sem dizer nada.
- Vocês andaram trepando, só que você não estava bem pra isso...
- Como assim? Eu não encostei nessa cadela.
- Ele está louco – disse a puta, rindo sarcasticamente.
- Jorge, eu não estou louco, eu... eu estava dormindo.
Bobby olhou para si mesmo. Estava só de cuecas, a cama sem lençol e a mulher sem roupa. Era óbvio que tinham rolado na cama, ou até transado. Mas como...? Como era possível, sendo que todo este tempo Bobby esteve sonhando?
O que era real e o que não era?
- Dorme, Bobby.




5

Na Corporação Hashimoto a palavra trabalho era a palavra que não deveria sair nem por um segundo da cabeça de todos os funcionários e diretores da empresa, segundo seu grande diretor, o próprio Hashimoto.
Lá também não existia hora livre, e nem folga para um cafézinho, nem nada. Se você começasse a mexer em alguma coisa – quer dizer, você não tinha a hora certa ara chegar lá e começar a trabalhar, mas, se começasse algo... – aí você teria a obrigação de trabalhar naquelas ações, ou naquela papelada até terminar com aquilo. Hashimoto não admitia que as coisas ficassem incompletas, pendentes. Era muito organizado, rígido e meticuloso. Isso fazia dos funcionários uma população de homens e mulheres hiperativos e preocupados com uma só coisa: especular. Ganhar dinheiro. Ir até a bolsa. Ficar na bolsa. Ficar no banco. Pegar táxi. Pegar ônibus. Voltar pra firma. Preparar cheques. Ninguém lá trabalhava menos de dez horas diárias. A maioria trabalhava de doze a dezesseis. Às vezes durante a madrugada. Aqueles que tivessem sorte, saíam às onze da noite e iam direto pra karaokê ou o restaurante em frente, o Nagabushi.
Naquele dia, após longas e bizarras viagens de ópio, Bobby e os colegas da Hashimoto foram ao trabalho. Porque precisavam. Muitas vezes já nem sabiam mais por que trabalhavam tanto. O ser humano precisa de um tempo parado pra pensar em si mesmo. Mas eles não tinham. Era trabalho e depois farra, diversão. Um círculo vicioso.
Em dado momento, durante um telefonema importante, Bobby foi chamado. Jorge e Cláudio também. Quem chamava era o velho Hashimoto, em sua sala.
Eles pegaram o elevador. A ascensorista, Nikimo, podia notar a tensão no rosto daqueles homens.
- Me deseje boa sorte, Nikimo – disse Bobby para ela, grave, e deu-lhe um beijo de língua.
- Boa sorte.
Eles caminharam pelo longo corredor acarpetado decorado estrategicamente com bonsais dos mais caros que se podia encontrar, tendo como fundo, lá, distante, a grande porta de madeira.
Bateram.
- Entrem!
Eles entraram, a porta foi fechada por um acessor de Hashimoto.
Bobby e os dois colegas se surpreenderam ao entrar na sala. Não esperavam encontrá-la escura e fumacenta, com um cheiro horrível de fumo e álcool, a janela fechada, e Hashimoto curvado na cadeira atrás de sua mesa, cheio de olheiras, a pele amarelada e os cabelos eriçados. Parecia um homem em crise.
Mas... onde estaria o grande líder daquela organização, aquele homem de terno limpo, arrumado e perfumado, severo e ativo, em sua sala limpa e clara? Era uma mudança inesperada que chocou a todos eles... Hashimoto, pela primeira vez, parecia um ser humano fraco, tão fraco quanto Bobby, Cláudio, e Jorge.
- Sentem-se.
Eles não disseram nada.
Ao se sentar, Bobby pensou que ia ter uma vertigem, ou desmaiar, mas conseguiu controlar.
- O contrato está preparado, como discutimos ontem, Jorge. Vocês três conhecem os termos a que vamos nos sujeitar?
- Conhecemos.
- Sabem o que significa esta decisão? – a voz de Hashimoto era fraca a rouca.
- Sabemos.
- Sim.
- Assinem.
Aquele homem era o homem que tinha ensinado 80% do que aqueles três homens sabiam sobre trabalho. Quando chegaram ao Japão eram inexperientes, impulsivos demais. Tudo o que veio depois, na empresa de Hashimoto, mudou o que tinha vindo antes, mudou tudo.
Quando eles apertaram a mão de Hashimoto, antes de sair de sua sala, apertaram como se agradecessem, ou quisessem agradecer, por toda a sabedoria que o velho tentava passar a eles. Agora se separavam.
Eles saíram da sala, e, ao se encontrarem, depois, no primeiro andar, tinham uma idéia na cabeça:
- É horrível... – disse Bobby – É horrível, mas é verdade.
- O que?
- Será que não percebe, Cláudio?
- Acho que sei o que quer dizer – disse Jorge. Bobby continuou:
- Ele vai morrer. Vai morrer em poucos dias. Por que você acha que a Niko quer salvar a nossa empresa. Eles sabem que a gente, e a Hashimoto em si, têm potencial! Não vão deixar ela cair quando, daqui pouco tempo, o velho morrer! O homem está um caco, ele não é diferente de nós, entendem? Vocês viram. Ninguém aqui é saudável. Olha o que o trabalho fez com ele! Agora a Niko quer abocanhar sua fatia no mercado, e a gente é que vai permitir isso, nos unindo a eles!
- E você acha que isto está errado, Bobby? – Jorge queria enfrentar Bobby para provar que ele estava errado.
- Eu não sei mais o que é certo ou errado – Bobby acendeu um cigarro, trêmulo – Juro que não sei. Só sei que ninguém presta nesse mundo, cara, isso eu sei. O mundo não presta mesmo, sabe?
- Nós assinamos o contrato, tínhamos pensado muito nisso. Não vamos voltar atrás, pois você mesmo concordou – disse Cláudio, frio. Não podiam deixar Bobby pirar, ou desanimar.
- Quero que vá tudo pro inferno, entendeu? – Bobby jogou a xícara de café contra a parede, pegou seu paletó e saiu da sala – Vocês são cegos! Cegos!
Jorge e Cláudio não disseram nada.




6

À noite o Yotu era atraente para qualquer cidadão que passasse em frente, de carro, e tivesse a noite livre pra se divertir.
Aquilo se tornara rotina: os economistas saíam do trabalho e iam se acabar no Yotu.
Tinha o restaurante, o bar, pista de dança, boate, apresentações musicais ao vivo, karaokê e, clandestinamente, um local para se fumar ópio nos fundos.
Esta noite, em especial, um cantor cover de Itsuki Hiroshi se apresentava, cantando seus maiores sucessos.
No karaokê, grupos animados de jovens mostravam suas habilidades no vocal.
Bobby, Cláudio, Jorge, Kitori e um outro economista da Niko, Yoiti, escolheram uma mesa perto da boate. As mulheres dançavam lascivamente entre os panos e todo aquele ambiente esfumaçante.
Esta noite eles tinham arranjado companhia. Acontece que Kitori tinha conhecido uma amiga de sua prima, por quem tinha se interessado. Kitori era o mais novo, seria o garanhão aproveitador da turma. Nunca tinha namorado firme com alguma garota, não conseguia manter relações fixas e duradouras. Falou com a menina, e perguntou se ela queria sair. Ela topou. Chamou mais duas amigas, e levou a prima de Kitori junto. Assim, logo Bobby e Jorge também tinham companhia. As garotas pareciam muito divertidas e animadas. Conversavam euforicamente com eles, enquanto consumiam drinques e mais drinques no bar do Yotu.
Bobby começou a entrar em transe uma vez mais. A garota ao seu lado, Lílian, ficou assustada e perguntou o que ele tinha. Como ele não respondeu, Cláudio, que o conhecia bem, disse a ela:
- O Bobby anda meio cansado, não estranha não... estes dias ele tem tido uns momentos de stress meio ferrados... calma que ele já melhora.
Mas Bobby não melhorou.
Em seu sonho, mais uma vez ele se sentava numa cadeira numa sala escura e cheia de fumaça, com uma música japonesa tocando em sua cabeça. Uma espécie de gueixa dançava em frente a ele com seus panos, vertiginosamente. Ele não conseguia falar.
De repente, a gueixa começou a se despir. Bobby percebeu, naquele momento, que mesclava realidade e delírio, pois à sua frente, no bar, as dançarinas também tiravam a roupa, dançando. Mas ele via a gueixa, que agora tirava os panos que a cobriam. Quando ela já estava somente com uma camisola fina sobre o corpo de marfim, ela sorriu-lhe de modo um tanto satânico e se preparou para arrancar a última peça de roupa. Quando o fez, Bobby assistiu a um espetáculo horripilante: a barriga dela se transformou numa grande caixa de madeira, ela se deformou inteira, rindo diabolicamente, e a caixa começou a tomar forma: parecia um caixão. Bobby gritava em pensamento. A visão congestionava. Uma gargalhada nasceu estridente do caixão e veio até ele, sombria. Depois o rosto da gueixa pareceu aumentar de tamanho, até atingir seus próprios pensamentos. Ela ria euforicamente, e Bobby sentiu um arrepio de medo pela espinha, desmaiando em seguida.
Depois Bobby acordou teve mais um lapso. Agora estava de volta ao escritório de antes, onde tinha visto seu pai e mais outro homem. Agora o formulário tinha sido preenchido, em suas mãos, e ele entregava o papel ao homem severo que havia gritado com ele no outro sonho. O homem agradeceu, carimbou o papel, devolveu a ele e deu instruções:
- Vá até o corredor, suba a escada, procure a sala seiscentos e sessenta e seis, e fale com a mulher. Ela conversará com você.
Bobby concordou. Olhou para seu pai. Notou que este não pisava no chão. Flutuava.
Bobby se despediu de seu pai, chorando, e saiu da sala.
No corredor, pediu informações às pessoas que transitavam. Eram pessoas vestidas com camisolões brancos ou pretos, andando pacificamente. Indicaram o caminho a ele.
A porta que indicava o número seiscentos e sessenta e seis estava à sua frente. Ele não sabia se entrava ou se batia.
Uma voz em sua cabeça disse: “Pode entrar”.
Ele entrou.
A sala era toda branca. Tudo lá era branco, e isso cegou a vista de Bobby. Antes de acordar, pôde perceber uma mulher sentada atrás de uma mesa, esperando por ele, vestida de branco. Então ele acordou.



7

Ele estava em seu apartamento, no hotel. Alguém tinha trazido seu corpo inconsciente para cá na outra noite, provavelmente Cláudio. Deviam ter percebido que ele delirava no bar.
Bobby levantou-se as cama, sem roupa, e se sentiu muito diferente. Em sua cabeça havia uma sensação de extrema harmonia, segurança e paz. Ele não mais se sentia como nos últimos dias de stress que teve. Respirou fundo.
Também sentiu que algo devia ser feito. Mas o quê?...
Movia-se como que por instinto.
Foi até o frigobar e pegou água. Bebeu água gelada. Pensou. Sim. Sim, era isto. Conseguira se lembrar do que tinha que fazer. Sim, tinha que fazer algo importante.


8

Bobby estava num lugar muito estranho. Parecia que já estivera lá, só não se lembrava em que ocasião...
Era um terreno quase que desértico, como se fosse uma base da aeronáutica, ou uma pista de vôo. Um largo espaço vazio, com aviões de guerra parados ao longe, e soldados, pilotos de avião trajados de verde arrumando malas e bagagens. Lá ao longe.
Perto dele havia dois soldados de capacete. Não falavam nada. Parecia que já sabiam o que fazer. Arrumavam coisas em um caça de aspecto estranho que estava à frente de Bobby. Tentou falar com eles, não conseguiu. A voz não saía. Quando saiu, involuntariamente Bobby disse:
- Vou partir às sete. Não é muito cedo, homens?
- Não... está certo, Getmo.
- Do que você me... chamou, coronel?
- Getmo. Seu nome... por que?
- Nada, esqueça...
Bobby não sabia se era Getmo ou Bobby Bento. Pensava como Bobby mas agia como o tal do Getmo. Aquilo parecia uma cena do passado... ele tinha a certeza daquilo já ter acontecido com ele antes... mas também não se lembrava de ter estado lá, nem quando. Era uma sensação. Ele nunca fora piloto de caças... ou fora?... Não...
Bobby ajeitava sua mala nas costas. Usava uma roupa da aeronáutica, marrom e verde. Guardou um cantil de ferro na mala. Depois checou o motor do avião.
Olhou à sua volta: havia uma base enorme a quilômetros dali, fora da pista de pouso. Ela era maciça, revestida de ferro, com um tom bege. Ele sentiu que conhecia o lugar. Estava escrito “Pan-aérea – Plataforma Getmo & Forraz”. Bobby desmaiou quando o motor do avião foi acionado.
Agora estava num aeroporto. Parecia familiar. Sim, era um aeroporto brasileiro. O aeroporto em que ele esteve antes de pegar o vôo para o Japão, meses atrás. Sim, era este. Ele andava com alguém ao seu lado. Dirigia-se a um balcão de informações. A moça que o atendeu teve seu rosto transformado. Era a gueixa! Ele gritou e tudo virou pesadelo.



9

Era uma hora e meia da tarde. Ele tinha dormido umas dez horas, desde a madrugada passada.
Foi até a janela e observou a rua. Estava fazendo um pouco de frio. Muitas pessoas andavam de um lado pro outro, apressadas.
Ele esquematizava em sua cabeça como tudo devia ser feito, neste dia.
Era um dia importante.
Ele botou as mãos dentro dos bolsos do grande casaco camuflado que usava. As calças eram verdes, como as do exército. As botas pretas também estavam calçadas. A roupa tinha servido certinho nele.
Uma vez mais, Bobby passou a mão pela cabeça sem cabelos. Como era estranho sentir sua cabeça pelada, raspada sem deixar nenhum fio de cabelo! Mas era necessário.
Em seguida ele foi até um canto da sala, e pegou uma mala sobre o sofá. Lá de dentro tirou embrulhos pesados que achou melhor analisar mais uma vez, dar uma última checada. Tudo em ordem.
Foi ao banheiro, ainda verificou se não tinha sobrado ainda algum pelo em seu corpo. Não. Nem um sequer. Tinha-se depilado por completo.



10

A máscara sufocava o ar que respirava. Era incômodo, porém necessário. E o capacete, então, era pior ainda. Pesava muito.
Mais pesada era a espada que empunhava.
Aquele era o século dezesseis. Aqueles eram os dias mais sangrentos que uma alma, que um espírito jamais viveu. Os dias mais negros, mais místicos e estranhos, misteriosos. Quem era ele...?
Não podia nem se lembrar de quem era. Tinha bebido na noite anterior, e sentia-se tonto ainda. Aquela armadura... a espada...
Afinal, encontrou no salão do castelo um figura sinistra trajada com um manto negro. Um velho japonês.
- Você também nasceu em Kyoto, jovem?
- Nasci. Quem é você?
- Ah, Kyoto... não há lugar igual...
- Eu perguntei quem é você! Se não responder, acho que vou ser obrigado a mata-lo... veja, minha espada é...
- Espere. Quem ensinou a você estas maneiras? Sou muito mais velho, exijo respeito.
- O único a quem obedeço é meu mestre... você é meu mestre?
- Não.
- Então cale a boca. Vou ter que...
- Você tem problemas, jovem... tem problemas com o tempo que passa pela sua cabe...
- Pare! Pare, idiota! Olha o que está fazendo! Estou me desmanchando! Estou desaparecendo! – gritava o samurai, alucinado, sob a pesada armadura.
- Você vai acabar encontrando a gueixa, deste jeito... mais cedo ou mais tarde.
- Que gueixa? Do que você está falando? Pare! Que gueixa?
- Aquela que dança... você saberá, jovem...
O jovem samurai gritava.
- Você saberá, Sakushi... Sakushi...
Sakushi. Aquele nome não pertencia àquele local... alguém... chamara ele assim, mas... não se sabe quem...
- Sakushi? Meu nome não é...
- Qual é o seu nome, jovem?
- Não é Sakushi. Por que eu... espere... onde estou? Alguém me ajude, pelo amor de... ah... minha cabeça...
- Fale baixo – disse o velho japonês – Vai acordar todo o castelo... não quer que os samurais do Império venham até aqui, quer?
- O que eu estou fazendo aqui? Eu...



11

- Está tudo acertado, Cláudio? Está? Me dê um sinal positivo, por favor... porque eu estou pronto...
- Espere, Bobby... acalme-se... primeiro, quero que me diga se está bem... e se está pronto para o que vai fazer.
- Cláudio. Eu estou me sentindo bem. Estou tendo delírios de vez em quando, mas já me acostumei, sabe?
- Que tipo de delírios?
- Depois eu conto, não temos tempo agora... sonhos... escute, tenho pressa! O comício já deve estar começando na praça...
- O que você está vendo?
- Uma coisa muito confusa com caças alemães e soldados, sei lá eu, e pessoas me chamando de Sakushi, espadas japnesas... uma gueixa... não adianta tentar explicar, é muito pessoal.
- Bobby, eu tenho um amigo que conhece bem o espiritismo e o ocultismo. Quem sabe...
- O que você disse?... a ligação está ruim... está tudo pronto?
- Está, Bobby. Está sim...
- Quem vai?
- Eu vou, o Kitori vai... Yoti também...
- E Jorge?
- Jorge não vai.
- Posso saber por quê?
- Ele fraquejou. Deixa ele. É opção dele.
- Eu precisava do Jorge ao meu lado. Ele tem tática... bem, deixa pra lá... três horas em frente ao comício, não se esqueça.
- Pode deixar, Bobby. Ei, você vai levar aquela garota de programa mesmo?
- Claro! Ela é minha companheira agora. Eu bati nela, semanas atrás, pois culpei ela por ter ficado tenso na hora H. Mas pedi desculpas a ela, e ela meio me procurar. Gosto dela.
- Tudo bem então.
- Até logo, Cláudio.
- Até logo, Bobby. Boa sorte.
Bobby desligou o telefone e foi pegar a mochila cheia de armas. Checou tudo mais uma vez, neurótico, e andou de um lado para o outro no quarto. Depois saiu do hotel.



12

Aquela mulher era como um anjo, ela parecia falar dentro de seus pensamentos. Tudo branco. Cortina, chão, mesa, cadeira, mulher branca... uma luz brilhosa vinda da janela aberta.
A mulher mandou ele sentar.
Ela se vestia como uma hippie, roupas largas e leves, e uma faixa na testa. Movimentos lentos, calmos. Muito bonita.
- Me chamo Valéria, e vou te ajudar.
Em seguida ele entregou o papel preenchido e carimbado a ela.
Valéria leu, analisou os dados e olhou demoradamente para Bobby. Só se ouvia na sala uma silenciosa música calma, como aquelas músicas da Nova Era.
A mulher se levantou, ofereceu cigarros a Bobby. Ele recusou, e se surpreendeu por ter recusado.
- Não sei, perdi a vontade de fumar... tenho que parar, ou vou morrer. Meu mestre não deixa, e nem o general tampouco... diz que soldados são homens saudáveis e...
- Bobby...
- Quê.
- Acalme-se. Você está mal, posso ver isso. Vamos prosseguir, sim?
- Certo.
Ela andou até a janela do escritório, que era bem grande, e abriu a cortina. Depois a vidraça. Olhou para fora. Depois chamou Bobby.
Ele se levantou e foi até ela.
Ela sorriu-lhe e disse numa voz macia:
- Pode descer. Desejo-lhe prosperidade.
Bobby queria perguntar-lhe algo, mas não saiu nada. Por que descer? O que significava aquilo? Mas não disse nada. Por instinto apoiou-se na beirada da janela e se ajoelhou. Olhou. Um infinito branco e puro o abraçou quando ele se soltou e deixou-se levar edifício abaixo.



13

Na praça o comício já tinha começado. Centenas de pessoas reunidas em protesto, com cartazes, painéis, faixas... e, no meio do local, uma bancada de madeira, um palco que suportava algumas pessoas: Cláudio, Yoti, Takeshi, as amigas de Jorge e mais outros japoneses que apoiariam a revolução. Afinal... aquilo era realmente uma revolução.
- Bobby chegou – disse Cláudio em voz baixa, ao lado do microfone. O barulho da multidão era enorme. A polícia permanecia com um pé atrás, nas redondezas, por enquanto observando.
Bobby apareceu na praça, a pé, com uma mochila nas costas, roupas militares, cabeça raspada e uma metralhadora empunhada e carregada. Ao seu lado, agarrada pelo braço, a prostituta japonesa. Seu maior apoio nos últimos dias. Uma amiga nesta confusão toda. E ela pensava como ele: era a favor desta revolução, era uma garota de programa, vítima corrupta da sociedade suja e decadente dos grandes centros urbanos japoneses. Seria ótimo, para eles dois, finalmente se vingar da sociedade que, a cada dia, consumia seus corpos. Consumia sua saúde, sua moral, sua energia. Dois seres em conflito com tudo à sua volta, acreditando ser esta a hora de se revolucionar algo. Por isso se davam tão bem, Bobby e a sua prostituta a tira colo.
Caminhava rápido, decidido e firme, com a ira estampada na cara. Olhou a bancada do comício, e a população eufórica com a sua chegada. Sim, estava satisfeito agora. Tinha planejado tudo tão bem... em uma semana fizera dezenas de preparativos, dera telefonemas importantes, fizera as compras necessárias para munir a população dos meios com os quais se iniciaria a revolução. A mudança. Vibrou por dentro quando enxergou a faixa sobre a bancada, onde se lia: “Coragem e união – pela liberdade e a libertação, derrubaremos o corporativismo e a massificação”. Sorriu.
Quando a polícia viu a arma, logo já se lançou em sua direção. O povo avançou sobre os policiais. Homens engravatados e de óculos e mulheres de avental de cozinha batiam nos homens da lei, e estes responderam com igual agressão. Foram contendo a confusão.
Aqueles que estavam na bancada, os cabeças da revolta, afrouxaram. Cláudio tentou permanecer até o fim, mas foi atingido por um pau e acabou fugindo. O mesmo fizeram Yoti e as garotas, assustados. O povo gritava. A prostituta, que até ali acompanhara Bobby, foi morta a tiros pelos policiais, que odiavam “aquelas putas sujas”. Seu corpo caiu ao chão.
Bobby foi pego por um policial, e espancado por outro. Desarmado, algemado, acusado. A viatura logo veio, abrindo espaço entre a massa. O cidadão, pintado na cara como um índio guerreiro, foi posto no carro e devidamente encaminhado.
Poucas horas depois a praça não era ocupada por quase mais ninguém. Parecia ter tudo sido muito passageiro. Para muito, foi. Mas para o cidadão pivô, a coisa apenas começava.
Bobby jazia inconsciente em sua cela pequena e gelada. A papelada era preparada. Nenhuma notícia dos outros agitadores. Dos outros “marginais” da bancada comunista. Só este brasileiro ainda não identificado, pintado, raspado e vestido como um palhaço.



14

A queda era interminável. Alucinante, pois não se via nada ao redor. O edifício sumira. Tudo era branco ao redor. Ele nem mais se lembrava de Valéria ou do escritório. Agora era só a queda invisível.
Por sua cabeça passaram centenas de imagens estranhas. A gueixa voltara, dançando à sua frente, assim como a imagem de seu pai, e o aeroporto no Brasil, estranhamente diferente.
Bobby caía.
Agora estava de volta ao aeroporto. Um amigo ao seu lado lhe dizia que a viagem seria a melhor coisa que ele jamais terá feito. A escolha de sua vida. E Bobby concordava, sem muito convicção, passagem na mão, rumo ao corredor de embarque.
Perdera a mulher, o pai morrera, o trabalho o matava de tédio e stress. Seria bom começar vida nova no Japão. Mas ainda não estava certo se ia ou não. Parecia parar a cada passo, hesitante, e olhar os aviões partindo com angústia. Depois continuava andando.
A janponesa. A gueixa, sem roupa agora. Seu corpo era perfeito, escultural, seu rosto meio oculto, transparente, misterioso. Ela se sentou em seu colo, nua. E eles começaram a fazer sexo, avidamente, e Bobby neste momento pensou em sua mãe, pensou nas prostitutas com quem transava quase todas as noites, pensou em sua ex-mulher. Tudo passava por sua cabeça.
Era tudo frenético agora. Sem interrupções. E ele estava quase atingindo o momento extremo de algo, não sabia o quê, conforme enfiava ritmadamente na japonesa seu membro.
Ela gritava, gemia retorcida.
E Bobby continuava caindo naquele abismo inexplicável. Onde aquilo ia acabar? O nome Sakushi não saía de sua cabeça. Então ele finalmente compreendeu que ele se chamava Sakushi... ou já havia se chamado, algum dia. E também fora do exército, agora tinha certeza. E muitas outras coisas agora vinham à tona, conforme ele explodia a si mesmo e a tudo ao seu redor, num prolongado orgasmo em sua alma, naquele ritmo louco em que sempre vivera, preocupado e tenso, e correndo, e pensando, lembrando, alucinando. Viu a imagem de seu corpo deitado no chão da prisão, no Japão. Mas ao mesmo tempo estava no aeroporto, se perguntando se ia ou não para o Japão. Nunca estivera lá antes. Ou já...?
Mal respirava agora. Agonizava com a japonesa no seu colo. Ela se retirou. Sumiu no escuro. Ele percebeu que até agora estivera com seus olhos fechados. E agora conseguiu abri-los. E enxergou o que...? Ah, sim, o abismo! Continua caindo, caindo, caindo. E, na prisão, o corpo de Bobby se retorce todo, tentando se enforcar. Apertando o pescoço com toda a força que lhe resta. Ele não dará aos policiais o prazer de cobrar-lhe fiança, ou de espancá-lo. Não mesmo. Tudo acaba aqui. Basta apertar o pescoço, apertar... até o fim... até o fim...



15

Durante a queda, de repente surgiu uma luz ainda mais forte lá embaixo. Um brilho que abrangia dezenas de quilômetros no vácuo branco. Uma luz cegante. Bobby foi caindo dentro da luz.
Um último flashback no aeroporto confirmou sua suspeita sobre o que acontecia com ele. Bobby se virou para a aeromoça, na entrada do avião, e disse, pálido e suado:
- Eu não vou.
- Como disse, senhor?
- Eu não vou.
Seu amigo parou e disse-lhe:
- O que está dizendo, Bobby? Você já tinha decidido...
- Eu sei. Mas agora tenho certeza, quero ficar.
E Bobby virou as costas para o avião, voltando ao aeroporto, voltando à luz branca da queda e voltando a uma outra parte da vida. No final da luz havia uma porta comum. Era uma chance, uma última chance para ele reiniciar daquele ponto. Bobby girou a maçaneta e passou por ela, iniciando uma nova vida a partir do dia em que resolveu não tomar o vôo para o destino que o levaria à ruína e ao suicídio numa cela de cadeia num grande centro urbano do Japão.

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