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Contos-->Dois dias em 2056 -- 29/01/2003 - 00:40 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Dois dias em 2056


Ano - 2.056
12/05 - Quarta-feira
Zona Norte de São Paulo, SP


Júlio Bonatelli acordou cedo, como sempre, e foi alimentar sua cobra. A Canalha (o nome tinha sido idéia de seu amigo Tolla) estava enroscada na estante, perto dos grossos volumes de Platão. A literatura era algo já praticamente extinto nestes dias. Poucos eram aqueles que ainda guardavam, em casa, esta velha forma de leitura: livros de papel. Os e-textos tinham substituído definitivamente a impressão de livros e jornais, nas últimas décadas. Os que ainda tinham livros em casa ou eram extremamente velhos, ou eram aqueles que viviam à moda antiga, como Júlio.
Ele encheu uma caneca de café e foi pra sala.
Era um polimínio de tamanho médio, porém, bastante confortável para Júlio. Os polimínios eram agora a forma mais comum de moradia, tendo substituído os edifícios tradicionais, e as casas e sobrados também.
Um polimínio era quase como um edifício, só que a diferença é que um polimínio permanece suspenso no ar, numa das chamadas “plataformas virtuais atmosféricas”, que seria uma plataforma constituída de certos gases, e que não é visível a olho nu. Todas as construções eram assim agora, devido à Grande Inundação de 2028. Uma terrível catástrofe ambiental que deixara o mundo, ou pelo menos parte dele, imerso sob a água dos oceanos. A solução foi a criação de métodos novos para que se criasse cidades flutuantes. Hoje em dia era comum. O motivo desta inundação era discutido nos círculos estudiosos das grandes potências. Poderia ter sido a movimentação descontrolada de placas tectônicas sob os oceanos, poderia ter sido o derretimento de calotas polares nos pólos do planeta, ou até mesmo a diminuição relativa da altitude do solo dos continentes. Assim, teria a água alcançado um nível superior. Na verdade, ninguém dava a mínima para o motivo.
Júlio era um revoltado, e era um rapaz anti-moda, também. Rebelde, recusara-se a ser influenciado pelos costumes de uma sociedade moralmente abalada, ou, mais diretamente, “louca”. Porque a moda e os hábitos tinham sido totalmente extravasados após a Revolução Neo-Garde, que teve seu início na Eurásia pós-guerra. Este movimento hoje em dia já se encontra totalmente difundido pelo mundo, e consiste numa total liberdade e falta de padrões no que diz respeito à cultura, à arte e à moda em geral. Os povos passaram a adotar uma total “bagunça liberal”, podendo se vestir com roupas do século passado, ou até mesmo do retrasado, ou aderindo a costumes próprios de outras décadas passadas. Alguns grupos, por exemplo, trouxeram de volta o movimento yuppie, em 2050, os neo-hippies apareceram também nesta época, e o movimento punk cresceu em proporções incontroláveis. Surgiu um total sentimento nostálgico e retroativo na cabeça dos cidadãos, para promover a ausência de regras na cultura das sociedades. Correntes que já permaneciam esquecidas, como o socialismo utópico, o anarquismo ou o comunismo de Mao Tsé-Tung, entre outras, retornaram rejuvenescidas.
Neste futuro em que nos encontramos, 90% da população global registrada possui entre 10 e 25 anos. Os outros 10% está dividido em cidadãos adultos e pouquíssimos idosos, o que mostra grande diminuição da expectativa de vida em todos os países, o que foi causado por diversos fatores, entre eles as novas doenças, a AIDS, a neo-AIDS, o câncer psicológico e as novas drogas químicas e psíquicas, drogas que se tornaram o grande mal do século. Esta população jovem, apesar de ser extremamente produtiva, tem causado uma gradativa diminuição do percentual da população mundial, pois a maioria destes jovens não estão aptos a terem filhos.
Os continentes também sofreram uma nova modificação em sua estrutura, tanto física quanto política. A América do Norte faliu totalmente após o envolvimento dos EUA na terceira guerra, onde foram destruídos. O país, juntamente com o Canadá, foi transformado aos poucos numa colônia presidiária. Sua área passou a ser abandonada pela população americana, e todo o seu nacionalismo foi destruído. Logo, as potências européias se apropriaram de seu território, criando ali uma grande prisão-continente, para onde os criminosos do mundo inteiro passaram a ser levados. Era a prisão perfeita. Nenhum bandido se arriscaria a entrar no mar para fugir, e, vivendo em campos de trabalho e em comunas, aprenderiam a viver em sociedade. Mas tudo passou a se descontrolar, e logo a área viro um caos total, havendo ali assassinatos, brigas entre os presos, narcotráfico e destruição total. O país passou a ser abandonado pelas autoridades.
A América Central e do Sul, agora unificada e chamada simplesmente America, abriga atualmente as maiores potências mundiais: Chile, Cuba e México. Estes países são vítimas dos mais impiedosos golpes militares da História, nas mãos de ditadores como Sal Jumma, imperador do Chile. Mas foi somente sob a ditadura militar que estes países puderam alcanças o patamar que têm hoje na economia. O Brasil foi invadido pelos ingleses em 2034, numa guerra que durou mais de dez anos e que acabou com o Brasil se tornando colônia da Grã-Bretanha. No país agora quase não existem mais brasileiros livres, somente sub-classes pobres e a burguesia inglesa. Tudo começou com a ordem de invasão dada pelo príncipe William em 2017. Depois disso, a colonização foi consolidada.
A música, assim como a moda, agora é uma miscelânea, onde se misturam músicas do século passado (ou “músicas dos velhos”), a música eletrônica e a volta da música clássica nos meios intelectuais. Júlio é um verdadeiro amante das músicas do outro século, pois, segundo ele, são músicas puras e isentas do mal e da destruição que vieram com o século 21. Adora a música clássica, possui discos de vinil em seu apartamento, e até uma vitrola. É um dos poucos a terem tal relíquia. Ele passa o dia inteiro trabalhando e, quando está em casa, ouve seus discos de Beethoven, Bach, Tchaikovsky, etc...
Nesta manhã o tempo estava nublado, como sempre. O sol já era muito raro atualmente. O clima mais habitual era o chuvoso e nublado.
Ele ligou o monitor (a antiga televisão) e percorreu o menu de atrações. Era preciso selecionar previamente a programação. A coisa mais cansativa era assistir monitor. Júlio odiava os programas que passavam no monitor. A audiência era dominada, no mundo todo, por uma emissora milionária chamada Atlas.
Júlio resolveu selecionar um telejornal pra assistir.
Estava passando um noticiário matutino onde eram mostradas cenas de um conflito territorial na África. Este continente tinha-se tornado um completo campo de batalha, constantemente em guerra. Os países tinham-se unificado, e os conflitos étnicos nunca tiveram um fim.
A Europa tinha-se acoplado à Ásia, formando a Eurásia, grande continente que, apesar do passado promissor, agora era decadente e atrasado em relação à America. Os países da ex-União Soviética agora tentavam uma reentrada no mundo capitalista, sempre atrasados em relação ao resto do mundo. As guerras eram constantes nestes tempos. A camada de ozônio estava em seu fim, a humanidade vivia constantes fenômenos cataclismáticos, a temperatura era inconstante e sempre extrema, as doenças eram incontáveis, os vírus mortais. Era um mundo decadente e praticamente sem esperanças de um dia melhorar.


Júlio estava profundamente entediado, como quase sempre estava. Vivia num ambiente cercado pela tecnologia e pelo descaso, pela desvalorização dos contatos sociais. O individualismo era a palavra do novo século.
Na casa de Júlio, assim como em quase todas as outras pelo mundo todo, havia uma porção de pequenos auto-falantes embutidos nas paredes de onde saía o som dos aparelhos. Você distribuía estes sensores pelas paredes da casa e colocava o disco no aparelho. Assim, pode-se dizer que era uma verdadeira “música ambiente”, pois em qualquer lugar da casa podia-se escutar. E era imperceptível, era até confortável. O som podia sair até do teto.
Júlio ligou o aparelho de som e desligou a porcaria do monitor. Foi até a cozinha e programou o forno high-tech. Era preciso selecionar o tipo de comida desejada, e imediatamente ela chegava às mãos do usuário, vinda através de um sistema de entrega especial, e no final do mês o assinante pagava a conta. Era a vida moderna.
Ele comeu um prato que era constituído basicamente por pílulas e massas verdes e azuis, uma espécie de purê do futuro. A comida era composta basicamente por nutrientes sintéticos, e alimentos transgênicos reduzidos a grãos. A coisa mais patética e sem graça que o homem já tinha produzido.
No ano passado, a revista New Future tinha publicado uma super reportagem contendo uma lista das maiores invenções do ano, como as revistas sempre fizeram ao longo das décadas. A invenção mais “útil” ao homem, elegida pela revista, era o neuro-chip, um micro ship implantado na cabeça das pessoas, com o qual ela poderia controlar qualquer aparelho eletrodoméstico, através de impulsos mentais, inclusive acionar automóveis, computadores, portas de garagem, enfim, qualquer aparelho. O ship era implantado por especialistas e a pessoa não corria risco nenhum. Era a grande invenção. Júlio achava uma porcaria.
Ele ficou brincando com a cobra alguns minutos e depois tomou coragem. Precisava ir trabalhar.
O apartamento estava uma bagunça, e ele não conseguia achar as luvas. Era regra, era obrigação dos cidadãos o uso de luvas especiais ao sair de casa, devido à contaminação atmosférica e à destruição do ozônio. Os raios solares poderiam ser prejudiciais à pele. Júlio vestiu o sobretudo, o chapéu e ainda colocou os óculos escuros. Tudo isso era obrigatório. Todos usavam.
Ao descer até a portaria, encontrou Eliézer, o porteiro. Eliézer era colombiano, e só falava castelhano.
- Buenos días, Júlio. Como estás?
- Estoy bien, Eliézer – Júlio gostava do porteiro, era gente fina. E aproveitava para aprimorar seu espanhol, que era fraco. Isso era algo importante nos dias de hoje, pois as maiores potências mundiais estavam situadas na antiga América do Sul.
- Vas a salir? – perguntou Eliézer, com as chaves na mão. As chaves, no futuro, eram cartões eletrônicos com senha.
- Si. Por favor – Júlio saiu para a rua, e fechou o casaco até o pescoço. Estava calor, mas os raios solares estavam muito fortes este dia. O câncer de pele era a doença mais comum nestes dias.
As ruas estavam movimentadas a esta hora. A maioria dos cidadãos rumavam silenciosos para o trabalho, sempre decididos e frios. Isso irritava Júlio.
Ele estava tão distraído que quase foi atropelado por um ônibus a jato. O jet bus.
Chegou na rodoviária, que era a estação de aero-trens. Eram trens parecidos com o metrô, só que iam passando por cima da cidade, entre os edifícios mais altos. Era o meio de transporte mais rápido atualmente.
Ele foi até o balcão comprar a passagem. Como sempre, não tinha troco. O dinheiro no futuro era armazenado num ship dentro de um pequeno aparelho que armazenava dados, como um cartão de crédito. Ele entregava a máquina ao balconista, e este plugava o aparelho a uma máquina maior, que absorvia o dinheiro, em “dados”.
- Diz que tá tendo rebelião na próxima estação, pros lados do centro – disse o balconista, sem ânimo.
- Sério? – Júlio não parecia muito assustado, pois as rebeliões eram comuns. Eram ataques organizados por terroristas, geralmente em estações ou centros urbanos. Havia muita violência e pouca segurança para os cidadãos.
- E se eu pegar o sentido sul?
- É melhor – aconselhou o balconista, desanimado. Ele lia um jornal amassado.
- Obrigado.
· Júlio esperou chegar um vagão e entrou. Estava lotado. Havia muitos vendedores no vagão, anunciando seus produtos a grito.
· Alguns minutos depois ele chegou no ponto onde descia.
· Saiu em uma rua enorme, cheia de edifícios.
· Entrou em um deles, tirou uma identificação do bolso e deu a uma recepcionista.
· Passou no reconhecedor de impressão digital, , de íris, de arcada dentária e no de formato da orelha. Passou por algumas portas lacradas, abriu-as com senhas, até chegar a uma outra enorme. Parou. Tinha esquecido a senha desta. Olhou em volta. Havia um homem passando.
· Por favor - disse Júlio - Acontece que eu trabalho aqui e... esqueci a senha desta porta, e...
· O que eu posso fazer? - disse, carrancudo, o homem - Não posso dizer para você. Pode ser um ladrão.
· Se eu fosse um ladrão - disse Júlio - Como é que eu teria passado pela outras portas, até chegar nesta?
· O homem ficou olhando para Júlio com desdém e disse:
· Não sei.
· É claro que eu trabalho aqui! Por favor, diga a senha! - suplicou Júlio.
· Não.
· Por quê?
· Porque eu também esqueci - disse o homem.
· Maravilha. Como eu faço para saber?
· Bem - disse o homem - Você têm que ir lá embaixo, no departamento de amparo ao funcionário, e chamar a diretora do departamento de amparo ao funcionário, pedir para ela chamar a especialista em problemas com senhas do departamento de amparo ao funcionário, e falar com ela. Ela estará ocupada com outros clientes, então você tem que marcar hora com a organizadora de horários gerais, que lhe indicará a organizadora de horários de consultas com a especialista em problemas com senhas do departamento de amparo...
· Chega. Como podem haver tantos cargos? - perguntou Júlio.
· Oras, décadas atrás a população desempregada fazia muita baderna, então o governo achou a solução: Criar cargos diversos, mesmo que não servissem para nada.
· Está bem, esquece - disse Júlio, desanimado.
· O homem se calou e foi se afastando, devagar.
· Júlio foi em direção ao banheiro e lembrou-se de que a porta ficava sempre trancada. O homem, que já ia embora, virou-se e disse:
· A chave do banheiro masculino você pega com o portador de chaves e cartões magnéticos para os funcionários masculinos, lá perto da recepção.
· Júlio se sentou em uma poltrona, aflito. Uma mão mecânica automaticamente pegou uma revista em uma mesinha e estendeu a Júlio. Ele, enfurecido, levantou-se e foi embora do edifício.
· Chegou em casa na hora do almoço. Ligou a televisão. A tela do “sistema de busca” apareceu. Ele escolheu a opção “programas sem comerciais”. Na tela seguinte, surgiram outras opções. Ele optou por filmes. Depois escolheu comédia. Quando viu a próxima tela, onde se escolhia o “tipo de comédia”, perdeu a paciência e desligou o aparelho. Já havia perdido o filme. Foi até a geladeira materializadora e escolheu “alimento congelado”. Teclou “pizza” e aguardou. Surgiu na prateleira materializadora uma massa de pizza congelada com molho em cima. Havia esquecido de determinar qual pizza queria, assim só veio a massa, fazendo ele desistir de comer.
· Deitou-se no sofá dobrável e adormeceu.
· Júlio dormiu e foi acordar só de madrugada...
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· 13/5 - Quinta-feira
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· Júlio acordou com um gosto horrível na boca. Levantou-se. Eram quatro horas da madrugada.
· Foi alimentar Megera e tomou um copo d’água. Conseguiu achar um telejornal, no qual era mostrada uma rebelião na Argentina. O Ditador deste país era um tirano, obrigando a população a servi-lo. E constantemente havia estas revoltas.
· Em outro canal era mostrada uma reportagem ao vivo. O nível da água no litoral do Rio de Janeiro havia subido ainda mais, obrigando pessoas a abandonarem suas casas. Há anos que a água invadia progressivamente a cidade, causando pânico. Outras partes do globo sofriam o mesmo problema, como Cuba, Tailândia e Japão.
· Júlio desligou a televisão e andou até a janela. Morava no 27o andar. Na rua, patrulhas da polícia andavam a toda velocidade piscando suas sirenes, atrás de algum bandido. O Brasil não sofria a ditadura, mas o governo era repressivo. Os bares eram proibidos de ficarem abertos até tarde, as prostitutas eram retiradas das ruas violentamente e o salário era mais difícil de se obter do que nunca.
· Júlio lembrou-se de que era feriado. “Dia Mundial das Donas de Casa Casadas e com Família”. Era incrível a quantidade de feriados que foram acrescentados nos últimos anos. Havia o da Dona de Casa Casada sem Pais, sem Marido, sem Bicho em Casa, etc. Infinitos.
· Júlio andou até a cozinha. Olhou um calendário e notou que o próximo feriado seria o “Dia do Aprendiz de Ajudante de Auxiliar de Limpador de Vidros de Porões”, nesta Segunda-feira
· Muitos viajavam nos feriados prolongados.
· Júlio não tinha dinheiro nem companhia para isto. Pensou no que ia fazer nesta tarde. Passear na poluição, talvez. Pegar algum novo vírus por aí.
· Ao meio-dia, resolveu sair de casa. Tinha estado ouvindo música desde cedo. Já a algum tempo haviam inventado um aparelho de som que consistia em sensores colocados pelas paredes da sala que produziam som, dando a sensação de que a música está vindo das paredes, criando um ambiente confortável.
· As pessoa não acreditavam nas músicas que Júlio ouvia. Em meio à modernidade dos sons gerados por computador, ele era fã das músicas “do outro século”, como costumavam chamar músicas clássicas do século vinte. A maioria do povo nem conhecia tais músicas. Era o que Júlio ouvia.
· Resolveu ir à praça central. Havia algumas pessoa sentadas ali e ele se sentou sozinho em um banco.
· Não havia natureza a se apreciar. Júlio pensava em como o verde tinha sido exterminado completamente nos últimos anos, quando alguém se sentou ao seu lado. Era um homem muito velho, devia ter mais de 90 anos. Isso era uma raridade. Poucos passavam dos sessenta, nesta época.
· O velho sorriu. Era simpático. Era alto, magro, quase sem cabelos, com muitas rugas no rosto. Usava uma jaqueta muito antiquada.
· Olá, jovem, Pena não poder dizer que está um lindo dia e que o mundo é belo. Não há mais beleza para se ver. Antes eu dizia a todos que era muito belo.
· Júlio não sabia se conversava. Resolveu falar:
· Antes quando?
· O velho riu e disse: - Há muito tempo atrás. Como pode ver, já vivi muito.
· Presumo, sem ofensa, que o senhor seja do final do século vinte - arriscou Júlio.
· É... por aí. Eu nasci em 60, filho. Tenho quase um século de vida. O que eu vi neste mundo não cabe em um livro!
· Meu Deus... 1960?!
· É... o tempo passa. Eu ia em bailes, filho! Bailes! Você nem deve saber o que é isso!
· Já ouvi falar, sim - disse Júlio - Você dançava?
· É claro! Eu conquistava todas as garotas. Eu era o maior garanhão.
· Maior o quê?!
· Garanhão. Eu ganhava qualquer parada. Eu tinha a minha turma. Mesmo com tanto tempo passado eu ainda me lembro de uma namorada que tive. Eu a amava tanto... se chamava Beatriz. Foi no fim dos anos 70, eu acho. Mas quando tudo ia bem... fui obrigado a ir para o exército.
· Obrigado? Vocês eram obrigados a se alistar? - perguntou Júlio, surpreso.
· Claro. Os tempos mudaram. Me casei em 83. Eu amava a minha mulher imensamente. Não tínhamos muito dinheiro, mas, com o amor, éramos capazes de sobreviver a qualquer guerra. Eu participei até de um grupo de vigaristas, nos anos 80. Éramos nove. Passamos por muitas juntos. Precisávamos sobreviver. Minha mulher morreu anos atrás, de derrame. Meus dois filhos também já se foram.
· No que você trabalhava?
· Trabalhei em muitas firmas. Mas o que eu fiz de melhor foi cantar.
· Cantor?! - impressionou-se Júlio.
· E compositor. Eu era muito esperto, filho. Não deixava as oportunidades escaparem. E cheguei a fazer sucesso, no início do século. Quando me aposentei eu e minha mulher fomos morar no campo. Era o meu sonho. Me senti realizado. Era um sossego. Eu me sentia tão tranqüilo...
· O velho começou a tossir.
· Você está bem? - quis saber Júlio.
· Sim. Sempre estive. O mundo é quem não está nada bem. Alguém precisa cuidar dele... alguém...
· Uma nova onda de tosses dominou-o, e desta vez ele se contorcia.
· O que há? Quer que chame ajuda? - perguntou Júlio.
· Não. Não chame ninguém. É com você que estou conversando.
· Mas... - começou Júlio.
· Eu tinha um carro, filho!
· Carro? - perguntou Júlio, confuso.
· É! Eu tinha um carro com rodas. Eles ainda tinham rodas.
· O velho continuava tossindo, e tentando falar, em desespero. Então ele começou a chorar.
· Filho... eu era um garanhão...
· Júlio segurava-o, para que não caísse.
· Eu cantava belas... músicas...
· O velho agora fechava os olhos.
· Lindas músicas de amor...
E tombou a cabeça nos braços de Júlio. Este, cheio de suor, ficou ali na praça, mudo, olhando-o e pensando em por que o homem queria lhe contar tudo sobre sua vida, o que ele fez, quem ele era, antes de ir embora. E percebeu que, à beira da morte, o homem tinha necessidade de contar a alguém o que viu. Contar a alguém como o mundo já foi bonito. Uma tentativa de fazer alguém perceber que era necessário acabar imediatamente com a maldade. Sempre houve a maldade. Porém nos dias em que Júlio vivia ela era maior do que nunca. Pior do que no século passado. Pior do que quando um homem era feliz com sua namorada. Quando ele tinha um carro possante. Quando ele fazia música. Lindas músicas de amor.
Júlio chorava. Nem chegou a perceber que dois homens uniformizados levavam o corpo para uma aero-ambulância. Homens frios. Insatisfeitos com seus empregos.
A revolta de Júlio para com o “mundo moderno” em que vivia era tão grande que ele não sabia para onde ir.
Apenas cuspiu em direção à estátua da praça e virou as costas para as dondocas enojadas.
Era hora de ir. Precisava ir. Ele tinha que ir ao edifício onde trabalhava procurar pela organizadora de horários de consultas com a especialista em problemas com senhas do departamento de ampara ao funcionário. Ele tinha que digitar as senhas certas. Ele tinha que usar a “gloriosa tecnologia moderna”. Ele tinha que fazer o jogo deles.



14/5 - Sexta-feira


Sexta-feira, 14 de maio de 2.056
São Paulo, SP

A TRIBUNA DO FUTURO

“Suicídio na Periferia”
Renato Palmochek, Reportagem Local.

Júlio Bonatelli, jovem paulista, cometeu suicídio hoje cedo em seu polimínio. O síndico, obrigado a arrombar a porta, desmaiou ao ver o corpo do jovem estirado no chão da cozinha, envenenado. Caixas de remédio estavam ao seu lado. A polícia não descarta a possibilidade de um assassinato bem engendrado. O porteiro lembra-se de ter ouvido Júlio resmungar algo em voz baixa, quando entrou no prédio, com uma cara muito desanimada, ontem à noite. Foram achadas também em seu apartamento várias gaiolas de animais, o que era proibido no prédio, uma delas com uma cobra dentro! É quase certo o suicídio por envenenamento. O médico legista diz que foi instantâneo, pois a dose de veneno tomado foi muito alta. Em seu depoimento, o síndico disse: “Estava tocando música do outro século quando eu entrei. Ele sempre ouvia isso. Todos achavam estranho. Música do outro século. Pode?”


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