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Contos-->Seria injusto se culpasse Maria -- 29/01/2003 - 00:41 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Seria injusto se culpasse Maria

Bateu noite gelada lá fora e não há um alento, um carinho, uma força positiva nestes ares, que ares?, aqui dentro ficou tudo estagnado, petrificado pó, sombrio Maelstrom que não deixa respirar mais. Aqui na cabana. De palha.
Palha fraca, quem se importaria se tacasse-se fogo aqui? No máximo os ratos e as aranhas.
José esticado na infelicidade, sob a mesa bamba de madeira podre, podre alma, pobre homem. Em cima a garrafa verde, verde é o ácido veneno de Lúcifer, Deus que me perdoe. Como fomos parar nisso? Socorro...! Nem se mexe, incrustado na dor, na alcova do sufoco.
José, José... embora não lembre seu nome a esta altura, e fique constante e unicamente compenetrado na hipocondríaca atividade de roer com unhas a madeira da perna da mesa, trabalhando o ócio na máquina da cabeça vazia, enlouqueceu-se, tremores e espasmos. Implorar pra morrer... cadê coragem pra se matar? Cadê vontade? Cadê a atitude? Se tivesse um mingüel ao menos contratava um matuto de lá pra vir e deitar fora sua vida no ralo, e nem precisaria pagar, no fim das contas, ha-ha, não tem graça nenhuma, nada tem. Minha mãe... onde está a minha mãe uma hora dessas, meu santinho? Chorar...
Vieram raivas, insanidades e ataques, e “resprostectivas da cabeça”, segundo ele, e que nunca soube se chamarem flashbacks... e foi assim.
Assim. Outrora forte, alimentado direto da terra, como não, era vigoroso e casou Maria em um Janeiro, em dois anos um filho, o um. O Um.
Era filho de caipira, de plantador, de animal. Da terra. Não sabiam de nada, do mundo de hoje, nem de amanhã, e isso era a vida. Plantar batatas, colher batatas, comer batatas, plantar batatas, colher... permanecer. E a mãe foi santa, carícia e reserva, vergonha e modéstia, abençoada. Não sabiam datas, nem meses nem coisas de signos, e astros ou letras, Bauhauss inútil aqui no meio das batatas. Infância ligeira, um afago morno, e dureza... sonhos humildes. Logo Maria, paixão, incerteza e a vida. Se fosse fácil... não seria. Mas é assim que é, é assim que vai. Se há coragem, há vontade. E foram ignorando, foram dançando e amando.
Mas logo brincaram com ele, parece que não sei por quê, me diz!, brincando comigo, brincar de acabar comigo, miséria, ruína, porque antes até dava-se um jeito, e felicidade não faltava, era um pular da cama e bater a testa no teto, beijar a cruz e cantar. Mas um dia pular e tropeçar, quebrar a cara no chão, sem conseguir entender, e chorar então, querendo sair do pesadelo. Mas já se está acordado, e nota-se a miseralha, fatia ardente, meu sangue escorrendo pelo Armaggedon maldito, aaaai!!!, por que eu?!
E a falta de trabalho deteriora a cabeça, dá-lhe raiva, dá-lhe frustração, a moléstia, mete cachaça na cabeça, mete fumo e brasa do inferno, cozinha do Satã, alimento de mefistos e tinhosos, e dá-lhe ratos e baratas, frio e foda doentia com Maria, e as negas por aí e por acolá, até que Maria abriu a boca um dia, não irada, mas preocupada, e:
- Essas galinha...
- Calaboca!
José virou a mão na boca de Maria, voou uma gotícula de sangue sobre o retrato de casamento sobre a mesa. E houveram outras como essa, o filho contava então três anos e achou que era um tipo de brincadeira, e na primeira vez que levou uma, sem motivo, não sabia se ria ou se chorava, pobre infância. Mas o pai chorou muito e prometeu, entre abraços da tríade de desgraçados. Se bem que houveram outras como essa...
Até que foi-se gastando a raiva, o ódio e a fadiga, o próprio cansaço se cansou de se cansar, de haver. Foi-se esmaecendo a planta sem sol e sem água, caíram no chão numa tarde quente e ficaram até hoje nesta posição, os três, o que ainda andava era o pequenino, ou chorava de fome, mas passaram anos, ele engatinhava (já em idade de andar), só até o pai e acudia:
- Acorda, pai! Acorda, pai! – gritou pequenino o filho, a quem os pais chamaram Jesus. Jesuzito.
- Pára! – ele se irritou, em seu canto de bicho do mato. Mais medo que raiva.
Era pra acordar, levantar da sombra, sair pra luz e brigar, briga da vida, A Briga, mas dava-lhe pavor só a idéia, e não acordava. Não abria os olhos pra ver a luz, pra enxergar amor e vontade de viver.
Olhou pra ela. A Maria pele marrom, queimada de tanta escuridão, já fora branca certa época, e os cabelos da mesma cor, tostados, meio de um ouro antigo, crina de cavalo sensual, bronze, desgrenhado e fraco, os ombros e braços nus, gelados, seios desiludidos apontados ao Deus dará, e uns trapos tapando o sexo não se sabe bem por quê, vide essa vida! Sim, já foi forte e sexuada, mui hermosa, caliente, com seus hiper-mamilos de deusa fértil, colo de flor, pernas em chamas. Mas agora...
- Acorda, papai!
- Pára! Me deixa!
Acabrunhada e largada, Maria, numa esteira empoeirada, tudo aqui é só o pó, e não retornarás.
Olhos fechados, sono ou morte?, esse distanciamento me arruína. Ai, Maria, Maria, Maria, esposa, eu não posso, não poderia te culpar de tudo isso, seria injusto se culpasse Maria de algo, seja o que for. Não poderia... como antes, que cego e surdo saía ao controle com ela, estuprando a paciência e a bondade da minha Maria.
Coitada dela, ai meu Deus... José chorou depois de anos sem respirar, e doeu a face, cortou fundo. Jesus engatinhou e observou quieto.
Olhou em volta, a barba tinha grudado no assoalho de tanto tempo mofado, barba grisalha aos trinta e poucos anos, embaraçada, teve que cortar com uma faca. Mas pra levantar e acordar era a dor... era tortura. Precisava de um paradigma. Um paradigma importante. Não havia... não havia... mas... Maria, nunca poderia, jamais, culpar Maria disso tudo, não...
- Acorda, pai!
Ele pensou. Um restinho de consciência, vai lá, homem, por tudo, junta seus restos, seus ossos, vai que é assim mesmo, se não fosse... é assim, é só o momento, é só o momento de dor e aprendizado, Jesuzito sorri ao longe, cativa seu mestre, ele ama a todos e é mensageiro.
- Acorda!
Desta vez não respondeu. Só olhou de soslaio sua cria, por Jó, sua cria! Sim, era. Criador? Era o que era. Piscou e refletiu ainda parado. Virou o corpo de embalo, força que vem das podres entranhas, queimou-se. Rolou duro no assoalho, ossos quase em contato com o mundo, alma esfarelada, mas foi. E rolou. Maria não se moveu, José chegou, tremendo. Babando. Força da natureza, Moisés no coração, foi jogado num golpe magnífico, titânico na parede, abalou a tudo e todos, assustou-se mas por bem. Foi Maria. Foi Maria! Veio no ar estagnado uma alma transparente, incrível cintilante, fantasma da verdade, era Maria em sua forma bicho, era o mito, e serpenteou aquele vento, quebrou o pó grotesco da cabana, arrancou a própria cabana do mapa do Brasil e soprou sobre José, com fúria, veio a Luz, isso é luz, queridos, eu amo, rolaram lágrimas, e um grito de Maria ecoou até as larvas do núcleo terrestre, abalou as cachoeiras, e levou José ao seu encontro do despertar da inocência, no retroceder da querência, e o fez jorrar e gozar sobre ela, amadurecer e revigorar a seiva, largar sobre seu útero a semente da perpétua proliferação, meu Paraíso, meu Éden, amor em Maria. Assim foi recriado o animal homem ao vento, Jesuzito virou pó, luz, mágica real, subiu no eterno, o branco, e nasceu nas vísceras de Maria, um jato de vida pra acordar o pai, ele veio ao mundo e novamente foi-lhe dado o nome de Jesus, seria dado um milhão de vezes e umas mais, pois quem sabe agora, pensa José, quem sabe agora não é Jesus Cristo que desponta em Maria e salva a todos?


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