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Contos-->Os Capitalistas de Wall Street vão à caça... mais uma vez -- 29/01/2003 - 00:45 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Os Capitalistas de Wall Street Vão À Caça...
Mais Uma Vez


1 – Os anos 60

Narrativa de Janis

Na época eu morava com uma porção de pessoas numa comunidade hippie, em algumas casas meio afastadas da cidade. Foi a melhor época da minha vida, pois éramos todos amigos e despreocupados com coisas materiais, um ajudando o outro, usando a casa do outro... a gente ficava numa região meio isolada da cidade, então vivíamos tranqüilamente por ali, ouvindo música, cantando, tocando violão, dormindo e fumando erva... sim, era muito descontraído, nós não nos importávamos com os danos das drogas, nem com a vida vagabunda que tínhamos... o dinheiro faltava, mas a gente sempre dava um jeito. Pode-se dizer que era uma daquelas famosas comunas dos anos 60, muito difundidas nos Estados Unidos, onde os hippies ficavam vivendo juntos, e trabalhando na terra. Éramos assim. Mas não trabalhávamos. Não constantemente.
Pareciam casas de sítio em mal estado, algumas sem portas, e bem detonadas. Até parece que a gente pensava em fazer uma reforma por ali. Vivemos assim, eu acho, por uns três anos. E teríamos vivido mais, porém a história que vou contar trata do que nos impediu de continuar naquela vida.
Nós só íamos até a cidade quando acabava a erva, ou pra comprar comida, ou fitas e pilhas para os rádios. Não víamos muitas pessoas por ali, e quase ninguém vinha para aqueles lados. Tanto que em um ano nos tornamos meio anti-sociais em relação aos cidadãos comuns. Não sabíamos mais como nos comportar em ambientes urbanos, lugares públicos, etc., e nem queríamos saber, pois estávamos satisfeitos. Quase não usávamos roupas por ali, ou seja, vivíamos algo bem distante do que se vive hoje no mundo moderno. Não éramos trogloditas, mas procurávamos viver naturalmente, como hippies desencanados que buscavam unicamente o prazer e a poesia. Todos eram legais por ali.




2 – Os anos 90

Orson chegou na rodoviária cedo, a passos lentos, lá pelas seis da manhã. Não havia quase ninguém lá, e ele resolveu ir até o restaurante ao lado da rodoviária.
Estava profundamente absorto em pensamentos, muito confusos, que inundavam sua mente.
Entrou no restaurante, onde só havia o gerente e as garçonetes, alem de um casal cheio de malas.
Ele olhou para sua mala: era uma só, com poucas coisas dentro... afinal, ele não precisaria de muitas coisas, agora.
Pediu café e pão, e foi se sentar numa mesa do outro lado do restaurante, onde ninguém iria perturbá-lo.
Sentou-se, e começou a mastigar o pão lentamente, observando a estrada e a rodoviária. Um grupo de moto passou em alta velocidade pela estrada, todos em euforia, fazendo farra. Logo sumiram, e o silêncio calmo da manhã voltou. Não havia som algum, somente o dos talheres e pratos dos fregueses, e uma música no rádio, uma música tão velha que Orson começou a fazer um esforço para se lembrar de onde conhecia a música.
Mal acabou o café e o pão, levantou-se, foi pagar no balcão. Olhou a rodoviária. Lentamente, voltou a se sentar, só que desta vez perto da janela, perto do balcão. Encostou o ombro no vidro, todo esparramado no banco, e olhava fixo para o horizonte, na direção da cidade que deixaria em poucos minutos. Tirou uma passagem de ônibus do bolso do sobretudo e olhou para ela, meio tenso.



3 – Os anos 60

Narrativa de Janis

Eu tinha um namorado.
Ele era hippie também, e morava lá com a gente. O homem mais fantástico que eu já conheci. Sem brincadeira. Ele me deixava louca, eu nunca tinha me dado tão bem com uma pessoa antes. Nos conhecemos por acaso. Teve uma época que a gente já vivia lá há mais de um ano, e costumávamos receber na “aldeia” alguns grupos nômades de gente que nem nós, assim, desencanados. Eram hippies, só que nômades. Esses grupos passavam por lá, a gente compartilhava o que tinha com eles, fazia amizades, papeava, e depois eles iam embora.
Uma destas caravanas que passaram por lá trouxe o meu namorado, o “Louco”. O apelido dele era Louco, porque ele era assim mesmo, doido, cheio de idéias e vontade de revolucionar o mundo. Ficava escrevendo teorias e poemas, tudo relacionado com política, filosofia, um negócio que ele levava muito a sério e que depois de um tempo eu também comecei a levar.
Gostei do jeito dele, assim, logo que nos conhecemos. Ele costumava ficar na fogueira com a gente, tocando violão, e cantava umas músicas lindas, que eu nunca esqueço... isso me faz lembrar daquela época... um som relaxante, tranqüilo...
Ele não era pirado, é claro. Mas era muito animado, ativo, e querendo mudar tudo que achava errado. Dizia que ainda iria desbancar os militares, acabar com todos eles, organizar o país de um jeito justo e honesto. Ninguém ficaria sem comida, e tudo o mais. Não haveria violência, somente paz e amor... certo, isso é parecido com os ideais que todos nós tínhamos naquela época, lá na comunidade... e era, realmente. Só que o Louco dizia tudo isso de forma nova, soava como se fosse mesmo possível, como se ele fosse mesmo, um dia, mudar toda a situação... só que todo mundo dizia que era delírio dele. Que ele fumava muita maconha, e o cérebro estava derretendo. Tá certo, ele fumava pra caramba... mas eu acreditava no que ele dizia... não parecia delírio, parecia uma promessa verdadeira... é que eu amava o Louco de verdade, é isso.
Vou contar como foi que a gente começou a ficar junto. Estava tendo uma festa num destes dias em que o grupo estava lá conosco. Muita música, maconha e risadas... éramos felizes. Mas me tornei ainda mais feliz quando vi o meu amor sentado num tronco, tocando no violão uma música que falava de uma revolução... juro que o amor que senti por ele nos próximos anos é algo impossível de se definir com palavras.
O Louco e eu começamos a conversar animadamente naquela festa toda, e nos conhecemos. Ficamos horas conversando, até a alta madrugada. Depois, ficou meio na cara que um estava a fim do outro, e a gente nem ficou com esse negócio de ficar enrolando, com receio e tal de se declarar, que nem os outros jovens faziam... afinal, tínhamos a nossa filosofia hippie, e se tem algo que essa filosofia defende, é a manifestação direta de sentimentos como paixão ou amor. Dissemos um ao outro que tínhamos nos gostado. É, foi bem assim, bem desencanado. E nos beijamos, ficamos juntos a partir daquele momento. Tinha uma coisa engraçada sobre ele: ele não usava o nome verdadeiro. Achava esse negócio de nomes muito formal, hipócrita, e só atendia por “Louco”. Ele não dizia o nome verdadeiro pra ninguém. Nem o grupo dele sabia, e isso realmente não era importante, afinal, sempre tinha sido o “Louco”. Achava o nome muito fresco, nome de fresco. Por isso, demorei a vim a saber seu nome verdadeiro. Haviam coisas mais importantes.
Os dias se passaram, e ficávamos pela propriedade. O grupo dele partiu, mas ele não ligou, pois agora tinha a mim. Fumávamos, cantávamos, dançávamos, nos amávamos... era a simplicidade do sentimento. Ironizávamos a idiotice que o casamento representava pra nós todos, os hippies... casamento para nós não passava de problemas, dor de cabeça e destruição dos sentimentos.




4 – Os anos 90

As garçonetes estavam todas no balcão, sonolentas, reclamando do dia, e uma delas, sem que Orson percebesse, aproximou-se de sua mesa.
- Deseja mais alguma coisa? – perguntou ela, num tom suave, como se percebesse que Orson não estava muito bem. Ele não ouviu.
- Ei... você quer mais alguma coisa? – repetiu ela, porém sem arrogância, e sim com preocupação. Ele virou a cabeça lentamente, olhando fixo para ela. Olhava na direção dela, mas parecia que não a via. Estava muito pensativo. Balançou a cabeça negativamente, devagar.
- Tudo bem com você? – perguntou ela, abaixando-se lentamente até ele.
- Hã... sim, estou bem, obrigado... – ele respondeu, meio sem prestar atenção.
A garçonete pareceu meio confusa, fazendo um gesto hesitante, apertando o avental com as mãos. Queria voltar, ou queria dizer algo... hesitou. Permaneceu em silêncio. Resolveu puxar assunto com ele:
- É... você vai pegar o próximo ônibus? – perguntou ela, meio que banalmente.
Orson olhou para ela: não havia reparado detalhadamente nela, ainda. Não era jovem, devia ter a sua idade, no máximo. Orson estava ficando velho. Observou suas feições, e viu que era muito bonita. Cabelos dourados curtos, em chanel, e grandes olhos expressivos castanhos. Era meio magra, de estatura média, e tinha lábios bem grossos. No canto de um dos olhos, tinha uma pinta que lhe dava uma aparência muito sensual. A pinta trouxe lembranças em Orson. Era familiar para ele. Tinha olheiras profundas nos olhos, e apresentava um estado de cansaço, de tensão provocada pelo trabalho. Seus olhos brilhavam, aflitos. Não devia ter muito dinheiro, assim como ele, e trabalhava neste restaurante talvez só para sobreviver...
Sua aparência era a de quem está de saco cheio da vida que leva, não agüenta mais as pessoas ao seu redor e não é compreendida por ninguém, pois vive no meio de pessoas ignorantes, intolerantes e egoístas. Orson também se sentia mais ou menos assim... e sabia que a conhecia. Mas não queria admitir, não queria começar a pensar nisso. E sofrer. O negócio era fingir. Fingir que não a conhecia, e que queria ir embora e sem se lembrar dela. Senão sofreria.
- Hã... é, eu vou embora nele, sim... – respondeu ele, depois de alguns segundos.
O momento que se seguiu entre os dois foi muito tenso, um momento meio que de expectativa, afinal, na verdade eles não tinham mais nada para falar um para o outro... mas queriam dizer. Ela olhava Orson insistentemente.
- Você... – começou Orson, hesitante. Parou. Dizer ou não dizer? Olhou novamente para a estrada... o ônibus partia em cinco minutos... toda aquela estrada, aquela imensidão... ele logo estaria pegando a estrada. Voltou o olhar para a garçonete.
- Fala... – disse ela, aflita, esperando que ele lhe dissesse o que ela queria ouvir.
- Não, nada... eu só... queria... saber seu nome.
- ... – eles foram interrompidos por uma garçonete arrogante que se dirigiu à garçonete que falava com Orson e disse:
- Ei, ô garota... olha os fregueses lá! Se mexe, só a gente trabalha por aqui?!
A outra ficou um tanto encabulada, se desculpou para Orson com um gesto atrapalhado e saiu andando rápido, indo servir os fregueses que chegaram. A garçonete arrogante voltou para o balcão e ficou papeando com as colegas de trabalho.
“Ela nem ouviu a pergunta...” pensou Orson. Esperava por ela ou ia embora?... Continuou com o olhar perdido na estrada, e depois se levantou.
Devagar, foi até a porta do restaurante, sempre hesitante.
Olhou novamente para a garçonete, e ela olhava para ele, também, enquanto ouvia o pedido dos fregueses. Queria ver ele, queria continuar falando com ele...
Orson deixou o restaurante e caminhou devagar para a rodoviária.



5 – Os anos 60

Narrativa de Janis

Passaram-se alguns anos, e o sentimento entre nós dois não diminuiu. Mas só teve um negócio que meio que nos abalou um pouco. Na verdade envolvia toda a comunidade.
Tudo ia muito bem, quando, um dia, nos assustamos com a chegada no local de um homem “da civilização”. Era um cara de menos de trinta anos, provavelmente um empresário, ou executivo. Um protótipo da cidade grande, esperto homem de negócios...
Na verdade, passamos por várias cidades, nestes três anos, mas esta foi a última e a que nós ficamos mais tempo. No Rio.
Bom, o cara que chegou ali nos surpreendeu. O que ele queria ali? Vestia uma camisa cara, branca, limpa como o vento, e que tinha um cheiro agradável de amaciante. Ele devia ter uma mulher feliz na casa dele, que lavava e passava as roupas que ele usava no trabalho... era algo para nós, hippies, pensarmos. Bem, além disso tinha a calça e os sapatos sociais, e a gravata, outro símbolo urbano. Me lembro muito bem... A camisa branca e a gravata listrada esvoaçavam no vento forte do campo. Lá nós tínhamos um tempo ensolarado e com ventanias o dia inteiro, uma temperatura bem amena. E neste dia eu estava em frente à minha casa, que era de mais outras sete pessoas. Eu estava sentada, encostada no muro, comendo um pedaço de carne de porco com uma mão, e segurando um baseado enorme na outra. Minha boca estava toda lambuzada. O sol estava agradável, e eu já estava delirando. Eu vestia só uma calça jeans toda amarrotada e rasgada. Não usava nada na parte de cima. Nossas casas ficavam no fim de uma longa descida, e o sol nascia bem no topo da subida, de frente pra casa. O sol estava bem na minha frente, batendo nos meus olhos. Eu estava quase dormindo. Então, senti o sol sendo tapado por algo, lá longe. Olhei lentamente para o topo da ladeira, e vi o vulto que cobria o brilho do sol parado, imóvel, olhando para baixo da ladeira, pensativo. A gravata e o tecido das mangas da camisa esvoaçavam ao vento, furiosamente. Os óculos escuros que ele usava ficaram dourados, daquele jeito, em frente ao sol. Fiquei olhando. Tive um arrepio, pois aquela visão tinha algo de excepcional. Ele suava sob o calor ardente. O que um homem da cidade queria por ali? Estaria perdido? Ele foi descendo a rua, em direção à nossa casa. Nem me levantei, não tinha forças. Todos os outros hippies estavam longe, do outro lado da propriedade, dormindo ou fumando. Só eu estava lá.
O homem chegou a uns três metros de mim e parou. Estava olhando os meus seios, intrigado. Nem me importei, já estava acostumada. Ele desviou o olhar para os meus olhos. Nesta hora vi suas feições. Era tão estranho ver um homem por ali sem nenhum pelo no rosto! Os hippies deixavam os cabelos, a barba e o bigode crescerem em desalinho, tudo junto, e ali estava um cara todo barbeado e cheirando a amaciante! Os olhos dele não diziam nada. Ele não tinha expressão alguma, só me olhava, com os olhos franzidos por causa do sol, e com os cabelos suados, esvoaçando. Segurava uma maleta. Ele tinha provavelmente vindo a pé até ali. Ele olhou em volta, depois resolveu falar:
- Oi, bom dia. Você mora aqui?
Eu respondi, lentamente:
- Moro... por que?
- Bom... onde estão os outros?
- Hã?
- Os outros!
- Que outros?... – eu não entendia nada, por causa da maconha.
- Seus amigos... que moram aqui.
- Estão pra lá... o que quer?- perguntei.
- Quero conversar.
- Sobre o quê? – disse eu, ainda sem me levantar.
- Sobre estas terras aqui – disse ele, meio malicioso, abrindo os braços em volta de si mesmo.
Eu não disse mais nada, pois não conseguia raciocinar muito. Depois de alguns segundos, me levantei, com muito esforço, pondo o cigarro de lado. Ele olhava os meus seios novamente, devia ser estranho para ele.



6 – Os anos 90

Quando Orson chegou na plataforma, onde o ônibus se preparava para sair em alguns minutos, olhou para dentro do restaurante... não tinha esperanças de ver a garçonete. Mas lá estava ela, naquela distância toda, olhando para ele desamparada, aflita, os olhos perdidos. Ela se sentava na mesa em que ele estivera, perto da janela, com os cotovelos sobre a mesa.
O ônibus começou a receber os passageiros em seu interior.
De repente Orson pensou: “Minha vontade é largar tudo, pegar a mulher no restaurante, e partir pela estrada, não importa pra onde... mas...” Ele se preparava para entrar na fila, e olhou novamente para ela, lá longe, chorando de repente. Lágrimas rolavam desamparadas. Orson sentiu um raio percorrer seu corpo inteiro, uma ânsia inesperada... e subiu apressado no ônibus.



7 – Os anos 60

Narrativa de Janis

Comecei a andar em direção ao outro lado da casa, e pedi para ele vir junto. Ele me seguiu até os fundos, onde se encontravam três amigos que moravam com a gente. O resto devia ter saído. Eles descansavam embaixo de uma laranjeira. Levei o homem até eles. Eles ficaram intrigados. Lá estava o Loiro, que era um cara muito legal, que usava os cabelos dourados bem longos e que escrevia poesias o dia todo; a Wilma, que tinha só dezesseis anos e tinha lindos cabelos avermelhados embaraçados; e a Cíntia, que era mais velha e namorava com o Loiro. A Wilma vestia só uma camiseta, mais nada, e não se importou quando viu o estranho se aproximar. Ela era bem orgulhosa, até meio atrevida. Gostava de provocar os outros. Ela viu que um cara da cidade estava vindo, mas mesmo assim não se vestiu. Pelo contrário, quando ele chegou perto do grupo ela fez questão de se sentar perto da árvore com as pernas abertas. Ela sempre fazia isso, porque queria ver se alguém tinha coragem de mandar ela se vestir ou de mexer com ela. Se alguém o fizesse, era encrenca na certa. Mas ele só olhou, e não disse nada.
- Ele quer falar sobre a nossa propriedade – eu disse, olhando para o Loiro.
Ele olhou o homem, e disse, pacífico:
- De onde você é, bicho?
- Daqui mesmo, da cidade.
- Como se chama, bicho?
O homem se aproximou e apertou a mão do Loiro. O Loiro ficou confuso com o gesto formal do cara.
- Meu nome é Felipe Mascarenhas – disse ele, cumprimentando as outras – E sou gerente financeiro em uma empresa do centro – continuou ele, dando um cartão da empresa para o Loiro.
- E?
- Quero fazer uma proposta para vocês, amigos. Talvez não saibam, mas tenho observado vocês ultimamente aqui na propriedade, e analisando seu modo de vida. Percebo que vivem muito bem aqui, e que devem ser felizes.
- Sim...
- Pois estudei muito a idéia e gostaria de sugerir algo: vocês têm aqui uma propriedade imensa, vasta, e muito rica em termos de plantio, se considerarmos também o clima. Seria ideal para plantação e cultivo em geral. Minha empresa lida com uma área muito extensa, pois administramos o setor primário e o... – começou Felipe, mas logo parou. Viu que nenhum de nós entendia o que dizia. Resolveu ser mais direto: - Bom, lidamos com o plantio, a agricultura, e também com o aproveitamento, a transformação e o comércio dos produtos agrícolas em geral das propriedades onde temos trabalhadores. É algo muito complexo, entendem? Temos terras em regiões diversas pelo Brasil, e aqui no Rio procuramos terras adequadas para a expansão de nossas atividades. Suas terras são perfeitas, e a minha proposta é a seguinte: vocês trabalhariam em suas terras sob horários e salários adequados, é claro, e o lucro gerado pela venda dos produtos a outras firmas e pelo comércio dos mesmos seria dividido adequadamente entre vocês que moram aqui e a minha empresa.
Nós ficamos parados, escutando, e pensativos no final, olhando aquele homem diferente que sabia falar muito bem. O Loiro estava realmente meio confuso. Felipe continuou:
- Vocês têm talento, pessoal. E energia dentro de vocês. E podem usar honestamente para proveito próprio. Podem viver muito melhor do que vivem agora.
- Senhor... – disse o Loiro, meio sonolento – senhor Mascarenas...
- Mascarenhas. Pode ser Felipe.
- Isso. Escuta... eu não sei de nada. Vou falar com o nosso camarada, o mais velho de nós, o Doles. Ele não está agora, mas é com ele que a gente vai ter que ver. Não que a gente tenha um chefe, pelo contrário, não acreditamos nisso – disse o Loiro, mais sério agora, apontando o cigarro para Felipe.
- Sim, claro, eu entendo vocês.
- Pode até ser... mas o negócio é que ele é bem mais experiente, e sabe o que é mais certo.
- Perfeito. Perfeito, quando podem falar com o Sr. Doles? – perguntou Felipe.
- É... hoje mesmo, Mascarenas. Mas não garanto nada. Eu não entendi direito o troço todo aí, bicho, mas o Doles entende com certeza, e aí... – disse o Loiro, com a voz fraca e os olhos vermelhos. Fez um gesto com a mão, dizendo que era só isso que podia fazer. Felipe disse, então:
- Tenho certeza que ele vai entender e pensar a respeito. Muito obrigado pela atenção, pessoal. Falou... bicho – concluiu ele, meio sem jeito, levantando o polegar para o Loiro, e partindo em seguida. Ficamos olhando Felipe Mascarenhas deixar o terreno, pensativos.



8 – Os anos 90

Orson não sabia o que fazer, o que era certo e o que era errado. Só sabia que algo muito diferente estava prestes a começar em sua vida. Algo totalmente diferente do que ele já tinha vivido até ali. Sua vida, com certeza, mudaria. Os fatos que ele trazia nas costas neste momento eram o suficiente para terem feito ele crescer e aprender algo. Mas o que? Ele não sabia.
Colocou a única mala que levava no compartimento de bagagem do ônibus, lentamente. A mala não queria entrar. Ele colocava, ela caía. Como se não quisesse ficar ali, como se quisesse impedir Orson de continuar naquela viagem. Seria uma viagem estúpida? Ou era a coisa mais certa a se fazer?
Uma mulher velha estava de pé ao lado de Orson, colocando as coisas dela no compartimento. Era uma mulher sozinha, muito velha, talvez até doente, quem sabe. Ela não parecia estar triste nem feliz. Impassível, não demonstrava emoções. Orson percebia algo no jeito da mulher, uma certa desesperança para com a vida. Como se a vida tivesse chegado, certo dia, para a velha, e tivesse dito em seu ouvido: “Pronto. Você pára por aqui... a partir de agora, não há mais aventura, não há mais progresso e esperança. As mudanças já aconteceram, e agora a senhora deve somente esperar... descansar... e se contentar com o que tem agora...” Era isso o que a vida dizia para as pessoas, em certo momento.
Um dia a vida diria isso no ouvido de Orson, e ele não sabe como reagiria. Se ele estivesse satisfeito com sua vida, feliz, então não se abalaria com o aviso. Porém... se até aquele momento ele não tivesse conseguido o que sempre quis, se não fosse o homem que sempre quisera ser... neste caso, o aviso se tornaria um pesadelo... tão frio como a própria morte. Um desespero que significaria o fim das esperanças que podemos ter enquanto vivos. Como aproveitar a vida tendo isto em mente?
Um calafrio percorreu a espinha de Orson.




9 – Os anos 60

Narrativa de Janis

À noite, quando Doles chegou no terreno, o Loiro foi falar com ele. O Doles era um velho que vivia com a gente e que funcionava como um orientador em nossa comunidade. Era um cara bem pacífico, todo magro, pequeno, e com uma grande barba cinzenta. Era uma boa pessoa, mas não falava muito, só observava. Costumava sair para caminhar pelas redondezas todos os dias, para “refletir”, ou “filosofar”. Também era drogado, e doente, também, aos oitenta anos.
Ele ouviu atentamente o que o Loiro tinha a dizer, enquanto eu e o resto do grupo nos sentávamos em volta da nossa fogueira de todas as noites, para tocar violão.
Doles pediu então para ficar sozinho, dizendo que precisava pensar no assunto. Ficou horas e horas lá num canto, sozinho, sentado num tronco, riscando o chão de terra com um graveto.
Nós aguardávamos, pois sabíamos que não era tempo perdido.
De madrugada, quando a maioria de nós já dormia em volta da fogueira, sob o efeito do fumo, Doles veio para perto do grupo e procurou os que não haviam dormido ainda. Eu estava acordada, e fui falar com ele, pois estava curiosa. Logo os outros também já estavam se levantando, sonolentos, para ouvir o que Doles tinha a dizer.
Ele se sentou e começou a falar:
- Pensei muito no assunto que me foi proposto hoje, e sobre o qual vocês já devem estar por dentro, meus amigos... é algo para se refletir, é uma decisão importante a ser tomada. Quando pensava no assunto, não pude deixar de considerar que precisamos, antes de tudo, de mútuo acordo neste tipo de decisão. Vivemos aqui há muito tempo, e muito já foi construído por aqui, em termos de espírito. Quero saber de vocês, o que acham que devíamos fazer. Dêem-me suas opiniões...
- Pô, meu, sei lá, pra mim, ó... sei lá... eu sou a favor desse barato todo, entendeu? – disse Cíntia, uma das hippies – Acho que, pô, a gente não pode ser tão... não pode ser tão radical, com essas coisas. Se a gente pensar direito, vai ver... vai ver que pode ajudar em muita coisa, sim, entendeu?
Em seguida outro hippie, Pablo, se manifestou:
- É. Eu acho isso. Porque a gente, aqui, vivendo vários anos, tudo mais, no terreno, a gente tá se divertindo, sim, e tá curtindo todo o barato, sim, meu. Mas, mesmo assim, eu acho que não ia fazer nada de mal, se a gente procurasse... procurasse, é... evoluir, entendeu?
- Eu apoio a idéia... – dizia Jaqueline.
- Só...
- Também sou a favor, tem que arriscar umas coisas novas, às vezes, mesmo... – disse Nelson.
- É isso aí. Ô Janis, que que cê acha?
Janis era meu apelido, esqueci de dizer. Só me chamavam assim, por causa da Janis Joplin, e tal. Não era nem um pouco parecida, mas era mais o jeito, a imagem. Resolvi dar minha opinião:
- Não custa a gente tentar... – disse eu, em seguida, concordando com o resto. Eu realmente achava, na época, que seria uma boa, que iríamos sair lucrando nessa jogada.
O resto do grupo também se manifestou, e as opiniões pareciam convergir para um lado: o acordo poderia ser feito de modo amistoso e lucrativo.
Doles aprovou as decisões e acrescentou que nada disso iria adiantar se nós não colaborássemos, no futuro, e se não houvesse sinceridade e cooperação. Todos prometeram boa-vontade, e pareceram até mesmo animados com tudo o que ocorria. Na manhã seguinte Mascarenhas estaria de volta. Esperamos. Nem dormimos. Esperamos durante aquelas horas de agonia. Agonia porque não sabíamos para onde estávamos indo, e se deveríamos ir. A longa espera, que foi a mais longa da minha vida. Se soubéssemos como seria...




10 – Os anos 90

Orson voltou a se sentar em seu banco, sozinho, no fundo do ônibus. Ele não queria voltar o olhar para a lanchonete. A lanchonete onde estivera, alguns minutos atrás. A lanchonete onde uma mulher garçonete esperava por ele. Porque, se olhasse... iria querer voltar, e falar com ela.
O motorista dizia algo, em voz alta, para os passageiros. Orson acordou de seus pensamentos. Ele comunicava que o ônibus demoraria um pouco para partir, devido a um problema no motor.
Um problema no motor.
Isso atingiu Orson a fundo. Afinal... Orson esperava que o ônibus partisse imediatamente, sem demoras, para que não desse tempo de passar novamente por sua cabeça a idéia de descer do ônibus, de perder o ônibus, e entrar na lanchonete. Porque, se ele pensasse de novo nisso, talvez descesse realmente do ônibus...
E o ônibus estava parado. O motorista avisou. Isso automaticamente fez Orson perceber que haveria tempo de sobra para ele descer, ir até a lanchonete e falar com a garçonete. Dava tempo.
E ficou um relógio na cabeça de Orson, um relógio de alarme que não tocava. O relógio era a vida. Os ponteiros eram as pernas de Orson andando em círculos por uma vida inteira, caminhando sem realmente se decidir sobre algo. Sobre o rumo. Sobre a hora de soar o alarme. Isso incomodava a cabeça de Orson naquele momento, no ônibus. Ele chegou a suar, e seu coração batia acelerado. Era a bateria de seu relógio...
O barulho dos ponteiros, andando, batendo, soando na mente dele. Um barulho que incomodava. A indecisão incomodava. Era como um verme preso ao nosso corpo e nos impedindo de sorrir. O verme no relógio.
O relógio às vezes parecia estar prestes a soar, tocar seu alarme, porém essa hora nunca chegava. Orson percebeu que o relógio poderia começar a tocar naquele exato instante, enquanto ele estava lá sentado. Ficou inquieto.
Tic... Tic... Tic... Tic... Tic... Tic... era só isso.
O ritmo daqueles malditos ponteiros agora era mais rápido, mais veloz, brutal. Cada segundo andado era uma pontada de dor, era um dedo cutucando o ombro de Orson: “Vai, dá tempo, corre lá, vai!”
Ele sentiu um arrepio pelo corpo todo, e algo subiu até sua cabeça. Ele se levantou de um choque, uma explosão: o relógio! O alarme começou a tocar, Orson! Está tocando!
Era estrondoso. Mas ele foi andando. Caminhou meio cambaleante, porém com certa energia, pelo ônibus, e parou perto da porta. O alarme ainda tinia em seu ouvido, mas tinha amenizado um pouco.
- Vai sair? – perguntou um funcionário da estação, que inspecionava a manutenção do motor.
- Eu... – ficou um instante parado – Vou, sim.
Ele desceu, o funcionário deu-lhe espaço.
Andou pelo chão de terra da rodoviária, devagar. E agora? Bom, agora, o negócio era andar até lá.
Ao olhar para a janela do restaurante, Orson esperava ver o rosto da garçonete parado ali, olhando para ele. Mas não viu nada. Ela não estava na janela.
O desespero tomou conta dele, uma espécie de desespero que sentimos quando temos cinco anos e nos perdemos de nossa mãe no supermercado. Ele não iria perde-la, não depois de toda essa hesitação em vir.
Abriu rapidamente a porta do local, e entrou, olhando em volta. A vista meio confusa, embaçada.
Mas ela estava lá. Sozinha no balcão, enxugando os pratos lavados. Quieta.
Alguns clientes estavam comendo em mesas no fundo do salão. E os outros funcionários estavam atrás, na cozinha. Havia um cliente no balcão, tomando café.
Orson se sentou numa mesa distante do balcão, perto da entrada, a fim de esperar o homem terminar seu café no balcão. Orson não sabia se tinha pressa ou não naquela hora.
A garçonete viu Orson, pareceu não acreditar, e ele viu um brilho nos olhos distantes dela. Foi um olhar que eles trocaram por um segundo, ou menos. Bastou para se compreenderem. Permaneceram em seus lugares, pacientes, aguardando o homem que tomava café.
Quando o cliente se levantou e pagou a conta, e se foi, Orson viu que era a hora. Se levantou bem devagar, e olhou mais uma vez a garota, que guardava o dinheiro no caixa.
Ele andou em passos lentos até o balcão. Silêncio. Só se ouvia o rádio em volume baixo fora de sintonia, e um barulho leve, que o longo sobretudo de Orson fazia conforme ele andava no meio das mesas e cadeiras. Era o barulho de seu andar. Leve. E o relógio tocava agora num pequeno eco em sua cabeça.





11 - Os anos 80

Na estrada, àquela hora, havia muito poucos carros. Domingo, alta madrugada. A paisagem vista quando se está na estrada nunca deixa de ser atraente e muitas vezes serena, e nesta, particularmente, a bela visão tinha seus morros cortados pela pista e outros morros extremamente distantes, no último plano do horizonte, que se tornavam azuis devido à distância e à neblina. Era o azul mais agradável, mais desejado da paisagem.
E a sensação era ainda mais distinta por ser ainda muito cedo, não tendo o sol ainda nascido e estando o céu com uma cor ainda escura, porém tomando outras tonalidades mais claras ao se aproximar da região onde dali a algumas horas o sol nasceria.
Todos estes elementos criavam inegavelmente um clima, um ambiente inconfundível que tinha cheiro de manhã, de aurora, de início, de renascer, de recomeçar... certa serenidade. Este era um horário extremamente livre, tranqüilo, melhor até mesmo do que o horário que viria em seguida, quando o sol estivesse brilhando.
Para quem dirigia de carro na estrada, indo a uma velocidade rápida, devido ao pouco movimento, a sensação era esta. A paisagem ao seu redor corria como um raio, como se o vento empurrasse com força colossal toda a natureza, todo o céu que havia passado. Como se essa paisagem fosse ficando para o passado, cada vez mais distante, até ser esquecida completamente por quem a viu.
Praticamente todas as pessoas que estavam a esta hora na estrada estavam fazendo o que faziam todos os dias: ir trabalhar. Árdua atividade, sendo que era este um Domingo, e tinham que pegar a estrada de madrugada diariamente para trabalhar. Há algumas exceções, é claro, como um certo carro cinza escuro que dirigia no sentido contrário da maioria dos outros veículos. Ia a uma velocidade relativamente alta. Voltavam.
Todos eles com aparências cansadas, alguns mortos de cansaço, esgotados. Cansados após grandes momentos. Pois aquela era a volta. O retorno. O fim. Fim da festa, fim da diversão.
Wilson dirigia, pois era o único que ainda não dormia sentado. O mais sóbrio. Os amigos cochilavam.
Agora iam para casa arcar com as conseqüências. Porque a ilusão era sempre assim. Quando acabava... tinham que agüentar a vida real. E se a vida real não era boa... eles sofriam.






- Ficou sabendo do assalto? – perguntou Wilson, com alguns pacotes nos braços, enquanto fechava a porta do apartamento.
- Que assalto? – Orson estava distraído olhando pra TV, deitado no sofá da sala de estar.
Aquela era uma hora da manhã em que ainda não há sequer o som dos carros vindos da rua. E principalmente por estas pessoas estarem num prédio, era que o silêncio era maior e mais agradável ainda. Era o oitavo andar. O sol estava nascendo, e uma fraca luminosidade já batia na sala, sobre o sofá onde Orson se deitava, debaixo de lençóis.
- O assalto no aeroporto em Brasília... o seu Zé tava me falando lá embaixo... ei, você não dormiu não? – Wilson deixou as compras sobre a mesa da sala de jantar, e veio falar com Orson em seguida.
- Não sei de assalto algum... eu sei é da minha dor de cabeça, a dor que eu senti a madrugada inteira, acordado...
- Por que não toma remédio?
- Não gosto, você sabe – respondeu Orson, meio antipático – Pô... fiquei a madrugada inteira vendo essa joça de filme...
- Que filme é? – Wilson prestava atenção na TV.
- “Doutor Jivago”... odeio esse filme.
- O Pablo ainda tá dormindo que nem uma pedra – comentou Wilson, apontando a outra pessoa deitada no chão da sala, num colchão.
- E roncando, também – disse Orson, impaciente – Você comprou a champanhe?
- Comprei – respondeu Wilson.
Os dois se levantaram e foram até a cozinha, ao lado da sala de jantar. Esta era uma continuação da sala de estar, separada por dois degraus bem baixos e cobertos por um carpete bege que cobria toda a sala.
A cozinha tinha um ambiente agradável, em tons bem claros, e era muito limpa, também. Orson pegou o bule de café no fogão e encheu uma xícara. Wilson observava.
- O que achou de ontem? – perguntou, subitamente.
- Como assim? – Orson estava pensativo – Ontem?
- É... você sabe... tudo aquilo... – Wilson fez um gesto abrangente com os braços.
- Eu não acho nada – respondeu Orson, indiferente, porém com uma expressão um pouco tensa no rosto.
- Como não? Você tem que ter uma opinião sobre aquilo tudo... quer dizer, eu tenho uma... minha opinião é que ontem eu comecei a ver as coisas um pouco diferente...
- Como assim?
- A festa foi um tremendo choque pra mim... pra nós... as pessoas estavam diferentes...
- Eu sei o que você quer dizer – Orson resolveu se abrir com o amigo.
- Diferentes de uma forma especial, e o impacto foi estranho, foi marcante, não sei...
- É... eu nunca vou esquecer os tempos de anos atrás, aquelas pessoas... – disse Orson, abrindo a geladeira e pegando uma garrafa.
- Você não vai beber isso agora, vai? – impressionou-se Wilson.
- Vou sim, qual o problema? – Orson tinha uma garrafa de licor na mão, com a qual encheu um copo na pia – É minha forma de retribuir à vida pelo que acontece às vezes... você entendeu...
Eles voltaram à sala, e na televisão passava o jornal da manhã, onde anunciavam o recente assalto ao aeroporto de Brasília.
Eles prestaram atenção.
- Oito assaltantes, portando armas, levaram ontem, no aeroporto de Brasília, 61 kg do ouro que se encontrava dentro de um avião da VASP antes de sua decolagem – dizia a voz da jornalista – Eles chegaram em uma pick up, às oito horas da noite, e se aproximaram do avião que aguardava o momento da decolagem, já com seus passageiros. Minutos antes o ouro tinha sido colocado no avião por uma combe, havendo ali ao todo 90 kg em ouro. Eles atiraram no avião, e um dos tiros atingiu a parte da asa onde se localiza o tanque de combustível. Dois deles desceram e pegaram o ouro, fugindo em seguida, e deixando cair, na pista de vôo, 23 kg do ouro. A operação toda não levou mais do que quatro minutos, e três dos assaltantes ainda não foram pegos e nem identificados. O resto foi preso no ato. A polícia diz que se trata de um ato profissional e que os bandidos possuíam informações muito privilegiadas sobre o vôo e o ouro que seria transportado. Assim, já se fala em um possível envolvimento de funcionários da segurança do aeroporto no assalto. Voltaremos a informar qualquer progresso nas investigações. E a bolsa de Nova York fechou ontem com...
- Sabe qual é o problema da nossa polícia? – disse Wilson.
- Não. Qual o problema da nossa polícia? – repetiu Orson.
- É que ela não sabe usar a inteligência lógica na solução dos crimes... é uma polícia precária, sem recursos e sagacidade...
O outro não respondeu nada. Em seguida Pablo acordou.
- Que horas são? – disse ele, sonolento.
- Sete e meia.
- Nossa, que cedo... ai, minha cabeça!
- Você também, Pablo? – disse Wilson – O Orson também tá assim...
- É claro! – Pablo se levantou no colchão – Quem não ficaria assim, depois daquela merda toda? E você não vem me dizer que não bebeu, Wilson, porque eu vi!
- Claro que bebi... mas conheço meus limites – disse Wilson, lançando um olhar impertinente sobre Orson.
- Quero que se danem, os limites – respondeu Orson.
Pablo pegou um violão encostado num canto próximo à TV e se sentou no colchão novamente, tocando qualquer coisa.
Ele tocou uma música muito bonita que o grupo conhecia dos velhos tempos. Muito tempo atrás. Todos conheciam. Já tinham tocado aquela música no violão centenas de vezes... há muito tempo. Não lembravam nem de quem era a autoria... mas a canção despertou um sentimento forte neles, algo inexplicável, que fez as recordações virem à tona na cabeça de cada um.
- Será que é melhor chamar o Vítor? – disse Wilson, em certo momento, para quebrar o efeito que aquela música havia lhe trazido.
- Não sei... não, deixa que ele já acorda – respondeu Orson – A casa é dele, deixa o cara dormir...
- Eu sei, só perguntei porque achei que a gente precisava conversar sobre ontem...
- Desencana – disse Orson, rindo de Wilson.
Pablo se levantou, com dificuldade, devido à perna manca, e foi até uma mesinha no outro canto da sala, cheia de garrafas.
- Preciso de um drinque.
Wilson bateu a palma da mão na própria coxa, inconformado:
- Olha aí... cês dois não aprendem... são iguaizinhos...
- Foi no mercado, Wilson? – disse Pablo, tomando seu uísque.
- Fui, e preciso ir pegar uns negócios na casa do Júlio. Quem vai comigo?
- Espera aí... deixa a gente acordar direito... – disse Pablo – Pô, não sei como você consegue arranjar ânimo pra sair tão cedo assim, ir no mercado... peraí... Júlio, que Júlio?
- O de ontem, na festa. Ele só ficou um tempo, ele tava com um problema. Vou ter que pegar uns papéis com ele, hoje – disse Wilson.
- Ah, tá.
Na entrada da sala de jantar, vindo do corredor, apareceu Vítor, dono do apartamento. Vestia o smoking da noite anterior, pois mal conseguira chegar em casa de pé, na madrugada. Estava abatido, com olheiras, parecendo muito mal. O smoking todo surrado, sem a gravata, e o cabelo revirado. Passou as mãos no rosto, e disse:
- Caramba... eu acho que vou morrer...
- Olha aí, Wilson... depois fala que é a gente... – replicou Orson – Só você não está num estado deplorável.
- Tá tudo bem, Vítor? – perguntou Wilson, se levantando.
Vítor não respondeu, pois saiu apressado da sala, indo para o banheiro, de onde se ouviu, segundos depois, o som do vômito saindo. Pablo fez cara de desgosto, ficou arrepiado com os urros e barulhos que vinham do banheiro.
- Ah, ele está muito bem – disse Pablo, em tom irônico.
Depois de um tempo Vítor voltou para a sala, com as mãos na cabeça, e se jogou no sofá.
- O cara dormiu de smoking – disse Wilson.
- Eu também – disse Orson, que ainda vestia a roupa da festa, porém sem o paletó. Os outros, Wilson e Pablo, estavam de camiseta e bermuda. Wilson resolveu falar:
- Eu sei que vocês não estão bem... estão de ressaca... – em seguida se levantou novamente - ... mas eu acho que devíamos trocar uma idéia, pelo menos... sobre a festa de ontem. O que acham?
- Eu acho que aquelas galinhas estavam insuportáveis... quase todo mundo da nossa velha turma virou idiota... ou vadia... – disse Pablo, revoltado, ainda deitado no colchão.
- Pra mim chega, viu? – disse Vítor, absorto – Não quero mais saber desses encontros... festas... nada disso... pra mim, acabou ontem, e... e eu preferia nem ter ido, preferia nem ter conhecido aquelas pessoas... quer dizer, pensem comigo... não há problema algum naquilo tudo, é claro, pois pouco importa o caminho que cada um toma na vida... eles não são nossos parentes, somente velhos amigos... e, de certa forma, não temos nada que se intrometer nas vidas deles...
- Eu sei o que você tá dizendo – disse Wilson – Quer dizer que, apesar disso tudo... ainda são o velho pessoal de sempre... dos velhos tempos... e sentimos desgosto em ver algumas coisas...
- O que estamos fazendo, pessoal? – disse Orson, inconformado – Estamos criticando aquelas pessoas, como se fossemos o que, santos? Escoteiros? Pensem um pouco... a vida deles não é pior do que a nossa... não estou falando de dinheiro, é de aproveitamento de vida, em geral... olha pros nossos hábitos, nossos costumes!
- Eu sei, cara, eu sei! – respondeu Pablo – Você tá certo, mas tem uma coisa: a gente só tá falando que aquilo nos deixou deprimidos, sei lá, desanimados, porque, veja só, a gente meio que perde a esperança ao ver que ninguém ali é uma grande personalidade... pessoas em quem a gente apostava tudo, botava a maior fé nos tempos do grupo... estão como a gente, entendeu? Ninguém é grande ali... ninguém cresceu ainda, entendeu agora?!
Ficaram em silêncio, todos muito pensativos. O sol nascia, naquela manhã limpa, e trazia um ar puro, uma claridade renovadora, para servir de consolo aos pensamentos e temas que assolavam as mentes perturbadas.





A campainha tocou furiosamente no apartamento mais tarde, quando eram umas dez horas da manhã. Wilson tinha ido com Pablo até a casa do tal Júlio, resolver uns negócios.
Vítor, o dono do apartamento, e Orson, estavam jogando bilhar na sala de jogos. O apartamento era enorme, e luxuoso.
- Nossa, quem é o louco tocando a campainha assim? – disse Vítor, errando sua jogada. Largou o taco, olhou para Orson e correu até a sala. O outro foi atrás.
Abriram a porta para um casal em desespero, conhecido deles. Entraram.
- O que aconteceu com vocês?! – gritou Vítor. Se engasgou ao ver o estado dos dois. Um homem e uma mulher, velhos amigos.
- A gente não tá bem – respondeu o homem, caindo em cima do sofá. Ele era da idade de Vítor, tinha uns quarenta anos, e a mulher era um pouco mais nova. Ele estava todo amarrotado, tonto, mal podendo se manter em pé, e ela, sempre abraçada a ele, chorando.
- Vocês tão drogados? Hein?! Parecem dois marginais, sabiam? – disse Orson.
- Tamos sim! – gritou a moça – Como se vocês não fossem drogados, seus hipócritas... como se ontem não tivessem cheirado nem uma carreirinha de pó, né?!
- Calma, Wilma – disse o homem.
- O assalto! Nós estávamos no assalto! Ai... meu Deus... – chorava a moça, também vestida com roupas velhas.
- Esperem – disse Vítor – Vocês vão explicar isso direito. Que assalto? Vocês estavam na festa, ontem... como...
- Eu já falo... – respondeu o homem – Só preciso de um cigarro... um pouco de água...
Eles se recuperaram do pânico. Sentaram-se, foram acalmados por Orson e Vítor, fumaram um pouco e depois resolveram falar. Ela era uma mulher muito bonita, ruiva, com lindos olhos azuis. Wilma. Ele, seu namorado, ou noivo, nem eles mesmos sabiam ao certo. Ele se chamava Jefferson, era alto, excessivamente magro, e um homem muito agitado.
- Nós fomos à festa, ontem, você nos viu lá – disse Jefferson, ofegante – Ficamos um tempo. O pessoal tava enchendo o saco, o velho pessoal tava um saco... eu e a Wilma resolvemos sair. Eles ficavam falando que a gente era os inúteis, os merdas do grupo, quer dizer, não diziam isso realmente, mas... por exemplo, durante o jantar, eles davam várias indiretas, você sabe, como se a gente fosse os únicos podres por ali. Vocês mesmos estavam doidos! Vocês, o Pablo... todo mundo! Eu vi, vocês beberam como nunca, éramos o grupo mais animado da noite!
- Eu sei disso – disse Vítor, meio seco.
- Claro... mas eu não estou criticando ninguém, longe de mim querer falar de alguém do grupo... eu acho muito legal a gente estar juntos daquele jeito, falando merda e relembrando os velhos tempos... afinal, foi pra isso que o Tony e a irmã dele deram a festa. Tinham várias pessoas desconhecidas por ali, amigos deles... mas eu tenho certeza que o Tony ainda é um de nós, e fez tudo aquilo pra ver se conseguia reunir novamente o grupo...
- Ah, não fala besteira, Jefferson... – disse a moça, que parara de chorar – Essa é boa! Pensar que o grupo ainda vai voltar a se dar bem de novo... aquilo acabou, acabou! Aquelas piranhas que se dizem nossas amigas não estão nem aí pra nenhum de nós... é assim mesmo, as pessoas esquecem o que já foram. Falaram da gente, mas estão piores. Vocês viram a Cíntia? É a maior galinha da cidade, agora...
- Calma. Eu vi a Cíntia, ela tá com vários problemas – disse Vítor, em tom pacífico – Ela falou comigo ontem. Tá mal pra caramba.
- Mal! Ela faz isso porque quer! – continuou Wilma, revoltada – Fica correndo atrás dos milionários só pra depois eles chutarem ela na bunda!
- Calma, Wilma – disse Jefferson, beijando-a.
- Bom, e o que aconteceu depois? – perguntou Orson, interrompendo a briga que começava.
- Depois... – retomou Jefferson - ... a gente se afastou, já pronto pra ir embora daquela festa ridícula. Os ânimos estavam quentes, a Cíntia, a Fernanda e a Wilma estavam prestes a se pegar.
- O cacete – retrucou Wilma.
- Aí a gente encontrou, na entrada, o Romeu, chegando na festa. Ele falou com a gente, a gente não se via há muitos anos. Depois de uma rápida conversa, ele levou a gente até um grupo de amigos. Fomos lá, e alguns já eram conhecidos, que antigamente andavam com a gente na propriedade. Lembram? Nelson, Álvaro, Clarissa...
- Lembro – respondeu Vítor.
- E a gente começou a falar sobre um projeto que eles tinham. Um projeto já pensado e planejado... que ia ser feito ontem mesmo, na madrugada. Um golpe – disse Jefferson, meio encabulado – E perguntou se a gente queria participar.
- Não enrola, Jefferson – disse Wilma – Diz logo que a gente foi e se fodeu.
- Vocês participaram de que golpe? Que golpe é esse? – perguntou Orson, espantado.
- Calma. Vou falar – disse Jefferson – Era um assalto.
- Meu Deus, me diga que é mentira! Vocês não fizeram isso, não... – gritou Vítor, andando pela sala rapidamente.
- Vou ser sincero com vocês – continuou o outro – Nós fomos porque precisávamos, nos sentíamos péssimos por ter ido àquela festa, visto aquelas pessoas e ouvido aquelas besteiras. Precisávamos de uma compensação, e... eles disseram que haveria muito dinheiro envolvido.
- Que golpe?! – repetiu Orson, já esperando pelo pior – Fala, que assalto foi esse?!
- O do aeroporto em Brasília. 61 kg de ouro.





- Seus inconseqüentes! Não pensam no que fazem? – berrava Vítor, em seu apartamento, mais tenso do que nunca.
- Fomos pegos. É a verdade. Primeiro deixamos cair uma parte do ouro, quando fugíamos pela pista de vôo – explicava Jefferson, também nervoso.
- Assaltantes? É isso o que vocês são agora? Hein? – dizia o dono do apartamento, bebendo uísque – Eu não posso acreditar nisso, ainda... olha o que vocês viraram!
- Eu não tenho culpa, cara! – gritou Jefferson, dando um pulo. Estava paranóico – A gente não sabia o que fazer! A gente tava sem dinheiro! Agimos por instinto! Será que é tão difícil de entender?! Nem nós e nem os caras do Romeu somos assaltantes!
- Resolvemos entrar nessa porque não víamos outra saída – explicou Wilma.
- E como fica, agora? Os outros foram pegos? – perguntou Orson, preocupado.
- Calma. Foram. Alguns foram pegos, inclusive o Romeu. O Nelson morreu. A polícia descarregou nele, porque ele ficou pra trás. Nós fugimos, e o Álvaro também. Foi pra casa de uma amiga. Nós chegamos de Brasília faz meia hora. Passamos no clube antes de vir pra cá.
- E ficaram doidões – completou Vítor, sarcástico.
Eles não responderam nada. Depois Orson disse:
- E a polícia não está atrás de vocês? Como fica isso?
- Não, achamos que despistamos a polícia, porque conseguimos chegar rápido ao aeroporto pra voltar pro Rio.
- Eles podem ter seguido vocês até aqui. Os tiras – disse Orson.
- Não quero saber. Não estamos nem aí, pra falar a verdade. Somos tão inúteis, tão podres com essa vida miserável... – dizia Wilma.
- Calma, vocês dois. O negócio agora é resolver isso. Onde está o Álvaro?
- Na casa de uma amiga. Ele falou que ia se encontrar com a gente depois... nossa, foi tudo tão corrido... ainda não estou acreditando nisso tudo... – Wilma baixou a cabeça entre as mãos, respirando fundo.
- Mataram alguém? – perguntou, de repente, Vítor.
Ninguém respondeu.
- Mataram? – repetiu ele.
Jefferson olhou para Wilma rapidamente, e resolveu falar:
- Matamos.
- Era tira? – perguntou Vítor, de pé e braços cruzados, e com um olhar pertinente.
Jefferson não respondeu, olhou para baixo.
- Era um tira? – disse Vítor novamente.
- Não.
- Era um passageiro inocente? – continuou Vítor, de propósito.
- Era.
- E você o matou?
- Matei.
Silêncio.
Era difícil encontrar palavras para explicar quão doloroso era ter esta visão feia e decaída dos velhos amigos de sempre. Como expressar que não era isso o que todos queriam para suas vidas? Mas era assim que eles eram agora. O grupo se tornou aquilo que eles viam agora. E ninguém mais tinha forças ou razão para continuar criticando o outro. Acusarem-se uns aos outros era ridículo.
Eles permaneceram muito tempo pensando em mil coisas naquela sala do apartamento, sem poder agir ou falar. Na mente de todos, vinham imagens fortes porém apagadas de épocas passadas. Anos do passado que pareciam nem ter existido, lembranças infinitas, momentos e épocas diferentes da de hoje.
Cada um se via em seus anos de juventude, naquela velha propriedade rural, naquela mesma vida que partilhavam, aqueles encontros e desencontros com a cidade grande.
Um dos encontros com a cidade grande tinha sido vital, e eles sabiam disso. A certeza estava presente em suas cabeças. Mas admitir era outra coisa. Mais difícil. Admitir que aquilo, e outras coisas, mudaram totalmente seus pensamentos, seus objetivos e, no final, suas vidas.
De quem era a culpa?
Seria muito fácil dizer que a culpa era do mundo, e toda essa história... mas era mesmo? Talvez fosse.
Mas era difícil refletir se a culpa não era deles mesmos... porque talvez fosse.
Orson pensava em tudo isso com uma angústia no peito. Aquele grupo era a única coisa que tinha nessa maldita vida. E era um grupo desunido, estragado, podre. Sem muitos sonhos na cabeça. Na verdade os sonhos eram diferentes. Tinha mudado muita coisa.
Ele sempre fora o mais revoltado, e todos admitiam isso. Enquanto muitos se mostravam pacíficos e relaxados em suas tranqüilas existências, ele não tinha esse comodismo de simplesmente “viver”.
Para ele o homem tinha que levantar de supetão, andar... andar... e continuar andando. Só assim se fazia alguma coisa. Ele era revoltado com o errado. Era contra o desigual. Era incomodado com o mal.
Mas agora ele mesmo era quem fazia o errado e o desigual... e ele mesmo, de certa forma... era o mal.
Tantas manifestações de revolta para com o mundo... se ele voltasse ao passado, agora, e encontrasse a si mesmo mais jovem, com aqueles pensamentos... seria criticado por sua cópia. Criticaria a si mesmo, pois tinha mudado e isso o magoava. Aquele grupo de pessoas o magoava.





Foram todos acordados subitamente pela fala de Vítor:
- Muito bem, gente. Eu vou propor que a gente se reúna logo na casa da Janis. O que acham?
- Pode ser. Acho que é apropriado – respondeu Jefferson sem ânimo algum, ainda com o olhar caído.
- A Janis, puxa vida... – refletiu Wilma – É, sem dúvida, tem que ser na casa da Janis. Quem mais se manteve alinhada por todos estes anos?
- É verdade. Não vejo ela há muito tempo – disse Jefferson – Lembram-se dela antigamente? Com aquele jeito todo liberal. E desencanada. Um anjo.
- Pois é. Eu tenho falado com ela, e... – disse Vítor, ponderativo - ... bem, ela me fala que procura se manter certa na vida, e jura que se esforça pra manter o grupo como antes. Mas não consegue, infelizmente. Ontem na festa ela ficou calada. Não podia conter os outros. Ela sabia que todo mundo queria mesmo era acabar um com o outro, então... que chances teria?
Orson não dizia nada. Se afastou um pouco do grupo, indo até a adega.
Eles se calaram.
Vítor e Jefferson foram até a cozinha tomar café.
Wilma se viu só com Orson, e viu que precisava dizer algo. Ele meditava.
- Ei, Orson... – começou ela – Vem cá, amigo.
Ele veio lentamente até o sofá onde ela estava, e pôs a mão no ombro dela. Ela pegou a mão dele e olhou em seus olhos.
- Que foi, “Louco”? – disse ela, sorrindo. Ele estava sério, tentava tirar a mão da dela. Não respondeu – Anda, me fala, você falou com a Janis ontem?
Ele arrancou a mão da dela, deu as costas e se afastou sem dizer uma palavra. Ela se sentiu mal por ter aberto a boca.
Ele foi até o quarto de Vítor, pegou suas coisas, vestiu o casaco. Foi até uma caixa de papelão no chão.
Ultimamente todos eles estavam em decadência. Orson e Pablo já planejavam se mudar para o apartamento de Vítor. Morar com o amigo, pois não tinham estabilidade, estavam desempregados e Vítor era o único com um apartamento grande, bonito e acolhedor.
Nos últimos dias estiveram eles vendo todas estas coisas da mudança. Orson tinha trazido suas coisas nas caixas. Depois Pablo viria. Tinham quartos de sobra.
Na verdade Orson sabia que Vítor tinha só aquele apartamento na vida. O pouco que tinha conseguido lucrar nestes anos foi empregado em coisas como esta. E os carros. Quadros, mobília, anéis para as namoradas. Mas no fundo era pobre. Estava endividado com diversos cafetões do cento da cidade, e Orson ficou sabendo disso.
Por isso Vítor bebia tanto. Fazia sentido.
Vítor estava a ponto de largar tudo e se matar. Mas não queria e não podia deixar transparecer para os conhecidos a situação precária. Por isso pagava tudo, acumulava mais dívidas, comprava coisas novas, se desgastava. Não daria o braço a torcer. Não era o tipo de cara que dá uma de coitado e pede ajuda aos amigos. Pelo contrário. Convidou os dois amigos em dificuldades para vir viver com ele. Ele bancaria tudo. Até que arranjassem emprego.
E Orson concordou, pois se viu sem outra alternativa. Será que era a esse tipo de coisa que Jefferson e Wilma se referiam? À falta de alternativas. Teriam se sentido como Orson antes de participar do maldito assalto?
Orson ajeitou umas coisas nas caixas, e achou sua caixa de velharias. Muitas coisas. Nem se atrevia a começar a mexer naquilo, não agora. Pois não agüentaria. As lembranças seriam fortes. Mas achou uma folha de papel muito velha, já amarelada e amassada. Dobrada. Ele nem precisou desdobrar, pois já sabia o que era. E como não saberia?
Colocou o papel no bolso do sobretudo, pegou as chaves e saiu do quarto.
Passou pela sala onde Wilma estava, e somente olhou para ela com um brilho nos olhos. Ela estava com o violão apoiado nas pernas, brincando de tocar. Ele só olhou. Pediu desculpas com os olhos, pela atitude brusca de minutos atrás. Ela retribuiu amigavelmente, sorrindo e baixando o olhar, conformada. Também devia desculpas por falar no que não devia, na hora errada.
Ele se virou, foi até a cozinha e deixou o apartamento. Caminharia.





Na rua, Orson podia pensar e agir como quisesse. Era melhor.
Se sentiu aliviado andando pelas ruas ensolaradas, na hora do almoço. Muito movimento. Distraía.
Entrou num café, o mesmo café que ele freqüentou nos últimos sete anos, em suas andanças pela cidade. Sentou-se perto da janela. E começou a ler o papel que trouxera no bolso.
Era uma carta.
Ele sentia a mesma coisa toda vez que relia aquelas frases. Emoção. Angústia.
A carta era assim:


“Meu querido Louco

Tenho boas notícias. Estamos nos dando bem aqui na fazenda, as coisas estão muito legais por aqui. Por exemplo, o Loiro continua naquele jeitão dele. Só que agora fica trabalhando na plantação. Todo mundo trabalha.
É uma pena que eles tenham separado a gente, eu sinto muitas saudades. Principalmente à noite.
Mas isso passa. Eles já nos disseram que logo não precisaremos mais ficar afastados. Sabemos que você foi mandado pra cidade agora, mas... logo poderemos ficar juntos de novo, o melhor é desencanar.
É que nem o Sr. Moura, parceiro Mascarenhas, estava me explicando outro dia: se produzirmos bastante nestes meses, vamos ficar, como posso explicar... estáveis, vamos melhorar. E aí poderemos todos ficar aqui na fazenda. Isso é o máximo, vamos ficar numa boa.
Acho que são gente boa, esses caras aí do pessoal da cidade, e da firma, e tal...
Nós não fazemos mais as fogueiras, mas temos vontade. Saudades de antes, quando a gente ficava com o pessoal todo junto à noite, até de madrugada, cantando, tocando... não fazemos porque ficamos muito cansados no fim do dia... e desanimamos. Dormimos pra acordar cedo no dia seguinte e fazer tudo de novo.
Acho que o esforço é por uma boa causa.
Quanto à erva, não tenho fumado muito, também por causa do trabalho. Sempre nos mantendo ocupados. Não temos condições de andar pela propriedade pra lá e pra cá se estivermos chapados. Mas tudo bem, isso passa. Eu penso em você todos os dias, sei que tudo está indo bem aqui e aí na empresa, e sei que tudo vai ser bom pra gente com esse trabalho.
Não vejo a hora de nos encontrarmos de novo esse mês, no próximo Sábado, pra gente ouvir a nossa música, meu querido Louco.
Vê se escreve pra mim também. Paz e amor.


Sua querida Janis.”



Orson foi interrompido em sua leitura pela garçonete que vinha lhe perguntar o que queria.
Ele olhou no rosto dela, e por uns instantes não pôde responder. Meio que hipnotizado, viu algo em seu rosto que era familiar. Não acreditava no que via. A garçonete... era tão parecida com... mas não era, não poderia ser, nunca.
Acordou de suas meditações e percebeu que ela ainda esperava. Não se parecia com ninguém. Não mesmo.
Era a imaginação de Orson, interferindo. Estivera pensando muito no passado.
- Me desculpe – disse ele, confuso – Hã... só um café, por favor.
Observou a garçonete se afastar, e ficou preso à sua imagem, sem saber o motivo. Precisava relaxar. Estava tenso.





À noite, a reunião se deu na casa de Janis. Todos eles foram. Vítor, querendo pôr ordem no grupo, querendo estabelecer as coisas. Wilson, que ainda poderia se dar por “exemplar”, se ofereceu para organizar o encontro. Tinha jeito para isso, mais do que Vítor, que era muito descontrolado.
Pablo, que não se preocupava nem um pouco com o grupo, e só com si mesmo, manteve-se calado, observando tudo.
Wilma e Jefferson, acanhados, não sabiam muito bem como agir perto dos outros, sendo que eram “criminosos”, agora.
Álvaro, que fugira no assalto, também foi. Os que ainda poderiam ser considerados companheiros foram. Outros, não. O pessoal que estava na festa, como o grupo de mulheres que no passado era unido ao resto do grupo, não compareceu. Chamados foram, mas já era de se esperar que não vissem nenhum sentido em ir. Tinham coisas melhores para fazer.
Outros amigos dos velhos tempos se reuniram, alguns desaparecidos há quinze anos.
Orson não teve coragem de ir.
Janis recebeu os amigos com prazer, porém com um pesar no rosto. Tristeza. Preparou drinques e os serviu na sala de estar, onde todos estavam.
Nenhum rosto ali parecia muito contente, ou satisfeito. O reencontro foi uma espécie de lembrança dos velhos tempos. Histórias foram contadas. Os fatos foram postos ali com sinceridade por alguns deles.
O assalto foi tratado com certo receio, e não se falou muito nisso.
Os momentos foram lembrados. Era diferente da festa. Ontem tinha sido desconfortável. Muitas pessoas com más intenções. Mas na casa de Janis ela soube controlar melhor os temperamentos. Se sentiu um pouco melhor.
Mas ela não deixava de pensar em Orson.
Em certo momento, quando alguns conversavam na sala, Janis foi até a cozinha por um momento. Pensativa.
Logo depois chegou Wilma, e veio falar com ela a sós.
Sorriam como duas velhas amigas, e se abraçaram.
- Quer falar sobre ontem? – perguntou Wilma.
- Talvez... o que quer falar? – disse Janis, um tanto desanimada.
- Hã... falou com Orson ontem?
- Não – respondeu a amiga, reservada.
- Ele pareceu pensativo hoje, quando estávamos no apartamento do Vítor. Falávamos de você, e... bom, ele estava esquisito – disse Wilma, delicada.
- Pois é – Janis não sabia se conseguiria se abrir com ela – Olha, Wilma, ele veio falar comigo na mesa ontem, durante a festa. Eu não quis falar com ele, e o ignorei.
- Por que não fala com ele? – perguntou Wilma – Tente escutar o Orson, eu acho que não tem nenhum problema.
- Wilma, você é quem não está entendendo... você não sabe direito o que... o que aconteceu com nós dois, nos últimos anos. Sabe quando uma relação sofre umas mudanças, e as pessoas agem sem pensar? Eu agi sem pensar, pra começar. Certo. Aí nos distanciamos. Principalmente por minha culpa. Coloquei umas idéias diferentes na cabeça, quis mudar... e isso não era legal pra nós dois. Ele não gostou. Agora éramos da cidade, cidadãos urbanos, eu trabalhando ainda na empresa, ele perdido por aí em crises existenciais. A cidade não prestava pra ele...
- Eu sei.
- Aí passamos um tempo sem nos ver, até que ele não agüentou e vinha toda hora atrás de mim. E eu sofrendo, porque na verdade nem sabia o que queria. Precisava pensar, pensar muito, mas não conseguia. Precisava viver, o tempo não parava, o tempo passou.
- Você se distanciou daquele tipo de vida que levávamos antes, eu sei – disse Wilma – Mas todos nós fizemos isso. E não tivemos culpa, Janis, acredite em mim. A culpa é das pessoas que nos envolveram nisso.
- Não é, Wilma, a culpa é nossa. Nós optamos pra ser assim. Todos. E o Orson não quis mudar. Pra ele o mundo era pra ser sempre aquilo. Aquela vida que tínhamos no passado. A liberdade, eu não sei, era algo de que ele precisava. Sempre. E comigo ao lado dele. Começou a me perder, me perder para o mundo... o “maldito mundo”... e eu sem saber direito se agia certo... fui consumida pela idéia da cidade, você sabe, as empresa, e tudo mais... deixei ele pra trás.
- Isso deixou ele muito mal, fez com que piorasse – disse Wilma.
- Exatamente. Ele ficou perdido no mundo. Se eu não queria mais ele, e o mundo em que ele vivia era supérfluo... não fazia sentido viver assim. Ele tentou se suicidar, me procurava sempre... e eu ignorando. Isso chegou no limite, e ele quase ficou louco. Me procurou, quis conversar e voltar comigo, à força. Isso me abalou. Isso me deixou mal com ele. Ele me forçou, abusou de mim contra minha vontade, nesta época.
- Eu não sabia disso – disse Wilma, um tanto assustada – Você nunca contou, me desculpe, Janis...
- Tudo bem, ninguém tem culpa... não disse nada, me fechei. Não queria ninguém interferindo. Não queria nem ver mais as pessoas do grupo. Nos distanciamos completamente. Os problemas do pessoal foram surgindo, e ninguém estava preocupado.
- Claro, Janis. Quem é que sempre se preocupou com o bem da gente? Quem? Você, é claro. Quando se afastou, todas as coisas ruins que já iam acontecer acabaram acontecendo mais depressa. Não é à toa que o Loiro se foi.
- Eu sei – disse Janis – O Loiro era meu melhor amigo. Eu parei de falar com ele, e quando fui reencontrar o coitado, foi no velório.
- Não diz isso, Janis... é pior, falando sério – Wilma pegou a mão da amiga, que se sentava na pequena mesa da cozinha.
- E depois... passei a desconfiar de todos nós... mantinha distância de Orson, nem ele me procurava mais. Senti tanta raiva do que acontecia, que ele acabou levando a culpa, acabei descontando tudo nele. Olha, pra ser sincera, de lá pra cá, quase não vi mais o Orson, quase não falei com ele... a não ser em festas, encontros... porque sabia que, apesar de perdoar ele pelo que fez comigo quando estava mal... apesar de ter quase esquecido dele... não queria me aproximar, pois tinha certeza que não poderia continuar com ele. Ele iria querer, ia aumentar a vontade de ficar comigo. E a minha vontade também, de voltar com ele. Nunca deixei de amar o Orson, sabia?
- Eu sei, querida.
- Iríamos sofrer se tentássemos voltar... é claro que poderíamos simplesmente sair e esquecer tudo, esquecer a cidade, a empresa... e sermos felizes. Mas eu estava mudada, e vi que não daria certo. Nós nunca sabemos pra onde ir, o que fazer, como continuar... e isso me perturbou todos estes anos. Ontem fui ver o Orson na festa, amargurado por dentro, mas se destruindo mesmo assim, aparentando estar feliz... afogando-se na bebida, e eu sabendo que era em grande parte por minha causa. E por causa do mundo que ele nunca teve do jeito que queria.
- Era um sonhador. Um pensador, não é mesmo? – disse Wilma, animando a amiga.
- É – respondeu Janis.
- E Doles? Se lembra dele? – perguntou Wilma, com um brilho nos olhos.
- Todos nós nos lembramos... como esquecer? Desde que ele morreu, na época do acordo com os malditos empresários... sempre me lembrei dele. Acho que ele não aprovaria nada do que fazemos hoje, se estivesse vivo. Mas acho que está sempre entre nós, realmente acho. E você?
- Tenho certeza – respondeu Wilma. Em seguida as duas se abraçaram fortemente por um longo momento.





A reunião continuava na casa. O mestre Doles foi lembrado diversas vezes. Eles falavam nele envergonhados, como se soubessem que Doles nunca aprovaria o que estava acontecendo por ali. Eles beberam um pouco, porém sem exageros.
Um grupo, entre eles, se destacava por seu passado. Álvaro, Nelson (que estava preso), Cíntia e Jaqueline formavam, nos anos sessenta, uma banda.
Quando foram para a cidade trabalhar, e quando aprenderam as manhas da produção artística, que os empresários musicais lhes ensinaram, formaram uma banda, pois sempre tocavam, desde bem jovens, na propriedade hippie.
Quando o resto do grupo foi trabalhar para Mascarenhas, na grande empresa da cidade, o grupo de Álvaro se afastou para formar esta banda. Era uma tentação, aquele glamour, todo o dinheiro prometido, a fama... passaram a sonhar com aquilo. Pois os empresários entrouxaram tudo isso na cabeça deles. E partiram para o sucesso, que nunca chegou realmente.
A história desta banda liderada por Álvaro é muito comum, na verdade, e o que não faltam são exemplos iguais. É uma história sobre a qual não adianta ficar-se enrolando muito, pois é curta.
A banda era uma jogatina, um bando de marionetes nas mãos dos empresários do meio musical. Isso mesmo. Estes lançaram os hippies cheios de estilo no mercado. Houve algum sucesso. Mas os integrantes eram mais vulneráveis às tentações do que a maioria dos artistas com histórias iguais.
Mais fáceis de se enganar, de serem enganados pela vida. A droga chegou, rapidamente, todos os tipos de droga. A vida é crua. Eles dilaceraram seus próprios corpos, nesta aventura musical. Os empresários até que se deram bem, no final. Mas eles não.
O que acontece é que o cara que sobe tão rápido assim na vida se ferra. Caras pobres ou miseráveis que, da noite para o dia, se tornam milionários com o sucesso. Está na TV, nos jornais, nas revistas, na boca do povo. Isso vale para artistas, atores e atrizes, músicos, esportistas, todos os ramos que envolvem a fama.
Os empresários gostam do sucesso, pois traz dinheiro. Mas traz mais dinheiro ainda para os próprios autores. No caso, a banda de Álvaro. Eles ficam loucos de tanta fama. Dinheiro. Carros, mulheres, casas, publicidade, tudo... tudo mesmo. Eles têm tudo, não há o que discutir.
Chega um momento em que eles se vêem tendo tudo e mais do que o que sempre quiseram. Eles têm mais do que o suficiente, o que nunca sonharam em ter. E acabou. Cadê a ambição? Cadê a vontade de continuar trabalhando? Foi pro brejo, acabou. Terminou, porque já se tem tudo. E da noite para o dia, isso é o mais importante. Tão rápido... ontem eu era miserável, hoje mando no mundo. Imagine então o caso dos hippies, que nem sonhavam que um dia seriam famosos. Eram os mais desligados e desencanados do mundo. Naquele conforto de quem não conhece a maldade, a cobiça, o dinheiro... não conhecem o verdadeiro mundo. Mas foram tirados de lá, foi o que aconteceu.
Drogas. A palavra é simples. Drogas pesadas pesando no cérebro como a culpa pesa num sujeito. É claro que existe também o cigarro, a bebida, o sexo que só o dinheiro pode comprar. É o vício da fama.
Morreram alguns. Viram que já tinham tudo. Mas não tinham as drogas, foram tê-las. Não tinham a morte, e foram encontrar. Cíntia, além de completamente drogada, é uma prostituta com dinheiro. Se acaba em sua vida miserável. O que seus velhos amigos viram na festa não foi nada. Ela faz pior.
Jaqueline morreu de overdose. Tomou, de propósito, grande quantidade de droga. Foi suicídio. Num hotel no Japão, durante uma turnê.
Nelson também estava na mesma situação. Só que como a banda agora nem existia mais, ficou pior ainda. Foram chutados, os empresários não precisavam mais deles. Nelson, com AIDS, virou assaltante, viveu dando golpes em bancos e aeroportos. No último foi pego.
Romeu também foi pego em seu último assalto. Era o líder.
Álvaro segue o mesmo caminho. É o único que está neste momento naquela reunião na casa de Janis. Da banda, é o único. Mas provavelmente da próxima vez já não estará presente. Juntar-se-á aos mortos.
O importante é notar que isso que ocorreu com a banda não é diferente do que fizeram com o resto dos hippies. Foi igual. Só que foram consumidos pelas grandes empresas, sempre de olho em um bando de almas puras e inocentes.






Aquele reencontro, depois de tanto tempo, era uma reunião de derrotados, de certa forma. Derrotados pela própria vida, talvez. Ou uma reunião de perdidos.
Janis sorriu. Se sentiu alegre depois de muito tempo. Mas talvez a felicidade não durasse muito.
Voltando à sala, encontrou os velhos rostos de sempre. Foi até um canto, e de lá observou. Aquele grupo não era mais seu. Não era de ninguém. O amor pela vida se fora, há muito tempo. Ela agora tinha que viver sua própria vida, e deixar levar.
Ficou em silêncio, em seu canto, só escutando as histórias contadas pelos derrotados.
Uma hora ela olhou pela janela da sala, e viu a noite. A fria noite, em sua escuridão pelas ruas. Um guarda passou de bicicleta, e apitou. O guarda-noturno.
Um minuto depois, viu outro vulto passando em frente à sua casa. Um pouco distante, perto do portão, estava um homem parado, com roupas escuras. Ela não identificou.
Ninguém prestava atenção nela, então ela se levantou e foi ver melhor.
Reconheceu. Como não reconheceria? Poderia deixar de reconhecer qualquer um neste mundo... mas não esta pessoa.
Orson.
Parado no frio, com as mãos nos bolsos do sobretudo escuro. Sempre assim. Não mais sonhador. O andarilho solitário, isso sim. A pose não era do libertino e boêmio Louco, e sim de Orson, o desiludido.
Ele ficou imóvel, olhava para ela. Ambos tinham vontade de se encontrar, se ouvir, se beijar. Mas não.
Não houve nenhuma troca de gestos. Ele se virou lentamente, ainda olhando pra ela, e sumiu de novo na noite. Se foi talvez pra sempre. E ela fechou a cortina.




12 – O fim, o começo...

Narrativa de Janis

Fiquei paralisada. O pano de prato na minha mão escorregou e foi ao chão. Não pude me abaixar para pegá-lo. Porque a emoção era forte. Eu vi ele chegar, esperar pelo homem que tomava café à minha frente. Ele estava esperando pra falar comigo, eu tinha certeza.
Depois, quando o cliente se foi, vi que ele se preparava para vir. Veio caminhando muito devagar, e pude perceber pela expressão dele uma mistura de frieza, a falta de emoção... e também uma excitação, um nervosismo, uma incerteza... sentimentos que eu compartilhava. Eu tremia.
Vi os olhos dele. Não tinham nenhum brilho. Não sei, parecia uma falta de esperança, falta de energia... falta de crença. Será que pra ele tudo estava acabado? Será que seu ânimo já tinha ido embora completamente, e agora ele já não tinha mais fé nenhuma? Era possível. Eu precisava saber. Eu também me sentia assim, mas acho que tinha conseguido manter alguma esperança dentro de mim... acho que, até aquele momento, não tinha despencado ainda... desistido.
Ele chegou no balcão.
Por alguns segundos, não falamos nada, só olhamos. Olhamos um no outro, um nos olhos do outro. Procurando respostas. Este pequeno instante foi mais profundo do que parece ser... para nós.
Acho que neste momento ele pôde ver em meus olhos que eu ainda conservava alguma vontade e alguma energia... tinha me mantido firme apesar de tanto tempo passado e tantas coisas que aconteceram... tenho certeza que ele me compreendeu naquele olhar.
E eu entendi o que os olhos dele me diziam. Diziam que ele tinha sofrido, e estava amargurado com a vida. Machucado. Ferido e revoltado, apagado. Descrente. Cético. A vida era um enigma para ele, e o passado o perseguia. Notei nele um grito interior abafado, um grito sufocado que dizia não saber para onde ir agora. Que tinha vontade de partir para o mais longe possível. Era aquela idéia louca da vida, de deixar a nossa cidade, encontrar outra, e lá construir vida nova, reconstruir o lar, as amizades, conhecer melhores oportunidades... e deixar para trás a vida passada, ignorar o que tinha acontecido e esquecer todas as pessoas que o faziam se lembrar daquela vida infeliz que tinha... porque nesta cidade ninguém o conheceria, ninguém poderia dizer quem era ele, o que tinha feito, quais eram seus crimes... e finalmente ele teria paz. Mas vi também que ele não tinha ainda conseguido chegar a este lugar... era cheio de dúvidas.
Mas agora estávamos juntos novamente, era quase um milagre. Não esperávamos nos encontrar novamente. Mas era bom. Me senti muito feliz quando soube que era ele. Sorri. Ele também sorriu, com aquele sorriso de sempre, que continuava o mesmo, apesar das rugas do tempo.
Sem dizer uma palavra, compreendemos que agora estávamos juntos e poderíamos, pelo menos, amar um ao outro. Neste mundo das dúvidas, poderíamos ficar juntos, e isso era o suficiente. Bastava. Nos amávamos.
Nós dois fingimos que não nos conhecíamos. Que era a primeira vez que nos víamos. Fingimos que não existia passado, nem outro mundo. O que importava era só aquele momento. O viajante e a garçonete. Que se apaixonam. E nada mais.
A única coisa que eu disse foi:
- Eu sabia que um dia você viria, Louco. Um dia precisava vir. Estão nos esperando, Louco. Vamos?
Não me lembro muito quem foi que tomou a iniciativa, mas sei que um impulso nos fez levantar as nossas mãos um ao outro e aperta-las fortemente. De mãos dadas, senti puro encanto percorrer o meu corpo, vi a felicidade se mostrar uma companheira, deixei uma lágrima escorrer sem querer e vi o rosto dele igualmente exultante de emoção. Ficaríamos juntos para sempre...
Depois, uma luz bem forte apareceu em volta, e fez a gente ir subindo no ar, abraçados, até o céu.


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