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Contos-->O Bate-papo -- 29/01/2003 - 00:59 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O Bate-papo

No bar, deram oito horas da noite. Muita bebida, música, mulheres e curtição. Era Sexta-feira, e o costumeiro grupo de seis ou sete se sentavam na mesma mesa de sempre, com o mesmo papo de sempre...

1 - Arnaldo Gentil Manha

Arnaldo botou sobre a mesa, chamando atenção, o copo de cerveja que acabara de esvaziar em um gole. Olhou em volta, com seus olhos vermelhos de tanto beber, e fez todos pararem com as piadas e a gritaria. Um grupo de mulheres que riam junto da mesa deles também se calou, e todos ouviram Arnaldo.


- Bem, camaradas, vou contar um episódio que ocorreu uma vez comigo quando tinha uns treze anos. Eu era o tal, como já contei várias vezes - neste momento ouve um breve suspiro por parte de todos os presentes - Eu dominava as garotas nos bailes, e dançava como ninguém.
Ele fez uma pausa e tomou mais um gole de cerveja.
- Bom... eu estudava junto com o Hércules aqui... - disse ele, pondo a mão sobre o ombro de um dos amigos de bar, que sorriu com seus dentes de cavalo.
- É isso mesmo... bons tempos - disse Hércules, com a voz de garça.
- É... então! Acontece que na nossa classe havia um sujeito muito peculiar... que estudou com a gente durante uns dez anos, certo, Hércules?
- É.
- Bom, a gente só sabia fazer farra, na época, assim como hoje - disse, orgulhoso, puxando o cinto da calça por cima da barriga - E um dos nossos maiores alvos de gozações era esse garoto, o... como era mesmo o nome?
- Quem? - perguntou Hércules, pensativo.
- O chinês...
- Ah, o chinês... era Liu Chan Chong Pan, o “Charlie Chan”.
- Isso mesmo! Pois acontece que ele era o sujeito mais estranho que eu já conheci... não só porque era chinês, entendem? Mas é que os hábitos e modo de vida do cara não eram normais. O Chong tinha um cabeção que devia pesar mais que o próprio Chong. E o Chong ficava andando de lá pra cá, pela escola, com a cabeça tombando pro lado, e fazendo ele andar todo torto, em zigue-zague. Quando ele andava com a gente, ou seja, eu o Hércules, o Marcão e o Tonny Bartoni, o chinês era um pé no saco! Imaginem só - disse Arnaldo, pondo o copo na mesa e fazendo gestos rápidos com as mãos - Ele ficava andando pra um lado... aí a gente deduzia que ele queria ir praquele lado; e aí a gente ia também... só que aí dava um lapso nele, por causa da cabeça; e ele vinha pra cima da gente, mudando de lado novamente! - disse Arnaldo, efusivamente, e provocando risos na roda - E isso bem quando a gente estava perto das garotas! Cara, vou te contar... ele ferrava tudo... e aí o Tonny Bartoni, de pavil curto, sempre dizia, puto da vida: “Chong Pan... Chani Chong...” ele nunca sabia o nome... “maldito Charlie Chan...! Anda direito, ô meu! Vê se adquire um pouco de coordenação, Charlie Chong!” e era sempre assim...
E vejam só: o chinês era o mais CDF da classe inteira! Só tirava dez e era da turma do gargarejo lá da frente. Gargarejo por causa dos pescoços tortos. Ficavam com a cabeça viradona, pra enxergar a lousa. Mas ele começou a andar junto com a gente... e aí a gente às vezes tinha que ligar pra casa dele... e era a coisa mais engraçada. A avó do maldito sempre atendia! Sempre mesmo! Eu me perguntava por que a família teimava em deixar o telefone na mão da velha, porque ela era totalmente esclerosada. Loucona. Pra começar, qualquer um que atendesse o telefone ia prejudicar a conversa, porque lá eles só falavam chinês! Resmungavam um “oi” em português, e até um “não”, também... mas eu realmente ficava puto no telefone. Você realmente tinha que fazer um enorme esforço e improvisar uma surpreendente capacidade dedutiva, e tentar descobrir o que eles queriam dizer com aquelas estranhas palavras... porque poderiam significar absolutamente qualquer coisa! Às vezes o pai dele atendia. Você perguntava se o Chong estava, e logo vinha o primeiro obstáculo, raramente ultrapassado. Ele dizia algo em chinês, que significava “qual deles”? E aí você ficava mudo, sem entender direito, porque lá dentro deveria haver pelo menos uns dez Liu Chongs! Eles, os chineses, têm esse negócio de nome e sobrenome de um jeito diferente: o que vem primeiro não é o nome da pessoa... é o sobrenome! Tanto que todos lá são Chongs! Maldito Charlie Chan. Isso sempre me deu muito o que pensar. Eu ficava imaginando se um dia a gente tivesse que ir até a casa dele, pra fazer um trabalho. E eu sempre achei que, quando tocássemos a campainha e chamássemos o Chong, dez Chongs apareceriam, um em cada canto, um na porta, um em cada janela, dois no terraço, e tudo com a mesma cara e o mesmo cabeção, e a gente ia tomar um puta susto. No telefone era difícil falar com ele, pois quando a avó atendia ela falava um monte de coisas enroladas, e aí você pedia para falar com ele, ela ficava muda, depois dizia: “Quê?!” e você repetia e ela “Quê?!” e aí qualquer um ficaria realmente puto. Depois fazia silêncio de novo e ela desligava na sua cara. Não dava pra saber o que eles falavam, porque aquelas palavras poderiam significar tanto “ele não está” quanto “espera aí, vou chamar”, ou “ele morreu”, ou até mesmo “você tem cara de peixe”.
Até que um dia a gente foi até a casa dele. Foi horrível. Na sala estavam uns sete chineses, tias, primos, avó, pai, mãe, etc. tudo falando alto e rindo à toa. No meio tinha um tio dele que me fez ficar rindo o dia inteiro, principalmente quando vi a cara dele. Ele era pequeno, com um óculos fundo de garrafa, chinelos com meia e uma cara muito bizarra, uma mistura de rato com morcego. Eu me caguei de rir, escondendo a cara com a mão. E, inesperadamente, todos na sala começaram a peidar sem limites e sem nenhuma delicadeza. Eles bufavam a toda hora... Bufavam falando, bufavam comendo. O pai dele bufava enquanto brigava com ele, e a mãe dele bufava sempre que achava graça de algo. E eu não agüentei e me sentei num canto, sofrendo ataques de riso e de ânsias de vômito. Logo percebi que era comum para eles soltar gases à toa, no meio de outras pessoas. Vi um casal numa poltrona. A prima do Chong e seu namorado. Eles se beijavam calorosamente, e peidavam juntos enquanto se amavam...


Todos na mesa riam, agitados, e Arnaldo se virou para o balcão, que estava longe da mesa, e gritou:
- Estou querendo ser servido aqui, camarada! A cerva acabou...


Tadeu Jones

O papo fluía solto e animado, entre os presentes, e Arnaldo comentou com Hércules:
- Eram bons tempos aqueles...
Tadeu, outro dos parceiros, puxou conversa com Arnaldo:
- Ê, Arnaldão! Sempre se embebedando sem nenhum limite... não sabe tomar uma cerveja sem se exaltar, hein? Você não muda, cara. Lembra da festa na casa do Omar? Você quase morreu aquele dia...
- Eu lembro, Tadeu... só que agora eu tenho uma nova filosofia de vida: sei qual é o meu limite. Quando chego ao meu limite, sei parar. A bebida faz bem se tomada na quantidade certa para cada indivíduo.
- Falou o estudioso Sr. Arnaldo Gentil Manha! - gritou Tadeu, levantando o copo.
- É, Tadeu, só que eu me lembro de uma outra festa em que o vexame ocorreu foi com você, e não com o Arnaldo - disse Hércules.
Tadeu ficou mudo por uns segundos, pensativo, depois teve um pequeno sobressalto e ficou vermelho. Olhou enfurecido para Hércules.
- Que festa? - meteu-se outro dos companheiros, Reinaldo, um grandalhão - Eu quero saber! O que aconteceu com ele?
- Cala a boca, Reinaldo - disse Tadeu, vermelho.
- Pode contar, pode contar! - disse uma das moças, já afetada pela bebida - O que o Tadeu andou aprontando?
- Vocês se lembram... - começou Hércules, mas foi interrompido por Tadeu:


- Peraí, já que é pra me zoar, deixa pelo menos eu mesmo contar a história - disse ele, e em seguida suspirou, continuando - Faz muito tempo, foi nos anos setenta, numa festa na casa de um amigo nosso que na época tinha muito dinheiro... ele dava festinhas na casa dele, toda semana, onde se via uma porção de pessoas interessadas em comer, beber, papear e mais algumas coisas... homens e mulheres... com uma situação econômica mais favorecida. Eram uns frescos, enjoados do dinheiro. Mas a gente ia, porque ele era nosso amigo. Lembrei o nome dele: Marcos.
Pois bem, a casa dele era enorme, muito chique mesmo! E a casa lotava nestas festas. Era uma espécie de churrasco, no terraço, e as pessoas ficavam pela casa toda, conversando, falando merda e quebrando copos de vidro deixados nas beiradas dos móveis. Já repararam como isso é uma espécie de regra nas festas e encontros em geral? Eu sempre sonhei, quando criança, com o Deus grego Pholia, ou, em romano, Festis Alegris, um Deus que rege as normas em uma festa. Os copos, por exemplo, têm de ser quebrados pelos desastrados. Eu sempre analiso este fato com o maior interesse possível. Tinha uma época em que eu ficava sentado nas festas observando atento os movimentos de todos os presentes para notar as causas, objetivos e conseqüências deste fato. Escrevi uma porção de relatórios. Eu estava ficando neurótico com o negócio dos copos. Só que eu logo percebi que não era bem assim: muitas vezes simplesmente o líquido era derramado de forma desastrosa num tapete. Isso, sim, era regra. Muitas vezes ocorre logo no início da festa. Ninguém gosta de ser o culpado, e muitas vezes tenta-se colocar a culpa numa outra pessoa que estava perto, de costas. Isso gera discordâncias e especulações dedutivas. Os não envolvidos até gostam do incidente. Ficam olhando, de longe, dando graças a Deus por não terem sido eles os cumpridores da regra. Sem refrigerante derramado não há festa boa. Sempre tem alguém que fica depois com a roupa melada, pois estava por perto. Pode ser o culpado, ou não. E naquela época eu tentava me controlar para não ficar esperando a hora fatal do copo. Não sei, mas quando a gente tem certeza que algo vai acontecer nos dá um negócio por dentro, uma agonia, algo indescritível... e tinha vezes que eu não agüentava esperar. Queria farrear com meus amigos, mas ficava lá, na cadeira, me torcendo todo. Cheguei então numa fase em que chegava na festa e não me continha: já ia logo derrubando eu mesmo o refrigerante, de propósito.
- Ahh... por isso que você foi internado alguns anos atrás! - disse Anita, mulher de Hércules, muito satisfeita.
- Isso mesmo, Anita. Como eu ia dizendo, tinha esta festa na casa do Marcos, e nesta todo mundo ia. Todo o pessoal da faculdade, do colegial, até velhos parceiros do primário. Professores, famílias completas e amigos meio desconhecidos (sub-amigos).
- Eu cheguei a ir nesta festa, Tadeu. Não era no Morumbi? - perguntou Marlene, uma das moças.
- Isso, era no Morumbi. Mas você se lembra do que aconteceu comigo?
- Não, Tadeu querido. Esqueceu que eu já bebia na época? Devo ter caído em algum canto.
- Bom, a festa estava boa... bebemos, comemos picanha, lingüiça, muita diversão. O Reinaldo estava tentando conquistar a Patrícia, quem se lembra?
- Eu me lembro dela. Ela morreu - disse Marlene.
- É... nós cantávamos, dançávamos, e jogamos alguns infelizes na piscina do Marcos. O Hércules tinha me dito que convidara uma loira chamada Amanda pra me conhecer no dia da festa. Ela ia chegar depois, e eu mal podia esperar! Eu estava na maior fossa, e precisava conhecer alguém diferente. Só que as coisas não acabaram muito bem. Vou explicar... um amigo meu, o Sandro, havia me pedido um grande favor antes da festa. Acontece que a ex-mulher dele ia estar na festa e ele odiava ela. Ela enchia o saco dele todo dia, tentando voltar com ele, mas ele não agüentava mais.
- Por que eles terminaram? - perguntou Marlene.
- Porque ela perdeu o nariz num acidente de moto. Então... nesta festa, o Sandro estava querendo se vingar dela e tentar afasta-la um pouco. E me pediu pra envenenar a Paula Patrícia.
- Paula Patrícia?!
- É. E eu fiquei indeciso, até que ele me ofereceu dinheiro em troca... e a oferta se tornou irrecusável! Eu concordei, mas só receberia o dinheiro depois que a coisa toda estivesse feita.
- Você ia matar a coitada?!
- Claro que não! Eu ia colocar, durante a festa, um remédio para o estômago num copo que ela usasse. O remédio era daqueles que faz a pessoa ir ao banheiro com mais rapidez e...
- Ta, nós já entendemos! - disse Patrícia, divertida.
- Isso mesmo. E então, a festa começou. A casa ficou lotada, a música tocava, havia uma banda contratada. E lá estávamos nós, metidos em nossos impecáveis smokings tropicais, bebendo, comendo e olhando as pessoas, e com um pensamento: “hoje a Paula Patrícia morre no banheiro”. E passado algum tempo, eu me preparei para entrar em ação. Puxa, vocês não imaginam como me senti: eu era o James Bond tropical numa noite de gala na Polônia, tentando infiltrar uma poderosa bomba no território inimigo... não só porque ia derrotar o inimigo, mas também porque, como nos filmes do Bond, eu tinha um mulheraço me esperando em algum lugar da festa. E dinheiro, também. O Sandro ia me pagar bem. Me aproximei de onde a feiosa estava, com o veneno na mão. Ela deixou o copo de champanhe em cima de uma grande mesa. Estudei o terreno, era hora de agir. Ninguém olhando, só o Sandro, de longe. Levei o braço até o copo, e puta que pariu! Neste exato momento ela espirrou, a maldita, fazendo um puta estrondo agudo! E pior: Com a pressão do espirro, ela foi pra trás com tudo e prendeu meu braço contra a mesa com a bunda dela! Tirei a mão rapidamente, mas é claro que a merda estava feita: todos olhavam, surpresos ou rindo, e o bendito copo... foi pro chão! Isso mesmo, eu ferrei tudo, e justo com o costumeiro desastre dos copos de festas! É claro que quando o copo se quebrou eu me senti aliviado, afinal, confirmei minha teoria das festas: “um copo sempre cai”. Mas a missão falhou. Ela ficou olhando pra mim, como se eu tivesse passado a mão na bunda dela, e justo nesta hora (ai de mim) chegou a musa que o Hércules ia me apresentar, a loira! Ela viu, e começou a rir. Caguei tudo. Me afastei, e procurei esquecer o incidente. O Sandro ia me pagar por aquilo! Peguei uns canapés e comi, num canto. Eu estava perdido em pensamentos, quando de repente senti algo no estômago. Era estranho, inédito. Me levantei, incomodado. Então, fui traído pelo meu intestino e um peido saiu desvairado. A barulheira abafou o som. Mas e o cheiro? O que era aquilo? Saí com pressa do lugar onde estava, pois nem eu agüentei o odor. Cheguei perto de meus amigos, eles perguntaram por que eu estava estranho. Eu virei para o lugar onde estava antes, onde havia um garotinho, e olhei para ele com olhar reprovador, dizendo para o Hércules: “Garoto mais sem rolha... fica dando peido perto de mim...”. Eu senti várias manifestações anarquistas no estômago, e entrei em pânico. Eu tinha tomado o remédio! Na agitação o vidrinho caíra perto dos canapés! Eu comi os canapés! Agora ia cagar que nem um louco! Certo, o problema se agravou, pois era uma situação muito peculiar: Eu estava no salão principal, onde a maioria das pessoas ficavam. Nos dois extremos do salão havia um banheiro feminino e um masculino. Quatro banheiros, ao todo. Os únicos da casa. No início da festa, quando fui ao banheiro pela primeira vez, vi que um deles estava com a privada entupida, não funcionava... no outro banheiro a privada funcionava. É claro que só tinha uma em cada banheiro, afinal, eram banheiros de uma casa normal, e não aqueles com várias latrinas e pias, etc. Eu havia me decidido: tinha que ir naquele exato momento descarregar a carga pesada. Eu juro! Senti o cocô saindo no meio do caminho. E o salão lotado, apertado, eu mal podia passar no meio das pessoas. No desespero, só via, na distância, a porta do banheiro, com aquele desenho representando o sexo masculino, e pensei na hora nunca ter desejado tanto chegar perto daquela porta, nunca a amei tanto. E nestes momentos é que você realmente pensa na vida: eu me senti como que valorizando o ato de viver tranqüilamente, sem aquela agonia. Nestas horas você valoriza as horas em que não sentia dor de barriga. Eu era feliz e não sabia. Como somos egoístas... eu olhava em volta, via dezenas de pessoas, caras como eu, conversando animadamente, sem cocô nenhum querendo sair, e de repente invejei eles. Eu empurrei garçons, mulheres, crianças, velhos e bichas, e quase fazendo nas calças. Se alguém na ocasião sobrevoasse a festa de helicóptero e analisasse as pessoas em conjunto, notaria que, por onde eu passava, depois de alguns segundos, via-se pessoas fazendo caretas e tapando o nariz. Vi uma gorda quase desmaiar do meu lado, por causa dos peidos. Eu avancei. Arranquei a gravata. Era uma luta sobre-humana. Cheguei no banheiro. Só não beijei a porta por causa da pressa. Entrei rindo no banheiro, feliz mesmo. Acendi as luzes, tranquei a porta, pois era um banheiro comum, e me dirigi à única e salvadora privada com bordas douradas e louça preta! Peidei mais uma quatro vezes e então parei, aturdido: era a privada quebrada!!! Não! Não! O cocô ia sair, impossível chegar no outro banheiro! Eu fiz um esforço sobre-humano, e tentei sair. A porta não abria. Forcei, e nada. Alguém agora batia na porta, queriam usar a bosta do banheiro! Eu não respondi, pois, se gritasse que estava ocupado, iria tirar a concentração que impedia o cocô de sair, e ele sairia! Em cima do vaso, um papel: “Não use, está entupida”. Em seguida eu ia começar a entrar num dilema: fazia nas calças, ou fazia na privada. Se fizesse com ela entupida, ele ficaria lá, e as pessoas o veriam quando entrassem lá. No entanto, no meio deste pensamento, o instinto me impediu de continuar pensando, e me obrigou a agir! Com as calças previamente arriadas, já não enxergava nada, perdia os sentidos: esculpi o marrom no chão. Caguei no chão. Um ato descontrolado, irracional, e depois engraçado. O cocô foi despejado no brilhante piso do banheiro, em frente à privada. E era um monte fedorento e mole, quase uma legítima diarréia caseira. No momento não acreditei. Fiquei parado, satisfeito. Depois o desespero chegou. Eu caguei no chão da casa onde ocorria uma festa de gala cheia de grã-finos metidos e fofoqueiros, ávidos por escândalos alheios! Havia pessoas batendo na porta, querendo usar o banheiro, e eles iam entrar mais cedo ou mais tarde quando eu saísse. Com certeza viriam minha escultura no chão! Eu tremia. Tentei pensar racionalmente: a primeira coisa a fazer era pegar uma porção de papel higiênico, pelo menos para eu ficar limpo. Logo vi que era tudo o início, a ponta de um iceberg, ou de um monte de merda, cuja grandeza eu só vi quando cheguei mais perto, como o iceberg que se chocou com o Titanic: de repente tudo piorou... não havia nem sombra de papel higiênico naquele banheiro. Como o vaso estava entupido, ninguém se preocupara em deixar papel ali. Fucei nos armários, no espelho da pia: nada. O cheiro era monstruoso, eu não agüentava ficar ali. Peguei um perfume na pia e joguei um monte no ar, para melhorar o odor. Usei a massa cinzenta. Havia a possibilidade de, estando o banheiro esquecido devido ao entupimento, haverem “coisas” no lixinho ao lado do vaso. Poderiam ter deixado ali alguma coisa que me ajudasse, como papel usado. Certo, certo, foi uma atitude anti-higiênica, mas eu só tinha esta chance! Entendam a gravidade da situação. Vasculhei o lixo, e logo me arrependi. Se eu achava o meu cocô assustador, então eu realmente não sei dizer o que era aquilo no cesto. A visão me chocou. Havia, envolto em muitos papéis, um puta dum monte negro de excreção humana, cheirando a... bom, vocês sabem. Eu pensei: “meu Deus, se alguém se limpou e conseguiu tirar isso como resto, imagine o tamanho do produto inicial, que o indivíduo soltara no vaso!” E fiquem sabendo que o choque foi tão grande, quando vi, que tive um sobressalto para trás, que me fez pisar, de costas, na minha obra. Pisei, e o cheiro triplicou. Meu sapato alugado! A festa! Senti uma lágrima quase escorrer. Era o fim do mundo. Olhei pra janelinha perto do chuveiro. Fui até lá, olhei. A janela dava para um jardim gramado. Mas era alto, e eu não passava pelo buraco. Eu tinha que sair dali. Andei de um canto pro outro, me sentei no trono. Alguém bateu na porta, e desta vez ouvi um sussurro: “Tadeu, sou eu! Abre!” Levantei-me e gritei: “Eu quem?” E ele respondeu: “O Sandro! Pode confiar!”
Fui até a porta e forcei: ainda emperrada. A tranca ficara presa. “Eu tô preso, Sandro! E a culpa é sua!” Ele disse então: “Calma, cara, agüenta firme”.
Esperei uns cinco minutos e então ele voltou, dizendo: “Ainda está aí?” Eu fiquei puto e gritei: “Não, pulei na privada e dei descarga!” Ele me passou por baixo da porta uma cópia da tranca. Tive que arrancar a velha, enferrujada, com um pontapé. Ela cedeu. Encaixei a nova, e destranquei. Cuidadosamente, deixei o Sandro entrar e tranquei em seguida novamente. Batiam na porta.
Resolvi ir até a porta e gritar que o banheiro estava ocupado. Mas, por precaução, primeiro olhei pela fechadura. Lá fora, o Hércules, sorridente, a alguns passos da porta, e, ao seu lado, Amanda, a loira! Eles estavam esperando eu sair para ele me apresentar a ela. Eu não podia sair. Meu sapato cagado, e uns dois ou três caras, dos mais frescos, esperando para usar o banheiro.
Virei para o Sandro, enfurecido, e disse: “Você vai me pagar o dinheiro como combinado, safado. Eu passei o maior vexame com a Paula Patrícia e agora estou nesta situação!” Ele se calou, olhando impressionado o cocô no chão. Mesmo assim, relutou: “O trato era você fazer ela ir pro banheiro, Tadeu, e não criar toda esta confusão”. Me revoltei: “Uma ova! Eu me ralo todo te ajudando e você me agradece assim, seu egoísta? Não mesmo! Dá o dinheiro!” Avancei sobre ele. Ele me afastou, atrapalhado, e eu meti o outro pé na bosta. Ele queria rir, mas não foi tão idiota assim e permaneceu sério. E disse: “Escuta, Tadeu... eu mudei de idéia sobre a Paula Patrícia. Eu descobri que amo ela, e ela também precisa de mim. Não quero mais me livrar dela, nós vamos nos casar”. Minha vontade era pular no pescoço dele, mas me contive, pois me preocupava com a merda. Ele continuou: “Você é quem deveria me pagar, por ter de ficar neste banheiro cagado com você”. Foi a gota d’água. Não me segurei, e dei um soco no peito do Sandro. Ele tombou pro lado, se apoiando na parede. Os óculos dele caíram na privada. O Sandro, como alguns de vocês devem se lembrar, tinha oito ou nove graus de miopia, mais um pouco de astigmatismo. Ficou cego, procurando o óculos. O instante em que o óculos caía no vaso pareceu durar séculos, e, quando caiu, eu dei uma orgulhosa descarga, só de vingança. O Sandro ficou puto, não via nada! Me senti bem naquele momento. Em seguida troquei de sapatos com ele: os dele estavam limpos. Empurrei o Sandro para o box do chuveiro, e ele caiu sentado, desesperado, xingando. Me preparei para sair, tranqüilamente, e voltar para a festa, agora que a situação se invertera: todos pensariam que quem estava com problemas era o Sandro, e não eu. Sorridente, me penteei e pus a mão na maçaneta. A trinca. A cópia da trinca. Virei para trás. Olhei para o Sandro, ali no chão, perdido. A trinca estava no bolso dele. Ele não podia me ver. Mas ele sabia, e disse: “Eu sei, você quer a trinca!” Eu parei e disse: “O que você quer em troca, Sandro?” E ele: “Você vai ter que prometer que não me cobra o dinheiro de hoje... e mais uma coisa: vai espantar os caras que estão aí em frente querendo usar o banheiro”. Eu pensei, e finalmente concordei: “Tudo bem, eu penso em algo pra dizer a eles”. E fui até o Sandro. Ele era muito idiota, e quis fazer graça: jogou a trinca pra cima, lá no alto, só pra me fazer de bobo. Eu fiquei olhando, atento, o trajeto da pequena tranca. Haviam duas possibilidades remotas em seu destino final: podia cair na privada ou na merda do chão, e eu teria que pegar. Ela caiu, lentamente... no ralo! Perdi a tranca! Já era, estava ferrado! Gritei e xinguei o Sandro, que não entendeu nada, pois não enxergava. E nessa hora começaram a arrombar a porta! Pensaram que não tinha ninguém, ou que havia acontecido algo. A porta balançava, e eu sem saber o que fazer. E, meus amigos, agora chega a parte da história mais difícil de ser contada. O motivo principal pelo qual eu não queria contar o episódio. Exige certa compreensão por parte de todos vocês.
- Coragem, campeão - disse-lhe Arnaldo, pondo a mão em seu ombro.
Tadeu continuou:
- Agindo por instinto, eu joguei toda a merda pra dentro do bolso do smoking, surrei tudo lá dentro, e ainda passei a mão no chão depois, pra tirar o resto.
- Meu Deus! - admirou-se Marlene. Os outros presentes na mesa escutavam, horrorizados. Ele continuou:
- Isso mesmo, eu avisei. Quando a porta caiu, eu estava limpinho, lavando as mãos, e sorri para um dos cavalheiros que arrombara a porta. Nem fiquei ali mais tempo, já saí apressado do banheiro, sorrateiro e sem olhar pra trás, deixando o pobre Sandro ali dentro. Ele bem que merecia. Me embrenhei novamente na multidão. Na verdade, o que ocorreu lá dentro do banheiro não gerou muito rebuliço na festa. É que eu estava lá, então parece que o que ocorreu tomou a atenção de todos os convidados. Na verdade eles estavam ainda dançando, papeando, bebendo... e logo eu fiquei mais tranqüilo. Era meia-noite e meia quando, depois de beber várias, eu me sentei numa mesa no terraço, sozinho, para fumar um cigarro ao ar livre. Sem eu notar, Amanda, a loira, se aproximou e se sentou. Eu fiquei animado de repente, e ela disse: “O Hércules ia apresentar a gente, eu sou a Amanda”. Eu disse, elegante: “Pois é, prazer, eu sou o Tadeu”. Ela sorriu. Eu sabia o que ela queria, e eu queria também. Trocamos mais algumas informações fúteis, em seguida, somente para enrolar um pouquinho antes de dizermos um ao outro nossos verdadeiros interesses. Ela era linda! Incrível! Infelizmente, naquela noite ela ia ter que ir para casa cedo. Mas ela disse que poderíamos nos encontrar em breve, era só marcar. Nos levantamos, e ela disse: “Eu gostei de você, Tadeu. Você me liga?” Eu respondi: “Claro... qual o seu telefone?” Eu estava cada vez mais agitado. Ela sorriu, e disse: “Anota”. Eu, entusiasmado e bêbado, meti a mão no bolso sem pensar e, ao retirá-la marrom, só vi os olhos arregalados da Amanda e, antes de eu desmaiar, me lembro de ter um pensamento, algo sobre prometer a mim mesmo nunca mais ir a uma festa.



3 - Wellington Arruda Filho

- Essa cerveja é horrível, Arnaldo - disse Rosana, reclamando da bebida que o garçom acabara de servir.
- É nada, é a líder no mercado, a mais vendida...
- Eu vou pedir um martíni - disse Hércules - Quem quer?
- Pede um pra mim - disse Marlene.
- Garçom!
- Alguém topa um buraco aí? - disse Arnaldo, embaralhando um jogo de cartas nas mãos. Ele e mais alguns dos presentes começaram a jogar cartas na mesa, enquanto os outros conversavam. Um grupo de jovens se sentou na mesa ao lado, um grupo barulhento, dando risadas e cantando.
- Jovens... - disse Tadeu.
- Você também já foi, velhão - disse Júlio, amigo de Tadeu - E outra: eu ainda sou novo e agüento todas! Já vocês, veteranos, estão além da idade de curtir a vida.
- Não sabe nem o que está falando, fedelho - disse Arnaldo - A gente é que é os barra-pesada por aqui. Quero ver a hora que vier neguinho arranjar confusão no pedaço, quem é que foge e quem é que fica...
- Júlio, você nem trabalhar trabalha, pra começar - disse Patrícia.
- Trabalho... isso me lembra uma história - disse Wellington, um advogado que às vezes vinha beber junto com eles.
- Qual, Wellington?


- Eu vou contar... aconteceu quando eu era jovem, tinha uns dezoito, e saía todos os fins de semana, à noite, com o pessoal, pra zonear pela cidade até a madrugada. Ou até alguém passar mal de tão bêbado e ter de voltar pra casa carregado. Nós costumávamos ir em bares, clubes, ou simplesmente rodar pela cidade de carro... e neste dia nós estávamos comendo num lugar muito legal, o antigo Faroh Rizzo. Vocês devem conhecer, era muito famoso.
- Eu ia quando eu namorava a Fabiana. Era de um italiano, não era?
- Isso mesmo. O lugar era de primeira, e, no Sábado à noite, você só via gente legal por ali. Mulheres de monte!
- Começou - disse Patrícia, irônica, olhando para Marlene.
- É sério, a gente sempre achava alguém no lugar. E era a maior diversão. Na maioria das vezes, quando estávamos empolgados, arranjávamos uma garota pra cada um, pra que nenhum de nós sobrasse, e então nos divertíamos juntos, para mais tarde cada um fazer o que quisesse com seu par. Era eu, o Bruno, o Rafael e o Márcio, isso quando o Tadeu aqui não ia com a gente.
- Eu me ocupava com festas mais requintadas - disse Tadeu Jones, sorrindo.
Wellington continuou:
- Bom, às vezes nem todos se davam bem. Aí a gente dava um jeito de algum de nós ficar junto com o que sobrou, para o coitado não ter que voltar pra casa. Aí eles continuavam farreando e os outros, acompanhados, aproveitavam suas mulheres.
- Coitado! Pra você falar assim delas, com certeza eram as mais baratas possíveis, Wellington - disse Patrícia.
- Bom, isso eu já não sei. Na verdade, elas tinham grana, eram filhas de ricos empresários. O bar era um lugar caro, e havia muitas patricinhas crescidas por ali. Naquele dia eu tinha arranjado companhia, uma morena espetacular, talvez a melhor que eu já tenha conseguido. Sério mesmo. Só que as coisas tomaram rumos indesejados. Devo avisar que o que vou contar é a pura verdade, pois tenho testemunhas, e o que ocorreu, como vocês vão ver depois, foi o mais adequado possível. Acontece que eu tive um puta azar, e por isso parece meio fantástico. Bem, eu me preparava pra ir até a casa dela, quando eram umas onze e meia. Nós estávamos indo para o carro, apressados, mal podendo esperar, e aí o Vicente Eduardo, irmão do Bruno, meu grande amigo, veio pedir carona pra mim. Moleque retardado! Pra começar, a gente nunca gostava quando ele saía junto, porque era alguns anos mais novo que a gente e ficava agindo como um adolescente panaca. Além disso, nem pra se mancar, né? Pedir carona sendo que eu ia levar a gata direto pra casa dela e “subir pra um café”. Mas eu nunca fui muito arrogante, então mandei ele entrar logo no carro, e a gente foi. O moleque morava no outro bairro! Eu ia ter que levar ele até a casa de um amigo dele, o que levaria uma meia hora, e depois voltar tudo até o apartamento da garota. Aliás, o nome dela era Gabriela. Eu não agüentava mais esperar! Mas fui. E devo avisar que de certa forma tudo ocorreu por causa do fedelho. Se ele não inventasse essa história de carona, nada teria dado errado. Eu, na maior pressa, acelerei o Chevete com tudo pelas avenidas no caminho, correndo como um louco pra chegar logo. Além disso tinha bebido todas. Estava tonto, vesgo, e queria mijar. Desviava dos carros de maneira incrível, e por pouco não morremos. Quando passava pela ponte, na maior ventania, fui inventar de tirar umas fitas do porta luvas, pra não deixar a morena entediada. Na época, só pra vocês terem uma idéia, eu ainda ouvia os Beach Boys, apesar de fazerem anos que ninguém mais ouvia falar neles, e sempre que eu ouço, agora, o som deles, eu me lembro desse episódio. Abri o porta luvas. Um monte de fitas entrochadas no pequeno compartimento. E não queriam sair! Eu dirigindo, na maior velocidade, e tentando arrancar as fitas de lá. Quando consegui, meu braço voltou com tudo pra trás. E era a Gabriela quem estava no assento ao meu lado! Meu cotovelo voltou com tudo no nariz dela! Eu gelei, quase desmaiei!Eu não parei o carro, não queria perder tempo. Olhei pra ela, o rosto cheio de sangue! Tudo se transformara num filme de terror. Era melhor ter deixado ela entediada do que com o nariz sangrando. Ela gritou. O Vicente começou a rir, eu fiquei puto e não sabia o que fazer, ela tinha o rosto escondido entre as mãos. Me lembrei do livro que levava no porta luvas: “Medicina de Tráfego”. Puxei o livro. E cotovelei ela novamente! Desta vez dei um tapa na minha cara, vermelho de raiva. Estava muito escuro. Eu continuava dirigindo, mas não sabia onde ia. Se estava levando ela pra casa, ou indo pra casa do merda do Vicente ou indo pro hospital! Que hospital? Eu lá me lembrava onde ficava o hospital no estado em que estava? Não sabia o que estava fazendo. Não pude ler direito as palavras do livro, e foi isso o que piorou a situação. Sangramento. Fazer compressão no local do sangramento. Apertei o nariz dela com força, enquanto dirigia com a outra mão. Parecíamos três loucos em fuga. Desviávamos dos carros e caminhões por sorte, e muitas vezes fui parar na contramão, perdendo o controle. Vicente vibrava de emoção, pois ele se sentia na Fórmula 1, e a moça urrava de dor. De repente fiz uma cagada. Uma moto apareceu na minha frente no meio da avenida, buzinando. Eu gritei de susto e brequei com toda força, derrapando e indo parar do outro lado do asfalto. Gabriela meteu o rosto no vidro da frente. O vidro trincou, então ela se virou para mim com a cara cheia de migalhas de vidro. No olho esquerdo, um caco de cinco centímetros cravado. Ela chorava e berrava. Eu continuei acelerando. Onde ficava o maldito hospital?! Vicente se assustou e foi metendo o dedo no olho dela, pra tirar o vidro. Como era burro! Eu joguei ele no banco de trás, apavorado. Cobri o olho ferido da Gabriela e fechei o outro. Era o que o livro dizia. Mandei ele continuar tapando o olho dela, enquanto eu dirigia. Tudo acontecia muito rápido. Parei com tudo, na rua mesmo, e mandei Vicente descer e perguntar pro jornaleiro onde ficava o hospital mais próximo. Chutei Vicente pra fora. Ele perguntou, fiquei olhando do carro. Voltou. Eu perguntei: “Onde fica?” e o Vicente: “O merda do cara da banca é espanhol, ele não entendeu nada e eu também não”. Eu não disse nada, estava puto, e saí rasgando o chão, com a porta aberta. Gritei: “Vicente, fecha a porra da porta!” A porta que estava aberta era a da Gabriela, por onde o Vicente saíra quando foi pegar informação. Ele fechou, mas algo aconteceu. Primeiro notei que o som não era de porta fechando, e sim de porta batendo em algo! A mão da Gabriela ficara pra fora, e o dedo dela foi amputado. Quase desmaiei. O dedo indicador dela caiu perto do banco, cheio de sangue. Ela agora estava histérica, e chacoalhava meu ombro. Eu dirigia. Li no manual. Gelo. Onde tinha gelo? O Vicente começou a falar um monte de merda: “Wellington, pode deixar comigo! A gente tem que colar o dedo com fita...” Eu gritei: “Cala a boca, moleque!” Ele continuou: “Ah é! Na verdade tem que colocar o dedo no álcool! Eu tenho uma lata de cerveja aqui e...” Eu fiz ele parar: “É no gelo, Vicente. No gelo.” E o sangue escorria. Parei perto de um posto, pedi gelo e eles deram. Pus o dedo no gelo, e saí. Mais uma vez a porta dela ficara aberta. Ela rolou pela rua. Voltei o carro, o Vicente pegou ela e entrou. O Vicente fechou a porta com força e desta vez o pé dela tinha ficado pra fora. Ou a perna inteira, nem me lembro. Só sei que vi um osso exposto na perna dela e vomitei no mesmo instante. Ela cantava. Estávamos loucos. Vicente tremia que nem um animal. “Vicente, imobiliza a perna dela!” Ele imobilizou. Só depois perguntei: “Ela está respirando?” Ele demorou pra responder, mas disse que sim. Eu não sabia mais nem quem eu era, e foi então que a tragédia ocorreu. Bati com o lado do carro num caminhão. O carro amassou todo do lado, e adivinha que lado?
- O da Gabriela - disse Arnaldo.
- Claro. E eu continuei dirigindo. Só depois reparei que ela tinha um pedaço de ferro que saíra do caminhão cravado na cabeça, e eu comecei a gritar de pavor. “Não tente remover o corpo estranho da cabeça dela, Vicente! Eu li no manual”, disse eu. Ela agora estava desmaiada. Eu disse para o Vicente: “Moleque, ela desmaiou! Faz um favor! Ela pode se engasgar com a própria língua, vê se segura a língua dela!” Ele obedeceu, prestativo. Dei outra ordem: “Certo. Agora afrouxa as roupas dela!” Ele fez. Nesta hora pensei, inadequadamente: “Era eu quem deveria estar despindo ela, e não nestas circunstâncias!”. Continuei lendo o manual enquanto dirigia e disse: “Garoto! Hã... verifique se há obstrução de vias aéreas”. Logo me arrependi de dizer aquilo. Se nem eu sabia o que aquilo queria dizer, imagina o Vicente! “O que o manual diz pra gente fazer, Wellington?” perguntou ele. “Levar a vítima para o hospital”, disse eu. Só que agora eu estava mais transtornado ainda. A bebida estava no auge do efeito, e agora eu estava muito mais cansado, também. Tive que desviar de vários carros. Só que uma hora eu não estava mais conseguindo me controlar! Perdi o controle e fui a toda velocidade na direção de um salão enorme, muito caro, onde ocorria uma festa cheia de gente lá dentro dançando, comendo e tudo o mais. Neste hora só me lembro de que a música que tocava dentro do carro latejava na minha cabeça, fazia uns ecos, era insuportável, como aqueles sonhos intermináveis cheio de loucuras desse tipo. Mas era vida real. É serio: meu carro entrou a 100 por hora pela vidraça que dava para o salão principal da festa! Penetrou pela ampla janela! Eu estava em estado de choque, a Gabriela acordara, perdida, e o Vicente mijava-se todo. Aquele momento em que entrávamos no ambiente requintado da festa, daquela maneira fantástica, aquele momento pareceu durar meia hora! Caíamos em câmera lenta no meio das pessoas, em meio ao vidro e aos destroços do carro! A música clássica que lá tocava entrou no meu ouvido, em contraste com a barulheira que se seguiu. Enfiei a cara no vidro. Atropelamos cinco pessoas. Derrubamos as mesas e cadeiras no caminho, e o carro ainda continuou andando um pouco lá dentro, indo parar perto da banda. Gritos, desespero, sangue. Todo mundo louco, fugindo, desmaiando e chorando. Num canto do salão, um bolo de dois metros cheio de chantily foi derrubado quando o carro entrou com tudo. Não preciso nem dizer como foi a cena seguinte. Uma tragédia, e principalmente pra mim. Além de eu me ferir seriamente, a culpa caiu praticamente toda sobre mim. Nós três fomos levados depois de alguns minutos por uma ambulância, assim como alguns convidados da festa. Havia tanta pessoa amontoada perto do local, que eu mal podia olhar ao redor. A multidão queria ver tudo. Era de madrugada. Juntou polícia, bombeiro, ambulâncias, tudo! E adivinhem! Quando a confusão aconteceu, na festa, passou na rua um carro cheio de moleques gritando, mexendo com as pessoas. Eram meus companheiros, voltando do Faroh Rizzo, todos bêbados. Estavam com as mulheres. Eles pararam para ver a confusão, e depois vieram falar comigo. O Vicente tomou uma surra do irmão. A Gabriela estava toda deformada, quase morrendo. Quando estava entrando na ambulância, vi que estava pertinho do Faroh Rizzo! Eu tinha dado a volta na cidade e voltado sem achar um hospital sequer! Quer dizer, eu devo ter passado por vários... mas não estava em condições de enxergar nada. Bom, eu passei a noite no hospital, com a cabeça latejando e as recordações da noite todas na minha mente, num pesadelo. Quando a ressaca passou, de manhã, falei com o Vicente, que deitava na cama ao lado. Ele estava bem. Não se sabia nada sobre a Gabriela. Chamei o doutor. Precisava saber como a coitada estava. Ele veio, calado, e me olhou sério. Perguntei, e ele disse, chocado: “Bem, Wellington, sua amiga Gabriela Garcia não chegou ontem ao hospital.” Eu fiquei mudo. Ele continuou: “Estamos incrédulos, mas o que aconteceu foi que ela entrou com você ontem na ambulância, e então, no meio do caminho do hospital, quando você já tinha dormido, passamos por um buraco do asfalto, e a porta de trás da ambulância se abriu. Gabriela caiu na rua, foi rolando e desceu morro abaixo. Estávamos na estrada do morro, aqui perto. A ambulância passou em alta velocidade. Só percebemos que ela tinha caído quando chegamos. A polícia fez uma busca em toda a região da base do morro, e não acharam a Gabriela. Sinto muito, Sr. Wellington” Eu fiquei pensativo. Mas não impressionado. Afinal, na noite anterior ela tinha tido um azar tremendo por diversas vezes. Nunca mais vi Gabriela. Ninguém viu. Ela desapareceu misteriosamente. Me vesti, tomei um café e deixei o hospital, a pé, sob um lindo dia de sol, e pensando em como a vida às vezes pode ser uma incrível mistura de humor negro com tragicomédia. Vocês não acham?





4 - Toledo

Bernardo Toledo, outro amigo de bar da turma do Arnaldo, observava pra onde ia a noite. E percebeu que ia para os papos do passado, a nostalgia recuperada, os velhos tempos. Então resolveu que seria o próximo a relatar sua história...
- Ei, vocês querem escutar uma história realmente engraçada? – disse ele, em voz alta e bêbado de tanto tomar cerveja.
- Que história?
- Um negócio que me aconteceu... silêncio, por favor...
- Escutem o Toledo, pessoal...



A inconstância e o acaso, assim como o espírito curioso e aventureiro, por caráter, me concederam na vida, desde a leve juventude, incontáveis deslocamentos e mudanças de cidades, escolas, prédios e atividades diversas, muitas vezes com a minha família, e outras com amigos, ou sozinho. Algumas vezes por dificuldades econômicas, no início, e, já na maioridade, simplesmente por ser inquieto e ávido por mudanças, um puro-sangue porra-louca, como já fui chamado. Nasci em São Paulo, mas já fui morar em Sorocaba, Santos, no Mato Grosso e outras regiões de São Paulo, durante a adolescência.
Mas o episódio que conto agora, e que me parece muito singular e inesquecível, está situado no momento em que passei a estudar Engenharia Agrícola em São Paulo. Após alguns anos tentando e me estrepando, já sem dinheiro pra quase nada, trabalhando num escritório, consegui afinal entrar. Tinha então vinte anos, e alugava um apê perto do centro. Todo dia ia pra faculdade (a qual não me estimulava muito) e depois pro trabalho, tendo os fins-de-semana livres pra cair na gandaia com o Júnior, o Pedrinho, e outros.
Acontece que alguns anos antes o meu tio tinha adquirido um terreno no interior, na bela cidade de Sumaré. Íamos pra lá passar alguns dias, eu, ele, primos, primas, meu pai... e, muitas vezes, íamos só eu e meu tio Arnaldo, pra eu poder ajudar ele com os trecos da fazenda. A atividade me agradava, e além do mais, aproveitava e aprendia uma meia dúzia de coisas interessantes sobre as lavouras, as verduras, a terra... o que era bom pra minha formação.
Depois de um tempo, quando eu tinha dezoito, comecei a freqüentar o sítio sozinho mesmo, estando a fim e tendo tempo (feriados prolongados, folgas...). Ele me assegurava a chave, ensinava como usar o alarme da casa, me instruía sobre o trabalho rural, cavalos, etc., e eu caía na estrada com o Opala cinza do meu pai, o Ermínio velho de guerra. Aí aproveitava pra me isolar, meditar bastante, pegar na enxada e compor umas canções. Sim, era eu e o meu violão, tão querido, que passávamos noites inteirinhas e madrugadas, eu sentado perto da janela, ou na varanda, sob o luar, e aquele silêncio bonito e saudável do campo. Cigarras, grilos, insetos e violão. Confesso que gostava mais de música, e de inventar minhas letras, composições próprias, do que da idéia de me tornar engenheiro agrônomo. Estudar com afinco era a coisa mais desgastante e mais chata que havia, e nunca fazia sentido pra mim. Mas, sempre que eu podia, relaxava com o violão, sozinho, no final do dia.
Nesta época, também, devido à minha permanência solitária e constante na fazenda, passei a manter contato com amigos de Sumaré de chácaras vizinhas, um pessoal muito animado que sabia como viver com a natureza, longe da cidade. Alguns cidadãos urbanos, de férias, e outros moradores dos sítios. Às vezes dava da gente se reunir nestas noites campestres e irmos até o bar pra tomar umas cervejas ou ir na casa de algumas garotas que por lá moravam. Ainda me lembro bem do Tomate (nasceu lá), Lino, Fábio e o Fá Maior (uma brincadeira com o seu tamanho avantajado e uma diferenciação do amigo homônimo). As meninas, Tati, Juliana, Babi, grandes amigas. Muitas vezes, cansados, nos deixávamos ficar pela casa, mesmo, tocando e bebendo, conversando, até tarde. E estas eram as noites mais agradáveis.
No início do segundo ano de faculdade deixei a barba crespa, comprei um Corcel usado num leilão e comecei a viajar com meu próprio carro, e mais vezes. Sempre com meu instrumento a tiracolo. Comecei também a lidar mais com os animais da fazenda, principalmente os cavalos, assim que adquiri a experiência necessária. Eu cuidava, domava, cavalgava... e o engraçado é que sempre tive o maior respeito e afinidade com animais, tanto que penso que é preciso um sujeito chegar a um nível muito alto de cabeça, e de caráter, pra ser capaz de tratá-los como eles devem ser tratados. Uma vez, um escritor foi inquirido numa entrevista pelo motivo pelo qual só tinha começado a escrever pras crianças aos setenta anos. Ele respondeu que só tinha adquirido a sabedoria necessária pra escrever pra elas aos setenta anos. Acontece algo parecido com os animais. Não sei se minha divagação é clara e válida.
De qualquer forma, certo dia eu estava em Sumaré, em Fevereiro, e decidi ficar o fim-de-semana. No Sábado trabalhei um pouco na terra e quando escurecia subi de volta à fazenda, exausto. O sol se punha linda e laranjamente atrás dos morros verde-escuro. Entrei, descasquei ervilhas, jantei e me sentei à janela pra tocar algo. Ainda atendia ao curso de violão, sempre avançando pelos clássicos. O negócio agora era pegar pesado no Bach, Villa-Lobos, Chopin... música que agora me agradava, assim como muitas populares brasileiras também.
Esta noite era só minha. Tinha vindo sozinho, e o pessoal dos sítios tinha ido até a cidade dançar. Eu estava meio calado e romântico aquela noite, então preferi a tranqüilidade caseira.
O luar, impecável mais do que nunca. Algumas dezenas de metros além da casa, eu via, pela janela, as copas de ciprestes e pinheiros balançarem ao ventinho fresco. O único som era o abafado das cigarras, lá fora. E eu, confortável, comecei com um noturno do Chopin, que muito me agradava. Naquela noite me sentia disposto e parece que mais criativo e talentoso do que nunca. Meus dedos tinham algo em seus toques, nas cordas, uma energia ágil e mágica, toquei com gosto.
A certa altura da noite, absortamente compenetrado, realizava uma toada melancólica, não me lembro exatamente qual, quando tive um sobressalto enorme. Eis que vejo, a cerca de dois metros da cadeira, uma aranha grandona e horrível sobre o chão de madeira. Por dois ou três segundos, fiquei paralisado e assustado com o animal, tão grotesco e nocivo. Aí parei de tocar, e sem tirar os olhos dela fui me levantando lentamente, com o intuito de lhe dar uma pancada. Ela logo se assustou e correu até um fresta que havia entre o rodapé e o soalho. Era um canto escuro da sala, perto da escada, e o buraco era conseqüência da preguiça de meu tio em reformar a aparência meio gasta da casa de campo.
Pensei um pouco no que tinha visto, um pouco amedrontado, por cinco minutos, e esperando que ela voltasse. Não voltava. Fui até a parede em questão, devagar, meio de lado, e bati com uma vassoura na superfície do piso, em cima do buraco. Se ela saísse, bastava uma forte e certeira vassourada. Não veio mesmo.
Acabei afastando a aranha da cabeça e me sentei novamente em frente à janela. Recordei o que estava tocando quando fora interrompido, continuando no mesmo ritmo, apreciando a noite. Passaram-se cerca de dois minutos, e então, pro meu novo espanto, aparece a perna do bicho de novo saindo da fresta. Devagar, passo a passo. Mais uma vez me assustei. Ela saía sorrateiramente, como da outra vez, sempre avançando alguns centímetros na minha direção. Quando parei a música ela parou de andar, com aquelas longas pernas negras e cabeludas. Aliás, ela era grande e peluda, de fato. Como aquelas aranhas monstruosas que a gente vê em livros com gravuras. Perigosa, de certo. Asquerosa. Ela ainda deu mais uma andada pra frente, e então eu pensei: “Chega. É animal perigoso. Vou matar com um gesto só, de surpresa”. E esperava acertá-la, mas a filha da mãe saiu correndo de volta pro buraco quando eu me impulsionei pra cima dela.
Não havia jeito de tirá-la do maldito esconderijo. Fiquei impaciente e logo recomecei a tocar as canções. Quando por acaso voltei a tocar aquela toada triste, a aranha surge de novo, com a mesma impertinência, com aquelas pernonas horripilantes. Caranguejeira. Senti um calafrio. Olhei nos olhos dela. Parecia tonta, ainda, após a interrupção da música. Bati com o pé fortemente no chão, e fiz menção de me levantar. Ela mais uma vez correu pra toca no canto da parede.
Aí comecei a pensar naquilo de um jeito diferente, porém ainda muito aborrecido pelo contratempo. “Será que é por causa da música?”, pensei, parado. Já com experiência, voltei a tocar pela terceira vez e não tardou pra ela começar a sair novamente, aquela safada e esperta aranha.
Quando ela fugiu desta vez, resolvi ir dormir. Pensei um pouco, e me pareceu que havia algo de familiar, não sei bem ao certo, na aranha. E não sei que raio de coragem, ou sei lá o quê que me deu, pra eu ir dormir tranqüilo sabendo da existência de uma caranguejeira na casa. Mas fui, e procurei esquecer o fato. Não lembro muito bem, mas creio que tinha uma série de coisas na cabeça, preocupações com a faculdade, incertezas de carreira, pepinos profissionais e sentimentais. Além do mais, me sentia cansado demais. Fumei um cigarro e dormi.
No outro dia, acordei com as tarefas do campo na cabeça, e desde bem cedo fiquei pelos lados das plantações, com os fazendeiros vizinhos. O calor era quase que insuportável naquele dia, e o suor nascia a todo momento pelo corpo.
Na hora do almoço passou um rapaz das redondezas por ali, com uns baldes, dizendo que não tinha água pros lados das chácaras. Estava indo pegar num poço, e aproveitamos para ir junto, e almoçar no mato mesmo. Logo, acabei nem retornando à casa durante o dia.
Quando voltamos ao trabalho os outros me falaram, em tom amigável, que eu estava bem calado, talvez pensativo, este dia. Fui pego meio que de surpresa, pois realmente eu me sentia mais distraído do que de costume. Comecei a perceber então que aquilo podia ser devido ao incidente da noite anterior. A aranha. E logo resolvi admitir pra mim mesmo, em pensamento, a relativa importância e preocupação que estava dando, inconscientemente, ao caso. Sim, sim, era isso mesmo. Em certo momento deixei cair ao chão dois baldes cheios de água, por distração, e tivemos que voltar até o poço por minha causa. Mais tarde, na plantação, golpeei o pé do Seu Augusto sem querer com a enxada.
- Ih, rapá. Toma cuidado – advertiu-me o velho, pacífico, parando por um momento seu trabalho e olhando preocupado para mim.
- Desculpa, Seu Augusto. Estava pensando em outras coisas.
Às cinco horas cuidei dos cavalos e ajudei a dar banho, e depois fomos eu e mais três deles, cavalgando, cruzar uns morros baixos que tinha por perto, pra ir levar feijões a um tal de Machado, que morava meio afastado e tinha vastas terras. Fui pra ajudar a levar o feijão e aproveitei como passeio, pra desanuviar a mente. Cavalgar era belo, era bom, era selvagem, e era o que eu mais gostava de fazer em Sumaré. Sentia o ar fresco nos cabelos, enquanto me deslocava pelo mato, por entre as árvores, sob o sol, mexendo e remexendo os músculos do corpo, com vigor. Meu cavalo preto, Numú, era meu mais fiel companheiro.
O seu Machado era um velho rabugento, chato e encrenqueiro, com uma mulher paciente e obediente, e nada mais. Todos nós conhecemos tipos assim, em qualquer canto do país e do mundo. Mas acontece que o seu Machado me causou uma forte impressão em suas atitudes. Eu, que estava particularmente pensativo neste dia, notei como o sujeito era infeliz, no fundo, e como não queria admitir isto. Por exemplo, ele ficava pelas terras, o dia todo, olhando os trabalhadores e caseiros em suas tarefas, e dando palpites rabugentos e reprovadores, sendo que ele mesmo nem sequer dava duro por ali.
Estávamos olhando seus legumes, na terra, e o seu Machado junto, orgulhoso, mostrando tudo. Sempre que precisava de algo, qualquer coisa da casa, soltava um berro infernal chamando a mulher, uma velha muito simpática e paciente. Ela, prestativa, vinha sempre lhe trazer o que ele queria, sem reclamar. E o imbecil nem dizia obrigado, nem nada, só dizia: “Que horas o jantar vai estar pronto?” ou “Vou chegar com muita fome hoje. Acho bom ter uma janta boa me esperando, Teresa.”
Só sei que, observando o comportamento dele, daquele velho, comecei a ficar deprimido: “E se eu ficar assim, conforme for envelhecendo? Será que eu vou ser assim?”, eu pensava. Porque às vezes estes sujeitos são carentes, ou revoltados, ou sofreram tantas injustiças na vida que acabaram se tornando desagradáveis com os próximos. Tentei afastar a idéia da cabeça, eu não iria ser assim, não mesmo, eu seria uma boa pessoa, quando velho. Além disso, Machado vivia chutando o cachorro e xingando os cavalos, quando se enfurecia. Não éramos iguais.
Ficamos lá pelo Seu Machado até o sol se pôr, e então começamos a montar pra voltar. E eu pensando, desde cedo, e de um modo que até a mim me assustou: “E a aranha? Será que ela vem? Será que não vem?”. Era um modo estranho de pensar, mas era assim. Ela. A aranha. “Será que ela vai voltar?”. E é claro que não confiei a nenhum dos fazendeiros os motivos de meu silêncio, pois tinha como certo o escárnio de que seria vítima.
O dia acabava, e eu me apressei em guardar logo todas as peças de montaria, fechar o celeiro, etc. Certa pressa havia em minha cabeça, me forçando de volta pra fazenda o mais cedo possível. No caminho de volta houveram trechos em que andei quase correndo, como se fosse morrer antes de poder chegar à casa. Tudo isso era inconsciente.
Tomei banho com pressa, jantei afobado e não demorei até estar novamente sentado à janela, como todas as noites. Só que este dia era diferente. Me atrevo a dizer que era especial. Eu sempre fora o “artista solitário” do campo, tocando para a noite e pra mim mesmo. E, agora, eis que de repente o acaso me traz uma platéia bizarra em forma de inseto. Mas será que ela ainda está lá? Me senti como o violonista em noite de estréia, nervoso, aflito. Pus à mesa um vinho doce e tomei um pouco, para me soltar mais. Trêmulo, comecei as canções da noite.
Atacando diretamente no noturno de Chopin, mais uma vez, sabia que seria infalível. A música fez-se ouvir pela casa, e aí, para a minha total euforia interior, a bichona saiu pra fora! Sim, a teoria se comprovava, indubitavelmente. Adquirida a manha, eu parei de tocar, já sabendo que ela parava também com a música. Entrou no buraco. Agora eu já sabia, era certeza, e esta noite só serviu mesmo foi pra comprovar meus pensamentos hesitantes.
Era estranho, era bizarro, mas era agradável e me satisfazia. Eu passara o dia todo na incerteza, e agora a dúvida já não existia! A aranha gostava de me ouvir tocar, era sim, e gostava mais era desta em especial, a melancólica.
Bem, eu passei então a todos os dias “me apresentar” pra ela, no mesmo local, mais ou menos ao mesmo horário, sempre lançando melodias das mais belas e mais apreciadas, e o engraçado era que eu sabia exatamente como era o gosto dela, tanto que sabia como prender a atenção dela o máximo possível com as músicas. É aquela história. Quando conhecemos uma pessoa, começamos a conversar com ela, e, após certo tempo, conhecendo sua personalidade, passamos a formular em nossas mentes o próprio gosto que a pessoa tem em relação a filmes, músicas, etc. Parece que sabemos o que ela vai certamente gostar e o que não lhe agradará. E, no caso de serem pessoas de quem gostamos, procuramos sempre agradá-las. O que acontecia com a aranha era que eu procurava cada vez mais atrair a atenção dela, me esforçando por lhe penetrar no espírito através das músicas. E, se às vezes ela parecia entediada e se escondia no meio da apresentação, eu logo começava com a velha e bela toada triste e os noturnos, e aí era infalível, lá vinha ela, devagar, atraída como que magicamente pela melodia.
E não demorou muito pra que nós (eu, meu violão e minha aranha) nos tornássemos famosos pelas redondezas. O troço todo era bem divertido, quando penso. Os amigos começaram a vir, todos os dias, até a casa, sempre tarde da noite, pra assistirem àquela proeza musical, e animal. Queriam todos ver a aranha que gostava de clássicos, a aranha romântica e o violonista mágico. E trazia amigos e amigas, convidava as garotas, vizinhos de outros sítios, e não faltava a cerveja, a animação e o bom ambiente, nas frescas noites. A casa de campo do tio Arnaldo era o point mais quente da cidade, era uma atração. As meninas viam a aranha, e no começo se assustavam muito, algumas (principalmente a Babi) costumavam até gritar de medo, mas, ao verem que eu mantinha completo controle das vontades do animal, logo todos relaxavam, achavam graça e se interessavam pela intrigante atração.
A aranha era minha fixação. Por sorte (ou azar), nesta época estávamos tendo longas greves de professores na faculdade, e não tínhamos aulas. Durante um bom tempo, pude assim permanecer na chácara, tranqüilo, e foi nesta ocasião que “conheci” a aranha. Também tinha perdido o emprego, pois mandara o chefe pra vários lugares impróprios, numa discussão. Agi imprudentemente, é claro, mas o leite foi derramado, então, paciência. Por isso, acho que atravessava um momento intenso de frustrações, meditações e importantes mudanças em minha juventude. E acho que não foi à toa que acabei me ligando de forma especial àquela aranha caranguejeira. Agora, quando penso profundamente nisso, creio que tratava-se de um fator bem psicológico, se não me equivoco.
Uma vez, numa das longas noitadas, conversávamos animadamente com as garotas, que se achavam, como posso dizer? Um tanto afetadas pelo efeito do álcool. Aos poucos, eu, o Fábio e o Tomate conquistamos a afinidade delas, e preparávamos a base para nos aproximarmos ainda mais. Mas confesso que não me sentia nem um pouco atraído ou interessado pela situação. É claro que sempre gostei de namorar e de “pequenos casos” com meninas, mas naquela noite em especial me sentia mal falando com elas. E, no momento derradeiro, eu falava com a Tati sobre os cavalos que ela tinha na fazenda dela. Só que o interesse dela era em mim.
- Ah, não sabia que gostava tanto de cavalos – me disse ela, íntima, enquanto os outros já se agarravam na outra parte da sala.
- É, eu gosto.
- Olha só, por que que a gente não vai agora mesmo pra minha casa, e eu te mostro eles?
Eu fiquei calado, não sabia, realmente, o que dizer. Ela achou que eu estava preocupado com os pais dela.
- Meus pais saíram, e vão passar a noite no Zé Cabira.
Certo, era a última “dica” que se pode imaginar que uma garota nos dê, nestas situações. Ainda mais considerando o olhar dela no momento. Mas não provocou o efeito esperado em mim, e eu disse, com um misto de desânimo e rabugice:
- Hã... não, obrigado. Eu preciso dormir cedo, hoje, não dormi direito a última noite. Desculpe – e dei um sorrisinho fraco de canto.
Se alguém conhece uma resposta mais merda do que esta para se dar, por favor me avise. A Tati me olhou confusa e quase incrédula, como que querendo ouvir de novo as minhas palavras. Logo ela perdeu aquele porte sensual, se recostou na cadeira e olhou para as amigas, constrangida, que, animadas, estavam com os caras na sala. Não dissemos mais nada, e ela saiu.
Não me senti mal por ter feito aquilo. Na verdade, logo peguei de novo o violão e chamei minha aranha pra perto de mim, pra me ouvir tocar. E ela veio, eu nem precisava insistir. Veio, para o meu conforto.
Logo o interesse dos amigos e vizinhos pela aranha musical desapareceu, gradativamente. Já não vinham nos ver, à noite, e já nem falavam mais nisso. Eu, é claro, ao contrário, ainda nutria o mesmo apego a ela. “Eles enjoaram da gente, Gabi (pús um nome nela, inevitavelmente), mas não tem problema, a gente continua sempre em frente”, dizia eu, conversando com ela.
Quando fui passar outra temporada na fazenda, em Julho, certa noite fiquei de receber na chácara um amigo lá de São Paulo. Na verdade, conhecido do meu tio, visita. Meu tio chegaria dali a dois dias, e eu servi de anfitrião.
Naquela noite me entreti profundamente na conversação com o homem, que me contava uma porção de fatos interessantes de seu trabalho na cidade. Problemas, cotidiano, lucros...
Tomamos vinho, mais tarde peguei do violão, distraidamente, pra brincar um pouco, enquanto ouvia ele falar, animado. Eu, profundamente compenetrado.
Não notei quando a aranha começou a aparecer pelo chão, sorrateira, por causa da música. Me esqueci completamente dela. Ele viu o bicho, se assustou, e eu me lamentei mais do que profundamente por não ter contado a ele sobre a aranha, quando vi, pálido de horror, a minha amiga ser destruída pelo sapato do visitante, justamente quando eu tocava a toada melancólica.
Ele sorriu, suado, e falou:
- Que perigo, hein?






5 – Johnny Boy Silva

Johnny Boy Silva era caladão. Bebia com os amigos de bar mas preferia ficar só observando. Porém, este dia era especial. Aproveitou que todos contavam as mazelas do passado, e começou a narrar sua história...


- Ela era como aquelas garotas de filme, ou de comercial, não sei como explicar bem...
- Vai começar... você sempre vem com essa história de filme, e personagens de filmes... – interrompeu Arnaldo, reclamando do colega que se sentava à sua frente. Johnny continuou:
- Deixa eu falar... é sério. Sabe aquelas garotas boiadeiras, que aparecem em videoclips de duplas sertanejas, tipo de jaqueta de couro com franjinha...
- Peraí, sertanejo?!... – disse Tadeu, divertindo-se – O que é isso? Você assiste videoclips sertanejos?
- Não, eu não assisto, caramba... só to dizendo isso pra vocês imaginarem como é o negócio, entendeu, não porque eu realmente conheço este tipo de coisa.
- Continua.
- E elas usam aquelas franjinhas na jaqueta, e calça jeans, bem country mesmo...
- Acho que já sei... – disse Tadeu, com um sorriso.
- Já saquei... umas garotas que sempre aparecem com um carinha que é peão ou cantor sertanejo, sei lá o que... e de chapéu de caubói.
- Isso! E que às vezes tem naqueles bares de estrada, sei lá, aqueles locais onde tem música country tocando, e muita bebida, e sempre saem brigas nos filmes, e no lado de fora tem sempre um estacionamento enorme, e tal...
- Sei.
- Ou também aqueles tais de Ouro Grill, não sei o que Grill, de estrada... – completou Arnaldo.
- Isso mesmo. Então. Ela era igualzinha a essas mulheres, não sei por que, talvez fosse mais o jeito e o rosto dela, afinal, é claro que ela não estava vestida deste jeito country, de chapéu e tudo, mas tinha um jeito diferente, calmo, simples e bonito ao mesmo tempo... e eu estava no interior, então acabei associando a imagem de vaqueira...
- Mas o que foi que aconteceu? – perguntou Marlene.
- Bom, como eu já disse, eu tinha ido lá pra ver como é que a casa estava... meu avô tinha morrido...
- Quantos anos fazem isso?
- Sete anos.
- Caramba.
- Bem, a casa de campo tinha sido herdada por mim, e então resolvi dar uma olhada nela, arrumar tudo por lá e quem sabe me estabelecer por ali por um tempo, enquanto não me decidia sobre o que fazer da vida... tinha perdido o emprego, tinha sido despachado pela minha namorada, a Márcia, e minha relação com o restante da família não era lá essas coisas... resolvi sair da cidade. Bem, a casa era grande, confortável, bem campestre. Quando aconteceu isto eu já morava lá há algumas semanas... pois um certo dia, após ter me levantado, saí à varanda para olhar como estava o dia, e me espreguicei preguiçosamente. O dia ia estar quente. Bem, então tive uma surpresa ao perceber, na casa ao lado, alguém a me observar por uma das janelas. Havia algumas casas próximas à minha, um pouco além do muro que cercava minha propriedade. Esta ficava bem ao lado, e podia-se ver bem as janelas umas das outras. Alguém me olhava pela janela, e, ao notar que eu também agora a observava, permaneceu na mesma posição. E então me sorriu. E eu retribuí o sorriso, acenando-lhe. Depois tratei de cuidar de meus afazeres e não pensei mais nisso. No dia seguinte eu estava pegando frutas no pomar depois do almoço, e avistei novamente minha simpática vizinha, na janela, a me cumprimentar. Desta vez me encontrava mais próximo do muro, de modo que resolvi ir trocar umas palavras com ela. Já sabia que morava lá, já a tinha visto, mas nunca prestara atenção nela. E pude ver agora que era uma moça linda, muito bela, jovem e atraente, além de boa pessoa.
- Bom dia – disse-lhe eu, apoiado sobre o muro.
- Bom dia – respondeu ela, sorrindo – Mudou-se pra cá faz pouco tempo?
- É, me mudei... não sei se vou ficar ou voltar pra cidade...
- Aqui é bom pra morar... – disse ela, contente em sua janela rodeada de rosas e espinhos – Aconselho você a ficar...
- Obrigado. Como se chama?
- Clara.
- Sabia que você tem olhos lindos?
Ela não disse nada. Me olhou com olhos misteriosos e calados, intimamente sorridentes. Seus olhos brilhavam, eram como uma cartolina azul turquesa sob o brilho do sol que entra por uma janela encostada.
- Obrigada – disse ela.
- Quem sabe não podemos nos conhecer melhor e... – ia dizer eu, quando ouvi uma espécie de grito vindo lá de dentro da casa dela, e que a fez ter um sobressalto. Neste instante ela se virou e disse que tinha coisas a fazer. E saiu da janela, ainda sorrindo, mas com uma ponta de receio.
Fiquei lá parado no muro pra ver se ainda voltava, mas não. E, quando já me preparava para descer do muro, avistei no quintal dela um homem que tinha vindo ver quem estava ali. Me olhou desconfiado, e lá ficou parado, encarando como que defendendo sua propriedade. Não disse nada, e então desci do muro.
Eu estava apaixonado. De um jeito que nunca me sentira antes. Eu era mais jovem do que sou agora, e minha cabeça fervilhava, é claro, com os fatos enlouquecedores que me rodeavam à época. A menina tinha virado minha cabeça desde o primeiro momento. Mas só agora eu admitia isso.
Estava eu com dezenove anos, e ela devia ter seus quinze. Talvez menos, pela doçura do olhar e dos movimentos. Era agora meu desejo tê-la comigo, de qualquer maneira.
No dia seguinte ela não apareceu na janela, e já imaginei a razão disto. Fiquei a rodear o muro do meu terreno à procura de sua imagem, mas não encontrei.
No outro dia pude vê-la. Estava de cabelos soltos à janela, me sorrindo. Era loira. De um loiro juvenil e virgem, intocado, fresco e belo.
- Oi, preciso falar com você, Clara.
- O que foi?
- Quero me casar com você...
- O que?!
- Estou perguntando se quer se casar comigo.
- Tem certeza do que está perguntando?
- Absoluta. Eu a amo.
- Escute, não me oponho ao senhor em nada, e também seria feliz se me casasse com você, acredite. Gosto do senhor. Mas o problema é outro...
- Já sei! Aquele velho...
- Não fale assim... ele é meu protetor. Cuidou de mim a vida inteira, praticamente, desde que meus pais morreram e fiquei órfã... ele parece rude e briguento às vezes, mas cuida bem de mim...
- Ele é casado com você?
- Não é...
- Pois então vamos nos casar!
- ... mas vou me casar com ele, daqui a um tempo.
- Quanto tempo?
- Alguns dias... ele vai marcar o casamento. Quer assegurar que eu o acompanhe até o final de sua vida... é o mínimo que posso fazer por ele, que me acolheu este tempo todo... já é velho e doente, e eu faço todo o serviço de casa para ele... sozinho ele não pode.
- Você gosta dele?
- Gosto.
- E gosta de mim?
- Muito.
- De quem gosta mais?
Uma voz rouca gritou lá de dentro pedindo algo. Ela se afastou da janela e se desculpou, dizendo que precisava ir vê-lo, pois queria almoçar.
Nos outros dias, passamos a nos ver secretamente por outra janela. Da janela de meu quarto eu podia ficar bem próximo da dela, e desta forma podíamos até nos tocar. Passamos então a namorar por esta janela por alguns dias. Mas não era suficiente.
- Quero que fique com meu lenço – disse ela, me dando um pano perfumado seu.
- Por que?
- Para que se lembre de mim... também o amo... não me esquecerei de você.
- Mas não vamos nos separar... vou me casar com você, e estou determinado. Não vou desistir tão fácil assim...
- Desista, por favor. Isso só vai causar transtornos a ele...
- Ele sabe que nos vemos?
- Deve desconfiar... mas não diz nada a respeito para mim.
- E se ele soubesse?
- Acho que mandaria você parar, primeiro.
- E depois?
- Depois acho que viria vê-lo e falaria pessoalmente, não sei.
- Bateria em você?
- Talvez...
- Se ele fizer isso...
- Escute, esqueça-me, por favor... me casaria com você se não houvesse que servir ao meu senhor... devo isso a ele... não seria justo...
- Não desisto. Com quantos anos ele está?
- Velho. Deve ter setenta.
- Esse bicho demora pra morrer, hein? Até quando deve viver?
- Não sei... mas não por muito tempo. Creio que deseja somente se casar comigo e descansar, para ter cumprido o que queria na vida... por que não espera e então nos casamos, quando ele morrer?
- Mas não posso esperar nem mais um instante! Preciso de você agora! – neste momento caí da mureta da janela, por descuido, e fui me esborrachar no chão de terra. Depois voltei a ter com ela:
- Ainda está aí?
- Estou.
- Vou me casar com você em breve. Nada vai me impedir, nem mesmo um velho escroto e rabugento...
- Não xingue ele, por favor...
Beijei-lhe na boca demoradamente e acariciei seus cabelos. Depois desci da mureta e entrei em meu quarto.
- Até logo.
No outro dia tive uma idéia. Resolvi ir falar com ele, esclarecer toda minha situação, me abrir com o velho. E ver o que ele me dizia. Até que eu estava bem otimista.
Perguntei à Clara a que horas ele voltava da cidade, e assim disse que iria até lá mais tarde. Ela não achava uma boa idéia e tentou me impedir, mas não dei ouvidos a ela.
Quando chegou a hora, toquei a campainha e aguardei. Tinha vestido meu terno menos velho, para a ocasião.
Ele próprio me atendeu, e me reconheceu, lançando-me um olhar de suspeita.
- Entre.
Entrei na casa. Me sentei.
- Fale.
- Bem, o motivo pelo qual vim até aqui ver o senhor, que já sabe quem sou... é por causa de sua afilhada.
- Ela? – e ele apontou para Clara, que vinha descendo a escada ao nosso encontro.
- Isso mesmo. Tenho o forte desejo de me casar com ela... e estou ciente de sua situação. Sei que é sua protegida, e que em breve pretendem se casar... sei de tudo. Mas queria que me ouvisse e tentasse entender que o que sinto por ela é muito forte, e que ela também me ama igualmente. Por isso, sem ter nada contra o senhor, peço permissão para me casar com Clara.
- Não posso permitir. O casamento está marcado.
- Para quando?
- Daqui a seis dias.
- Peço ao senhor que considere o meu pedido...
- Não posso. Vou me casar com ela, está decidido. Vocês mal se conhecem. Não boto fé neste seu sentimento.
- Eu a amo.
- Não insista. Já dei minha resposta.
- Mas eu...
- Já chega.
Ia partir pra cima dele, mas me contive, por respeito a Clara. Olhei para ela, que estava calada observando, e então deixei a casa sem nenhuma palavra.
Nos dias que se seguiram, enquanto eu me ocupava de meus afazeres normais, um súbito sentimento foi brotando em meu ser. Era um sentimento de raiva, de ódio do velho asmático, um desejo de mata-lo tão grande... que mal podia pensar em outra coisa senão faze-lo. Me casaria com a garota, por bem ou por mal.
E foi então que comecei a arquitetar meu plano. Tudo tinha que ser feito com muita calma e segurança. Já tinha me resolvido. Um dia acordei e fui à cidade, onde sabia que havia uma loja de armas. Fui lá e comprei uma, pequena, sobre a qual o vendedor me disse: “Ela é pequena, potente e não trava. Mata um cavalo a trezentos metros de distância.”
Fui pra casa e pensei no que faria. Bem, tinha que praticar antes de usar a arma. Mas era melhor não atirar por ali, ou os vizinhos começariam a desconfiar. Então resolvi deixar por um tempo a casa e fui procurar um hotel afastado, na estrada, para ficar. Aluguei um quarto apertado e sem nada dentro a não ser uma cama baixa e estreita e uma pia quebrada com um espelinho.
Saí e fui procurar de carro um lugar afastado no meio do mato onde pudesse treinar os tiros sem despertar a curiosidade de nenhum fazendeiro.
Tinha ido ao exército ano passado. Pegara por puro azar, e lá tinha aprendido um pouco sobre a armas, e a dar tiro. Só que estava sem jeito pra coisa, talvez pelo nervosismo. Disparei num tronco de árvore, me acostumei à arma durante alguns dias. Não teria erro. Era só pegar ele de surpresa.
No hotel eu ficava o dia inteiro, enquanto não dava tiro, deitado na cama dura olhando para o teto, sem pensar em mais nada a não ser o velho e a garota. Um dia o dono do hotel veio bater à minha porta e mal agüentou a fumaça de cigarro guardada no quarto fechado. Perguntou se eu queria alguma coisa, e só então me lembrei que não comia nada há dias. Fiquei com preguiça de falar e só abanei o braço, dispensando-o. Também fiquei com preguiça de me levantar e ir à padaria comer. Pra que comer? Primeiro mataria o velho. Depois pensava em comer, e em ver minha Clara, e em sonhar com ela, dormir com ela, e amá-la ainda mais, casar, ter filhos...
Sem querer dormi por dois dias seguidos deitado naquela cama horrível. Quando acordei, empoeirado e suado, estava com o corpo todo formigando, dormente. Entrei em desespero, mas depois de vinte minutos voltei ao normal. Estava desnorteado e lunático, febril. Saí, peguei a arma, paguei ao homem do hotel e voltei de carro pra casa.
Bem, era isso. Mataria ele hoje mesmo, nada havia de dar errado.
Encontrei Clara na janela e perguntei a que horas o velho chegava. Ela disse que ele chegava às seis. Menti para ela e disse que queria me desculpar com ele. Ela nada disse.
Me preparei, me vesti com um terno branco e saí de casa com a arma carregada. Seria rápido. Bastariam três tiros certeiros.



Neste momento Johnny Boy parou. Já tinha bebida tanto que mal podia falar. Sua voz estava congestionada. Fez um esforço e prosseguiu, como se não conseguisse se lembrar bem do final da história.



Quem me atendeu foi Clara. O rosto branco, e a atitude era como se adivinhasse o que eu tinha ido fazer ali. Parece que tentou me impedir. Nem me lembro, a imagem que eu via era esbranquiçada.
Fui entrando na sala de visitas deles firme e decidido, e olhei em volta.
- Onde está ele?
- Quem?!
- O velho.
- Que velho?
- Seu maldito prot...
Neste momento o velho desceu a escada e pisou na sala.
Não vi mais nada, e nem senti tampouco. E foi rápido demais. A arma me veio encaixada às mãos perfeitamente. Mecanicamente.
Me veio um arrepio pela medula conforme o gatilho era levado pra trás. Era um troço rápido, só que não foi tão rápido. Parecia que estávamos rodando em câmera lenta. Talvez tenha visto de relance o rosto apavorado de Clara.
O corpo dele tombou seco no carpete. A arma caiu de minha mão e eu tremia. Senti tontura, mas permaneci mantendo uma postura calma e estável. Clara estava atrás de mim. Quando me virei para vê-la, esperando gritos e choros, surpreso notei que empunhava uma mochila azul que certamente devia conter tudo o que precisaríamos para o resto de nossas vidas após a nossa fuga.



Todos ficaram surpreendidos e pensativos, achando que a história de Johnny Boy Silva havia terminado. E de forma emocionante. Porém, ele depois de um tempo começou a tossir, embriagado, e retomou a narrativa desde a hora em que estava indo para a casa da garota.



Cheguei à casa e toquei. Clara atendeu. Notei certo espanto em sua face, como se previsse o que se sucederia. Passei por ela.
Lá dentro o carneiro me aguardava sentado no sofá lendo jornal. Devia ser surdo, pois nem me viu. Maldito! Não o mataria sem saber. Gritei. Não ouviu. Fui mais perto, cutuquei a folha do jornal com o cano e, quando por trás da 1a página vi surgir o rosto convulso e enrugado, disparei sem pensar duas vezes, e por três vezes.
Houve um momento de total silêncio e inércia. Larguei a arma.
Olhei para Clara, e ela me olhava com um olhar mais misterioso do que nunca. Nada de gritos e desespero. Ela permaneceu me olhando profundamente com um olhar que não se definia. Medo? Não... Indiferença? Não... um olhar de repressão, talvez? Não sei...
Fugimos naquela tarde.
Ao pegarmos a estrada, senti uma forte dor nos olhos. Sem motivo algum começaram a arder. No momento não dei importância ao fato.
No meio da viagem, sofremos um acidente batendo de frente com um caminhão. Até hoje só sei de uma coisa: fiquei cego de uma hora para a outra e não pude desviar. Foi isso. Banal, inexplicável.
O carro se esmigalhou. Clara morreu na hora. Eu fugi pro mato, cego até hoje, vivendo sem ela e sem ninguém mais. Não demorei pra perceber a moral Divina: fiquei cego de amor, matei; paguei com a própria vista, e sozinho.



A memória do boêmio estava afetada, deteriorada pela bebida, e ele acabou confundindo tudo e contando um outro final, sem se lembrar de que já havia finalizado duas vezes a mesma história. Todos estranharam, mas mesmo assim quiseram ouvir novamente.



Saí de casa decidido, firme, e atravessei o jardim. Toquei.
Clara me recebeu, calada e pálida.
Entrei.
Na sala estava o velho, sentado, como que me esperando. Não disse nada. Foi Clara quem se manifestou:
- Nos casamos enquanto estava fora – disse ela, misteriosa e com um brilho nos olhos claros.
Fiquei mudo. Não pensei em nada, não reagi, não abri a boca.
Todos ficaram calados.
Resolvi que precisava dizer algo. Mata-lo... mata-la... me matar... gritar, quebrar tudo... mas não tive forças. Vendo aquele velho ali, sentado, doente, tive pena. Assim, de repente. Me virei lentamente e fui deixando a sala e depois a casa. Não era tão grave assim. Logo, quem sabe em alguns dias, o velho batia as botas. E aí eu podia me casar com Clara. Sem remorsos. Quando ia saindo, ela me parou:
- Espere. Não sei se...
- O que?
- Será que digo?
- Diz sim! O que é?
- Bom... é que eu...
- Fala, Clara!
- ... eu tenho uma irmã gêmea, Sara. E aí, não sei, quem sabe você...
- Cala a boca, Clara...



Johnny foi ao banheiro, dizendo que já voltava para contar o final da história. E todos mais uma vez se perguntaram se a narrativa já não havia terminado. Um minuto depois ele voltou, trôpego, e reiniciou o final, como se fosse a primeira vez que o fazia.



Entrei na casa de Clara decidido. Era a hora.
Ela me fez entrar até a sala, onde se encontrava seu “protetor”. Ele lia o jornal. Eu sentia o cano frio do revólver na perna.
Ele baixou o jornal e ficou parado. Resolvi falar.
- Bem, se não tem jeito...
- Como?!
Tirei o revólver do bolso. Apontei, firme. Era só pressionar o gatilho. O velho se engasgou.
- O que pensa que está fazendo, moleque?
- Vou te matar.
- E posso saber por que?
- Claro. Porque não posso me casar com sua protegida.
- Minha o que?!
- Protegida... Clara.
- Ela?!
- Está vendo mais alguém aqui?...
Ele ficou bobo.
- Ela não é minha protegida.
- Como assim? – eu que fiquei bobo agora.
- Clara é minha sobrinha. Eu disse que não deixava vocês se casarem de brincadeira. Foi idéia dela, ela adora brincar com os outros. Vai fundo, rapaz.
- Sobrinha?!
Olhei para ela, que baixou os olhos, corou e mordeu o lábio. Nos casaríamos dali a duas semanas.



Desta vez Johnny Boy parou de falar mesmo. Todos esperaram que um novo final chegasse, mas parou por ali. E seus amigos se perguntavam qual daqueles desfechos seria o verdadeiro. Mas provavelmente no dia seguinte Johnny Boy Silva nem se lembraria de ter contado história nenhuma...






6 – Reinaldo J. Giuliano

Em uma das mesas alguns dos presentes começaram um jogo de pôquer. Estava valendo dinheiro vivo, por isso todos se animavam muito agora. Novas rodadas foram pedidas quando Reinaldo, o beberrão, lembrou-se de uma viagem que fez quando era jovem...


Éramos um grupo de cinco. Minto. Éramos seis. Eu e mais cinco colegas de faculdade. Era o fim do nosso primeiro ano de faculdade, em 1976. Chegou o verão, já tínhamos passado de ano e resolvemos bolar uma viagem pra Ilha Bela. Pegar uma praia, sem nossos pais, com o carro do Bira, não era má idéia para a gente.
O Bira era o mais velho, o mais irritado e mais chato. Só porque o pai dele emprestava o carro, e porque ele dirigia, queria ser tipo o líder do grupo. Sempre metido e cheio de dinheiro. Além do mais, o apartamento onde íamos ficar era dos tios dele. Mas a gente ia ficar sozinho, se virando mesmo, e isso é que era bom. Seríamos independentes, não teríamos hora para voltar e não precisaríamos nos preocupar com adultos enchendo o saco.
Tínhamos dezoito, dezenove ou vinte anos. O Paulinho era o mais novo, eu me lembro. Depois vinha o Fernando Lima, depois eu, e tinha o Kiko e o Sandro, aquele louco.
Bem, partimos na hora do almoço, numa Sexta-feira, um puta sol de rachar na estrada, previamente alcoolizados e prontos para a farra. No carrão, é claro, não cabiam todos. Aí fizemos assim: fomos quatro no carro, e do nosso lado, na estrada, ia o Fernando Lima com o Kiko na moto do Sérgio, emprestada. Lembra do Sérgio? Esse mesmo, do colegial.
Na estrada corremos além do limite diversas vezes, e, por um milagre, não levamos nem uma multa sequer. Pura sorte, é claro.
Em cima, presas por elásticos fortes, nossas pranchonas lindonas brilhando à luz do sol.
No rádio, The Who e Deep Purple pra esquentar o negócio. Cinco loucos e um lunático (o lunático era o Sandro, é claro).
Logo no começo, quando estávamos a 100 por hora, o Sandro levanta de repente e põe a bunda pra fora do carro, na frente de uma porção de carros que passavam e ficavam olhando, espantados. Acabamos achando legal, e logo todos os idiotas estavam com os traseiros pra fora do carro, no ventinho da estrada. Menos o Paulinho, que dirigia. Bem feito. Quis dirigir, acabou não se divertindo.
Fomos tomando cerveja o caminho todo. Eu lembro que o Kiko gritava, lá da moto, pra gente:
- É isso aí, pessoal. É pra chegar lá bem louco e já cair na gandaia.
- Com certeza, Kiko! – gritava o Sandro, com a cabeça pra fora do vidro.
Chegamos lá e arrumamos tudo. O apartamento era enorme, tinha espaço pra caramba, até pra seis marmanjos espaçosos. TV, rádio, sacada, uma vista linda de frente pra praia, e, é claro, meninas lindas que moravam no mesmo prédio. Não demoramos a saber onde elas moravam, pois o esperto Paulinho logo tratou de descer e perguntar algumas coisinhas para o zelador. Descobrimos então que elas estavam no mesmo andar. Quase ao lado.
As férias realmente iam ser muito boas...
Preparamos as pranchas e fomos surfar. Não queríamos perder tempo algum. Íamos ficar lá durante vinte dias. Mas quando se é jovem não se quer nunca ficar parado e deixar a diversão para depois.
A praia era um oásis natural, lindíssima, aparentemente limpa, o tempo estava ótimo, sol forte, ondas perfeitas e muita gente que já tinha chegado na cidade para as férias. Os turistas infestavam a calçada ao longo da avenida praieira, e, ao longo da larga faixa de areia, aqui ou lá via-se grandes pedras escuras incrustadas na areia, perto das quais se achavam grupos de surfistas e de jovens conversando ou tomando sol.
A tarde rendeu um surf dos melhores, nem vimos o tempo passar.
Então voltamos para o apartamento no final da tarde. À noite sairíamos, e então... mais diversão! Tomamos banho. Quando chegou minha vez, percebi que todos conversavam juntos na sala enquanto eu estava no chuveiro. Pensei que seria alguma brincadeira, e ri sozinho. Iam aprontar alguma comigo...
Saí do banho e me surpreendi: silêncio total. Procurei eles, nada. Eu estava sozinho no apartamento. Resolvi descer para ver se estavam no saguão. A porta trancada. Chave? Nenhuma. Haviam me trancado lá dentro. No mesmo momento fiquei enfurecido com a brincadeira. Resolvi ligar para o síndico. Não estava em casa. Nem tampouco ninguém passava lá embaixo, na rua, pra eu gritar e pedir ajuda. Fiquei que nem bobo sentado no sofá, enquanto provavelmente eles se divertiam.
A campainha tocou às dez horas. Fiquei animado. Podiam ter voltado. Com certeza daria uma porrada em cada um deles.
Porém, quando atendo o interfone, me deparo com a voz maravilhosa de prostituta dizendo que eu tinha chamado ela e que ela queria entrar.
Quase mijei nas calças. E no mesmo instante compreendi: era alguma brincadeira deles! Tinham ligado pra uma puta e mandado ela pro apartamento, sendo que só eu estava lá, e trancado. Eu disse que não tinha chave. Ela disse que tinha, e subiu.
Filhos da mãe! Tinham entregue a maldita chave pra uma puta, e mandado ela entrar no meu apa...




A narrativa foi interrompida subitamente pela presença de uma pessoa muita estranha que acabara de entrar no bar. Era uma mulher. Um vulto de mulher, coberto por um manto escuro, com o corpo escondido e um véu no rosto.
O bar todo parou e olhou para a figura, que andava devagar porém decidida até a mesa do grupo de Arnaldo. Ninguém dizia nada.
A mulher parou ante a mesa e disse, numa voz abafada e muito rouca:
- Atenção, seus vermes! Prestem atenção agora! Exijo que ouçam o que tenho a dizer... a maioria de vocês não deve estar me reconhecendo com todas estas rugas, cortes e cicatrizes que trago em minha face... e com este corpo deformado e destruído que apresento agora. Mas fiquem sabendo que vocês me conhecem... e me amaldiçoaram, infelizes!
A bruxa vibrava de ódio. Todos estavam atentos, e ela continuou gritando:
- Para os que ainda não se lembraram, vou refrescar a memória de vocês! Estudei quase todo o primeiro grau na classe de vocês. Como eram muitos alunos, talvez não se lembrem de mim... Arnaldo! Adivinha quem eu sou! Sou a prima do Chong, o chinês que você tanto zoava no ginásio! Sim! Era eu quem estava namorando com um rapaz na casa dele, naquele dia em que você foi fazer trabalho na casa dele! Sim! Nunca vou esquecer aquele dia, como poderia? Você se cagava de tanto rir, num canto! Rindo dos gases que soltávamos, coisa tão normal na nossa cultura! Sim! Você e aqueles outros crápulas da classe do Chong nos ridicularizaram para sempre, depois daquele dia! E o meu namorado, no final, acabou também achando graça, sabia?... acabou entrando na onda de vocês! E desmanchou comigo, Arnaldo, seu maldito! Eu perdi o namorado naquele dia! Ele disse que não ia mais aturar todos aqueles gases que nossa família soltava, e só porque você instigou ele, Arnaldo... mas não é só isso... depois disso, mudei meu nome para Paula Patrícia... e namorei Sandro! Lembra-se do Sandro, Tadeu? Lembra-se? Sim, aquele que lhe pagou uma grana para você colocar laxante no meu martíni... naquela festa que nunca esquecerei. Eu tinha acabado de fazer cirurgia no nariz, na época... e ainda tive que agüentar todas aquelas pessoas rindo de mim, na festa... fique sabendo que o laxante foi parar, sim, no meu drinque, e fez efeito imediato! Peguei trauma. Anos depois, conheci você, Wellington... você que, naquele dia, quase me matou! Pois aqui estou eu! Havia mudado meu nome para Gabriel, para começar vida nova. Mas não adiantou! Saí com Wellington de carro, e ele só faltou me matar! Quando estava na ambulância, caí para fora na estrada e rolei morro abaixo, até me estatelar no meio do mato. De lá me refugiei, toda deformada e fisicamente incapacitada! Fiz diversas plásticas e operações. Sumi por um tempo então. E me mudei para o campo, comprei uma chácara com o dinheiro que recebi da herança de meus falecidos pais... e conheci Toledo. Você, seu cafajeste. Imaginem só, um rapagão desses aí apaixonado por uma aranha! Uma aranha! Me trocou por um bicho nojento! Seu louco! Bandido! Fique sabendo que eu esperei mais de um ano para poder finalmente ficar a sós com você na sua casa de campo! E, quando estávamos no auge da noite, você vem me dizer que não quer nada comigo, e depois descubro que você gostava mais era daquela maldita aranha! Que morreu, por sinal. Sim, eu era a Tati também. E não acabou ainda. Tem ainda o Johnny Boy Silva, esse safado. Sou a Clara. A garota dos sonhos dele, como ele disse. Nos casamos, sim, éramos felizes juntos. Fugimos da fazenda e viajamos juntos. Um dia, já casados, ele disse que tinha se enjoado de mim! Dizia que minha beleza era falsa! Que eu tinha feito tantas plásticas na cara que ele não conseguia mais gostar de mim! Me chamou de boneca retalhada! Como se eu tivesse culpa dos acidentes que me ocorreram no passado. Foi culpa de todos vocês! Bem, Johnny me deixou sozinha e anos depois eu conheci o Reinaldo, esse troglodita! Foi lá na praia. Uns amigos dele estavam querendo pregar uma peça nele, e eu, no meu novo emprego de garota de programa, que foi o que me restou, entrei na brincadeira. Iria até a casa dele como prostituta, e receberia em troca. Vou contar pra vocês como terminou isso. Naquele dia eu entrei no apartamento, nós nos conhecemos, e logo começamos a nos divertir, apesar do nervosismo dele. Ele era virgem. No meio da relação, no auge, adivinhem! Os pais dele chegaram no apartamento! Sem avisar! Assim, de repente, e nos pegaram no flagrante! Pelados na sala. Bem, o que aconteceu foi que os pais dele me expulsaram do prédio debaixo de porrada, principalmente o pai dele. Fiquei toda ferida e finalmente desisti de retalhar mais uma vez o meu corpo e meu rosto. Tinha percebido que a vida não gostava de mim. E fiquei extremamente revoltada. Já não tinha mais nenhuma chance na vida, não conseguia empregos descentes, não tinha amigos... todos me desprezavam. Aí resolvi que só podia fazer mais uma coisa de útil com a minha vida. Me vingar. Sim, me vingar de todos aqueles que causaram a minha ruína. E é por isso que achei vocês todos, após todos estes anos, e pretendo liquidar um por um sem piedade!
Ela avançou. Tirou um longo punhal de dentro do manto e se preparou para matar o primeiro bêbado da mesa. Porém, algo ocorreu. Todos estavam imóveis. A bruxa parou no lugar, olhos arregalados e mãos trêmulas. Caiu no chão. Morta.
- O que houve?!
- O que aconteceu?... – perguntavam todos, confusos e tontos de tanto beber.
- Vem cá, Tereza – disse Toledo, recolhendo na mão uma enorme aranha caranguejeira peluda. Em seguida guardou-a numa caixinha – Bom trabalho.
- Toledo! A aranha! Ela está viva?! – perguntou Wellington, vendo que a aranha tinha sorrateiramente sido solta e picado a inimiga deles.
- Não, esta não é a Gabi, minha primeira aranha querida e falecida... esta é a Tereza... uma substituta. Acabou de provar que me ama... – disse Toledo, comovido.
- Graças a Deus! A louca ia nos matar mesmo! – disse Tadeu, suando frio.
- Viva a aranha do Toledo! Salvou a pátria! – disse Arnaldo, contente - Eu proponho um brinde... à aranha, ao Toledo... ao passado... à gente... ao bar... e a esta noite tão agradável que temos tido até agora...
Todos entraram no brinde, e saudaram àquelas loucas vidas que tinham passado quase sempre juntos, e quase sempre num estado duvidoso de espírito, entre a lucidez da realidade e a total bebedeira da boemia.

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