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Contos-->Os fumantes passivos -- 29/01/2003 - 01:15 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos





Palpitação 3
Os Fumantes Passivos



Parte 1



1 – Wellington e o carro de Wellington
Dia 9 de Setembro, às 21:50, em frente ao clube


Wellington desceu de seu Palio Weekend e fechou a porta, cuidadosamente, porém ruidosamente, obviamente para atrair a atenção das pessoas que estavam paradas em frente ao clube ou que lá chegavam, geralmente em casais ou grupos de amigos.
Conferiu duas vezes se a porta havia sido trancada, deu meia volta, começou a andar e então resolveu voltar e conferir mais uma vez. Mesmo tendo averiguado três vezes, Wellington ainda ficou receoso. Pois aquele era seu maior bem, não seu maior bem material, mas seu maior bem pessoal.
O amor pelo automóvel superava, sem exageros, o amor familiar... pois garantia pelo menos 50% do bom andamento de suas noitadas. Era algo com o qual ele se sentia garantido e seguro. Escondido sob a sombra do carro, ele tinha mais chances de perpetuar a imagem que sempre teve como objetivo transmitir às pessoas, principalmente às mulheres: a do garanhão mais moderno e economicamente tranqüilo do pedaço. Pedaço este que, quanto maior era, mais aumentava algo cujo nome o próprio Wellington desconhecia: o ego de Wellington.
E assim foi ele andando e prolongando aquele momento que era muito influente e essencial em sua vida: a impressão que o carro trazia naquela hora. Por isso o cuidado com o Palio era tão exagerado. Wellington, uma vítima da sociedade esbanjadora e interesseira de seus tempos. Uma sociedade da qual ele faz parte e ajuda a construir.
O clube estava cheio, devido à noite de Sábado. É o dia em que mais se deve ter cuidado. E, para Wellington, é claro que o único significado da palavra cuidado é causar a boa impressão.
Olhou em volta, sondando o local, procurando alguém conhecido. Ninguém. Foi desviando das pessoas até chegar ao balcão. Avistou Wagner sentado, e parou. Para onde ir agora? Isso não deveria acontecer. Desviou do balcão, onde Wagner estava, e continuou andando. Foi até o banheiro. Sentou-se de porta fechada em um dos vasos sanitários e pensou: “O caipirão tinha que estar aí sozinho? Tinha que ter chegado antes? E agora? Eu não vou falar com esse maldito sertanejo, não mesmo! Pra depois dar no que sempre dá?” Em seguida olhou em volta, desconfortável. “Mas não posso ficar aqui sentado a noite inteira. Como vou saber se alguém já chegou?”
Wellington não queria se encontrar com Wagner, pois sabia que boa coisa não ia sair deste encontro. Os dois, nos últimos tempos, têm procurado não se envolver e nem se falar muito. Era um acordo silencioso. Um trato no estilo “não mexa comigo, que eu também te deixo na boa”. Wagner e Wellington eram duas pessoas que dariam um ótimo exemplo de caras que “não se bicam”.






2 – A casa de Walcyr
Dia 9 de Setembro, às 22:07, perto da casa do Walcyr



Naquela noite de Sábado havia muito movimento nas ruas de São Paulo, não só de veículos mas também de pessoas que, sempre acompanhadas, procuravam locais onde pudessem se divertir.
Wanderley levou um tempo considerável para chegar na casa de seu amigo, devido ao trânsito. Mas, sendo o sujeito calmo que era, não se abalou, como muitos fariam nestas situações. Não que fosse um cara frio e impassível, isso não. Era compreensivo, conformado e muito relaxado, isso sim. Os amigos costumavam dizer que ele era muito “devagar”. “Devagar quase parando”. Podia até ser considerado meio lerdo, não só em suas atitudes, como também de raciocínio. Um cara pacato, sem muitas surpresas vividas. Esse seu jeito, é claro, não incomodava seus amigos, muito pelo contrário. A falta de ambição de Wanderley tornava-o um cara agradável, leal, fiel, confiável. Um amigão.
Wanderley tocou a campainha e foi atendido, depois de alguns segundos, por uma garota de seus dezoito anos. Era muito bonita e atraente, e vestia uma camisa surrada e um short bem curto. Nos pés, havaianas. Tinha os longos e negros cabelos despenteados, e um bonito e calmo sorriso nos lábios.
- Oi, tudo bom, Cíntia?
- Pode entrar, Wan.
Ele entrou, e ela pediu que ele se sentasse.
- O Walcyr já deve estar vindo, viu? – disse ela.
- Ah! Tudo bem.
A sala era muito bem decorada e arrumada, com um grosso tapete no chão, uma estante cheia de livros, CD’s e LP’s, todos muito velhos, dois sofás e uma poltrona recobertos com uma imitação de pele de zebra e uma mesinha no centro, onde se encontrava um pequeno vaso e uma porção de saquinhos transparentes com pó branco dentro.
Cíntia olhou para Wanderley e explicou, meio encabulada:
- Estou com umas visitas aqui, vou vender um pouco disso hoje...
- Ah.
- Tá interessado? – perguntou ela, apontando para a mesinha.
- Hum? Não, não, obrigado.
Então entrou na sala uma mulher com uns trinta e tantos anos, muito bem vestida, andando apressadamente.
- Desculpa, Cíntia, eu não estou muito bem do estômago, você sabe como é... – disse ela – Eu não passo mais vinte minutos sem ir ao ba...
- Que nada... – disse Cíntia – Não precisa se desculpar, eu não tenho pressa...
A mulher se sentou no sofá, de frente para Cíntia, e olhou o material na mesinha, que estava à sua frente.
- Agora você pode escolher numa boa... – disse Cíntia, acendendo um cigarro.
- Você sabe que o Odimar não quer o mesmo da última vez, não sabe? Eu não sei o que fazer – disse a mulher, fazendo gestos com a mão – Porque eu gostei. E muito. Mas ele quer alguma coisa diferente, tá entendendo? E essa aqui? – perguntou, pegando um dos saquinhos.
- É das melhores, sem brincadeira – respondeu Cíntia – Se eu fosse você levaria, e não iria me arrepender. É felicidade garantida.
- Mas o Odimar...
- Cláudia, escuta o que eu te digo. Nem o Odimar vai achar defeito desta vez.
- Nem ele? Tem certeza, Cíntia? Porque você sabe como ele é, não sabe?
- Claro que sei, Cláudia – disse Cíntia, sorrindo.
Cláudia parou um momento e refletiu, dizendo para Wanderley:
- Não é terrível, a indecisão?
- Hã? Ah, eu também acho. É – respondeu ele, balançando a cabeça.
- Tá bom, Cíntia. Pode embrulhar esse. Eu vou pelo seu palpi...
Neste momento entrou na sala um garoto de cabelos compridos, de uns dezesseis anos.
- Ah, Júnior, já acabou lá, querido? – perguntou Cláudia para ele.
- Já, mamãe.
- E os garotos, falou com eles?
- Falei.
- Comprou?
Júnior levantou um pacote que tinha nas mãos.
- Pô, eu quero ir, mamãe. Os cara tão tudo lá, esperando.
- Ai, meu querido, me desculpa. A mamãe já está acabando aqui – disse Cláudia, passando a mão nos cabelos de seu querido filho.
- Pô, mamãe, desse jeito cê queima meu filme todo, pô!
- Já vai – disse ela, virando-se novamente para Cláudia e pegando de sua mão o pacote – Muito, muito, muito obrigada mesmo, Cíntia. Deixa eu pegar o talão...
Foi aí que finalmente desceu pelas escadas Walcyr, o homem da casa.
- Fala, Wan! – gritou ele, ao ver o amigo.
- Ah! Cê tá aí? – disse Wanderley, virando-se.
- Não, cara. Eu tô lá no banheiro, ainda – disse Walcyr, rindo.
Júnior soltou uma risada estrondosa.
- Oi, Cláudia. Tudo bom? – disse Walcyr, cumprimentando-a.
- Tudo, eu já estou de saída, Walcyr.
- Tem pressa não, viu? – disse ele, em seguida dizendo em voz baixa para Cíntia: - Dá um pulo lá em cima e dá uma olhada nos garotos, Cíntia.
- Por que? – perguntou ela? – É você quem tem que “olhar” eles, não eu! Não fui eu quem deu abrigo pra um bando de delinqüentes, foi você...
- Cíntia, eles tão tendo problemas... por favor!
Ela se virou e subiu as escadas, irritada.
Júnior ficou olhando para Wanderley, e perguntou:
- Quem é esse otário, mãe?
- Júnior, eu não te ensinei bons modos não, menino? – respondeu a mãe, entregando o cheque a Walcyr – Esse é o... como é o seu nome, moço?
- Wanderley – respondeu ele – Oi, Júnior – disse ele, balançando a cabeça.
- Putz... olha só pra esse cara, mamãe! Vamo embora.
- Calma, Júnior. Bom, Walcyr, semana que vem... eu volto.
- Tá bom, dá um abraço no Odimar por mim!
Mãe e filho deixaram a casa, e Wanderley disse:
- Ô Walcyr, aqueles garotos ainda estão aqui?
- Estão. Eu não posso fazer nada... você sabe, é um favor que eu estou fazendo. Um favor, não, uma retribuição. É bem aquela situação em que você recebe uma puta ajuda, e depois de um tempo, essa pessoa que te ajudou te deixa em uma posição de devedor, te cobrando algo, que nem se compara ao que ele te fez. Um favor muito maior do que aquele que ele te fez, entendeu?
- É...
- Mas logo, logo eles devem sair. O Rona deve voltar do Rio em Fevereiro.
- Ah...
- Wan, não notou nada de diferente?
Wan ficou em silêncio e perguntou:
- Como assim?
- Na casa! Não notou nada?
- Hum... – Wanderley pensou por um tempo e finalmente disse:
- Não... nada.
- Ah, que é isso, cara? Do lado da estante, na parede!
- Ah, tá! É nova?
- É.
- Mas é o que, uma carabina?
- Não, não. Carabina é a outra, na cozinha. Essa é uma escopeta, mas é das mais velhas. E está carregada.
- Sério?
- Sério – respondeu Walcyr.
- Comprou no Luís, né?
- É... Vamos indo, os caras já devem estar lá.
- Tá bom – Wanderley se levantou com muito esforço, e eles deixaram a casa.





3 – Wesley conta uma história
Dia 9 de Setembro, às 23:30, no clube


- Ei, esse viado vai ou não vai trazer a cerva? – esbravejou Wellington, levantando os braços com indignação – Estou esperando há meia hora!
- Fica frio, cara. Cê devia é parar por aí. Depois eu não vou ficar carregando ninguém... – começou Walcyr.
- Se liga, eu tenho mãe, Walcyr, e nem ela fica enchendo o saco desse jeito...
- Ah, a mamãe já soltou a criança, é? Estou impressionado! – gritou Wesley, animadamente, soltando em seguida um arroto.
- O que você está falando, fedelho? Por acaso você é melhor que alguém aqui nesta mesa?
- Ei, ei, ei! – disse Walcyr, sem se alterar – As crianças não estão a fim de chamar atenção de novo, não é mesmo? Desse jeito vocês queimam a imagem que temos a zelar neste estabelecimento, não concordam?
Wellington e Wesley se olharam de soslaio e este último atirou em Wellington um guardanapo amaçado.
- Ei, pessoal, meu sanduíche veio sem hambúrger! – disse Wanderley.
- Eu vou no banheiro – disse Wilson.
- Ei, o Wagner não vem hoje não?
- Ele disse que vinha, só que só mais tarde – respondeu Walcyr.
- Fazer o quê, né? – disse Wellington, se ajeitando na cadeira.
Todos olharam para ele intrigados, até que Walcyr disse:
- Peraí... você quis mesmo dizer isso?
- Você está surdo, por acaso? – disse Wellington.
- Por que você não gosta do Wagner? O cara te fez alguma coisa?
- Não necessariamente, mas... – começou Wellington.
- Mas...? – indagou Walcyr, irônico.
- Esquece! Eu tenho todo o direito de achar o que quiser de quem eu quiser!
- Mas você não concorda que cada um é cada um e que cada um tem que cuidar de seu próprio nariz?
- Sei lá... – disse Wellington – Quero que se dane, isso.
Wesley caiu na risada.
Walcyr ficou olhando para Wellington, incrédulo, enquanto este continuava a tomar sua cerveja, tranqüilo.
- Cês viram aquela piranha que acabou de entrar? – perguntou Wesley.
- Que que tem ela? – perguntou Walcyr.
- Peraí, eu não sei de quem vocês estão falando, quem é, aquela ali? – disse Wellington, confuso.
- Cala a boca! – disse Walcyr – Fala, Wesley.
- Peraí, eu estou completamente perdido! – disse Wellington – É aquela perto da porta ou a de blusa azul?
- Então... vocês já devem ter visto ela por aqui – disse Wesley – Pois o Reinaldo, o barman, me contou um negócio sobre ela hoje...
- Alguém tem lenço de papel? – perguntou Wanderley, que soltara um espirro e cobria o nariz com as mãos.
- Ela se chama Jaqueline, e tem vinte e cinco anos – continuou Wesley – Uma piranha da pior qualidade... se casou com um cara velho pra cacete cheio da grana, dois meses atrás. Arnaldo Barbacena, lá do Morumbi.
- Só podia – disse Walcyr.
- Bem, não há dúvidas quanto ao motivo do casamento, é claro que ela ia dar o golpe mais cedo ou mais tarde. Mas acontece que as coisas tomaram um rumo diferente. Um dia, ela acordou decidida a ir para bem longe com toda a carga do velhão... e estava preparando tudo... isso mesmo, ela estava premeditando tudo...
- Por que você gosta tanto de usar a palavra “premeditando”? – perguntou Wellington – Por acaso acha que é uma palavra bonita, e que as pessoas vão...
- Puta que o pariu, Wellington! – disse Wesley, inconformado – Eu estou aqui tentando contar um negócio e você me interrompe, assim não dá!
- Chega, Wellington – disse Walcyr – Deixa o Wesley falar. Fala, Wesley.
- Bom, o que aconteceu foi que, apesar de ela estar preparando todo o golpe, que era infalível, o velho pegou ela com a mão na massa...
- Peraí, “mão na massa” já não se usa há muito tempo, cara! – disse Wellington, sarcástico.
- Ela estava esvaziando o cofre, cuja senha ela sabia, e enfiando os pertences do idiota dentro do casaco. Ele resolveu se deliciar com a descoberta da traição, porque este velho era realmente um demônio! Ela não conseguiu ver que ele estava ali, e no resto do dia passou a agir disfarçadamente. O velho Arnaldo, à noite, na hora da janta, pegou a espingarda da parede e saiu atirando para o alto como um louco. Não conseguiu se controlar, e a piranha foi chamar a polícia.
- Que puta mulher estúpida! A polícia ia encontrar o dinheiro no quarto dela...
- Aí é que está! Ela só se lembrou disto quando a polícia estava prestes a chegar. E o velho ia matar ela, se não fosse pelo filho dele, que matou o pai a pancadas!
- Não pode ser verdade!
- É a pura verdade! E sabe o que a piranha e o rapaz fizeram? Eles saíram correndo, juntos, com toda a grana! A culpa acabou caindo sobre os criados, que foram acusados pela polícia de terem matado o velho para ficar com o dinheiro.
- Tá, e como eles explicam a perua e o filho, que fugiram?
- A Jaqueline estava casada com o velho secretamente, se vocês não sabem. Afinal, um homem tão respeitado como Arnaldo não podia sujar a imagem! Logo, ninguém sabia que ela vivia lá, a não ser os criados. As poucas pessoas que sabiam e que moravam na mesma rua do velho, sabiam que, se abrissem a boca sobre a piranha, corriam sérios riscos de vida.
- E o filho dele?
- O filho dele já planejava fugir com todo o dinheiro do pai, assim como Jaqueline, só que ela não sabia disso e ele também não sabia que ela faria a mesma coisa. Então, quando viu que ela ia tentar esta loucura, partiu junto. Ele já tinha preparado uma falsa carta para o pai se despedindo, dando a entender que ia somente sair de casa, e mais nada, sem levar dinheiro algum. Pois naquela noite, se lembrou da carta e a deixou em cima da mesa. O álibi estava criado.
- Mas eles continuam juntos? – perguntou Wanderley.
- De jeito nenhum! O Reinaldo disse que, dois dias depois de eles terem fugido e encontrado um refúgio, a maldita já deixou o cagão sozinho e levou o dinheiro embora. O que a traz aqui ao clube, onde procura sua mais nova vítima pra aplicar o velho golpe... – finalizou Wesley, sério.
- Peraí, mas é a de azul ou a outra? – perguntou Wellington, desorientado.
Ninguém respondeu à pergunta de Wellington, não só por achar uma pergunta idiota, mas principalmente porque todos os homens naquela mesa naquele momento olhavam para Jaqueline, aquela mulher misteriosa e ao mesmo tempo selvagem, sobre a qual sabiam até demais, porém sabiam muito pouco sobre sua personalidade, sobre sua vida passada. Era intrigante, aquela mulher, que, realmente, era a de azul.






4 – Wilson viaja
Dia 9 de Setembro, às 23:35, no banheiro masculino do clube


Wilson entrou no banheiro.
Estava calor, ele tirou o blazer que usava e foi até a pia, lavar o rosto. Molhou os cabelos, passou o pente, ficou melhor. Em seguida deu uma olhada pelo banheiro todo, pra ver se tinha alguém prestando atenção nele.
Depois tirou um estojo de dentro do bolso do blazer, um estojo preto de zíper.
Entrando em uma das portas do banheiro, se trancou lá dentro e abriu o estojo. Não agüentava de ansiedade. A agitação do clube tinha deixado ele nervoso, e ele só sentia vontade agora de uma coisa: de viajar.
O kit que trazia no estojo incluía todos os apetrechos necessários para umas boas “cheiradas”, ou para ele se “picar”, quando estivesse a fim. Era algo que ultimamente ele levava sempre com ele. Estava viciado, era verdade.
Hoje o que ia cair bem era uma farinhazinha bem branquinha, uma bela porção de cocaína que ele rápida e habilmente enfileirou no espelhinho e consumiu.
Wilson viajou, sentado no vaso, e não estava nem aí para o fato de que aquilo iria deixa-lo ali, dentro do banheiro, por um bom tempo. Os companheiros sabiam e não estranhariam a demora. Até que respeitavam o vício de Wilson. Tanto que não atrapalhasse, de nenhuma forma, os negócios da equipe. Porque, se atrapalhasse... bem, se atrapalhasse, não ia atrapalhar mais, porque o grupo não é muito piedoso com quem age imprudentemente.







5 – Papo musical
Dia 10 de Setembro (madrugada), às 1:20, no clube


Wellington encheu o copo de cerveja novamente, esvaziando mais uma garrafa. Bocejou. A noite estava quente, movimentada, o clube estava bem cheio.
- Ô Wesley, cê vai viajar? – perguntou Walcyr, sempre atento às ocupações de seus companheiros.
- Vou, chefe. Depois de amanhã. Vou encontrar uns amigos lá na praia... gente boa.
- Olha lá, hein? – disse Walcyr.
- Como assim, “olha lá”? Cê acha que eu vou aprontar, Walcyr? Tá louco? Pô, você devia ter um pouco mais de confiança em mim...
- Só tô dizendo que eu não sei que turma é essa aí que cê anda.
- Você conhece – disse Wesley – Eu fico sempre naquela área onde mora o seu amigo, o Sandro. E o Rona.
- Você fala com eles? – perguntou Walcyr.
- Claro. Você que me apresentou eles uma vez que a gente viajou. Eles tão sempre por lá, no quiosque – disse Wesley.
- Se você anda com eles, então tudo bem. Confio neles – disse Walcyr, por fim.
- Quem vai tocar hoje? – perguntou Wellington, interrompendo.
- Ah, são uns caras aí do colegial – respondeu Wesley – Uns garotos de guitarra e bateria, essa coisa sem qualidade.
- Por quê, sem qualidade, garoto? – disse Wanderley – Você por acaso já ouviu eles tocando? Ou é preconceito contra o estilo de música?
- Não é preconceito, só acho que esse barulho e esse estrago que eles fazem não vale nada! Meu conceito de música é muito diferente.
- Se você não sabe, o rock é um estilo de música de grande sucesso desde o meu tempo, e, considerando-se que surgiu ainda neste século, tem se espalhado com considerável rapidez. Eu vivi, nos anos 70 e oitenta, o contágio dos jovens por parte de ídolos do rock que conquistavam meio mundo. E se conquistava meio mundo, garoto, com certeza vale algo, e muito! – concluiu Wanderley, lenta e seriamente.
- Ô, Wan! Ah, não, Wan! Não faz isso com a gente, não começa com o papo nostálgico, não! “No seu tempo...” “No Woodstock...” O velho papo de “o sonho não acabou”, e merda e tal... – retrucou Wellington.
Wilson batia palmas.
- Falou o “senhor-pai-poderoso-do-sermão-papai-sabe-tudo-e-esteve-em-Woodstock”, o grande e devagar Wanderley! – disse Wilson – Falou pouco, falou meio enrolado, mas falou bonito! Bate aqui, Wan!
Wanderely foi bater na palma de Wilson, mas estava tão atordoado com a baderna à sua volta que errou o alvo, batendo o ar. Foi colocar o cotovelo de volta na mesa e derrubou o copo de cerveja em cima de Wesley. O pobre Wanderley tentava se desculpar, mas, devido à situação existente, ficou parecendo que fora de propósito, afinal Wesley discordara dele.
A banda de rock subiu no palco e começou a tocar.
Neste momento, alguém entrou no clube.
Mas quando entrou, não foi como se qualquer outro estivesse entrando... não... era uma forma única de se mover, de andar, de chamar a atenção de praticamente todo mundo. Andando lentamente, e ao mesmo tempo onipotente, era como um bandoleiro dos mais experientes, dos mais habituados à vida de aventuras. O olhar sondava o clube confiante, seguro de si, e todos sentiam interesse por aquela figura atraente e solitária.
E assim foi ele, andando, até encontrar seus companheiros... Como o lendário cowboy do inesquecível velho oeste... Que, neste caso, era um cowboy urbano... Chamado Wagner.
- Será que aqui vai tocar música de gente... ou vai ficar nesse troço barulhento o noite toda? Bóta uma coisa mais country aí, que tá valendo – disse ele não jovialmente, mas enérgica e rapidamente.






6 – Wesley, na praia, conta outra história
Dia 13 de Setembro, às 11:31, perto do quiosque do Rona, na Praia Grande


- Aí eu disse pra ele: “- Ei, cara... tão pedindo 50 reais por isso aí lá no centro da cidade. Acredita no que eu tô te dizendo! Se você me cobrar mais do que isso, se você me pedir 55 reais por isso aí, cara, eu vou comprar do camarada no centro, tá entendendo?” O árabe olhou pra minha cara um tempão, com aquela pinta de “senhor tira-teima”, e pegou o telefone – dizia Wesley.
- Ele pegou o telefone?! – perguntou Sandro.
- Pegou, ele pegou o celular! – respondeu Wesley.
- O maldito usava celular?! – perguntou Sandro, novamente.
- É, dá pra acreditar nisso? – disse Wesley - Aí eu fiquei esperando, enquanto o árabe falava com alguém no celular. Eu não sei quem era, mas era alguém que ele conhecia e que falava a língua dele, porque o cara começou a falar uma bosta de língua que eu não entendia... pra eu não escutar mesmo, entendeu? Ele queria comprovar com esse cara se aquilo podia realmente ser encontrado por 50 reais... quando ele desligou o telefone, continuou olhando enfezado pra minha cara. Eu comecei a suar, porque era mentira, que eu tinha visto por cinqüenta...
- Rapaz...
- É... aí ele resolveu pegar o maldito toca CD para eu olhar... mas provavelmente ia me pedir uns 80 ou 90 naquele troço. E eu tinha só quarenta no bolso... então eu peguei o toca CD na mão, olhei bem... e ele me encarando... foi aí que eu passei a língua nos lábios, pois estava um calor de rachar, e disse numa boa: “Sabe de uma coisa, cara? Olha só: eu só posso pagar quarenta reais nisso aqui. Você vai querer me vender por oitenta ou mais... então, eu tomei uma decisão muito sensata: não vou pagar nem... um... maldito... centavo... nesta... BOSTA!” Eu dei meia volta e corri como nunca havia corrido antes em toda a minha vida!
- Você é louco, cara, você precisa ser louco pra isso...
- É sério! A única vez que eu corri tão rápido assim foi quando o Tatuzão... lembra do Tatuzão?
- Lembro – disse Rona.
- Foi quando o Tatuzão estava atrás de mim lá em São Paulo.
- Mas o árabe correu atrás?
- Olha, ele pode até ter tentado por alguns instantes, mas eu só sei que em dez segundos eu já estava em outro bairro – Wesley parou um tempo de falar e terminou a cerveja em lata que tinha na mão.
Os outros amigos também tomavam cerveja, com exceção de Rona, que estava fumando.
Wesley se sentia satisfeito em divertir os amigos. Era um cara engraçado. Ou pelo menos achava que era. Tinha que divertir os outros, ser o centro das atenções. Essa era a sua natureza. Tinha muitos conhecidos na Praia Grande, mas com quem mais tem andado ultimamente é com Sandro, Rona e Verena, que estiveram ouvindo sua história.
Sandro é um analista de sistemas de vinte e poucos anos que mantém um site na Internet ganhador de muitos prêmios, onde coloca imagens das pedras preciosas que ele vende, via Internet. Sandro pode ser visto freqüentemente com seu notebook sentado na areia da praia.
Rona é um cara de uns trinta anos que não toma jeito. Já se casou duas vezes, não conseguiu viver com as mulheres, teve nestes dois casamentos três filhos, dos quais conseguiu se livrar, e caiu de vez nas drogas anos atrás. Já foi internado duas vezes, mas nunca largou o vício. Além disso é alcoólatra. Um largadão, despreocupado com a vida, que só pensa em surfar e em ficar em seu quiosque, onde vende bebidas junto com uma de suas “namoradas”.
Verena é essa namorada. Uma surfista muito bonita, de dezoito anos. Não se importa de ser muito mais nova que Rona, só quer saber de se divertir. Tem os cabelos castanhos bem claros, compridos e ondulados, é baixa, muito charmosa e tem olhos azuis, que, em contraste com sua pele dourada, a deixam ainda mais bonita.
- Rona – disse Wesley – Posso usar o telefone do quiosque? É a cobrar, se não puder tudo bem...
- Qué isso, mermão? Mandavê! Ligaí!
- Pó ligá?
- Pó ligá.
- Valeu...
Wesley entrou no quiosque e usou o telefone que lá havia.
- Alô? Eu queria falar com o Wanderley – disse Wesley - Isso. Wanderley.
Ele aguardou um pouco e em seguida atendeu uma voz sonolenta.
- Alô.
- Wan? É o Wesley!
- Ah.
- Ô cara, eu te acordei?
- Hã? Não...
- Tem certeza?
- Não.
- Então eu te acordei?
- Hã... é!
- Foi mal, é que já são dez pra uma.
- Ah.
- Escuta. E a tal reunião que ia ter? Já viu aí?
- Vi. Dia 13. O Walcyr disse que é dia 13.
- Dia 13? Beleza.
- É.
- Não entendi, Wan!
- É!
- A ligação tá meio...
- Eu falei “é!”.
- Ah. Então tá bom. Eu acho que hoje à noite eu estou aí.
- Ah, é? Vê se passa no clube, hein?
- Podexá, Wan. Té mais!
- Falou, bicho.





7 - O passado
Um ano e meio atrás, às 19:03, no escritório de William


Sete pessoas se encontravam presentes num escritório, às sete da noite, após terem marcado o encontro. A primeira reunião. Poucos ali já se conheciam antes disso. Haviam se falado ao telefone, somente.
Um deles, um homem de seus trinta anos, era o dono do escritório. Estava em posição de quem está prestes a começar a falar algo ao grupo. Perto de sua mesa, com um olhar sério. William já não tem muitos cabelos, e é um tanto tenso, devido à profissão de advogado que exerce. Com seu terno preto parece uma figura muito séria e competente.
Ao seu lado, com uma presença mais significativa ainda, está o segundo homem, um pouco mais velho, de pé, com os braços cruzados. Fuma. Fuma rapidamente, mal tem tempo de tragar direito o cigarro, tamanha a agitação mental em que se encontra. Terá de ser o mais responsável por ali. Olha de um em um, analisando os presentes. É um sujeito muito alto, magro, com cabelos claros presos em um rabo. Seu olhar é penetrante, diferente. Suas mãos são gigantes, seus dedos longos e finos. O nariz aponta sempre para a frente, resoluto. Veste roupas caras, esbanja qualidade. Este é Walcyr.
Perto da porta, um tanto afastado, porém prestando a mais profunda atenção nos oradores, está Wagner. Ele está apoiado na porta, silencioso, também fumando, e olhando com seus olhos verdes todo o movimento que se dá naquela sala. Suas roupas são muito mais simples, roupas gastas de um sujeito que veio do campo para a cidade há pouco tempo. É forte, calado, e um pouco mais velho que os outros na sala.
Perto de Wagner se encontra Wellington, com seus trajes modernos e caríssimos, e com seu olhar zombador. Ele não abaixaria a cabeça para ninguém. Encara o advogado e Walcyr impassível, aguardando. Filho de alemães, espera ser o mais belo e perfeito ser já visto. O mais bem sucedido com o sexo oposto, e aquele com mais dinheiro no bolso. Um aproveitador.
Wilson se senta na poltrona da sala. Um tanto preocupado com o que se passa, pois é um novato, um iniciante. Quer aprender, quer crescer antes do tempo. Seus modos são de um jovem sem experiência alguma, porém talentoso. Sendo o mais novo, quer impor seu valor naquele grupo.
Mais à direita da sala está Wanderley, que também tem uma idade mais avançada, porém que parece não ser tão perspicaz quanto o resto do bando. É um cara tranqüilo, desligado, mas muito dedicado aos parceiros. Suas constituição física não é tão atlética. A barriga causada pela cerveja, por exemplo, faz ele perder pontos em agilidade. O raciocínio também parece não ser seu forte. É um sujeito pacífico, útil, e também um grande companheiro, pois parece não querer briga com ninguém no mundo. O cabelo em rabo-de-cavalo e o bigode à la Frank Zappa revelam um pai de família que se divide entre a antiga vida de aventuras e a nova vida caseira.
Wesley permanece de braços cruzados, atento, e extremamente agitado. Um cara emotivo, enérgico, e por causa disso também muito violento. Parece uma pessoa descontrolada, e com um humor muito variado, ora muito animado, ora a ponto de explodir. Seu olhar é furioso, prestes a explodir, mas isso para ele é normal.
O grupo se prepara para ouvir. William se prepara para falar.
Walcyr se impõe à frente do advogado e diz que quer começar a falar. Precisa dizer algumas coisas ao grupo.
- Bem, é o nosso primeiro encontro... todos estão aqui pelo mesmo motivo, ou seja... uma proposta que fiz a todos quando os conheci, ou quando os reencontrei a pouco tempo. Por exemplo, eu já conhecia Wanderley desde pequeno, e William também é um velho amigo. Bem, o nosso grupo foi montado em minha cabeça como sendo um bando equilibrado. Ou seja, temos aqui toda a diversidade que se pode conceber para uma ação em campo... nossas habilidades, unidas, vão nos garantir golpes bem-sucedidos e profissionais. A palavra aqui é o profissionalismo. Aos poucos vocês vão entender exatamente ao que me refiro... as atitudes que deveremos tomar. Mas por enquanto posso lhes dizer que nestes anos em que venho trabalhando como criminoso aprendi uma série de coisas que agora posso pôr em prática como líder do grupo. O comportamento adequado. Para que não fique nada sem explicação, informo que há anos que sou assaltante, já fui preso duas vezes, mas graças a estr advogado, William, meu amigo, pude escapar. Pois ele irá nos ajudar também. Garantirá segurança ao bando em caso de alguma coisa dar errado. Acho que já entenderam o que quis dizer. Espero que tenhamos ótimos momentos como um bando vitorioso, espero que possamos comemorar a cada dia o nosso sucesso. Conheci quase todos vocês no clube que freqüentam, assim como eu, há tempos. Sempre fui lá com meus antigos parceiros, para encher a cara, e espero que possamos fazer isto também. William dará detalhes importantes sobre a parte do dinheiro, da polícia, tudo isso...
William deu um passo à frente, se preparou e iniciou:
- Muito bem, vou esclarecer rapidamente a respeito do dinheiro roubado. Todo o fruto de seus golpes, sejam quais forem, será depositado em uma única maleta. Esta maleta – disse o advogado, levantando uma valise de couro preta – Ela ficará guardada num cofre de banco. Antes que se assustem e pensem que sou louco, digo que este ato está completamente garantido, pois eu e Walcyr já trabalhamos em cima disso. O banco é subornado pela minha firma de advocacia, temos crédito com eles, e eles não têm informações muito profundas sobre este bando, foi mantido o sigilo. Eles não querem nem saber de onde vem o dinheiro, o que tem na maleta... pois minha profissão garantiu que as coisas fossem “armadas” para que o grupo pudesse agir com um banco. Ela ficará no cofre do banco. Existem duas chaves que podem abrir este cofre. Uma delas ficará com seu líder, Walcyr, e faço questão de a entregar nas mãos dele neste momento.
O advogado pôs a chave na palma de Walcyr. Depois continuou.
- A outra cópia ficará neste escritório. Preciso ter uma chave, entendam, pois o acesso à maleta muitas vezes pode depender de minha presença no banco. Os acordos ilegais que mantenho com a justiça e com o banco podem solicitar que eu tire a maleta do banco, por alguma razão. Minha cópia da chave ficará em um segundo cofre, este nesta sala.
Ele foi até uma das paredes, atrás de sua mesa, e abriu um pequeno cofre que havia ali, em cima de um móvel. Ele guardou a chave, trancou o cofre com a senha e retornou.
- A chave que dei ao Walcyr também será guardada num cofre, no apartamento dele. São cofres muito seguros, cuja senha será entregue a todos vocês, pois têm este direito. Têm o direito de vir pegar a chave num caso de emergência, entendem? Se por acaso só um de nós pudesse ter acesso ao escritório numa situação de fuga, por exemplo, esta pessoa poderia pegar a chave e garantir que a maleta estivesse segura. Quanto à polícia e aos tribunais, faço o possível para garantir a liberdade do grupo. Mas não podem haver abusos, eles não são tão tolerantes assim. Temos de ter cautela, estarei sempre em contato com estas autoridades, pagando-as, cuidando da burocracia em geral. Terei de verificar possibilidades de ação, períodos perigosos para se agir, o momento certo... tudo isso. Mais uma coisa. Quanto à maleta, sabemos que todos aqui terão, de certa forma, acesso a ela. Pois todos saberão a senha dos cofres. Mas o acesso a estes e à maleta em si só será aceito com mútuo consentimento de todo o grupo. Se houver permissão, pode-se utilizar o dinheiro. Se não houver, o sujeito será punido pela própria equipe. Assim como aqueles que, por acaso, traírem ou enganarem a equipe, ou agir com falta de profissionalismo, serão castigados. Manter sigilo em relação à polícia e aos familiares e amigos é essencial. O grupo age sozinho. Encrencas de fora não serão bem-vindas, entenderam?...










Parte 2




1 – Wagner e Wilson no carro
Dia 21 de Novembro, às 13:41, em frente ao banco



Wagner e Wilson estavam dentro do Chevette estacionado em frente a um dos maiores bancos da cidade. Era um serviço de verificação. Observação. Estavam estudando o terreno daquilo que podia ser o próximo grande golpe do grupo. Talvez o último.
Na última meia hora estiveram olhando o banco, notando coisas como os turnos dos seguranças, as normas, os sistemas de câmera, de vigias, caixas, todos os componentes importantes. Estavam vestidos de forma discreta, de modo que parecessem apenas dois cidadãos sentados dentro de um carro. Após pedirem lanches no fast-food que havia na mesma rua, começaram a conversar:
- E aí, como é que vai ser essa jogada? – perguntou Wilson, tirando instantaneamente seus óculos escuros. Estava sol, era um típico dia quente. Seu visual era muito descontraído, ao contrário do de Wagner, que vestia-se de forma mais discreta e simples.
- Não sei, é cedo pra cacete pra especular... a gente só veio mesmo é pra olhar, tá entendendo? É que cê não conhece o Walcyr muito bem, ainda... ele começa a falar no negócio bem antes de acontecer, pra gente já se acostumar com a idéia. Mas acho que, até lá, as coisas podem mudar, sei lá... pode pintar uns trabalhos menores daqui até lá. Porque esse projeto é o mais ambicioso, você sabe disso. Isso envolve profissionalismo, você sabe.
- Sei, sei. Mas uma coisa a gente já tem certeza, cara... – disse Wilson, sorrindo de leve - ... a grana vai ser brava!
- É verdade.
- Quer dizer, meu, pensa bem... se a gente conseguir se dar bem nessa parada... a gente pode descansar pro resto da vida aonde a gente quiser... os problemas podem acabar de uma só vez... – dizia Wilson.
- Pode ser. E você tem tantos projetos assim pra aplicar tanta grana, caso a gente realmente consiga? – perguntou Wagner, olhando a rua.
- Ah, isso. Bom – Wilson não sabia se dizia ou não – Claro, eu não quero nem saber, entendeu... por mim eu entro de cabeça no ramo das negociações.
- Que negociações? – perguntou Wagner, se fazendo de confuso.
- Você sabe, drogas... sei lá... armas... isso é o que faz a gente crescer. E como eu vou ter dinheiro suficiente pra investir e alcançar um patamar... talvez eu me dê bem!
- Drogas, garoto? Você conhece o ramo, pra saber onde está se metendo, por acaso?
- Claro que conheço, papai... – zombou Wilson, irritado com a atitude do parceiro mais velho – Conheço bem, porque neste ramo eu já tenho certa experiência... como cliente.
- Cliente? Você compra pra você?
- É, cê sabe como é que é, papai... a gente entra, depois não consegue sair... eu comecei a usar a pouco tempo, mas não vejo chances de parar por enquanto – disse Wilson.
- Fica esperto... não tô nem aí pro que cê faz ou deixa de fazer fora do serviço... mas cê sabe bem que esse tipo de coisa, se começar a atrapalhar o serviço do grupo... bom, todo mundo sabe disso. Você é esperto, não é? Sabe bem disso. Tem mais pessoa no nosso grupo que mexe com isso fora dos nossos serviços, acho que você sabe... – disse Wagner.
- Não, não sei... quem é? Fala – insistiu Wilson – Quero saber, vai que o cara conhece bem o ramo, de repente surge uma parada pra mim...
- Não, não vou ficar falando o que cada um faz de podre naquele grupo... na verdade, é só uma questão de observar, Wilson... bom, é normal esse pessoal que a gente anda junto se meter nessas jogadas aí, então...
- E você, Wagner? Por que não entra nessas “jogadas”?
- Porque não me interessa nem um pouco, guri. Meu negócio é outro – respondeu Wagner, seco, olhando as pessoas que passavam.
- Não fala merda! Seu negócio é o mesmo da gente, cê tá no bando e é farinha do mesmo saco – disse Wilson, animadamente.
- Você que pensa. Eu sei bem por que faço isso, e posso te assegurar: tenho bons motivos.
- Também tenho os meus – respondeu Wilson, não querendo se deixar vencer, e olhando ambicioso para o banco que havia na rua.
- E quais são, guri? – Wagner agora zombava – A cocaína?
- Isso mesmo, papai! Como o senhor é inteligente!
- Você acha? Obrigado, filhinho.





2 – Wagner na cidade
Dia 23 de Novembro, às 21:05, pelas ruas da cidade


Wagner vestia seu casaco country, como sempre, sua camisa preta e as botas velhas que ganhara de seu pai. Andava na garoa, de noite, pela cidade. Fumava. O cigarro era seu único companheiro em momentos de reflexão, ou de pesar.
Ele não parava de pensar em Eliza. Ela era sua pérola mais preciosa, na verdade era a única. A única coisa boa em sua vida, que ainda o deixava de pé, lutando.
Se conheceram na escola, estudavam juntos. Já se gostavam, mas não tinham coragem de se aproximar, não se sabe por que. Talvez porque a mente juvenil fosse incerta, duvidosa, inexperiente. Mas quando acabaram os estudos se reencontraram, e desabafaram seus sentimentos.
Afastaram-se da velha turma da escola, e ficaram juntos, começaram seu namoro tardio. Mas sempre se apreciaram. Ela era linda, cabelos castanhos claros, olhos de amêndoa... sorriso lindo, dentes alvos... era sua garota, sempre fora.
E ela gostava muito dele, do jeito calado dele, às vezes brusco. Fechado. Mas romântico. A família dele viera do sertão para a cidade grande, como imigrantes. Tinham o ar sertanejo, e Wagner conservava até hoje seu estilo especial de estrangeiro. Não estrangeiro sofisticado, de outros continentes. Mas estrangeiro rústico, do campo, de terras distantes e bonitas, solitárias... ele era um viajante.
Planejavam se casar um dia... mas dinheiro não tinham. Ele era pobre, ela quase pobre. O pai dela não aceitando a má situação financeira do rapaz. Gostava do rapaz, mas dizia: “Sem dinheiro não dá. Minha filha não mercê isso”. E Wagner se conformava, mas continuava saindo com ela, namorando a Eliza. Nenhuma outra mulher habitava seus pensamentos.
Um dia se casariam, prometiam um ao outro. Era amor verdadeiro, que não acabaria. Esperaram. O tempo passou, eles cresceram mais ainda. O dinheiro não vinha.
Mas Wagner começou a pensar, e concluiu que tinha uma alternativa: conhecera num bar da cidade um homem que lhe fez uma proposta. Disse que pensaria. Crime. Não tinha outro jeito. Juntaria dinheiro suficiente, mas no fundo da alma nunca seria um bandido, isso nunca. Agiria mecanicamente, somente para conseguir o dinheiro e se casar com Eliza. Viverem juntos. Só queria isso. Depois esqueceria tudo isso. Era só por uns tempos. Explicou a ela, que custou a entender. Mas concordou, no final, e lá foi ele, com o grupo de Walcyr, naquelas aventuras urbanas. Era um mundo que ele ainda não conhecia, e muito menos ela, na inocência daquela vida humilde.
Mas custou a passar o tempo. Era preciso paciência. Ele teve. Ela também tentou.
Concordaram em ficar sem se ver durante este tempo. Ele agora seria um bandido, temporariamente. Era loucura... mas depois os dois esqueceriam tudo, seriam felizes sozinhos, só os dois. Promessas de fidelidade. Um ao outro. Ele voltaria quando tivesse dinheiro. Moraria no centro, ficaria lá, afastado de Eliza, durante este período difícil. Ela na casa dela, distante. Mas tudo bem.
O tempo passou, novamente. Os negócios do bando de Walcyr cresciam. Wagner e Eliza se mandavam cartas e telefonemas. Promessas. Já tinham bastante dinheiro. Mas tinha que esperar um pouco. Explicou que tinha feito um trato com o líder, Walcyr. Um dia deixaria o grupo, pegaria sua parte justa de dinheiro... mas não era assim, sair a hora que quisesse. Tinha que ajudar o bando a conseguir estabilidade financeira. E ajudou. Quando dessem o golpe final... o “golpe de aposentadoria”, como dizia Walcyr... então, ele poderia seguir seu próprio caminho, encontrar Eliza e esquecer que tinha conhecido aquele bando. Era o que cada um deles faria, sem dúvida. Esqueceriam. Alguns partiriam para futuros trabalhos. Ele abandonaria a vida de crimes, voltaria a ser um homem puro. Mas não ainda. Tinham que trabalhar, juntar dinheiro no banco.
Wagner caminhava agora e pensava nisso tudo. Será que ao demorar pra chegar o dia em que reencontraria sua Eliza, e que seriam felizes?
O amor não podia ser esquecido, acabar. Fidelidade era importante.
Wagner andando por ruas sujas e escuras, perigosas à noite. Traficantes, bandidos e prostitutas ao seu lado. Seu meio ambiente, a selva urbana.





3 – Wilson conhece Sofia
Dia 27 de Novembro, às 21:45, na área de fumantes do clube


Wilson hoje estava sozinho no clube. Aliás, sozinho não, pois o clube estava sempre lotado de clientes se movimentando, muitos deles velhos conhecidos de Wilson e do resto do bando. Acontece que nesta noite os outros caras do grupo de Wilson não tinham vindo, pois estavam ocupados, atarefados com assuntos do advogado do bando, William. Tratavam de questões que deviam ser tomadas para garantir a segurança do bando perante a lei. Afinal, William era o que tornava a equipe desconhecida dos tribunais e da polícia. Através de “pequenos ajustes”, e de um salário previamente pago ao advogado, o grupo tinha toda a garantia de uma longa vida de golpes promissores.
Meia hora atrás, todos eles se encontravam reunidos num escritório dentro da firma de advocacia de William, todos os do bando, mais a namorada de Walcyr, ou melhor, uma delas, que nunca se desgrudava dele. Wilson gostava do chefe, ele era bem firme, um ótimo líder. Mas, como todo ser humano... às vezes tropeçava. A bebida, o jogo e a monogamia eram seus tropeços.
De qualquer forma, todos eles discutiam sobre a situação, uma época de pequenas crises dentro das leis e mundo judicial, que poderiam levar, talvez, o bando a um fim trágico. Resolveram ter um encontro e discutir. Walcyr logo ficou exaltado com William, que tentava convencer o grupo de que esta não era uma época boa para continuar os golpes... mas Walcyr, como todos sabem, sempre quis ter o poder da autoridade, e eles discutiram. Os outros do bando se intrometeram, e o negócio ficou realmente irritante. Wilson não agüentava mais ficar ali dentro, naquela discussão tola.
A noite ia chegando, a vontade de sair e ir pro clube pintou em Wilson. Não quis nem saber. Saiu do escritório contra a vontade de Walcyr. Pegou o carro e foi ao clube, esquecer tudo aquilo, fumar e beber um pouco, quem sabe encontrar companhia. E achou, de certa forma. Bem, Wilson se sentava na ala de fumantes, pensativo, curtindo o som dos Platters que tocava no início de noite.
Logo viu uma figura se aproximar de sua mesa, onde estava sozinho. Era uma moça, uma mulher. Não conhecia. Ele logo já aguçou seu instinto conquistador.
- Oi...
- Oi, eu te conheço? – perguntou Wilson, enquanto a mulher se aproximava.
- Acho que não... meu nome é Sofia... mas é que eu queria conversar, sabe, mas se tiver algum prob...
- Claro que não tem problema – disse Wilson – Senta, pode sentar... me chamo Wilson... você fuma, Sofia?
A mulher era bem vestida, bonita, e parecia ser bom-caráter também. Sorriu para Wilson.
- Não fumo.
- Tá certo... e aí, que que tá rolando?
- Bom – começou a mulher – O que eu queria falar com você é um negócio meio confuso, entende... não quero que se sinta obrigado a falar comigo sobre isso, mas é que observando você aqui já a algum tempo, pude ver que anda sempre com aquele grupo de rapazes...
- Isso mesmo... mas eles não são mais tão rapazes assim, a maioria deles... – riu-se Wilson, bebericando seu uísque – E aí, o que tem eles?
- Você não ia achar ruim se eu perguntasse uma coisa, Wilson?
- Claro que não, gata... pode falar. Pergunta. Aí sim eu te falo se a pergunta pode ser respondida ou não...
- Tá. É que eu queria saber em que tipo de negócio vocês estão envolvidos, sabe? Quer dizer... eu sei que existe um negócio... porque isso eu já pude comprovar, observando o grupo, se é que me entende.
- Claro. Tem um negócio, sim, Sofia.
- E que negócio que é? – perguntou a moça, em voz doce, mordendo os lábios.
Wilson parou por um momento, hipnotizado por aqueles olhos lindos e penetrantes que o fitavam. Levou a mão ao cinzeiro e jogou a cinza. Coçou o canto do nariz com o dedo mínimo. A mulher era um conjunto vivo de gestos sensuais. Uma máquina atenta a tudo e a todos, esperta como um gato. Ela cruzou as pernas lentamente, toda sedutora, com aquele vestido azul muito elegante que usava, e ao mesmo tempo apoiou os cotovelos na mesa, se aproximando ainda mais de Wilson, e fitando-o. Tudo isso ocorreu em um instante.
- Gata, você é boa ouvinte?
- Eu? Claro! – sorriu ela – Mas por que?
- Porque agora você vai ouvir toda a história do nosso bando, e vai entender por que a gente está sempre aqui, fazendo o que a gente sempre faz...
E nisso a noite correu solta.






4 – Walcyr dá um recado
Dia 28 de Novembro, às 7:13, no escritório de William



- Deixa eu falar umas coisas agora sobre trabalho: a gente tem que trabalhar, todos nós... – dizia Walcyr a todos os outros integrantes do bando, numa reunião em seu apartamento. O lugar era espaçoso, bonito, muito bem mobiliado e ficava no décimo andar do prédio – O negócio agora, pessoal, é cooperar pra que a gente consiga acabar logo. Escutem o que vou dizer... quando tudo isso acabar, quero poder me despedir de cada um de vocês com satisfação, e com dinheiro no bolso. Aí, cada um poderá seguir seu caminho, poderá ir pra onde quiser, desde que nunca cite a existência deste bando. Cada um com sua vida. Seu dinheiro. Aqueles que quiserem largar a vida de crimes... – e Walcyr lançou um olhar rápido para Wagner - ... poderão sair fora, e aqueles que quiserem continuar comigo, ou com outros bandos, assim o farão... mas só quero uma coisa: que cooperem agora. Isso é importante. Dêem tudo de si nos próximos trabalhos.. porque se tudo der certo, como o planejado... serão os últimos trabalhos. Há muito tempo que falo no grande “golpe de aposentadoria”, certo? Falo muito porque é o mais importante, o mais arriscado, o mais recompensador, é o último, caras... ânimo! Quando chegar a hora, vocês saberão... e tudo estará pronto para este dia. Não se preocupem, vai ser tudo feito com profissionalismo, se depender de nós. Guardem o que falo agora: o nosso último golpe é o mais importante. E não demorará muito pra acontecer. Estou decidindo detalhes com William. Ele também será importante. Pois é com ele que está todo o lucro, certo?
Nesta hora todos eles riram, animados, empolgados com a idéia. O fruto de vários golpes finalmente seria adquirido... o “grosso” do dinheiro, que todo este tempo esteve no banco... seria deles, em breve.
- Quero que se divirtam ao máximo quando tudo isso acabar... quero que comprem uma Ferrari, quero que se hospedem no hotel mais caro da Europa, durmam com a mulher mais gostosa do Brasil... – novamente, todos acharam graça - ... enfim... aproveitem! Vá vou dizer agora: está marcada a comemoração, no clube, após o grande golpe. Espero que possam dedicar um último dia de comemoração aos assaltos gloriosos, aos dias de vitória que tivemos juntos... porque eu gostei de trabalhar com vocês, caras... espero que tenham apreciado minha liderança, incômoda às vezes, mas eficaz... faremos a maior farra quando acabar, eu prometo... contratarei uma banda e garçons especiais só pra gente, lá no clube... a música que quiserem, a bebida que quiserem... tudo por minha conta. Está dado o recado.





5 – Wilson no mundo do crime
Dia 28 de Novembro, às 20:14, no prédio do judeu


Wilson entrou pela porta da frente do imenso edifício naquela imensa avenida, e penetrou no elegante saguão, que também era imenso. No chão, um carpete vermelho escuro muito caro e limpo. Havia um pequeno balcão logo na entrada, atrás do qual se sentava uma mulher de cabelos curtos vestindo um uniforme azul. Ela sorriu ao ver Wilson e disse, animadamente:
- Bom dia. Solicitamos ao senhor que deixe aqui alguns dados, por favor.
- Certo.
Wilson recebeu o livro de registro e preencheu os campos: nome, endereço, RG, telefone e data.
- Obrigada. O senhor pode aguardar aqui no saguão.
- Obrigado.
Wilson caminhou pelo saguão. Não havia uma parte sequer do chão que não fosse coberta pelo grosso carpete. Juntos às quatro paredes, vários sofás confortáveis onde se sentavam algumas pessoas. Distribuídos no centro da sala haviam mais sofás, que não deixavam a sala tumultuada. Haviam também imensos quadros de arte moderna nas paredes, coloridos e ao mesmo tempo suaves.
As paredes eram recobertas com madeira envernizada, com lustres distribuídos no alto. E o lustre do teto não deixava a desejar, com seu tamanho estrondoso e seus cristais reluzentes.
Haviam mesinhas com revistas, jarros de suco ou água, café ou chá e até mesmo fones ligados discretamente nas paredes para se ouvir música.
Wilson atravessou o saguão lentamente, como se estivesse no paraíso, e se sentou em um dos sofás, onde se afundou confortavelmente. Olhou para cima. O teto era muito alto, dando uma ótima sensação de liberdade.
Pegou um dos fones de ouvido e ouviu uma música que nunca ouvira antes, um som extremamente leve e relaxante. Fechou os olhos. O som era capaz de acalmar qualquer um, pois era uma música que vinha do fundo, como se fosse assoprada de longe. Wilson sentia vontade de ficar lá para sempre, dormir com aquela música e morrer naquele conforto. Não pensava em mais nada.
Sentiu um cheiro agradável de perfume. Perfume de mulher. De onde viria? Percebeu que precisava abrir os olhos, alguém estava próximo, chamando-o. Sim, estavam chamando seu nome. Bem de perto e suavemente.
Com muito esforço, abriu os olhos lentamente. Viu um rosto lindo à sua frente. Despertou assustado, levantando a cabeça, e viu que havia uma linda moça loira chamando-o. Cabelos longos e finos, bem cuidados, uma pele muito macia e de cor linda, vestia uma roupa preta e exalava aquele cheiro de perfume inesquecível.
- Você é o Wilson? – dizia ela, que estava sentada ao seu lado.
- Hã? Ah, sou sim.
- A moça do balcão está chamando seu nome.
- Ah, muito obrigado – disse ele, se levantando – Como sabia que eu era o Wilson?
- Você tem cara de Wilson... – disse ela, sorrindo.
Ele foi até um outro balcão que havia no centro da sala, onde havia três moças de uniforme azul com microfones posicionados na boca, presos no ouvido.
Uma delas chamou Wilson e ele se sentou à sua frente.
- Bom dia, senhor. Qual o motivo da visita ao nosso prédio?
- Hã... é confidencial, senhorita. Me disseram para não...
- Ah, eu entendo. Preciso da referência, se for possível.
- Só um minuto.
Wilson abriu a mochila que trazia e dela tirou uma pequena caixa preta de couro. Entregou à moça. Esta abriu cuidadosamente a caixa e conferiu seu conteúdo. Devolveu para Wilson e disse:
- Seja bem-vindo, senhor. Aguarde.
Ela ligou o microfone e disse, educadamente, para alguém que a escutava:
- Jorge, Wilson Barbera está aqui. Sim. Sim. Não. Está bem.
Ela desligou o microfone e disse:
- Sr. Wilson, queira entrar por aquela porta, por favor.
- Obrigado.
Wilson se dirigiu a uma das portas que havia no saguão. Olhou para a moça loira e sorriu de leve. Ela retribuiu o cumprimento.
Entrando pela porta mencionada, ele penetrou em um corredor que se estendia largamente para os dois lados. Haviam portas, elevadores e bebedouros. Uma mulher no corredor disse para ele entrar no elevador, e quando este chegou instruiu a ascensorista a subir até o décimo sétimo andar. O elevador era relaxante também, com música vinda de lugar desconhecido e paredes à prova de som. A mulher parou no décimo sétimo e Wilson desceu. Estava em mais um corredor, este com sofás e plantas. Jorge se apresentou, cumprimentou-o e levou-o até uma porta, onde Wilson entraria.
Lá dentro ficava o escritório mais perfeito que Wilson já tinha visto em toda a sua vida. Era enorme, com um tapete persa de cores escuras por todo o chão, uma estante de madeira que ia até o teto cheia de livros, pastas e papéis, todos muito bem organizados. Alguns objetos como pesos para papel e bustos preenchiam as prateleiras. Pela parede, quadros franceses e diversos diplomas. Havia um móvel de madeira escura sobre o qual desfilavam peixes coloridos em um grande aquário. Ao lado deste último, um cabide onde estavam pendurados um chapéu alto e preto e um casaco comprido igualmente preto. A sala era um completo silêncio. No teto, um bonito lustre garantia a luminosidade da sala. Na parede também estava pendurado um quadro grosso com vidro por cima onde se via, em uma lista, o seguinte:

“Albert L. Litchmann (1812 – 1893) Munique, Alemanha
Werner Litchmann (1837 – 1902) Munique, Alemanha
Hans B. Litchmann (1864 – 1936) Frankfurt, Alemanha
Leonard Schultz Litchmann (1894 – 1949) Berlim, Alemanha
Pedro S. Litchmann (1920 – 1988) Porto Alegre, Brasil
Vinícius Litchmann de Carvalho (1948 - ) São Paulo, Brasil”

Era a descendência do homem que estava atrás da mesa do escritório onde Wilson estava. Ele fumava um charuto enquanto observava a vista da avenida pela janela. Um homem de estatura média, vestindo um paletó preto, calças pretas e gravata também preta, de óculos, barba vasta e negra, olhos negros e quase sem cabelos na cabeça. Obviamente, um judeu. Em cima da mesa, muitos papéis, todos arrumados, canetas, livros e duas revistas: um exemplar de “Nossa Comunidade Judia” e outro de “O Novo Judeu”. Ao ouvir o barulho da porta, ele se virou, assustado, e começou a se engasgar com a fumaça do charuto, tossindo sem parar. Entrou em intensa agonia, deixando cair seus porta-lápis no chão.
Wilson não sabia o que fazer, e perguntou:
- Posso ajudar?
- Não, é claro que não pode, seu imundo! Não está vendo que eu estou tossindo? Eu tenho asma, bronquite, rinite e sinusite. E alergia a pó, também! Como pensa em me ajudar?
- Me desculpe...
- Ah, eu tenho que agüentar cada coisa! E olha que eu me esforço muito, se você não sabe. É claro que você não sabe, você não me conhece! Ou conhece?
- Não, acho que...
- Seu imundo, é claro que não me conhece! Pronto, já me acalmei.
Ele ficou encarando Wilson, respirando rapidamente.
- Porque você percebeu que eu estou calmo, não percebeu? Hein? Eu realmente estou tranqüilo agora, não estou?
- Está, sim...
- É claro que estou! Onde já se viu? Onde eu estava mesmo?
- O senhor estava falando que já está calmo...
- É! Porque alguns instante atrás eu estava irritado, você percebeu? – perguntou o judeu, ainda nervoso.
- Percebi.
- Mas agora já recuperei o controle e estou realmente tranqüilo. Se você me visse pela primeira vez na rua agora mesmo, como diria que eu pareço?
Wilson olhou bem para aquele rosto colérico, de onde quase saltava uma veia.
- Como eu pareço, agora, rapaz? – repetiu o judeu, levantando o queixo e mexendo as mãos rapidamente.
Wilson disse:
- Diria que você parece muito bem.
- Isso. Eu pareço bem.
O judeu ficou olhando Wilson.
- Eu vim aqui porque tenho um assunto a tratar com o senhor.
- Como é o seu nome? Porque, se você continuar insistindo em não dizer seu nome, imundo, eu não vou poder saber do que se trata! Fica impossível, não fica?
- Sim, fica. Eu sou o Wilson. Wilson Barbera.
- Ah, então eu já sei do que se trata, Wilson! Agora que você me disse o seu nome eu tenho condições de saber sobre o que é, não concorda?
- Sim. E eu quero saber como é que vão ficar as coisas, senhor.
O judeu encarou Wilson novamente, desta vez por um longo tempo. Como não houve resposta, Wilson insistiu:
- E então?
- E então o quê, retardado? Você chega no meu prédio, entra no meu escritório, se senta na minha frente, e me pergunta “e então”?! Você não sabe com quem está falando, rapaz! Você tem a obrigação de me dizer do que se trata a sua visita, antes de me questionar deste jeito, não concorda?
- Mas eu acabei de falar... quer dizer... sim, eu concordo, Sr. Vinícius – Wilson não agüentava mais a neurose daquele homem, mas tinha que falar com ele – Eu conheci uma amiga sua, a Sofia... uma moça maravilhosa, que me contou sobre suas relações com o senhor. É sobre o seu negócio com a cocaína, Sr. Vinícius.
- Ah... agora você foi mais específico, rapaz! Estamos nos entendendo, agora... quer um charuto? Hein?





6 – O advogado vai ao clube
Dia 29 de Novembro, às 2:04, no clube


No clube, já de madrugada, quando a farra era mais difundida, uma banda de cinco jovens japoneses tocava uma série de sucessos do “blues japonês”. Músicas cuja qualidade instrumental era indiscutível, e que, misturadas ao vocal melancólico do cantor Nusumu, davam à noite um clima de musicalidade e de euforia indescritíveis. O clube dava chances a estas bandas conhecidas como alternativas, ou iniciantes, amadoras. O público gostava.
Os garçons não paravam de andar de um lado para o outro, ao servir os animados clientes. Agora entrava, no meio de tanta gente, um outro cliente no clube. Mas não era um cliente assíduo, como a maioria ali presente. Era um cliente ocasional, que veio tratar de negócios. Após dar uma boa olhada em volta, o sujeito, discreto e formal, caminhou até uma das mesas.
Era alto, magro, e vestia terno e gravata, carregando uma valise.
Sentou-se ao lado daquele com quem conversaria, Walcyr.
- E aí, William? Veio cair na gandaia, é? Ei, pessoal, olha o William aqui. Wanderley, passa a garrafa pra ele. Vai beber o que, cara?
- Não sei. Não vim pra isso, na verdade. Vim conversar.
- Por que? Algo errado?
- Não exatamente, mas eu estava no escritório e tive a sensação estranha de que precisava vir lhe dizer algumas coisas. Estou muito tenso com isso...
- Você não vai estragar a festa pra falar de trabalho, vai?... – disse Walcyr.
- Infelizmente...
- Porra... então, William, escuta, vê se fala baixo, e só comigo... senão podemos chamar atenção. Fala.
- Olha, é sobre os assaltos... e o golpe de Quinta.
- Que é que tem?! – exaltou-se Walcyr, largando o copo que segurava, e inclinando-se para a frente – Isso já não tava definido?...
- Estava. Mas eu vou insistir naquela mesma tecla. Eu sei que a gente discutiu por causa disso, aquele dia... mas é porque, acredite em mim, eu sei bem o que digo... acredite, eu estou por dentro da lei... conheço as tendências... me escute, Walcyr... o trabalho do grupo... não é hora ainda. Não é. Entendeu?
- É sim. Meu instinto me diz isso. Eu sei que é – teimou Walcyr, encarando o advogado nos olhos. Fixamente.
- Você não está entendendo... – disse William. Neste momento, houve uma pausa. Walcyr olhou em volta, nervoso. Sem querer, notou que Wilson deixava o clube, despedindo-se dos outros. Não era de costume de Wilson deixar o clube tão cedo. Mas Walcyr não deu muita atenção ao fato, pois discutia com William.
- Quem não entende é você – disse o líder do grupo, impondo-se sobre William – Agora, por favor, você escolhe: ou me deixa em paz com o meu grupo, pois estamos nos divertindo, ou você mesmo pega uma cerveja, chama uma mulher e acaba com esse stress... sacou?
Não saquei porra nenhuma, amador – disse William, arrogantemente. Logo em seguida pegou sua valise, despediu-se do resto do grupo e deixou o local apressado. Walcyr não gostou nem um pouco daquilo, e do que ele disse. Amador? Ele era amador? O cacete que era. Era o mais experiente. E ia mostrar isso ao idiota do William, e ao resto do bando. O golpe ia ser perfeito, ele riria na cara do advogado. Era a hora certa para o golpe, sim. A polícia e os juízes não poderiam fazer nada. Eles iam ver.







7 – Sofia e Kirk Silva
Dia 29 de Novembro, às 3:25, nas ruas da cidade


Wilson dirigia seu carro sozinho, à noite, pelas ruas movimentadas. Ele sabia o caminho. Marcara o encontro com Sofia numa rua deserta, ali perto.
Seria perfeito... ele faria negócio com o judeu! Faria negócios com Vinícius, aquele grande cafetão que dominava os lucros do narcotráfico na cidade...
Wilson se sentia tão bem que foi cantando enquanto dirigia. Cantando, assobiando...
Quando entrou na rua do encontro, procurou pelo contato. O contato estava parado num carro logo em frente. Ele estacionou ao lado. Lá não passavam muitos carros àquela hora.
- Oi! – disse ele para as duas pessoas dentro do outro carro, que o esperavam. Uma delas era Sofia, sempre com aqueles olhos de princesa, aquele vestido... a outra pessoa era um cara que também trabalhava para Vinícius: Kirk Silva, um dos maiores traficantes do judeu. Era grande, forte, e com cara de poucos amigos.
- Trouxe a grana? – perguntou Kirk Silva, com cara de mau. Era arrogante.
- Claro! Acha que eu dou calote? E vocês... trouxeram o pó? – perguntou Wilson – Ah, oi, Sofia, como está?
- Bem – respondeu ela com um sorriso.
- Passa o dinheiro primeiro – disse Kirk.
Wilson entregou um pacote, e depois Kirk lhe passou um outro pacote, este mais pesado.
- Escuta... – disse Wilson, depois da troca – Vocês falaram com o seu chefe? Daquele negócio meu lá?
- Falamos – respondeu Kirk.
- Wilson, ele disse que para entrar no negócio dele como negociador um sujeito tem que provar que é capaz. Para ser considerado um profissional, entendeu? – disse Sofia.
- Eu sei... e quando ele acha que eu posso começar?
- Vamos avisar você. Aí saímos juntos e você entra no ramo, aprende as manhas... certo? – disse Kirk.
- Ótimo. Não vejo a hora de entrar – disse Wilson.
Em seguida os carros se separaram, cada carro sumiu na noite por um lado.





8 – Bate-papo
Dia 30 de Novembro, às 24:45, no clube


No clube, o grupo se reunia. Na mesa de sempre, que era constituída por três mesas juntas, eles fumavam como condenados. A fumaça subia. A música rolava solta. O papo era diverso. E muitas vezes banal.
- Você sabem o que me irrita? – dizia Wesley, que tomava um Martini.
- Não.
- O que é que te irrita, Wesley? – perguntou Wanderley.
- Tipo, quando o cara faz aquele som com um zíper – disse Wesley, com desgosto.
- Que?
- O que foi que ele disse? – perguntou Wellington.
- Ele falou sobre o som do zíper.
- É, quando você tem uma mochila, ou uma mala, ou um casaco, seja a merda que for, e o sujeito ao lado fica brincando com o zíper. Faz aquele barulho lá, sabe como é...
- Como assim? – perguntou Wellington.
- Já sei como é. Realmente, é irritante – disse Wanderley.
- Ah, é como o som, por exemplo... da unha na lousa? Ou quando o giz arranha? – disse Walcyr, brincando com um guardanapo.
- Não. Não é bem assim, cara – continuou Wesley – É um tipo diferente. Ele pega o zíper, e fica assim – ele ia fazendo os gestos com as mãos, utilizando o zíper da jaqueta de couro – Assim. Ai. Nossa, eu passo mal com isso...
- Deixa de ser fresco – disse Wellington.
- Eu não sou fresco, quem disse que eu sou fresco? – enfezou-se Wesley, encarando Wellington.
- Chega – disse Walcyr, olhando para o outro lado.
- É frescura, tô te falando. Você é uma mocinha, Wesley...
- Cala a boca, eu te estouro, seu bosta – Wesley tirou o canivete do bolso, de brincadeira.
- Eu falei pra parar, bando de imbecis – disse Walcyr, batendo a garrafa em cima da mesa.
- Ele que começou...
- Chega.
- As crianças... sempre brincando, né? – disse Wagner, zombeteiro, em seu canto, palitando os dentes. Pacífico.
- Ninguém te chamou, porra – disse Wellington, arrogante.
- Cês tão a fim de apanhar, quando a gente sair daqui? – disse Walcyr, logo em seguida já mudando de assunto – Wanderley, cê falou com o cara das armas?
- Hum? Ah, falei sim.
- E?
- Hã?
- E no que deu, Wanderley?
- Ah. Ele disse que vai fazer negócio. Eu disse que precisava delas pra Quarta-feira, ele disse que ia fazer o possível.
- Ele ia fazer o possível?
- É. Ia.
- Mas elas vão estar com a gente na Quarta-feira, ou não?
- Não sei. Ele vai fazer o possível – repetiu Wanderley.
- Ei, ei, aquela piranha, lembram? – disse Wesley, apontando uma mulher que entrava no clube.
- Quem...? Ah, aquela safada que você disse. Ela vem sempre.
- Ela tá envolvida com uma gangue, essa dona – disse Wagner, de repente.
- Como é que você sabe? – perguntou Walcyr, interessado.
- Ah, é uma informação que escorreu... eu vi a vagabunda com dois caras ontem... rodando por aí, provavelmente atrás de alguém... os caras tinham o maior jeito de canalhas... ladrões, sei lá... – disse Wagner.
- Sempre com aquele vestido azul... seduzindo os caras... – disse Wellington – E aí, Wilson? Tá calado...?
Wilson levantou a cabeça, balançou o ombro, sorriu de leve e resmungou algo.
- Que foi? Nervoso? – perguntou Wesley.
- Claro que não... só tava pensando – respondeu Wilson, com o copo na mão.
- No que?
Ele deu de ombros, e desviou os olhos.
- Não lembra? Mas cê é burro mesmo, hein, Wilsão? – brincou Wellington, batendo na nuca de Wilson.
- Vocês sabem do que eu não gosto também? – disse Wesley subitamente.
- Do que você não gosta? – disse Wanderley.
- De cara que fica assim, balançando o pé, impaciente, sabe? Assim – e ele fez o gesto com o pé, agitando-o rapidamente.
- Você é fresco. Ele não é fresco, Wanderley? – disse Wellington.
- Não, quer dizer, eu.. acho que...
- Ah, você também é foda, Wanderley... puxa-saco... – irritou-se Wellington, tomando sua cerveja.
Wilson deixou a mesa, levantando-se e sem querer desarrumando a toalha ao se mover.
- Ei, pode sair, mas deixa a toalha aqui, guri... – disse Walcyr, ajeitando os copos.
- Só vou até o banheiro – disse Wilson, com a voz meio alterada.
- Calma. Não tô dizendo nada – disse Walcyr.
Wilson foi. Walcyr trocou um olhar com Wagner, que observava tudo. Wagner se ajeitou em cima da cadeira, e depois sorriu, levantando as sobrancelhas.






9 – Wilson e Sofia conversam
Dia 30 de Novembro, às 24:58, perto do bar, no clube


Wilson encontrou-se com Sofia perto do bar. Ela esperava, tinha coisas pra dizer. Ele também.
- E aí? Já sabe?
- Mais ou menos – respondeu ele, sempre olhando cuidadosamente em direção à outra parte do clube, onde estava a mesa dos companheiros – A gente discutiu um pouco sobre o golpe. Vai ser na Quinta-feira, provavelmente. À tarde.
- Certo. Ótimo – disse Sofia, séria – Assim podemos agir da forma certa. Tenho que te contar um negócio.
- Fala.
- Estou me desentendendo um pouco com o Vinícius, aquele filho da mãe.
- Como assim, se desentendendo?
- Sei lá. Ele fica achando que é bom demais pra poder mandar na gente, sabe? Isso já me encheu... ele não é meu chefe. Não é nada. É um idiota, um parceiro, só isso. A gente tinha que dar uma lição no desgraçado. Minha vontade é... não sei... trair o judeu.
- Não fala besteira. Não brinca – disse Wilson, olhando em volta – Ele é poderoso, a gente é pequeno no ramo.
- Não concordo. Mas, de qualquer forma, só queria avisar que as coisas estão meio alteradas. Mesmo assim, acho que tudo vai dar certo.
- Espero. Vou te manter informada de qualquer alteração. Ah, e o golpe da maleta? Tudo pronto?
- Claro. Vai ser hoje. Você vai desempenhar sua função, certo?
- Certo – respondeu Wilson – Quem vai agir com você?
- Os capangas do Litchmann, os de sempre. Você confirmou o horário em que o advogado não está na firma?
- Confirmei.
- Ótimo. Nos vemos amanhã então – disse Sofia.
- Até mais.





10 – Wagner caça
Dia 30 de Novembro, às 1:07, no clube


Na mesa, Wagner se levantou discretamente, e foi até a cadeira onde Walcyr se sentava. Disse-lhe algo em voz baixa, e em seguida deu uma passeada pelo local. Foi até a mesa de bilhar, olhou as jogadas. Cumprimentou um conhecido, se afastou. Desviando dos grupos de pessoas e mesas, chegou até o banheiro masculino. Entrando, foi até o espelho. Penteou o cabelo, lavou as mãos. Depois se virou, e abaixou-se até o chão. Olhou por baixo de cada uma das portas. Ninguém nos sanitários. Nem sinal de Wilson.
Voltou pelo mesmo caminho, e notou Wilson voltando para a mesa, um pouco à sua frente. Tinha os passos agitados, meio vacilantes. Wilson se sentou. Wagner também chegou à mesa, e, silenciosamente, voltou a palitar os dentes. Encontrou os olhos de Walcyr, sério, e deu aquela mesma sorrida de leve, com um brilho nos olhos.







11 – Wesley conta mais uma história
Dia 30 de Novembro, às 3:50, no clube



Mais tarde, Wellington e Wesley tinham arranjado companhia. Duas garotas que já se conheciam. Tinham o que, vinte anos? Se tinham. Eles eram os mais jovens, depois de Wilson, logo, aproveitavam as noitadas.
Walcyr também tinha companhia. Só que, no caso dele, a companhia era um pouco mais estável. Era sua namorada, que se sentava ao seu lado, com a cabeça em seu ombro. Estivera ouvindo os últimos relatos do namorado, sobre as aventuras de cada dia. Algo ao mesmo tempo emocionante, e patético. Emocionante, porque não se parece com a rotina de ninguém mais. E patético, porque era intrigante se ver como a violência se tornara comum, e como aquele grupo de bandidos tinha se transformado em um grupo de “super-heróis”, bandoleiros de rotina...
- Sabe o que eu fiz com ele? – disse Wesley, arregaçando as mangas da camisa. Ele já tinha bebido bastante, e, além disso, estava louco para impressionar a garota ao seu lado, Rebeca. Ela ouvia, sorridente.
- Não. O que você fez com ele, Wesley? – perguntou Wellington, irônico.
- Bom, eu vou te contar o que eu fiz com ele. Maldito policial. Ele tinha me seguido até o meu carro, certo? E, detalhe: isso era um Sábado à noite, perto do litoral, depois da estrada, um pouco antes de chegar na cidade. Isso mesmo, eu estava lá, e sozinho. Carregando erva pra uns carinhas da praia. Na época eu ficava doidão várias vezes por dia, eu era louco. Certo. Aí, ele me manda parar, e eu vou pro acostamento. Tá. Parei. Esperei. Ele também estava sozinho.
- Ih... cê comeu ele. É isso? – zombou Wellington, abraçado com Juliana.
- Cala a boca.
- É. Deixa ele contar o negócio – disse Wilson, palitando os dentes.
- Olha aí o puxa-saco – continuou Wellington – Sabe o que você é, Wilson? Posso dizer? Cê é uma Maria...
- Que...?
- Que foi que ele disse?
- Uma Maria-vai-com-as-outras – completou Wellington, bebericando o uísque – Você deve chupar o Wesley, acertei? Vocês são um casal gay...
- Cê não tá falando coisa com coisa, ô bonzão... – disse Walcyr, fazendo o outro se calar. Wesley continuou:
- Bom, onde é que eu parei? Puta merda, agora eu tô perdido!
- Você nasceu perdido...
- Você tava dizendo que o tira foi te encher o saco no teu carro, cara...
- Ah, é... isso mesmo. Valeu, Wagner – disse Wesley – Mas... mas... tem uma coisa que vocês não sabem, viu? É... o que acontece, caras, é que eu tinha um negócio comigo no carro...
- Um negócio?
- É.
- Que negócio era esse?
- Era um martelo – respondeu Wesley, recostando-se na cadeira.
- Um martelo? – repetiu Rebeca, interessada.
- É. No carro. Comigo.
- Peraí, peraí... por que diabos você levaria um martelo com você no carro, Wesley? Essa eu não engulo... – disse Wanderley, intrigado, chegando mais perto do companheiro.
- Por que? Bom, olha... eu não sei, cara... mas... isso não é relevante neste caso, entendeu? Não vem ao caso... – disse Wesley, exaltado – Tipo, eu levava um martelo no porta-luvas, é isto o que estou dizendo... agora, o motivo, eu não sei... era uma ferramenta do carro, quer dizer, o martelo estava lá, entendem o que eu quero dizer?
- Você poderia estar levando o martelo para defesa própria. Talvez já esperasse por algo deste tipo. Um tira, ou um cara folgado que viesse...
- É, isso poderia acontecer – ponderou Wesley, agitado, ficando mudo em seguida. Olhou Wanderley – Isso poderia acontecer – disse, balançando a cabeça. Via-se que tinha tomado todas.
- Por que não?
- Por que não? – repetiu Wesley – De qualquer forma, eu senti um negócio quando o tira vinha vindo, entendeu? Era como se houvesse um imã na minha mão, cujo pólo oposto estava no martelo. Minha mão queria o martelo. Eu não queria, mas minha mão queria. O imã do martelo era mais forte.
- Porra, que merda é essa de imã?... – disse Wellington – Como assim, imã? Será que você não pode simplesmente contar o troço? Precisa sempre filosofar sobre tudo?...
- Cala a boca, Wellington, e deixa o rapaz contar a história dele – disse Walcyr, fumando, e em seguida olhou para Wesley.
- Obrigado. Então, eu tava lá. Aí, bom, o guarda chegou no meu carro, e disse: “Ei, garoto... parece assustado. Posso ajuda-lo?”, foi o que o filho da puta me disse. Eu suando... aí eu falei pra ele que tava com um problema no carro. E falei pra ele dar a volta e vir pela porta direita, pra me ajudar. É claro que ele já desconfiou, mas acontece que eu falei de um jeito legal, eu fingi bem que estava com problema. Ele deu a volta muito devagar, o filho da puta, sempre me olhando torto, com uma cara de Charles Bronson, achando que é o máximo. Ele chegou pelo outro lado, eu abri a porta, e fingi que mexia no painel. Ele se aproximou, com uma mão no cinto. Na arma, é claro. Morrendo de vontade de pegar a arma e me assustar. É claro que eu estava cagando... estava mesmo. Aí, o que eu fiz em seguida foi a coisa mais desesperada que eu já fiz na minha vida... vocês não vão acreditar.
- Conta logo.
- Peguei o martelo num movimento rápido e meti na cara do policial!
- Você deu com o martelo no tira? – perguntou Wellington, brusco, largando o copo na mesa – Conta outra.
- Eu fiz isso. Na hora nós dois ficamos uns segundos parados, completamente confusos, foi muito estranho. E então eu arranquei com tudo, empurrei ele pra fora do carro e sumi.
- Mas um martelo não derruba um homem desse jeito – disse Wilson.
- Não derrubou mesmo. Mas atordoou o infeliz – continuou Wesley – Bem no nariz. Devo ter feito o maldito sangrar, mas claro que não fiquei lá pra ver.
Walcyr observava a tudo, calado. Sempre pensativo. Olhava para seus companheiros, analisando suas atitudes. Enquanto Wesley divertia seus ouvintes com suas histórias fantásticas, Walcyr chamou Wagner.
- Fala.
- Wagner, chega mais.
Wagner se inclinou até Walcyr, atencioso, e ouviu:
- Escute, Wagner. O momento está chegando.
- Que momento?
- Do golpe. O meu golpe. O golpe final.
- Já?
- Sim. Tenho certeza. O momento está chegando – concluiu Walcyr, em voz baixa, quase sussurrando.
- E quanto ao garoto? – perguntou Wagner, muito cauteloso.
- Wilson? Bom, vamos ficar de olho... por enquanto não peguei ele com as mãos sujas... quando pegar... vou ter que sujar as minhas!










Parte 3



1 – Wellington vai ao escritório do advogado
Dia 31 de Novembro, às 20:50, no escritório de William



Quando Wellington entrou na sala, tropeçando de tão bêbado, mal pôde se segurar para não cair ao chão.
A visão que teve fez um calafrio subir por sua espinha e fez ele dar um pulo para trás, acordando totalmente da bebedeira.
- Puta merda, não pode ser... – e perdeu a fala.
Ele ficou um longo momento paralisado, olhando o estado em que se encontrava a sala de William, o advogado da equipe. Depois saiu, cambaleante, sem saber agora aonde ir. E viu que estava passando mal.
A sala era um espetáculo de horror, um pesadelo materializado. Eram quase nove horas da noite, ele voltava do clube... tentou recapitular tudo. Tinha bebido como nunca.
Saíra do clube com alguns integrantes do grupo, que o trouxeram até o escritório do advogado. Era uma ordem de Walcyr. Ele teve que sair mais cedo, pois tinha coisas a resolver. Os outros deixaram Wellington no escritório, a ordem era averiguar se tudo estava bem. Walcyr tinha o pressentimento de que algo não estava bem no escritório, tinha um “mau pressentimento”. E Wellington foi, achando que era tolice de Walcyr, era exagero. Mas foi.
E agora encontrou William morto sobre o tapete, todo ensangüentado, e a sala toda revirada, destruída.
William no chão, com diversos tiros no estômago, de alguma arma bem potente, cheio de sangue, uma cena horrível. Papéis, cadeiras, móveis, objetos, tudo jogado pela sala. Provavelmente alguém tinha entrado ali buscando algo, e encontrou o advogado. Este deve ter reagido, e foi morto. Então o assassino procurou o que queria e se foi. Mas o que ele queria?
E se tudo isso tivesse algo a ver com a equipe de assaltantes de Walcyr? Eles se ferrariam, na certa. Mas podia ser também alguma coisa relativa a algum outro cliente do advogado, já que ele tinha vários clientes ricos que o procuravam em sua profissão. Precisavam saber se era com eles ou não.
Wellington nem tinha cabeça pra pensar agora. Precisava avisar o chefe. Mas antes percebeu que podia ir apurando algo. Ele, como integrante do grupo, sabia de alguns segredos que só a equipe de Walcyr e o advogado podiam saber. Por exemplo: todo o dinheiro dos roubos e golpes que a equipe dava ficava guardado num banco, em uma maleta, assegurado por William. Ele cuidava desta parte do dinheiro, e era de confiança. Ninguém tinha permissão para tocar no dinheiro se não houvesse mútuo consentimento. Todos deveriam concordar, então usariam uma das chaves do cofre no banco e usariam o dinheiro. Uma chave ficava no escritório de William, e a outra ficava com Walcyr, o líder. Para haver segurança suficiente.
Wellington sabia que a chave do banco ficava num cofre no escritório dele. Um cofre de primeira, cujo segredo somente o grupo sabia. Wellington decidiu averiguar, só para ter certeza de que o assassino não tinha levado o conteúdo do cofre. Tinha quase certeza que não, porque só os integrantes do bando sabiam disso. E não haviam traidores no grupo... certo?
Pois o espanto de Wellington foi maior quando viu o cofre de parede à sua frente, aberto, sem a chave do cofre do banco. Vazio. Levaram a chave, e têm acesso ao dinheiro do bando que está no banco! Estava tudo perdido! Wellington ligou no celular de Walcyr o mais depressa que pôde.






2 – A ruína de Wagner
Dia 31 de Novembro, às 21:03, nas ruas da cidade


Perdido na noite, Wagner ia rumo à outra parte da cidade. Saía da cidade do pecado, entrava na zona mais amena, não tão podre quanto a outra. Era o subúrbio, mas lá ainda se podia viver razoavelmente bem.
Passou por alguns bares. Mas não entrou. Não precisava beber. Podia se considerar satisfeito. O chefe falou sobre o golpe final. Isso queria dizer que logo chegaria o dia. O dia de se libertar, largar esta vida suja e voltar pros braços de Eliza.
Eles se falaram pelo telefone neste dia. Eliza estava com a voz meio fraca, talvez por causa da saudade. Ele também se sentia assim. Disse que iria vê-la hoje. Só vê-la. Porque fazia tempo que não visitava sua querida Eliza. Ela concordou.
Enquanto ia até a casa de Eliza, Wagner pensava no que falaria para ela. Diria que logo poderiam se casar, pois ele traria dinheiro suficiente para ser feliz. Ela ficaria contente em saber disso. Preferia dizer a ela pessoalmente, para ver seu rosto na hora. Ver a alegria que com certeza ela sentiria.
E a ansiedade era enorme. O caminho da casa dela se tornou mais distante do que nunca. Ele queria chegar logo. Abraça-la, beija-la.
Entrou na rua dela, e logo se viu diante do sobrado dela. Um bonito porém simples sobrado. Com a mão ligeiramente trêmula de excitação, tocou a campainha e aguardou, olhando a janela.
A mãe de Eliza apareceu numa das janelas. Eliza e ela moravam sozinhas. Ela cuidava da mãe. O pai falecera uns anos atrás.
- Boa noite, o que... – a mãe dela não reconhecia Wagenr no escuro da noite - ... Wagner! Meu Deus, você apareceu!
- Pois é, Dona Rosa... e a sua filha, está em casa?
- Entra, Wagner, entra... não, ela não está agora. Espere aí, vou abrir.
- Ela não está...? – disse Wagner – Nós marcamos hoje mesmo de nos encontrarmos aqui...
- Ah, é? Ela não disse nada, ela...
- Sabe onde ela foi? – perguntou Wagner, morrendo de curiosidade.
Dona Rosa ficou calada, indecisa.
- Ela... tá na casa do Adriano... – disse a mulher, em voz baixa, fraca.
- Adriano...? – Wagner parecia confuso – Quem é Adriano?
- Olha, é só um amigo dela, um grande amigo, Wagner... ela tem ido lá todos os dias, e eu falo pra ela parar, mas... – Dona Rosa já não sabia como manter a conversa.
- Já entendi, Dona Rosa... obrigado – Wagner nem esperou a mulher terminar. Já ia saindo, mas ainda gritou: - Onde fica a casa dele?
- Você não vai fazer besteira, seu Wagner... por favor...
Wagner nada disse, só esperou.
- Ai, meu Deus... – Dona Rosa cedeu, dizendo-lhe o endereço do tal Adriano.
Wagner não disse mais nada, somente saiu em disparada pela rua, sem pensar em mais nada.
Aqueles momentos em que corria pelas ruas da cidade, naquela noite, foram eternos para ele. Custavam a passar. Assim como mil coisas povoavam sua mente. O que ele queria era chegar lá o mais rápido possível. Sem demoras. Atravessou ruas sem ao menos olhar para o lado, não via nada, só um homem e uma mulher. Ela, ele queria para ele. O homem, ele queria matar. Adriano... mas como, Adriano?... Perturbado, ia se aproximando do local indicado.
Quando chegou, viu a mansão. Uma casa, no mínimo, enorme, e linda, diga-se de passagem. Um imenso jardim na frente, um caminho que levava do portão à casa, altos muros em volta. Bairro de classe alta. Imaginou Eliza lá dentro. Sua cabeça ferveu.
Ele tocou. No interfone, alguma empregada falou com ele. Ele disse que veio ver Eliza. O portão se abriu. Pronto. Nada o impediria.
Caminhou eternamente pelo caminho que havia no meio do jardim. No escuro, as árvores o observavam, na penumbra. Se sentiu mal, inquieto. Quando chegou à porta, esta se abriu. Eliza o recebia, linda. Rosto impassível. Nem alegria, nem tristeza. Aguardava.
- Veja quem está aqui! Trate de entrar, moço... – disse ela. Um profundo desânimo tomou conta de Wagner enquanto entrava na sala. Um desânimo que é difícil de explicar. Foram as palavras dela. “Veja quem está aqui! Trate de entrar, moço...” “moço...”. Era péssimo ouvir palavras distantes como esta. Parecia que se referiam e um reles amigo dela. Não um namorado, e não a pessoa mais importante da vida dela. Pareceu algo tão distante... porque era, sim, simpática... mas simpática da maneira como uma amiga é simpática com a gente. Deprimente. A depressão tomou conta dele.
Lá dentro, eles ficaram de pé, um de frente pro outro, no meio da sala. Só eles. Ele tinha um olhar interrogativo, e ela não demonstrava nenhuma emoção. Mas contente em vê-lo.
- Sumiu, hein, Wagner...
- Não, pelo contrário, tenho ligado todos os dias... – disse ele, desanimado. E, recuperando vigor, perguntou: - Onde está ele?
- Ele quem? – ela parecia verdadeiramente inocente naquela expressão. E era.
- Esse Adriano que a sua mãe me falou... ele tá aí? – perguntou Wagner, com uma postura ligeiramente brusca. Parecia querer fechar as mãos. As mãos quase fechavam. Ele queria socar algo.
- Pare, Wagner, agora. Por mim. Ele não está, vai chegar muito tarde hoje – ela disse, em sua voz leve e suave.
- Eu não fiz nada... ainda – disse ele. Deu um passo à frente, com uma expressão inconformada no rosto. Puto da vida. Quase avançou sobre ela.
- Fique longe, Wagner, por favor! Se controle! – ela percebeu na hora que ele estava fora de si por dentro. E podia machuca-la. Ela deu alguns passos para trás, e manteve Wagner distante – Você não vai encostar um dedo em mim... e nem nele, Wagner.
Ele não respondeu. Ele era uma mistura de frustração iminente com raiva intolerante. Respirou fundo e circulou pela sala. Acendeu um cigarro, com mãos vacilantes. Olhou para ela nos olhos. Ela também olhava.
- Nossa, Eliza... nunca te imaginei como uma interesseira... – disse ele, movendo os braços à sua volta, indicando a riqueza daquela casa – Porque, me perdoe, mas se não é pelo dinheiro...
- E não é. Você nem sabe... eu gosto dele de verdade, procure entender que...
- Entender o que?! Que fizemos uma promessa e que não foi cumprida? Deus, me diga, o que eu precisava ter feito? Um juramento de sangue? É? Pois bem, eu faço! Mas tudo em vão, ela me trai! Há há, é palhaçada, só pode ser... e com um riquinho filho da puta, ainda por cima... um canalha – Wagner falava para si mesmo.
- Escute o que eu quero falar, Wagner... por favor. Não pense que não gosto de você, porque eu te amo. Do fundo do coração. Não estou te fazendo de bobo como pensa, procure ouvir... entender. Eu sempre gostei de você, e se depender de mim, posso gostar até o fim da vida... – dizia ela, com toda sinceridade – Eu sei que fizemos uma promessa um ao outro... e a fiz de coração, Wagner... fiz mesmo... eu o amo. Mas não posso nem explicar como as coisas acontecem, a vida é assim, você sabe... conheci o Adriano numa festa. Era amigo da família, costumava ajudar minha mãe todo mês com as contas, pois sabia de nossa situação... mas escute, não é por isso que gosto dele... eu também o amo, Wagner... ele significa muito pra mim. E, quando comecei a gostar dele, vir à casa dele, conversávamos, saíamos... e fui ver que estava apaixonada – nesta hora Wagner se virou bruscamente e fulminou Eliza com o olhar.
- Eu encontrei dezenas de mulheres durante estes anos, com quem podia ter ficado, namorado, só pelo prazer... mas não. Eu tinha um compromisso com você. Se visse os tipos por quem cruzei nestes anos... resisti a tudo por você. Como pode me trair... trair o nosso sonho...? Eu juntei dinheiro pra gente, Eliza... pra gente casar... e foi tudo em vão... como pode se sentir bem com isso?
- Calma, procure ouvir. O que eu queria, quero e sempre quis é dizer o que realmente sinto, acho que sinceridade vem em primeiro lugar. É claro que tínhamos a promessa, tantos anos de namoro... e eu precisava esperar por você, pra podermos nos casar, formarmos uma família. Era o que eu queria. Mas o ser humano muda de cabeça, você sabe disso... meu coração mudou, é incontrolável. Veio o sentimento, e eu segui o sentimento verdadeiro... poderia muito bem mentir pra mim, forçar eu mesma a esperar por você, e me casar infeliz... não infeliz, mas contra meus sentimentos. Optei pela sinceridade. Você devia agradecer, Wagner, por eu me abrir com você assim... e te dizer tudo isso. Se não dissesse, você nunca saberia que amo outro homem, não seríamos felizes, e seria pior, acredite. Gosto de você, e até lhe peço desculpas, peço perdão, se é que isso vale alguma coisa para você... é normal você sentir raiva agora. Mas tente entender. Quero continuar sendo sua grande amiga, quero que goste de mim, quero gostar de você...
- O que ele faz?
- Como?
- Esse Adriano trabalha, ou só fica coçando no meio dessa grana toda? – perguntou Wagner.
- Ele é político.
Wagner sorriu, sarcástico, vermelho de raiva. Soltou uma gargalhada.
- Não julgue as pessoas antes de conhece-las. Não te peço pra se encontrar com Adriano... mas pelo menos tenha respeito.
- Eliza... por acaso me deixou por causa do tipo de trabalho que eu fazia? Acho que sim. Pois fique sabendo que nós concordamos que eu faria isso por tempo suficiente para conseguir dinheiro, nada mais. Concordamos. Pois o que esse cara faz na política deve ser tão sujo quanto...
- Não. Pra começar, não o deixei por causa da vida criminosa... – disse Eliza, ainda com o olhar de serenidade – E outra: ele não é corrupto. Quero ser sincera, então vou dizer: além do sentimento que tenho por ele, confesso que a estabilidade financeira dele também é um fator importante... por que não? Você sabe, é o instinto humano, eu queria me casar e já estava desesperada... o dinheiro não chegava. Quando conheci ele me senti segura, entende?
- Então vai se casar?
- Provavelmente. Não fique magoado – disse Eliza. Em seguida houve silêncio total. Por um longo momento, ele pensava em mil coisas, enquanto, de costas para ela, olhava a rua pela janela.
Então Wagner tirou do bolso uma caixinha preta. Andou desanimado, olhar caído, e a entregou para Eliza, sem vontade alguma, sem sorriso no rosto. E se afastou. Ela abriu. Era um colar. Lindo. É claro que não era muito caro, pois o dinheiro não permitia luxos... mas era lindo, era a cara dela... ele escolheu pensando nela.
Ela pôs o colar, foi até um espelho, sorriu contente.
- Muito obrigada, é lindo, Wagner. Adorei. Obrigada – ela foi até ele, e deu-lhe um beijo no rosto. Ele nem se moveu, permaneceu de costas, frio. Como se nem sentisse o beijo. O colar era para ela gostar, mas não desse jeito. Não tinha valor algum, agora. Ele se sentiu péssimo.
- Muito obrigada, você tem um bom gosto para escolher estas coisas, sabia, moço? – disse ela, divertida, apreciando o colar. Em seguida guardou-o numa caixinha de bijuteria na sala. “Moço...” Mais uma vez veio aquele desânimo. Nunca teria Eliza.
A noite caía. Era o fim, sem dúvida.
Ele ainda olhou uma vez mais pra ela. Ela precisava dizer algo.
- E aí... não quer falar do trabalho comigo?... sabe que me interesso em saber como vão indo as coisas com seu grupo...
Ele nem se moveu, só olhava. Depois se dirigiu à porta da sala. A campainha tocou. Seria Adriano?! Se fosse... ele não saberia mesmo como reagir... talvez esfolasse a cara dele... não era ele. Era uma vizinha, amiga de Eliza. A vizinha fofoqueira.
- Não vá embora, vou apresentar a Neide – disse Eliza, indo abrir o portão para a amiga. A depressão aumentou em Wagner. Esse papo de apresentar amiga lembrava o tempo de colegial, quando as garotas às vezes traziam uma amiga pra conhecer os rapazes... e às vezes rolava alguma coisa entre eles. Isso soou mal para Wagner. É claro que neste caso não tinha nada a ver, era só uma vizinha enxerida, que chegara em má hora, e que iria conhecer Wagner por acaso. Mas mesmo assim, naquela situação, Wagner começou a se imaginar cantando a vizinha de Eliza, imaginou ela doidinha por ele. O pior pensamento que já teve, sem dúvida... definitivamente, isso tudo significava que perdera Eliza pra sempre.
- Este é o Wagner. Wagner, Eliza – eles se cumprimentaram, ele muito desanimado.
Eliza correu naquele jeito gracioso até o porta-jóias, pegou novamente o colar e veio mostrar à amiga.
- Ai, que inveja! – disse ela – É lindo, realmente, lindo!
- Foi ele quem me deu! – disse Eliza, olhando para Wagner. Ele nem disse nada.
A vizinha elogiou Wagner, ele forçou um sorriso sem significado algum. Disse que estava tarde, precisava ir. Precisava sair daquela casa o mais rápido possível.
Despediu-se da vizinha Neide e foi até a porta da sala. Eliza deixou Neide no sofá vislumbrando o colar, e foi atrás dele, na soleira da porta. Ele mantinha o olhar fixo na rua.
Neide não pôde ouvir, mas viu, lá de dentro, que Wagner sussurrava algo no ouvido de Eliza. Depois ela tentou beija-lo, ele se livrou do rosto dela, frio, e foi embora da casa. Eliza ficou um tempo na porta, vendo ele ir. Depois voltou pra amiga.
- E aí, que horas o maridão chega? – perguntou a maliciosa Neide.
- O Adriano? Às nove.
- Lindo, esse colar... mas que que o moço te falou na porta, que é tão secreto assim?... – perguntou Neide, enxerida.
- Ele falou que ia se matar... até parece que se mata, só fala, mas fazer mesmo, não faz... – disse Eliza, guardando o colar.
- Cê viu a novela ontem?
Wagner andou pelas avenidas agitadas da cidade, no caminho de volta, com aquele já conhecido peso nos ombros... murcho. Distraído. Não se matou, não tentou se matar... mas no caminho de volta, aqueles bares todos da avenida pareciam muito mais tentadores do que antes.






3 – Interrogatório
Dia 31 de Novembro, às 23:30, no apartamento de Wilson


Wilson se sentava numa cadeira, com a cabeça caída, os ombros curvados, olhando para o chão. O local era um quarto num prédio abandonado da cidade, distante do clube. Uma sala escura, desabitada, sem móveis. Uma lâmpada no teto balançava toda vez que Wellington rodeava pela sala, por ser muito alto. E Wilson conseguia encarar nos olhos os parceiros Wellington e Wanderley. Estes, de pé, o fitavam, cobrando-lhe uma resposta. Wanderley não era tão enérgico quanto Wellington, que estava ao seu lado. Só observava. Mas Wellington estava indignado, uma pilha de nervos. Repetiu a pergunta:
- Responde, Wilson: Você é doente? – a pergunta de Wellington era patética, mas era a única coisa que ele conseguia falar na hora – Me fala. Porque, se for, tá tudo explicado. Se for retardado, não bater bem... aí a gente te deixa em paz, te interna... mas acho que você não é doente não, viu? Um palpite. E você, Wanderley? O que acha disso?
Wanderley deu de ombros, confuso, balançou a cabeça, não sabia o que dizer.
- Não sei, eu...
- Como assim, não sabe, Wanderley? – dizia Wellington – Você tem que ter uma opinião, não acha? O garoto é doente ou não? Por Deus, será que só eu aqui estou preocupado?
Silêncio novamente.
- Wilson, cretino – disse Wellington – Eu tô... pensando aqui comigo um negócio... escuta, um negócio sério mesmo... porque, veja bem, se isso que a gente ficou sabendo agora for verdade mesmo... eu não quero nem ver, cara... quer dizer, cara, você é um rato.
- Vá à merda – disse Wilson, encarando o parceiro.
- Cala essa boca imunda, rato. Você viu só, Wanderley? Temos um rato em casa, agora... dá pra acreditar? – perguntou Wellington, sarcástico.
- É... um rato – repetiu Wanderley de braços cruzados.
- Ele fodeu a gente. Foi legal, Wilson? Como foi? Hein? Se sentiu bem? Está orgulhoso? Vem cá, garoto! Merece um prêmio por tudo isso. A mente astuta do Wilson... – disse Wellington, elevando o som da voz, se curvando até Wilson, e agarrando o rosto dele com as duas mãos, com força – Estamos orgulhosos, garoto...
- Foda-se – Wilson se desvencilhou das mãos de Wellington, que zombava dele, e em seguida cuspiu em sua cara.
Wellington ficou estarrecido, imóvel, de pé, olhando Wilson. Mas não nervoso. Simplesmente olhou para Wanderley, limpou o cuspe dos olhos com a ponta da camiseta, respirou fundo, e depois mostrou-se despreocupado:
- Tá certo, Wilsão... é isso aí... não vou te bater... não mesmo... não vou sujar as mãos com traidores filhos das putas que nem você... nem vou te encher mais o saco, se quer saber... mas eu te falo uma coisa... é o que eu ia falar agora há pouco. O que me preocupa nisso é justamente a sua saúde, garoto. Veja bem... se eu e o Wanderley aqui não vamos te fazer nada, pois somos pacíficos... o mesmo não ocorre em relação ao Wesley, que agora não está presente. O Wesley é o cara – perdoe-me pela sinceridade – mais ignorante, violento e rude que já conheci. Apesar da pouca idade dele, já vimos ele esmigalhar o crânio de policiais contra a parede, ou encher corpos de tiros até que não restasse um órgão inteiro no cara... pois é, ele é descontrolado. No grupo, ele é o mais irritado, o mais enérgico, e sempre foi assim. Ele já disse mil vezes, em conversas, o que faria se soubesse um dia que no grupo havia um traidor. Se houvesse, ele disse que ia sentir vontade de matar o traidor e depois ia querer ressuscitar ele umas quatro vezes, até ficar satisfeito de tanto matar o sujeito. Vou ser direto, Wilsão: se ele souber que você é um traidor... ele vai se oferecer pra ser o seu carrasco. E o Walcyr vai aceitar, e com toda a razão. Você sabia da postura do grupo em relação a isso antes de entrar. Fiquei sabendo que conversou com a piranha do clube, e fodeu a gente. Pois então te cuida, garoto.
Wilson não disse mais nada, somente permaneceu sentado em sua cadeira, naquele canto escuro da sala, até que Wellington e Wanderley resolveram ir embora.






4 – Walcyr e o judeu
Dia 31 de Novembro, às 23:47, no Gilmar Açougueiro


Vinícius andava em círculos no chão sujo e fedorento nos fundos do Gilmar Açougueiro, famoso açougue do bairro, com variedades em qualquer tipo de animal “comível”, como o próprio Gilmar brincava. Gilmar, imigrante polonês, era muito caloroso e receptivo com todos os moradores das redondezas, principalmente seus clientes.
Um grande açougue que veio agora bem a calhar para Vinícius Litchmann. Ele ligou na casa de Gilmar no meio da madrugada. Gilmar, com voz sonolenta, disse:
- Quem é?...
- Aqui é Litchmann, da empresa homônima.
- Que Litch... ah, sim! – agora Gilmar acordara de vez, se recompondo – Como vai, seu Vinícius? Faz tempo que não nos falamos...
- Pois é – disse o judeu – Escute, Gilmar, foi pensando na nossa amizade e companheirismo de velhos tempos que resolvi, no meio da madrugada, tirar o senhor da cama. Antes de mais nada me desculpe, por favor, mas sabe que eu não faria isso se não houvesse motivo suficiente, certo?
- Certo, seu Vinícius... o senhor me ajuda muito, ajuda meus funcionários... afinal, o açougue é na realidade propriedade sua. O mínimo que posso fazer é atende-lo no meio da noite.
- Muito obrigado. O motivo é que preciso de um pequeno favor. Preciso usar seu açougue, Gilmar. Hoje. Agora. Vou precisar entrar lá, pois tenho negócios pendentes comigo. Preciso averiguar algumas coisas, e...
- Não precisa se explicar, tem todo o direito de ir. O senhor tem a chave? – perguntou Gilmar.
- Não, vou mandar um homem buscar em sua casa daqui a pouco. Pode ser?
- Claro.
- Não se preocupe com nada, Gilmar. Qualquer dano provocado no açougue é responsabilidade minha...
- Dano?...
- Sim... sujeira, estragos, você sabe o tipo de negócio que tenho, sabe que certos serviços são necessários de vez em quando – disse Vinícius.
- Sim, sim.
- Entregue a chave ao homem que eu mandar daqui a pouco, e amanhã de manhã poderá continuar com seu trabalho no açougue, como sempre fez.
- Está certo, seu Vinícius...
- Obrigado, Gilmar. Agradeço muito.
- Que é isso...
- Até qualquer hora.
- Até! – respondeu Gilmar. Depois desligaram.
E agora Vinícius andava agitado pelos fundos do açougue, sob aquela fraca luz amarelada, que tingia parcialmente seu rosto, em meio a tantos monstruosos pedaços de carne crua pendurados por correntes. O cheiro, é óbvio, era insuportável. Mas Vinícius nem ligava para o cheiro naquele momento. Seus homens estavam perto, calados, aguardando qualquer ordem.
A mente do judeu se ocupava com pensamentos relativos ao destino de um ser, que estava também à sua frente, porém sentado em uma cadeira.
Era madrugada. Não se ouvia nada vindo da rua, e a rua também não ouviria, sem dúvida, qualquer som vindo dos fundos daquele mórbido local.
O homem sentado à frente do judeu, de cabeça baixa, era Walcyr Lima, ou simplesmente Walcyr... o bandido.
Todos ali eram bandidos. E, cientes disso, sabiam da existência de constantes conflitos entre pessoas deste tipo. Gangues em guerra.
O poderoso judeu, sempre limpo e impecável nas roupas negras, com a reluzente careca ao topo, examinava as unhas, enquanto pensava no que fazer com Walcyr. Resolveu começar.
- Muito bem, Walcyr, estou tendo a honra de conversar com você, finalmente. Só o conhecia dos jornais. Manchetes. A última que saiu, semanas atrás, falava de um grande golpe. A polícia estava de olho. Tinha informações. Era um golpe incrível, arriscado, audacioso. Num banco. Fiquei sabendo de mais detalhes ainda, fiquei sabendo mais que a própria polícia... conheço praticamente tudo sobre seu bando, graças a um rapaz que já foi útil... e não é mais... Wilson. Seu traidor. Já sabia disso?
- Já – respondeu Walcyr, impassível, aparentando tranqüilidade. Não mexia nem um nervo, não piscava – Mandei matar ele.
- Certo. Agiu certo – Vinícius vibrava com a brutalidade das palavras de Walcyr – Eu teria feito o mesmo – disse isso olhando para seus homens, que permaneciam em silêncio.
- Seu judeu...! Qual seu interesse em me manter aqui, ou até em me matar, acabar com meu bando?... Já não tem dinheiro suficiente? Por que não me deixa em paz, porra, não tô interferindo em nada que é seu. Nem sequer atuo em seu bairro de influência...
- Eu sei. E agradeço. Sei que nós dois nos conhecemos através de informações que os jornais divulgam... e sei que nós dois vemos um ao outro com respeito, como dois homens de conquistas. Mas as conquistas continuam, e eu não podia deixar um gênio indomável como você crescer.
- Crescer?
- É. Você tem talento, tem a melhor liderança, e eu percebi. Seu bando ia crescer, mesmo que não queira admitir. Iam crescer, se tornar um empresa, mais cedo ou mais tarde. Já tenho concorrentes até demais. Todos os dias corro o risco de perder minha posição, ir preso, sofrer processos na justiça, enfim... não é tão fácil assim se sentar na poltrona daquela empresa que tenho. É trabalho. Tenho que eliminar inimigos quando necessário. Odeio ter que dizer, mas... você é um inimigo, que no futuro poderia me prejudicar. Tenho que cortar essa ameaça pela raiz. Enquanto você ainda é relativamente “pequeno”. Um assaltante. Mas que tem muito dinheiro guardado, pois Wilson me informou disto também. Tenho que elimina-lo, Walcyr Lima. Você e seu bando. É uma pena ter de fazer isto justo quando planejava seu último grande assalto. Mas é assim mesmo. Quando estamos prestes a alcançar nosso prêmio, algum filho da puta chega e mata a gente. Já passei por isso. E veja bem: eu não gostaria nem um pouco de deixar você ir agora... esquecer você... e mais tarde algum filho da puta me pegar, fazer comigo o que eu não fiz com você neste dia. Seria horrível.
- Vamos fazer um acordo – disse Walcyr.
- Que espécie de acordo?
- Não sei. Mas poderia me deixar em paz, deixar o meu bando quieto. A gente só precisa deste golpe pra se desmembrar, cada um ir pro seu lado, com sua grana, e o grupo nem sequer vai mais existir. É claro que cada um de nós, talvez, continue, mesmo assim, sendo uma ameaça pra você, como diz. Mas... poderíamos fazer um trato: você tem o meu dinheiro. Dividiríamos este dinheiro. Afinal, foi com muito esforço que eu e meus homens conseguimos ele. Eu e você dividiríamos e você me deixaria ir, e eu não seria ameaça alguma pra você. Não sou um traidor. Pode contar comigo, seria um trato fiel.
- Eu sei que seria – disse Litchmann.
- E então...? – perguntou Walcyr.
- Se me enganar, eu te mato da pior maneira possível. Uso a pior violência – avisou Vinícius, muito sério.
- Não vou te enganar. Nenhum de nós vai – disse Walcyr.
- Tem certeza? – o judeu olhava nos olhos do rival – Wilson era de confiança, também? Era?
- Não, não era. Mas confio no resto do bando, eles trabalham comigo há anos.
- Está certo, vou acreditar. Aceito a proposta, negociaremos. Mas por enquanto você fica aqui. Vamos fazer tudo organizadamente. Como pode ver, Walcyr, a minha intenção inicial, hoje, era muito diferente – o judeu olhou em volta, apontou o local. Tem idéia do que ia te acontecer hoje?
- Ia me matar aqui no açougue – disse Walcyr.
- Isso mesmo. Acertou. Aqui teria todas as ferramentas de tortura de que precisaria. Meus homens iriam faze-lo falar de qualquer outra coisa que me interessasse sobre o seu grupo. E então acabaríamos com você e seu bando. A esta hora você já estaria aqui no chão, ensangüentado, morto. Meus homens limpariam o chão, voltaríamos para casa e nunca mais pensaríamos em você. Mas admiro sua coragem, Walcyr, com a qual chegou para mim e disse, arriscou essa virada de situação. Parabéns. Espero que ambos fiquemos satisfeitos com o acordo.
- Eu também – respondeu Walcyr.
Vinícius se virou para um de seus homens e deu a ordem:
- Ligue no celular do Kirk, ou da Sofia. Pergunte onde puseram a maleta de dinheiro, e depois fale para eles trazerem aqui. Dê o endereço. Fale para virem imediatamente.
- Certo – respondeu seu capanga, sumindo no escuro do local. As coisas se movimentavam.







5 – Perseguição de carro
Dia 1 de Dezembro, às 24:26, na rua


O carro de Wellington atravessava várias avenidas em alta velocidade, neste fim de tarde. Era seu Palio, o carro do garanhão. Mas agora ele nem pensava nisso. Ele e Wanderley estavam indo rumo ao clube para encontrar com os outros. Pois o bando corria um enorme risco neste momento. Qualquer passo em falso podia resultar em tragédia.
- Não adiantava ficar gritando com aquele merda do Wilson – disse Wellington em agitação, suando, dando uma desviada de um caminhão no meio da avenida. Wanderley suspirou, e disse:
- É verdade... mas Wellington... a gente vai falar com os caras no clube?
- Com certeza. E nem é birra minha contra o Wilson. Ele que se foda. É mais uma questão de avisar do perigo que a gente corre, porque o dinheiro se foi e a gente pode se foder nas mãos dos filhos da puta que tão atrás da gente.
- Quem você acha que é? – perguntou Wanderley.
- Não sei. Algum grupo de traficantes, talvez... o Wilson se envolveu com gente muito fodida, isso é certeza... – respondeu Wellington. Na agitação de dizer tudo o que pensava, quase bateu de frente com uma pick up que vinha em sentido oposto.
- Cacete! – gritou Wanderley, se segurando no banco.
- Puta vida! – Wellington desviou, rodopiou no meio da avenida, e não conseguiu evitar a batida com a pick up. O Palio bateu na traseira do outro.
- Calma, cara. Calma – dizia Wanderley.
Eles ficaram alguns segundos parados, imóveis, assustados. Viram o motorista da pick up. Dois caras lá dentro, com uma aparência estranha. Olhavam para eles. Alguma coisa estava...
- Eles bateram de propósito, cara – disse Wellington em sussurros.
- Já saquei... arranca! – disse Wanderley, e em seguida Wellington assim fez, saindo a toda velocidade do local, com seu Palio, e sendo seguido pela pick up preta.
- Eles tão vindo! Acho que já sei quem são! – disse Wellington. O outro carro corria para alcança-los, quase colando em sua traseira. Felizmente, os danos do acidente eram leves. Mas feriram os sentimentos de Wellington. Seu Palio estava amassado.
- Ferrou... olha só a pinta deles, Wellington... a gente tá ferrado... são os amiguinhos do Wilson, com certeza.
- Eu sei. Seguiram a gente. Aposto que o próprio Wilson avisou eles quando a gente saiu do prédio – disse Wellington, acelerando cada vez mais – Calma, Wanderley. Eu só tenho que despistar eles. Só isso. E chegar ao clube. Aí vai estar tudo bem.
A pick up alcançou o Palio em instantes. Tudo aconteceu muito rápido. Logo estavam ao lado. O motorista da pick up não era ninguém além de Kirk Silva, capanga do judeu. Com aquela cara de poucos amigos. Em segundos, manteu uma mão ao volante, e com a outra apontou a arma para a janela do Palio. Queria acertar os rivais.
- Cuidado, Wanderley! – gritou Wellington, mal podendo se concentrar na direção. Kirk atirou várias vezes. Destruiu a carroceria do Palio, e acertou um tiro no ombro de Wanderley.
- Abaixa, cara! Abaixa! – disse Wellington, em pânico ao ver o amigo cheio de sangue. Wanderley, vermelho, abaixou-se, ofegante. Wellington, na raiva, investiu contra o outro veículo, jogou a lateral em cima da pick up. Esta perdeu o controle, derrapou, ficou para trás.
Alguns metros atrás vinha a viatura da polícia.
Wellington sentiu que Wanderley tinha-se ido para sempre, naquele momento, jogado com a cabeça no painel, ensangüentado. Wellington tinha que se controlar agora. A polícia estava vindo, e o negócio agora era fugir, simplesmente. Kirk Silva ficara para trás.
O objetivo era chegar ao clube, ou avisar alguém que lá estivesse.






6 – Mais traição
Dia 1 de Dezembro, às 24:30, no Gilmar Açougueiro



- Malditos! – gritou uma voz raivosa, irada, do fundo da alma – Malditos cães lazarentos do inferno! Desgraçados da pior raça possível, é o que são! – Vinícius atirou o telefone que tinha na mão contra a parede do escritório – Não consigo mais manter contato... Edgar! Eles disseram onde estavam quando você ligou?!
- Não... eles desligara muito rápido... – respondeu um dos capangas de Vinícius Litchmann, obviamente amedrontado com a raiva de seu chefe.
- Eu não posso acreditar nisso, não mesmo! – continuou o judeu, cheio de veias que saltavam de seu pescoço. Bateu com os dois punhos sobre a mesa de carvalho. Estava em seu escritório. Na mesma sala, dois de seus homens e Walcyr, à sua frente, sentado, aguardando. Esperava um explicação. Litchmann disse que fariam acordo, era só esperar a maleta chegar em seu escritório. Sofia e Kirk entregariam. E então os problemas seriam resolvidos. Mas não. Algo estava errado – O que eles disseram, exatamente, Edgar?
- Bom... eu mandei chamar a Sofia no telefone, pois o Gatuzzo tinha atendido. Preferi tratar com ela. Ela atendeu – dizia Edgar, com a voz trêmula – E eu disse o que o senhor mandou: “Sofia, o Vinícius tá mandando vocês trazerem agora mesmo a maleta. Estamos no açougue do Gilmar, precisamos da maleta”. Aí ela demorou um tempo pra voltar a falar, chefe. Sabe... como se perguntasse algo a alguém ao seu lado, tampando o fone. Em seguida ela disse: “Nada feito”. E eu nem acreditei. Respondi “Como?!”. E ela repetiu: “Nada feito”. Eu disse: “Você está brincando, Sofia?”. E ela disse que não. Ela disse: “Eu tenho a maleta. Sei o que tem dentro. Eu peguei a maleta, não esse judeu folgado. Eu, Kirk e Gatuzzo pegamos. E Vinícius não mexeu um dedo. Nós demos duro. Queremos o que merecemos. Não vamos devolver a maleta.” E aí ela desligou. Devem estar fugindo... não sei. Aí viemos aqui pro prédio, o senhor tentou ligar de novo...
- ... e ela não atende, a vagabunda, pois sabe que sou eu querendo falar com eles. Querendo mata-los – completou Vinícius – Isso não fica assim. Walcyr, vou resolver tudo isso. Seu dinheiro será recuperado, e faremos o nosso acordo.
- Está bem. Vou esperar... – disse Walcyr, ainda sem se exaltar – Mas, permita-me a intromissão, mas... como pretende pegar ela de volta se não sabe onde seus capangas estão?
- Vou achar Sofia, Kirk e Gatuzzo. Vou achar, matar e trazer a maleta – o judeu estava vermelho – Aqueles traidores.
- Então não fui só eu que fui traído, no final das contas... está vendo só, Vinícius?... as coisas acontecem com tamanha ironia... – Walcyr estava sarcástico.
Litchmann não gostou nem um pouco do que Walcyr disse, mas ficou calado, porque não havia nada a se dizer. E nem a se fazer. Percebeu que tinha poucas chances de encontrar seus traidores.







7 – Wellington continua no carro
Dia 1 de Dezembro, às 1:01, na rua


Wellington corria como um piloto de fórmula um. Estava acostumado aos velhos rachas com a velha turma da faculdade... a faculdade que ele nem terminou, quando viu que o dinheiro que tinha herdado permitia a ele uma vida boa sem que precisasse trabalhar. Trabalhava com o bando por diversão, porque queria.
Neste momento ele ia acelerando a cada instante, mas não porque estava se divertindo. Estava no meio de um troço muito importante. Talvez, neste momento, o bando inteiro dependesse desta sua ação.
Seguia um carro.
O carro que ele seguia ia seguindo muito em frente. Mas era melhor manter distância, mesmo. Wilson não podia saber que ele o seguia. Wellington se aproximou um pouco. O trânsito garantia que não fosse visto.
Wellington tinha usado a cabeça. Nos últimos minutos estivera fugindo do carro de Kirk Silva, capanga do judeu, e da polícia. Quando conseguiu despista-los, pôde refletir melhor. O clube estava muito longe. Algo errado poderia acontecer até ele chegar lá. Então, decidiu voltar até o apartamento de Wilson. E lá ficou de tocaia, estacionado no outro lado da rua. O objetivo era esperar o Wilson sair do prédio, e seguir Wilson para onde ele fosse. Provavelmente o garoto ia se encontrar com os capangas. E isso era proveitoso para Wellington. Poderia pegar Wilson em flagrante, e talvez destruir os planos do judeu, que estava por trás d e tudo. Wilson deixou o prédio, Wellington passou a segui-lo.
Mas era preciso avisar o grupo do que acontecia. O celular de Walcyr não atendia. Walcyr poderia ter se metido em alguma encrenca.
Pegou o celular e ligou para o primeiro cara do bando de quem lembrou o número, sem ser Walcyr. Wagner. Estava chamando.
- Atende, porra!
- Alô.
- Alô, Wagner, é o Wellington. Onde cê tá?!
- Eu? No clube! Por que, o que aconteceu?!
- O Walcyr tá aí com você?
- Não. Foi tratar duns negócios... mas fala, o que tá acontecendo?...
- Porra, meu! Cadê o Walcyr? Cadê?
- Não sei! – gritou Wagner – Agora, quer me dizer o que tá haven...
- O Wilson, o filho da mãe é um traidor, Wagner.
- Como?!
- Você ouviu. O maldito do Wilson, ele... tá ferrando com a gente, eu descobri porque ouvi uma conversa que ele teve com... escuta, agora não dá pra explicar! Tá? Mas o negócio é o seguinte: eu e o Wanderley falamos com ele, eu fiquei puto, esculhambei, e agora tô seguindo o infeliz! Dá pra acreditar?...
- Seguindo...? Você tá no trânsito?!
- É!
- Caramba...
- Olha, escuta, Wagner: o Wilson tem a maleta. Guarde bem isso. O Wilson tem a maleta, tá me escutando?!
- Escutei. O que... você tem certeza disso, Wellington?
- Tenho.
- A maleta do banco?
- É. Ela mesma. A gente pode se foder se não fizermos a coisa certa daqui pra frente. Inclusive eu. Ele tá a alguns metros na minha frente, não posso deixar ele me ver.
- Pra onde ele tá indo? – perguntou Wagner.
- Não sei bem... mas já tô atrás dele faz quinze minutos. Tá indo na direção do centro da cidade, por enquanto.
- O que eu posso fazer?
- Não sei. Acho que nada. Tive sorte de conseguir seguir ele. Fora isso, não temos nada. Todos os outros tão longe daqui, penso eu. Não sabe mesmo onde tá o chefe?
- Não. Ele não fala, você sabe. Só disse que ia tratar duns assuntos pendentes...
- Tá. Olha, o negócio aqui tá foda. Eu quase bati num ônibus agora há pouco. Vou desligar.
- Vê se liga, se descobrir alguma coisa – disse Wagner.
- Ó, se quiser me encontrar, eu não garanto que consiga, pois tô indo bem rápido, mas mesmo assim, se der, você pega a avenida da ponte branca...
- Sei.
- Segue reto, entra na terceira travessa, que vai dar perto da ferroviária... sabe do que estou falando?
- Sei, pode deixar. Vou sair com a moto, e ver se consigo te achar... – disse Wagner.
- Olha, Wagner, só toma cuidado pra o Wilson não te ver, caso você ache ele. Isso é importante.
- Certo.
- Estou perto do centro.
- Tudo bem. Vou sair agora mesmo, e tentar avisar quem eu encontrar por aqui.
- Até mais.







8 – Walcyr fala com a namorada
Dia 1 de Dezembro, às 1:12, no Gilmar Açougueiro


- Quero falar com minha namorada – disse Walcyr, em certo momento.
Litchmann pensava. Depois concordou. Entregou o celular a Walcyr.
Walcyr ligou para sua namorada. Ela mesma atendeu. Estava em casa.
- Alô.
- Oi, gata – disse Walcyr, e isto bastou. Ela ficou aflita.
- Walcyr, onde está? Fala – Ela insistiu. Porque sabia que ele relutava em dizer estas coisas pra ela. Não queria trazer os problemas do serviço pra ela. Se amavam, e muito.
- Resolvendo uns negócios. Não importa. Queria falar com você.
- Mas por que? Aconteceu alguma coisa?
- Calma. Estou bem. Estou com um homem que você não conhece. As coisas não estão muito bem, gata... não sei como vai acabar... não sei mesmo. E precisava falar com você. Depois pode ser muito tarde pra...
- Por que, tarde?... – ela tremeu – Walcyr, pelo amor de Deus, diga que você não vai me deixar aqui, preocupada. Por favor.
- Não posso ter certeza de nada... aqui estou seguro, mas tem umas coisas pendentes por aí... vou ter que tomar cuidado. Com uns bandidos, e com a polícia.
- Mas... você sempre me disse que não havia nenhum problema com a polícia... e o advogado, Walcyr?
- O advogado morreu. Pegaram ele. E podem me pegar.
- Não diz isso, Walcyr. Não diz. Eu gosto tanto de você, me promete que não vai fazer besteira, Walcyr, por favor...
- Pode deixar. Eu também não posso ficar longe de você, gata.
- A gente se ama, né?
- É – respondeu Walcyr.
- Você sabe que música está tocando no rádio? – perguntou ela, sorridente.
- Não, não sei. Que música está tocando?
- A nossa música... lembra?
- “Crying, Waiting, Hoping”, do Buddy Holly... claro que lembro... tocou naquela noite... – disse Walcyr.
- A gente dançou, e você disse que queria namorar comigo...
- É. Eu nunca vou esquecer, também... mas agora preciso ir. Tenho trabalho pra fazer.
- Vê se volta, pistoleiro...
- Claro que eu volto... pode me esperar, gatinha...
- Tchau.






9 – O prédio
Dia 1 de Dezembro, às 1:23, na rua


Wellington seguia pelas ruas. O carro de Wilson, sempre à frente, muitas vezes sumia de vista. Com esforço, Wellington seguiu o garoto até uma rua onde havia um prédio de três andares muito antigo. Wilson estacionou em frente a este prédio.
Wellington permaneceu distante, observando. Wilson desceu do carro, abriu o porta-malas, e de dentro tirou algo. Wilson olhava para os lados nervoso. Wellington deduziu o que ele tirava do carro. Tinha que ser a maleta.
Instantes depois Wagner ligou no celular de Wellington. Este atendeu, e disse aonde estava parado. Minutos depois, Wagner chegava de moto na mesma rua. Eles se encontraram. Wellington ficou um tanto intranqüilo, pois não gostava muito de Wagner. Mas era necessário falar com ele.
- O Wanderley foi pego na fuga – disse Wellington, tentando se controlar – Atiraram nele. Capangas de algum chefe do crime, não sei direito... provavelmente os caras com quem o Wilson se envolveu.
- Não acredito... e agora? Onde tá o corpo? – perguntou Wagner, trêmulo.
- No carro.
- O quê?! Você não se livrou do corpo?... seu incompetente, a polícia vai achar você, e aí é que eu quero ver!
- Fica frio aí, cowboy! Eu não sou incompetente não! Queria que eu fizesse o que?! Ele foi pego quando eu tava vindo pra cá! Não tive tempo de largar o corpo num lugar seguro.
- Vamos guardar no porta-malas – disse Wagner, se movendo em direção ao carro. Quando o serviço estava pronto, eles voltaram a discutir a situação.
- O Wilson entrou naquele prédio. Com a maleta – disse Wellington.
- Sério? – Wagner pensava, frio – Você acha que o grupo todo se esconde neste prédio?
- Pode ser. Ou o moleque só tá deixando a maleta escondida lá. Vamos esperar no carro, é mais seguro. Vou continuar tentando ligar pra alguém do grupo, principalmente o Walcyr. O celular dele não tá atendendo.
- Não podemos arriscar de entrar no prédio sozinhos – disse Wagner – Juro que não sei o que fazer.
- Consegui. Está chamando no celular do Walcyr – disse Wellington – Atende... alô! Walcyr?! Onde cê tá? Como, não pode dizer?... alguém está ameaçando você? É isso?
Wellington olhou para Wagner, e disse, em voz baixa:
- Ele está com problemas. Não pode dizer onde está. Alô. Walcyr? É o seguinte... aconteceu um monte de merda nas últimas horas... escuta...
Wellington informou Walcyr rapidamente sobre tudo o que tinha ocorrido. Walcyr escutava, enquanto era pressionado pelo judeu. Vinícius tinha deixado ele usar o telefone, que não parava de tocar. Mas com uma condição. Que Walcyr não revelasse nada sobre o lugar onde estava, e sobre quem era Vinícius. Ele concordou. Mas agora mandava Walcyr desligar, pois já tinha dito muita coisa.
- Nos vemos na reunião – disse Wellington, por fim – Você vai estar lá? O golpe vai ser feito?
- Vai. Pode contar comigo. Apesar de eu estar numa situação delicada agora, vou dar um jeito de me encontrar com vocês. Tomem cuidado.






10 – Wilson e Sofia ao telefone
Dia 1 de Dezembro, às 1:34, no prédio de três andares


O telefone tocou. Wilson levantou-se da poltrona assustado, e correu para atender. Era Sofia.
- Oi, Sofia. Fala.
- Wilson, deu tudo certo?
- Tô com a maleta aqui. Onde vocês tão?
- Eu, o Kirk e o Gatuzzo estamos no meu apartamento, decidindo umas coisas. Acabamos de falar com o Vinícius pelo telefone.
- Meu Deus... disseram tudo pra ele? – perguntou Wilson, aflito.
- Tudo. Ameaçamos o cretino. A gente vai trair o judeu, Wilson. Ele mercê se ferrar, acredite. Todos esses anos nos tratando que nem lixo... vamos boicotar o desgraçado. E o golpe do banco?
- Amanhã vou me encontrar com Walcyr e os outros, e a gente vai acertar tudo. Amanhã é o dia. Vai ser à tarde – disse Wilson.
- Ótimo. Mas lembre-se, Wilson: o dinheiro que a gente tem na maleta já é nosso. Garantido. Porém, o dinheiro do golpe de amanhã, do banco, só deve ser adquirido se for possível. Você vai participar do assalto, e, quando você estiver seguro, depois da fuga, vai analisar a situação. Se for possível pegar o fruto do roubo, pegue. Se não for, garanta pelo menos sua parte. Certo?
- Certo.
- Porque o importante é que nós já temos a maleta, com o grosso da grana.
- Entendi.
- Bom, acho que é só isso. Tome cuidado com a maleta. Guarde em um lugar seguro, principalmente quando deixar o prédio amanhã – disse Sofia.
- Pode deixar. Ah, e a gente se encontra no fim da tarde aqui no prédio, não se esqueça. Sabe o endereço? – perguntou Wilson.
- Sei. A gente vai acertar a fuga aí no prédio. Eu levo o Kirk e o Gatuzzo. Acho que é só isso. Wilson, você acha que alguém desconfia de você no grupo?
- Não sei. Não posso dizer ao certo. Talvez sim – disse Wilson, nervoso. Não sabia se dizia sobre o interrogatório que sofrera por parte de Wellington e Wanderley. Preferiu ficar calado – Até amanhã, Sofia.
- Até.






11 – Walcyr e o judeu fazem um acordo
Dia 1 de Dezembro, às 8:30, no Gilmar Açougueiro


Walcyr observava o rosto de Vinícius. Este pensava. Suava. Não conseguia chegar a uma conclusão. Não conseguia decidir. Walcyr queria conseguir um acordo com ele. Afinal, precisava se encontrar com o bando para explicar os detalhes do golpe. Tinha pouco tempo para organizar a estratégia. O golpe seria dali a algumas horas. E Vinícius não colaborava.
- Eu marquei uma reunião com meu grupo esta manhã. Tenho que estar lá, Vinícius.
- Quieto, estou pensando. Se deixar você ir, preciso ter uma garantia de que não vai fazer merda. Me dedurar. Me trair, como meus capangas fizeram comigo...
- Você tem a minha palavra – disse Walcyr, cansado.
- É o seguinte, Walcyr – disse Vinícius, decidido – Vou deixar você se encontrar com seu bando. Você vai realizar seu grande golpe, hoje... mas tem uma coisa: quero que me traga a maleta. Nas minhas mãos. Se fizer isso, prometo deixa-lo em paz para sempre. A maleta está em poder de Sofia, Kirk, Gatuzzo e seu moleque... Wilson. Traga-me... e deixo você fazer o que quiser em seguida. Mas, se me trair... se não me trouxer... acabo com você. Vou pessoalmente atrás de você e te mato. Nem quero saber do resto do seu grupo. Se não trouxer a maleta, mato você.
- Eu aceito sua proposta, Sr. Vinícius. Agora me solta, porque eu preciso ir.







12 – O grande golpe
Dia 1 de Dezembro, às 14:02, perto do banco


Eram duas horas da tarde. O sol ardia na calçada, o asfalto queimava. Um trânsito infernal perto do centro da cidade. A cidade respira, e tosse. Tosse. E se engasga. E vomita todos os dias. Vomita no ônibus, vomita empregados na rua, que viraram desempregados. Vomita pra fora roupas e comidas que não podem mais ser consumidas, porque saíram de moda.
Quinta-feira. No ambiente urbano, as surpresas são freqüentes. A loucura parece habitar todas as mentes humanas. Ouve-se um tiro no meio da agitação de prédios, lojas e avenidas. Um alarme.
- Porra! Corre! – grita uma voz louca, animalesca, forte. Logo percebe-se que a confusão vem de um dos mais importantes bancos da região. Assalto?...
- Espera! A grana!
Os cidadãos se assustam. Os carros param por um instante. Sons de sirene. Mais tiros. Qualquer motorista que naquele momento estivesse dentro de seu carro veria, com os próprios olhos, um bando de sete ou seis homens deixar o referido banco, em extrema euforia, com óculos escuros, roupas pesadas e uma porção de pacotes nos braços. Nas mãos, as pistolas. Eles saíram atirando pra todos os lados, em fuga desesperada. Para eles era normal. Pareciam animais. Pareciam estar numa festa, tamanha a espontaneidade com que atiravam e fugiam. Pareciam estar dançando uma dança maluca, a dança da violência banalizada. O novo hit do momento. Cresce cada vez mais, subindo nas paradas de sucesso. E é popular, porque é fácil de se dançar. É assim: primeiro você marca o horário e o local, e fala pros amigos levarem cada um uma coisa: tipo, armas. Disfarces. Porretes. Mais armas. Ah, é necessário um carro, também. A partir daí, é só reunir todos eles, chegar no local, matar todo mundo e fugir da polícia, que sempre vai querer estragar a festa. E, se um gerente se meter a super-herói, querendo escolher a música a ser tocada... basta meter uma bala na cabeça dele. É fácil. Aquele que for mais citado nos jornais e na TV, por meio de reportagens, é o mais popular. A dança do momento. Afinal, a TV sempre serviu como promotora de “concursos” para novos talentos da arte de matar: a violência dá audiência. As pessoas gostam, e pensam, em suas poltronas: “Eu poderia fazer isso”. E uns fazem. Outros morrem.
O grupo fugia neste momento. Parecia ter saído errado. Gritavam uns com os outros. A polícia atingiu alguns deles.
- Caramba, cadê o Wanderley?! Porra! – pareciam estar procurando o motorista oficial para a fuga. Ele chegou.
O carro foi embora, ainda trocando tiros com as viaturas. Um policial tomou um tiro no estômago, e morreu na hora, ao volante. O carro policial deslizou pela avenida, bateu em outros dois carros. O acidente foi tremendo. Feridos. Mortos. Desastre.
Os bandidos escaparam, e deixaram no banco uma porção de feridos, incluindo clientes e funcionários. O dinheiro foi levado.
Mais uma vez, a violência imperou.
A polícia atestou, mais tarde, com convicção, que já sabiam bem quem eram os bandidos. Um grupo de assaltantes que em breve ia ser preso e castigado. Em breve, a dança acabaria. Sairia de moda. O som das balas seria trocado pelo som das grades prendendo os criminosos. Ninguém botava fé no que a polícia dizia. Mas é sempre assim, e todo mundo já está cansado de saber.










Parte 4




Manchete Especial
Data: Três dias antes da tragédia.


“Grupo de assaltantes que assola a cidade há anos agora planeja grande golpe de aposentadoria”

O grupo já é conhecido pelos cidadãos, e vêm realizando golpes, especialmente assaltos a bancos, há mais de cinco anos. São compostos por seis ou sete integrantes muito ligados entre si, velhos companheiros, que apresentam notável técnica e habilidade em suas ações. A polícia conhece muito bem seus golpes, porém nunca foi capaz de captura-los. Têm como marca o uso de roupas discretas e antigas, geralmente longos sobretudos ou ternos baratos e pretos, e dirigem carros roubados, geralmente um Corcel ou um Chevete. Os golpes são muito bem organizados, diz-se que o grupo tem ligações com advogados e políticos de influência, que lhe garantem proteção em troca de parte do dinheiro dos roubos. A lenda diz que eram estudantes que, ao iniciarem sua vida profissional, não viram chances em uma vida honesta, todos insatisfeitos, e resolveram, depois de anos, se reunirem para realizarem assaltos em bancos. Há um líder entre eles, há também um integrante muito violento, e foi identificado um outro um tanto baderneiro, provocando a grande desordem nos golpes, e um outro muito hábil, o mais profissional. A polícia recebeu na semana passada uma denúncia anônima sobre um possível golpe do bando, dando informações sobre data e local. A polícia diz que se prepara para os possíveis eventos, e promete botar os bandidos atrás das grades.






1 – À noite, no clube, muitas horas depois da fuga
Dia 2 de Dezembro, às 24:13, no clube


Numa mesa do clube, por volta da meia-noite, naquela dia quente e movimentado, sentavam-se: Wagner, com seu costumeiro casaco country marrom; Wellington, bebendo como um condenado; Walcyr, com uma atitude séria, sentado todo reto e ereto; Wesley, com suas infinitas piadas e anedotas; a namorada de Walcyr abraçada com ele, e tentando levantar seu ânimo; Bia Faria, a morena eternamente cobiçada por Wellington, e Giulio Mendez, meio-irmão de Wesley, ouvindo as façanhas do grupo, impressionado...
- Porra, não brinca, cara – dizia Giulio – Vocês fizeram isto?
- Sim, sim, foi exatamente assim... alguns civis foram feridos... mas nada grave. Matamos um policial – disse Wellington.
- Porra, cara... – dizia Giulio, mal podendo acreditar no que ouvia.
Wellington pediu mais uma rodada de cerveja e começou a falar:
- Eu quase fui pego, hoje.
- É verdade, no meio da fuga esse infeliz quer voltar e pegar o colar de uma mulher, uma das reféns. A gente foi indo... estávamos apavorados, porque o gerente tinha bancado o herói... – dizia Wagner – E chamou a polícia... é claro que não ficou assim... eu meti porrada nele.
- Depois – disse Wesley – Saímos com o carro, deixamos o Wellington no banco! Foi foda, cara! Demos uma volta no quarteirão... a idéia era pegar ele na volta, e fugir de uma vez. Mas, quando voltamos, as porras dos tiras entravam no banco, de armas apontadas... – disse Wesley, grave.
- Foi tudo feito sem profissionalismo... – disse Walcyr, em voz baixa, meio melancólico. A namorada beijou-lhe a face, e alisou-lhe os cabelos, para consolá-lo.
- Então... saímos atirando com nossas pistolas, duas em cada mão... – continuou Wagner.
- É sério, cara?! – entusiasmou-se Giulio – Vocês estavam com várias armas, estavam? Como foi, como aconteceu isso exatamente? – Giulio se debruçava na mesa, excitado.
- Ah, você não tava com duas não, Wesley! – disse Wellington.
- Claro que estava! O Wagner era quem tinha só uma! Depois, ele pegou uma do policial mais novo, lembra? Ah, pára de mentir, vocês! – protestou Wesley.
- Calúnia – disse Wagner – Bom, de qualquer forma, a gente estourou os policiais, não sei se matamos mais de um... só sei que pegamos mais uma leva de dinheiro, e Wellington conseguiu o colar... era um colar caro... depois, saímos com tudo no nosso Monza velho, o Walcyr no volante...
- Demais, cara! – disse Giulio.
Walcyr, com seu sobretudo fechado, estava muito quieto. Os parceiros notaram, mas o fato é que ele sempre estava assim, então eles subentendem, sempre, que este é o jeito dele, e que está tudo bem com ele. Mas não nesse dia.
Ele parecia tenso, preocupado, alguma coisa não estava certa... tinha uma coisa que ainda precisava ser feita. Ele sabia o que era. A maleta. Vinícius queria a maleta.
Depois de algumas piadas forçadas, Wesley parou um pouco de rir, e Wellington parou um pouco com a baderna que sempre fazia. Estava tentando se aproximar de Bia, a garota de quem sempre gostou, e que sempre estava no clube. Pegou o colar que roubara e deu a ela, fazendo-lhe uma surpresa. Ela ficou um pouco sem graça. Agradeceu, e continuou conversando com Wellington. Ele gostava muito dela, e talvez ela também gostasse dele, mas acontece que Bia era uma garota muito orgulhosa e vivia se fazendo de difícil para todos.
Wagner lembrou-se de algo, e informou Walcyr:
- Escuta, cara, tô me lembrando daquele serviço que a gente tem pra fazer antes de tudo acabar... lembra, a gente tem que pegar a maleta. Lembra? O Wellington te disse tudo. A maleta tá com os capangas do judeu. Se a gente não entregar...
- Eu sei, Wagner. Eu sei. Minha vida depende disso. Precisamos ir até aquele maldito prédio, acabar com aquele filhos da mãe e entregar a maleta pro judeu – disse Walcyr, meio tenso, com a voz meio lenta, devido à bebida – A gente tem que ir. Não sei quem de nós vai, mas temos que ir... na verdade, o importante é recuperar a maldita maleta. Ainda não sei se vou entregar pro judeu.
- Mas ele te ameaçou de morte se não levasse pra ele – disse Wanger.
- Eu sei. Mas talvez eu corra este risco. Eu disse pra vocês, um dia... não sei se você se lembra, Wagner... eu disse pra vocês, numa reunião, que depois deste golpe... o que a gente realizou hoje... estaríamos livres... iríamos comemorar, no clube, como estamos fazendo neste momento... e depois, o dinheiro seria dividido... para que cada um pudesse seguir seu próprio caminho, sua própria vida... Wagner, com que cara eu poderia chegar agora e dizer pra vocês: “sinto muito, mas tem um judeu que falou que vai me matar se eu não der a maleta pra ele”...? Não posso fazer isso. Devo algo pra vocês, não se lembra? Tenho que entregar a parte de cada um.
- Eu não preciso do dinheiro – revelou Wagner, subitamente, impressionando Walcyr.
- Como?! É claro que precisa! Você entrou nessa por este dinheiro, Wagner! Todos vocês querem sua parte, e com razão! Não posso entregar a maleta pro judeu tão fácil assim!
- Eu perdi minhas esperanças uns dias atrás... perdi tudo... – Wagner estava abalado.
- Como assim?... A Eliza... ela não te deixou, né?
- Deixou – respondeu Wagner, de cabeça baixa.
- Eu sinto muito... mas, escuta, cara, vocês vão ter o dinheiro pelo qual trabalharam todo esse tempo... vamos recuperar a maleta, e acabar logo com isso!
- Está certo. Vamos agora, depois a gente volta e paga a nossa parte da conta...
- Certo – disse Walcyr, já se levantando.
Wagner também se levantou, disse algo em voz baixa para Wesley e Wellington, e virou o resto de cerveja que havia em seu copo.
- O que houve? – perguntou Bia – Por que vão embora?...
- Explica pra ela, Wesley – disse Walcyr, apagando o último cigarro.
- Vamos trabalhar – disse, por fim, Wagner, virando-se e dirigindo-se, ao lado de Walcyr, para a saída do bar, decidido.
A maleta precisava ser recuperada. Os mais habilidosos, Walcyr e Wagner, se preparavam agora para ir atrás dela.






2 – Desastre
Dia 2 de Dezembro, às 1:23, nas ruas da cidade


Walcyr dirigia, e Wagner permanecia no banco ao lado, pensativo. Nenhum dos dois dizia nada. Queriam acabar logo com aquilo, e se verem livres para viver em paz.
- Você se lembra do caminho? – perguntou Walcyr, em certo momento.
- Lembro. Eu estava com o Wellington quando a gente seguiu o Wilson ontem.
- O que houve com o Wanderley? Como ele foi pego? – perguntou o líder.
- Ele estava com o Wellington no carro. Um dos capangas do tal judeu pegou ele a tiros, pela janela do carro.
- Malditos. Não vejo a hora de pôr as mãos no pescoço destes desgraçados. Quantos são?
- Wellington disse que haviam três capangas no carro, aquele dia. E tem o Wilson, aquele rato.
- O Wilson não é problema.
Eles continuaram seguindo pelas ruas escuras da cidade. Já eram vinte para as duas da madrugada. Esperavam poder voltar para o clube em algumas horas, para pagarem a parte deles na conta. Walcyr queria ficar junto com a namorada. Só isso. Mas tinha trabalho a ser feito.
De repente, na escuridão da avenida, Wagner avistou algo que o fez ficar paralisado. Tinha a vista muito boa, e viu alguém parado perto do farol, na calçada, logo à frente.
- O que foi, Wagner? O que você viu? – indagou Walcyr, assustado.
- Walcyr! O judeu! Ele está ali! – Wagner apontou para o farol que vinha logo à frente deles, onde um homem vestido de preto estava parado, esperando para atravessar.
- Não pode ser! Ele deve ter me seguido pra ver se eu ia recuperar a maleta mesmo! Eu não acre...
- Ele está atravessando! O sinal, Walcyr! O sinal fechou! – gritou Wagner, trêmulo.
Walcyr não disse mais nada. Wagner, ao seu lado, pôde ver, no painel, o ponteiro de velocidade subir cada vez mais. Walcyr acelerava. O farol se aproximava.
O carro atingiu Vinícius no estômago, jogando-o do outro lado da rua. O carro perdeu o controle, e se desviou, girando no meio do asfalto. O carro parou.
O judeu se levantava, tonto, no meio da rua. Finalmente viu quem o tinha atropelado. Reconheceu Walcyr, e rapidamente seu rosto ficou vermelho de ódio. O carro não se movia. Não pegava.
Vinícius tirou um revólver do bolso de seu sobretudo, e, de onde estava, atirou em direção ao carro. Os vidros se estilhaçaram, os pneus foram atingidos, e os dois homens dentro do carro se abaixaram.
Wagner abriu a porta do carro e saiu, agachado, com uma arma na mão. E atirou contra o judeu. Os tiros não pegavam nele. Wagner não conseguia se concentrar e mirar nele. Walcyr foi atingido pelos tiros de Vinícius. Seu grito ecoou pelas ruas.
Finalmente, Wagner conseguiu atingir o judeu. O tiro foi fatal. As sirenes da polícia começaram a tinir, e Wagner só teve tempo de carregar o corpo de Walcyr para dentro do carro, e fazer este funcionar. Depois sumiu pelas ruas. A polícia vinha atrás dele. Ele teria que ser o melhor e mais rápido motorista agora. Pois não seria fácil deixar a polícia para trás desta vez.
Enquanto dirigia, Wagner pegou o celular de Walcyr e ligou para o clube.
- Eu quero falar com alguém da mesa 13, por favor! Chame qualquer um na mesa 13... Wesley, ou Wellington, qualquer um!
Momentos depois, Wellington atendeu o telefone.
- Wellington, deu tudo errado! Encontramos com o judeu no caminho, e ele pegou a gente!
- Como?! O que você tá dizendo?!
- Tô dizendo que não conseguimos chegar até o prédio onde Wilson está com a maleta! Ouça: eu não posso continuar na rua! A polícia vai me pegar! O Walcyr foi atingido e pode morrer, Wellington! Alguém precisa ir pegar a maleta! Ouviu?
- Ouvi. Eu pego a maleta. Mas vou ter que ir sozinho! O Wesley desmaiou aqui no clube!
- Como?!
- O Wesley desmaiou de tanto beber! Está quase tendo um coma alcoólico! Vou falar pra Bia levar ele pra casa dele, e eu vou ver se consigo pegar essa maldita maleta!
- Talvez você encontre os capangas do judeu no prédio, junto com o Wilson! – disse Wagner.
- Eu sei. Pode deixar, aquela maleta é nossa! E o filho da puta do Wilson não vai sair vivo dessa.
E desligaram.
Wagner tinha que achar, agora, um lugar para se esconder enquanto a polícia o procurava.






3 - O Problema de Walcyr
Dia 2 de Dezembro, às 6:02, na casa do Wesley


Com um chute na porta, Wagner irrompeu na sala de Wesley, trazendo nos ombros Walcyr. Este último estava todo amarrotado, seu terno era listrado com sangue coagulado e sangue corrente, que se misturavam em pequenas poças de sangue escuro no carpete de Wesley.
- Porra, que merda... porra, cara, que que cê tá fazendo?! Ah, cara, o meu tapete, me diz que você não fez isso, me...
- Calma, eu... o Walcyr... – Wagner se engasgava, não conseguia falar direito. Estava ofegante e transpirando em seus cabelos distorcidos - ... fica calmo, só isso – disse, finalmente, perdendo a paciência.
- Porra... – dizia Wesley, inconformado.
O corpo de Walcyr foi colocado no sofá que havia próximo à porta, por Wagner, que em seguida se dirigiu ao telefone.
- Que é isso? Pode parar, pra quem cê vai ligar aqui da minha casa? Primeiro me explica o que houve, cretino. Não quero confusão por...
- Cala essa porra dessa boca, seu panaca, e escuta: eu preciso dar um telefonema urgente – Wagner começou a ligar no telefone sem fio. Então percebeu que Wesley vestia o mesmo smoking da noite anterior, no clube. Lembrou-se do que tinha acontecido: Wesley tinha bebido até desmaiar, e fora trazido em casa por Bia.
Wesley tomou o telefone de sua mão.
- Seu...! Eu tô te falando, Wesley, não é brincadeira! Aquele cara tá ferido, e você sabe disso! – Wagner dava voltas em torno de si, enfurecido, enquanto tirava o casaco marrom e olhava fixamente nos olhos de Wesley.
- Me fala o que houve. Aí eu ajudo. Na boa – disse Wesley – Fala! Ou eu não sou um integrante dessa porra de grupo?
- É, sim. Olha, eu estava escondido até agora, Wesley! A polícia ainda tá atrás da gente! Eu vim aqui porque só sobrou você! Escuta, o Wellington, cadê ele, Wesley? Eu preciso falar com ele agora! Ele foi atrás da maleta! Ele foi pegar a maleta no prédio abandonado onde o Wilson estava escondido. O Walcyr tá encrencado e tá a ponto de morrer se você não me der o maldito telefone! Porra!
De repente, Wesley se tornou estranhamente pensativo. Disse:
- Wagner...
- Quê.
- Você entrou por onde?
- O portão tava aberto...
- Você fechou?
- Hã?
- Fechou ou não? – Wesley ficava vermelho.
- Não.
- Alguém acabou de entrar no meu quintal. Wagner, pelo bem de sua vida, é bom que não seja um policial.
- Por que você acha que é um policial? Hein?! – Wagner berrava – Você acha que eu atraí um tira pra cá, não é mesmo? Acha que eu e ele, lá no sofá, estamos querendo te foder... mas não estamos... se tem um policial vindo pra cá, neste momento, Wesley, a culpa é de qualquer um... menos minha! – soltou um berro, cuspindo suor.
- Ele escutou nossa gritaria.
- Mas que porra de gritaria nenhu... – Wagner se virou num 180o enquanto retirava o 38 do coldre, e matou o policial que entrava armado na sala, sem ao menos mirar. As balas voaram velozmente da arma, e o clarão foi seguido da fumaça que saía do cano.
- Tem mais.
- Que... que que cê tá dizendo? – perguntou Wagner, abalado.
- Mais tiras.
- Não, não tem. Esse guarda anda por estas ruas toda hora, e sempre sozinho... se ninguém ouviu o tiro, tá tudo limpo.
- Não tem nada limpo por aqui. Que situação toda é essa? – perguntou Wesley, pegando a arma da mão de Wagner. Este se virou em direção ao sofá onde Walcyr se deitava. Havia soltado um gemido, agonizando – Eu estava no clube, e aí... eu lembro que você e o chefe saíram, pra ir resolver o negócio da maleta... aí, eu comecei a beber, e beber, até que caí no chão, e só fui acordar agora, aqui em casa! Quem me trouxe aqui?
- A Bia.
- Meu Deus... – disse Wesley, esfregando o rosto.
- Dá essa porra – disse Wagner, pegando o telefone que caíra no chão quando o tiro fora dado.
Discou. Errou o número. Discou de novo. Começou a falar disparadamente:
- Wellington, eu quero que você me diga o mais rápido possível, e de uma só vez, pois estamos sendo grampeados: onde você está? Conseguiu ou não recuperar aquela maldita maleta com todo aquele dinheiro?!







4 - Wellington em palpitação
Dia 2 de Dezembro, às 3:30, na rua do prédio de três andares


Wellington entrou no carro na maior euforia. Sua agitação era tão grande que suas mãos chacoalhavam, suas veias estavam saltadas, nos braços, no pescoço e na testa... suava.
Com dificuldade, enfiou a chave na ignição. Não queria pegar, não conseguia dar a partida! Olhou em volta, forçou a vista.
- Pega logo, porra de carro do cacete!!!
Pegou.
Saiu guinchando e dobrou algumas travessas. Em alta velocidade. Quase bateu em alguns carros, quase atropelou cerca de dez pedestres. Um guarda quase foi pego.
- Caralho.
Não podia parar, isso era impensável! Continuou, e mais rápido ainda. Haveriam sirenes atrás dele? Era isso que ele escutava? Sim, era. Mas ninguém pegaria ele. Não, não podiam pegá-lo agora, pelo menos não agora que tudo estava perto do fim, perto da tranqüilidade. Dependiam dele, e ele não falharia...
De repente desembocou numa avenida e teve de parar no farol.
- Mas que merda, eu não posso parar aqui!
Não pensou duas vezes: largou o carro de porta aberta no meio do farol, e saiu correndo em disparada, cambaleante, no meio do trânsito. Pulou em cima de alguns carros do farol, entrou em outra rua.
Esbarrava em vários pedestres na calçada.
Resolveu olhar para trás, e viu que estavam vindo atrás dele. Estava lascado, se não continuasse correndo mais rápido que as três pessoas que vinham vindo a cem metros dele. Estas pessoas eram Kirk Silva, Sofia e Gatuzzo, ex-capangas do judeu. Tinham visto Wellington, e queriam impedi-lo de entrar no prédio.
- Que se foda, eu... – balbuciou Wellington, enquanto corria. E pegou algo dentro do terno preto, um 38. Atirou umas três vezes para trás, depois continuou correndo. Depois de correr mais quatro quadras, sem fôlego, todo suado e com o coração saindo pela boca, ele chegou a um pequeno prédio velho de três andares.
Dirigiu-se à porta da frente, onde havia um cara enorme, o porteiro, olhando para ele com cara de poucos amigos. O cara era mais ou menos 4 X 4, um quadrado perfeito elevado ao cubo, um poste de primeira com olhos mortais.
- Aonde vai?
- Deixa eu entrar – disse Wellington, e foi tentando entrar. Empurrou o porteiro, e eles se pegaram. O porteiro agarrou a cara de Wellington com uma só mão, e a torceu, até Wellington berrar. Lá atrás, os caras estavam vindo. Alcançando Wellington. É claro que o porteiro tinha sido pago pelos caras do outro bando. O bando queria sacanear mesmo com o grupo de Walcyr... e devia ter pago muito bem ao porteiro.
Ele fincou todos os dentes que tinha à disposição na mão do porteiro. Os dentes entraram na carne, o porteiro soltou um berro insuportável, soltou Wellington e ficou muito puto.
Enquanto isso, Wellington, com a boca pingando sangue e com pedacinhos de carne dentro, olhou dentro do saguão do prédio: haviam muitas pessoas por ali, não poderia entrar por ali. Estava quase vomitando por causa da mordida. O porteiro chorava.
Wellington correu por um beco ao lado do prédio, que ia dar, no fim, nas janelas do prédio. Enquanto corria arrancava o sobretudo bege, e colocou uma das mangas na boca, mordendo o pano com força, para fazer a dor ir embora e secar a boca.
Chegou no fim do beco. Olhou para uma janela ao seu alcance, pulou. Se agarrou no beiral com as duas mãos, e nessa hora o vômito veio. Vomitou por causa da carne do porteiro que havia engolido. Vomitou comida e sangue. Mas não soltou as mãos, de modo que o líquido foi cair lá embaixo, no chão, onde os caras que o perseguiam já haviam chegado. O vômito acertou um deles, que gritou várias coisas.
Wellington entrou pela janela, era um apartamento de uma moça. Ela estava só de calcinha, e começou a gritar imediatamente. Ele tirou ela da frente, correu pelo apartamento e achou a porta que dava para o corredor. O corredor era extremamente apertado, mal cabia uma pessoa, e sujo, escuro e fedorento. Tropeçou numa mulher fumando maconha, e saiu correndo para as escadas. Lá havia muito mijo, ele escorregou, caiu de bunda e bateu o osso do fim da espinha. Gemeu de dor, mas se levantou do mijo, vomitando mais um pouco.
Subia freneticamente as escadas, rebatendo o corpo contra as paredes, devido ao aperto e ao delírio, pois perdia os sentidos. Tirou um pedaço de papel amassado do bolso, leu. Era no terceiro andar que ele tinha que ir. Dias antes, ele e Wagner estiveram observando o prédio. Viram Wilson entrar no prédio, e, instantes depois, uma das janelas se abriu, e a luz se acendeu. Assim, puderam deduzir qual era o apartamento onde Wilson estava. Wellington tinha anotado num papel.
Correu até o terceiro andar, trombou violentamente com um morador, um velho invocado. O velho ficou puto, começou a praguejar com ele, empurrou ele. O velho era bem fraco, mas Wellington estava sem forças, e caiu, com o empurrão, em cima dos sacos de lixo que haviam no chão. O velho agarrou ele, e Wellington relutou.
- Vá à merda, seu velho.
- Porra de juventude! No meu tempo...
Ele se soltou do velho e começou a jogar o corpo contra a porta de um dos apartamentos. Olhou o número, era aquele mesmo... mas o velho devia ser outro coitado pago pelos filhos da mãe para pegar Wellington, impedi-lo de chegar ao apartamento.
O velho, uma hora, ficou no espaço entre Wellington e a porta. Wellington não viu ele, e se preparava para investir contra a porta. O velho foi junto, e foi esmagado contra a porta com toda força. Gemeu como uma gralha, e ficou vermelho, blasfemando.
Wellington ouviu passos próximos à escada. Deu um puta chute na maçaneta, que cedeu. Ele sentiu um osso do pé estalando, como se tivesse quebrado.
Empurrou a porta e entrou, o apartamento era escuro e quase sem móveis dentro.
Encontrou Wilson. Este estava desacordado num canto de um quarto, jogado no chão, com espuma na boca e sangue nas narinas. Suado. Ao seu lado, restos de cocaína espalhada no carpete. Provavelmente morto. Wellington naquele momento sentiu mais raiva ainda de Wilson. Não pôde se conter, e descarregou a arma que tinha em cima do corpo de Wilson. Por instinto. E agora precisava achar a maleta.
Correu pelos cômodos, procurando o quarto. Achou, entrou, vasculhou. Procurou tudo. Lembrou-se: o armário. Deve estar no armário. No armário, no compartimento lá de cima, não achou nada. Estava em cima do armário, próximo à parede. Mas ele não alcançava, teve de subir na cama. O velho, inesperadamente, chega no quarto, balançando os braços e xingando.
- Calaboca!
- Pára, moleque! No meu tempo...
- Porra!
- O meu pai...
Finalmente achou o que queria. Pegou a maleta de couro e, quando desceu da cama, aproveitou e deu com a maleta na cabeça do velho.
- No meu tempo... AI!
O velho caiu no chão, enquanto Wellington correu até a janela. A janela dava para uma série de telhados de casas, e era uma boa altura. Ouviu vozes dentro do apartamento, na sala e depois no corredor. Estavam chegando no quarto.
Colocou a alça da maleta no meio dos dentes, que já estavam doloridos. Fincou os dentes. Com as mãos livres, saiu pela janela e sentou-se no beiral. Fechou os olhos, e quando ouviu os caras chegarem no quarto e dizerem “lá está ele”, Wellington soltou-se no ar, como um boneco sem vida, com os braços para a frente, tentando cair de maneira certa. Caiu de cara em um telhado. E caiu sobre o braço.
Pegou a maleta com uma mão, e correu pelo telhado. Olhando para trás enquanto corria, viu, na janela de onde pulara, Kirk Silva fazendo menção de pular também. Mas acabou não pulando, fazendo um gesto de xingamento para Wellington.
O rosto de Wellington estava todo destruído, estourado por causa da queda. Sangravam seus lábios, seu nariz jorrava sangue, e o supercílio direito fora aberto. A testa toda ralada, e a dor nos dentes insuportável. Só agora percebeu que perdera seu sobretudo, mas não deu a mínima. Correndo, e segurando a maleta contra o peito, pensou: “Vou poder comprar mil sobretudos, de todas as cores... pois eu consegui! Acabou!”.
Nesta hora, o telefone celular, em sua cintura, tocou.
- Alô...
Ouviu a voz aflita de Wagner do outro lado, perguntando sobre a maleta.
- Eu consegui – respondeu Wellington, tremendo, seguindo pelos telhados – Preciso me encontrar com vocês. E depois nós temos que fugir.
O problema era que a situação de Wellington não era nada boa. Provavelmente, nem viveria o suficiente para desfrutar o conteúdo da mala. Mas tinha que entrega-la aos companheiros.






5 - Wesley e Wagner
Dia 2 de dezembro, às 9:05, numa lanchonete na estrada


Wagner voltou do banheiro e se sentou na mesa onde Wesley o esperava, em uma lanchonete perto de uma estrada. Era uma grande lanchonete que servia de ponto de parada para os viajantes que pegavam a estrada. Ficava na verdade no começo da cidade, e os dois haviam ido até ali a pé, mesmo. A alguns metros da lanchonete ficava uma rodoviária. Neste dia, tanto a rodoviária quanto a lanchonete estavam quase vazias, era um dia sem movimento. O garçom já havia trazido o pedido, e Wesley comia, desanimado, pensando em algo. Wagner começou a comer também, depois de desapertar a gravata do pescoço.
- Que foi?
- Que foi o quê? – perguntou Wesley, surpreso.
- Cê tá aí todo quieto, não disse nada desde que chegamos.
- Normal – disse Wesley – Por que, você por acaso está contente?
- Não, não tô contente, eu sei que a gente não tem motivo pra sair dando risada, no momento. Mas eu tô procurando esquecer logo – disse Wagner, enchendo a boca de carne e batatas.
- Seu trouxa, como pode chegar falando que vai esquecer tudo agora? – Wesley estava irritado com a atitude de Wagner, e parara de comer.
- Desencana, porra! – disse Wagner.
- Não dá! Meia hora atrás a gente assistiu o nosso parceiro morrer, isso é um pesadelo, eu não... puta merda, cara, o Wellington, na nossa frente... não dá pra acreditar, foi tudo tão rápido, que... não deu nem pra parar e pensar no que estava acontecendo...
- Claro que não. Se pararmos agora, vamos nos ferrar – disse Wagner.
- Ele estava com aquela cara horrível... e sabe o que mais me deixou chocado? Era a situação, cara... ele com a mala na mão, essa mala aqui... porque o cara sempre foi todo... sei lá, ele era metido, ele costumava querer tirar vantagem de todo mundo... e aí... foi ele quem foi atrás da maleta, naquele apartamento, e foi ele quem teve que se livrar daquele bando que tava atrás da gente... eu pude sentir o esforço que o cara fez pra trazer a maleta pra gente... você viu o estado dele. Todo ensangüentado... eu nunca esperava ver ele daquele jeito... não o Wellington, que sempre criou aquela imagem de playboy arrogante, sempre de carrão e cabelo lambido, roupas caríssimas... e hoje, cara, ele se matou pra escapar... e trouxe a maleta, ele não traiu a gente, ele podia ter levado a maleta e ficado com ela, mas não, ele foi procurar a gente na minha casa, entregou a maleta, mal podendo falar... e aquela imagem horrível, ele cheio se sangue... os caras quase pegaram ele, deu pra perceber... aí ele falou um negócio antes de apagar de vez, lá na minha casa...
- Eu lembro – disse Wagner – O Wellington disse assim que... era melhor a gente ir... pegar a maleta e ir... porque ele já não ia durar. E aí ele não disse mais nada. Eu me lembro, cara, nunca vou me esquecer daquele momento.
- E depois – disse Wesley – Depois foi só correria, a gente nem pensou em mais nada, simplesmente pegamos as nossas coisas, a maleta, o carro... e deixamos o corpo dele e do Napoleão ali mesmo, na minha sala...
- Você sabe que não adiantava fazer mais nada – disse Wagner.
- Eu sei.
Wesley fez um gesto contraditório, balançando a cabeça, e continuou a comer. Estava meio nervoso, e, quando foi morder o hamburguer, uma porção de catchup caiu sobre seu smoking. Ele parou, fez um gesto impaciente e baixou a cabeça.
- Como se já não estivesse sujo o suficiente! – disse ele, limpando o smoking.
- Dane-se, você não deve satisfação a ninguém sobre a razão de sua roupa estar suja – disse Wagner, consolando o parceiro – Além disso, você não tem culpa do que aconteceu com a gente pouco tempo atrás. Foi tudo muito inesperado.
Nesta hora, que deviam ser umas nove da manhã, o sol começava ainda a despontar. Um lençol de luz dourada muito serena entrou pelo vidro da lanchonete e banhou o ambiente, uma luz forte.
- Peraí, esse smoking que cê tá usando... ainda não entendi por que... – disse Wagner.
- Porra, essa é a roupa que eu tava na festa, ce não lembra não? – disse Wesley – Eu nem me troquei desde que voltamos de lá... foi a correria, o assalto... sei lá... e outra: eu tinha bebido pra caramba, aí a gente fez o serviço, de noite fomos comemorar... e eu voltei a beber... acho que nem cheguei a ficar sóbrio nesse meio-tempo, e nem liguei pra roupa...
- É, foi tudo uma loucura – disse Wagner.
A manhã naquele dia tinha uma certa calma e silêncio indescritíveis. Uma serenidade confortável, e ao mesmo tempo desamparada, algo inexplicável.
Wesley olhou para a rua. Os dois se sentavam numa mesa ao lado da grande janela da lanchonete, e, na rua, ele viu um cara andando lentamente, sorridente, bem vestido, pela calçada. Wesley imaginou que provavelmente seria um bêbado voltando da noitada, todo alegre. Não havia movimento, era uma típica manhã de Domingo.
Wesley começou a dizer, em voz baixa, como se fosse para si mesmo:
- Eu... – então parou, como se pensasse se dizia aquilo ou não - ... eu não sei o que vou fazer agora, depois de tudo... não tenho mais vontade nenhuma de viver... – e ficou amargurado, pensativo. Wagner parou de comer e disse, sério:
- Nunca mais repita isso, seu imbecil.
- Imbecil é a mãe. Eu me sinto do jeito que quiser... – retrucou Wesley.
- Mas eu não vou ficar ouvindo merda do meu lado, Wesley. Vou te contar uma coisa...
- Não quero saber de lição de moral, Wagner... por favor, eu não sou nenhum adolescente inconseqüente...
- Eu sei... mas vou falar uma coisa... eu era assim, quando era um adolescente idiota... eu queria me matar, Wesley. Vivia dizendo isso, tentei várias vezes, mas não me matei. Sabe... eu considerava minha vida um lixo... não queira mais viver... não estou dizendo que, hoje, ela é uma maravilha... mas você se lembra, no ginásio, que uma época eu andava bem mal, muito deprimido... todo mundo percebeu. Bem, foi nessa época. Lembra da nossa vida? Dar uns amaços nas garotas, ouvir rock, ver TV, fumar erva adoidado, arranjar encrencas... até que um dia eu resolvi acabar com tudo e tomei vários remédios, pra me matar... lá no parque. Depois de algumas horas, depois de tomar os remédios, eu acordei todo suado, com a boca seca, sob o sol forte da tarde, e sentindo algo totalmente diferente. Eu não sei explicar por que, senti vontade de viver para sempre... nunca mais quis me matar, Wesley, e isso, só porque cheguei perto pra caramba da morte... eu dei valor às coisas, rapaz – Wagner fez outra pausa, olhando fixamente nos olhos de Wesley – Está entendendo o que eu quero dizer?
- Estou... mas nada disso me impressiona. Minha situação atual é que conta. Nós sempre vivemos assim, nessa merda disfarçada de curtição, na escola fazíamos de tudo, todos os dias, roubávamos nos mercados, batíamos nos mais fracos e tudo mais... era muito bom, ou pelo menos, nós achávamos que era. Agora, parece que nada mudou. Uns dias atrás, quando roubamos nosso último banco, eu senti algo estranho: sentia como se ainda estivesse nos meus anos de loucura adolescente, fugindo com vocês do supermercado, carregando cigarros e latas de Coca-Cola. Mas eu estava num banco, levando alta quantidade de dinheiro embora... pra, depois, comprar erva, toda essa merda, talvez um carro novo, e tudo isso deixou de ter qualquer sentido para mim...
- Eu entendo você. Pode achar que não, mas entendo...
- A vida não presta, sabia?
Wagner ficou alguns segundos pensativo, com as mãos cruzadas, olhando fixamente para a rua ensolarada. Depois de um bom tempo, naquele silêncio todo, quando a garçonete veio retirar os pratos, ele olhou novamente para Wesley, e disse:
- Tem razão, não presta – desabafou, sem forças para consolar o parceiro.
Eles estavam afetados por alguma força desconhecida, perturbadora, que estava lhe dizendo uma espécie de verdade ignorada.
Wagner se sentiu muito mal. Não queria tirar a motivação de Wesley, anuindo com ele sobre a vida não prestar, mas disse isso porque era o que realmente sentia.
- Eu vou me matar – disse Wesley, com uma cara péssima de tristeza.
- Então tá bom, seu idiota! Você não suporta a dor? – Wagner falava mais alto agora, e com raiva – Eu também perdi todas as esperanças quando pegamos essa maldita maleta, e a levamos conosco, sabendo que os outros tinham tudo se fodido! A maleta a gente tem, mas esperanças não! Mas, mesmo assim, eu estou agüentando, estou me esforçando! Toma! Se mata! – Wagner jogou um 38 que tirara do paletó em cima da mesa, porém sem ninguém na lanchonete perceber.
O sol agora ficou mais forte, o ambiente mais sereno.
Wesley ficou um tanto impressionado, afetado pelo ato de Wagner. Era um ato amargo, impiedoso. Mas Wagner estava irritado, também estava deprimido, e não sabia o que fazia.
Wagner sentou-se novamente. Tremia.
Os dois ficaram em silêncio total.
Wagner suspirou e pegou algo dentro do paletó marrom. Eram duas passagens de ônibus.
- Já se esqueceu, Wesley? – disse Wagner, mostrando os bilhetes – Temos que ir, de qualquer forma...
Wesley olhou as passagens, pensativo. Não disse nada.
- Vamos lá, respira fundo e vive a vida... esquece tudo, isso mesmo, esquece e segue... só assim se vive do jeito que a gente vive desde o tempo da escola... o ônibus sai em vinte minutos, precisamos ir pra rodoviária, ela fica aqui do lado...
- Tá certo – disse, de repente, Wesley, depois de alguns segundos – Eu vou. Eu vou – disse duas vezes, a última sem vontade, meio hesitante.
Wagner, satisfeito, se levantou e disse:
- Bom, eu vou ter que ir ao banheiro de novo, dá um tempo aí que eu já volto – E rumou para o banheiro.
Wesley continuava esparramado na cadeira, olhando a rua, absorto. O ambiente silencioso interrompido somente por um rádio da lanchonete, que tocava uma música dos Carpenters, bem velha.
Wagner entrou no banheiro sujo e velho da lanchonete, e foi até a pia. Lavou as mãos, engorduradas por causa da carne, e, enquanto enxugava as mãos, olhou-se no espelho. Nem ele sabia quais eram seus pensamentos naquele momento. Ele queria pensar em algo, mas não sabia no que pensar. Somente levantou o dedo, e tocou a superfície do espelho, como se estivesse tocando o próprio rosto. Tinha o olhar fixo. Depois forçou um sorriso amarelo, sem nenhum ânimo, para sua própria imagem no espelho.
- Não deixa o teu amigo cair, cara... – disse para seu reflexo, muito pensativo.
Saiu do banheiro, ainda olhando o espelho, e viu que uma garçonete estava ao telefone do balcão, falando algo desesperadamente, em aflição. O gerente tinha a cabeça no meio das mãos, apoiada no balcão. Wagner caminhou até a mesa onde Wesley estava, com um rombo na cabeça provocado pelo 38 esquecido por Wagner na mesa. O sangue escorria pela mesa, sobre os restos de comida, e aquele Domingo ensolarado continuava naquela mesma serenidade...



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