Maria nasceu. Nasceu bonita, mas não porque possuía a essência da beleza; era bonita como toda criança é. Stálin, enquanto criança, era bonito, com certeza. Mas não entremos a fundo na questão da estética, pois senão acabaremos por ter aqui um tratado filosófico.
A verdade é que Maria teve uma infância saudável. Besta, mas saudável. Não era uma criança vazia, como aquelas pessoas que nascem para coadjuvante nem tampouco servia de exemplo para as bobeiras de Freud. Enquanto crescia, aprendeu a chupar laranja, tirar caroço de azeitona, detectar vazamento em butijão de gás e beijar atrás do muro. Cortou a perna no portão, pisou na pata de um cão, teve sua bicicleta levada por um ladrão, foi para a diretoria tomar suspensão por má conduta e falta de educação, ajudou a atravessar a rua a algum João e tirou nota máxima na lição.
Maria somou todos os quesitos que todos os meros mortais recebem no crescimento. Conheceu o litoral numa Santos repleta de óleo da Petrobrás, se perdeu dentro da seção de brinquedos de um hipermercado multinacional da metrópole do estado em que vivia, chorou ao conhecer sua artista predileta a apenas cinco metros de distância...
Maria se fascinou, um dia, com tantas opções na vida acadêmica que chegava: medicina, direito, física quântica, ciências econômicas, engenharia elétrica ou de alimentos... Conheceu João aos dezenove. João era forte, trabalhador, honesto e um pouco troglodita... não. João era muito troglodita, mas tão trabalhador e honesto que valeria a pena. Na cama, Maria até que foi uma mulher feliz. João não aceitava "posições do diabo". Com ele, era papai-mamãe para a reprodução da espécie e acabou, porque ele era macho e sua mulher muito honrada para fazerem qualquer outra coisa na cama.
Bem comportada no leito (mesmo que doesse no peito), Maria ingressou, em 1998, através de exame vestibular público, no curso de Letras. Cursa inglês e italiano, porque, para João, que foi com Maria efetuar a matrícula, seria abominável conhecer a língua que Hitler utilizara, aquele maluco "alemão" (não seria austríaco, seu João?) "que matou um punhado de judeus". O francês, primeira opção dada a Maria, foi abandonado tão logo acabara o baile de Zidane & Cia. na fatídica Copa da França, porque seu marido não permitiria que Maria aprendesse a língua e a cultura daqueles "nojentos que compraram a Copa".
Maria era dona-de-casa muito respeitada; estudava à noite e, aos finais de semana, fritava um bife à milanesa que era um espetáculo! Trancou o curso só duas vezes na vida, no nascimento da Ana e do Joãozinho, que demorou para descolar o umbiguinho. Numa prova linda de amor, lavava as cuecas de João à mão. Vez por outra fazia um manjar e comprava tubaína para a visita do cunhado, Antonio, que morava numa cidadezinha perto da divisa do estado.
Maria conhece Dermeval Saviani, Genétte, Saussure, Cândido, Jakobson e os estruturalistas. Maria sempre respeitou os professores, seus textos, suas palestras, seus seminários e, sobretudo, seus certificados, no aguardo do seu diploma.
Sua vida ficou na gaveta do criado mudo, aos 16 anos. Hoje, não tolera o "absurdo" de Kafka, a "falta de caráter" de Nelson Rodrigues ou o "prafrentismo" e os "neologismos" da turma de 22. Eta vida besta, Drummond! Que o satélite lhes seja leve e breve, ó tantas Marias! Que a língua materna e o currículo nacional não lhes calem a alma e a boca, num sem-fim de academicismo e didatismo baratos! |