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Contos-->A Visão -- 02/02/2003 - 23:10 (Adriana Engelbart) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A VISÃO
By Adriana Engelbart
16/10/2001
Meu querer por Carlos era algo esgarçado, uma ferida exposta. Sentia-me nua de frente para o seu olhar fixo; um olhar que devassava minha alma, meus segredos há tanto tempo trancados justamente na falta de consciência. Arremessava-me no corpo daquele homem como se fosse ser aquele o meu último segundo de vida, o ocaso dos meus olhos, e, ao tê-lo, perdia toda a minha dignidade - ou o que restara dela.
Era assim o cotidiano meu. Um troço revirado, ambíguo, sem certezas. Minha motivação, ao erguer-me do colchão que todas as noites me acolhia, era respirar Carlos - o meu ato primeiro do dia era conhecer aquela pele e sentir, não só através das minhas narinas, mas dos meus próprios poros, o doce dos seus pêlos, a abundância de odores que ele agregava. E eu me afligia, era capaz de gestos destemperados quando, ao abrir os olhos das minhas freqüentes duas horas e meia de sono por noite, não podia servi-lo. Transformei-me em uma vassala, uma criatura romanticamente arrasada por uma sensação inigualável de paixão. E, fatalmente, meu corpo sentia falta de mim mesma, pois, intensificada num querer quase maniqueísta por Carlos, eu negava minhas próprias necessidades.
Sim, era coisa que beirava a loucura, um desbragamento da consciência. A mente, um lugar obscuro onde eu construía as falácias mais verdadeiras, onde eu reinventava a vida, roubava o azul do céu e não mais sentia frio. O trivial, há tempos, não mais me interessava. Diante do caos, os meus poucos e restritos amigos sentenciaram minha morte – a morte para mim mesma em um corpo ainda sobrevivente.
Brutal, terminantemente brutal essa decadência do raciocínio que me derramava a vida na boca em goles desumanos. Como quando você incendeia seu corpo por algum tempo para chegar a um orgasmo decente, eu me expunha, comparativamente, naquela relação. Eu buscava, queria, me exacerbava em atos descontínuos e, ao final, recebia uma recompensa prazerosa, porém perene. Um prazer volúvel, ondulado. Repentinamente, um dia, tranquei-me, "entoquei-me" entre fronhas e travesseiros nauseabundos.
A minha estrutura emocional estava muitíssimo comprometida. Ana, uma das últimas amigas que me restaram, preocupava-se. Ia até meu leito de morte - a minha própria casa - quase todos os dias. Aconselhava-me a procurar opinião psiquiátrica ou psicológica. Um mimo criado pela modernidade para os mais abastados, assim eu enxergava as ciências da mente. Queria ter direito aos meus devaneios, síndromes, fobias, obsessões. Como eu passaria os próximos anos sem ter vivenciado uma crise sequer? Eu já beirava os quarenta e cinco, se bem me lembro.
O repentino afastamento de Carlos me aborrecia. Era intragável vê-lo pela manhã, preparando seu café, saindo apressado e me olhando, penalizado, quando fechava a porta. Sentia falta da textura do seu cabelo - chegava a procurar por fios solitários no lado dele da cama.
Definitivamente, Carlos passara a me negar, negligenciar. Os gritos das noites de amor ainda ecoavam nos meus ouvidos que, àquela altura, já estavam quase moucos. Eu sofria e Ana me visitava.
Posso me lembrar do semblante dela, os movimentos dos lábios que eu tentava ler ou compreender. Ela verbalizava bastante, gesticulava e dificilmente me olhava nos olhos. Também evitava me tocar. Eu, que sempre fora muito cinestésica, observava, no distanciamento do meu torpor, os detalhes da presença-ausência da minha amiga. Não sabia ao certo a razão de ela estar ali, sentada na banqueta ao lado da minha cama, considerando minha patologia e dialogando toscamente com a minha consciência. Não me vêm à memória palavras. Somente um corpo esguio, na penumbra, desengonçado até, confundindo-se com a silhueta da estátua de mármore que enfeitava meu leito. Aninha Perez, tão moça, descendente de chilenos.
De certo eu recebia visitas de médicos. Diziam tratar-se de estado depressivo, doença da alma, uma ziguizira qualquer. Eu alternava estados de lucidez e esmigalhamento, e sentia Carlos cada vez mais distante. Todo o componente erótico da nossa relação desapareceu atrás das montanhas que insistiam em aparecer na minha frente. Imponentes, onipotentes montanhas de rochas jovens, sem desgastes da erosão, sem buracos do tempo: as montanhas da cadeia andina.
Eu engrenei em um estado predominantemente febril. Há dias lá naquela clausura, respirando um ar quente, chorava compulsivamente e ria logo após. E oscilava assim a minha emoção adoentada. Depois de um tempo, já totalmente rendida ao malefício, o emprego na seguradora foi para o beleléu. Carlos chegava em casa muito tarde, suado, e já não tinha o mesmo cheiro adocicado. Me oferecia um coquetel de remédios, cápsulas coloridas que eu engolia e embarcava em mais uma noite não identificável. E assim , noite e dia, meu sangue ainda circulava.
Em uma tarde chuvosa, Ana tocou a campainha. Eu, de pé, a recebi, mas seu olhar, desta vez, soltava faíscas. O rosto impávido dela parecia petrificado, congelado, como pude perceber também assim suas articulações. Começou a balbuciar frases que eu, ainda dopada, entendia pela metade. Ao sentir seu estado desesperado, minha mente voltou a funcionar num rompante. Era preciso alguma sensatez. Ana, aos berros, disse não agüentar mais. Falou que estava sustentando uma grande mentira. Sim, ela estava apaixonada por Carlos, viciada no vício meu, entorpecida pelos mesmos detalhes que me viraram, um dia, a cabeça.
Eu observava, agora, com mais atenção os sinais da moça. Parecia cambaleante, como se tivesse tragado goles e goles de qualquer coisa a noite inteira. Era uma órfã, assim como eu. Uma desgraçada tentando se redimir dos próprios atos quando a infelicidade também assolou seu coração. Teve necessidade de me pedir desculpas - Carlos a havia deixado. Ao ver-se só, sua consciência tomou outro rumo, ganhou outros matizes e sons. Definitivamente se rebelou. Depois de uma crise aguda de choro e lamentações, Ana deixou minha casa e não mais voltou. Até hoje não sei do seu paradeiro. Na felicidade, a mentira; na dor, a revelação. Seria dissimulada a alegria?
Hoje, de Carlos nada mais sei. O tempo se encarregou de excluí-lo do meu mundo e, principalmente, do meu submundo. Eu, desde aquele mergulho intrépido no meu ser, me permiti olhar a vida mais profundamente. Conhecer-me, amar a complexidade, o subjetivo de todas as criaturas.
Hoje, nos momentos de felicidade, sou capaz de entregar minha alma ao mundo e não me rendo à covardia da mentira. Ninguém é realidade maior para mim do que eu mesma

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