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Contos-->LEUCI -- 04/02/2003 - 18:08 (Vinícius José Guimarães) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos





O Rio de Janeiro de 1980 era outro: não havia Brizola, nem Comando Vermelho, nem Cezar Maia. O carioca era mais alegre e feliz, pois não vivia sob a ameaça constante e ostensiva dos traficantes de hoje. De tempos em tempos os peixes morriam, boiavam e fediam na Lagoa, mas pelo menos os moradores e turistas podiam se divertir com segurança desde a curva do Calombo até a Fonte da Saudade, passando pelo Corte do Cantagalo, pelo Clube Caiçaras, pelo Tivoli Park e ancoradouros de remo do Flamengo, do Vasco e do Botafogo. Na Cinelândia, Vitrine do Brasil, podia-se tomar um chope no Amarelinho, sem qualquer perturbação pelos meninos de rua abandonados, pelos verdadeiros e falsos mendigos e pela malandragem fajuta de hoje, que já não engana mais ninguém. Ali, apreciava-se a fauna urbana brasileira, miscelânea de norte a sul do pais, reunida em grupos básicos: executivos de fim de tarde ou de começo de noite, artistas e artesãos fracassados, prostitutas e viados, boêmios duros e incuráveis, bêbados equilibristas e vendedores de pomada japonesa, o produto erótico mais avançado e apregoado naquela época.

- Olha a pomada japonesa, dá firmeza na moleza, passando na cabeça!

Lagoa, Copacabana,Flamengo, Ilha do Governador, Leme, Jacarepaguá, Laranjeiras. Nêste circuito morava-se bem e tranquilamente. Depois dos túneis Rebouças e Santa Bárbara, entrando na Zona Norte, a vida também era boa na Vila Isabel, Tijuca e Grajaú, embora mais quente e sem o azul e a brisa do mar.
As noites do Rio ainda eram noites, ainda não se pensava em AIDS, desde a Galeria Alaska até a Lapa, pontos extremos infestados por travestis, permeados pelas garotas de progama da Avenida Atlantica, da Princesa Izabel, do Aterro do Flamento, chegando até o todo mundo dá e o todo mundo come da Cinelândia. Ali, podia se escolher na rua ou nos bares as garotas disponíveis das mais variegadas cores e origens, na maioria agradáveis, saudáves e apetitosas. Por pouco dinheiro e, com uma boa conversa, até por amor. Ou viados, ou travestis pois, em se tratando de mulher, tem até gente que não gosta.
Entre os bares e boates, de vida noturno-porno-erótica intensa, destacava-se ali, no começo da Rio Branco, ainda dos saudosos tempos da Avenida Central e do Palácio Monroe, o Assyrius. Antro sofisticado, cheio de mulheres jovens, lindas, limpas, liberadas e caras. Dava para se gastar ali as reservas econômicas de seis em seis meses, com um programa assim, como poder-se-ia dizer, supimpa. De ambiente "clean", enfumaçado mas não muito, durante alguns dias da semana até mesmo meio família, com os velhos senhores comparecendo com suas donas ou madonas, com sua musica de "discoteque" característica da época, o Assyrius era o paraiso dos executivos cansados de quinta feira a noite. Chegava-se ali, o atendimento de um "garçon"já velho conhecido, mesmo que ali se chegasse pela primeira vez, o primeiro "drink" rápido e extremamente generoso, compensado no fim da noite por excesso de gelo ou de água, dependendo do gosto mais quente ou mais frio do freguês. Garotas e mais garotas circulando, gentilmente se oferecendo, as vezes te esnobando: a índia apache, a saracura, a gordota, a pantera, a tigreza, janemansifields de fartos bustos, marilinmonroes de louros cabelos e negras pintas entre o nariz e a bochecha, mulheres enfim toda sorrisos, gentilezas, ofertas explicitas e promessas escondidas atrás de sarcásticos sorrisos em resposta a perguntas mais diretas, como por exemplo: já inaugurastes esta bundinha ou farás isto hoje, minha bela?
Num certo dia desses mais fracos, depois de tantas incursões apenas visitativas e sem maiores consequências, encontrei num canto mais escuro do Assyrius uma morena triste com os olhos perdidos nos reflexos da luz negra que piscava lentamente ao som, se bem me lembro, de uma música que todo mundo conhece e que fala sôbre alguém perdido ou abandonado num tapete atrás da porta. Olhos negros realmente perdidos pois, após longo tempo sem piscar nem mesmo havia percebido, primeiro meu flerte insistente, depois minha aproximação ostensiva e finalmente minha abordagem clara e direta ao sentar-me ao seu lado.

- Olá, o que faz você aqui , tão presente e tão distante?

Assim meio flutuante, virou-se ela lentamente para mim e, olhando para dentro dos meus olhos como se olhasse para algo em um ponto bem definido através de mim, respondeu, ou melhor, perguntou respondendo:

- Hããã? O quêêê?

- Você, oque faz aqui, com êsses olhos negros de água, como se chama?

- Ahhh! Leuci. Estava pensando no meu amor que mal conheci e já, tão logo, morreu.

- Ah, um amor que morreu, coisa comum, acontece todos os dias e, com todo mundo, pelo menos duas vezes na vida.

- Ah, você não entendeu mesmo! Não foi o amor que morreu! Foi o meu amor que morreu! A pessoa. Estava no helicóptero da Petrobrás que caiu êsses dias atrás. Saiu de Macaé e não chegou na plataforma de petróleo. Caiu a meio caminho, longe da costa, longe da plataforma, ninguém se salvou. Todos desaparecidos em alto mar. Meu amor, o meu homem, estavá lá também. Desapareceu, acho que morreu. Morte por afogamento, deve ser um sofrimento sem fim, a pessoa sabendo que vai morrer e não pode fazer nada. Vai perdendo as forças, afunda uma vez, duas, três...De repente afunda e não volta mais. Se acaba no mar, na água salgada, com sêde, cansada.

- Perdão, não tive intenção de despertar-lhe mais tristezas. Tchau!

- Não vá, sente-se aqui do meu lado. Agora que conversamos um pouco, com êste desabafo, já o acho mais simpático que há poucos minutos atrás. Venha, sente-se.

Leuci, como já havia dito, êsse era o seu nome, chegou-se um pouco mais para perto da parede, sobrou um lugar ao seu lado no estofado de veludo marron, meio pequeno para dois folgados, mas suficiente para dois abraçados. Afinal ali era lugar mais para apertos e amassos que para conversa folgada como, então, Leuci parecia agora querer.
Assim, como quem não quizesse nada mais da vida, pediu um drink vermelho, talvez da cor da sua dor, copo longo, talvez do tamanho de seu desepero, bastante gelo, talvez tão frio como o mais profundo interior de sua alma e, assim, assim, começou a contar sua malfadada história.

- Sou uma arquiteta, estava feliz trabalhando em São Paulo, morando com meus pais em Taubaté, para onde voltava todo fim de semana. Nas noites vazias em São Paulo, acabei conhecendo alguém, que acabou me convencendo e, rapidamente a êle me entreguei. Dias alegres começaram então, não me cabia dentro de mim de tanta felicidade.

- Ah, então você é arquiteta, somos mais ou menos do mesmo ramo, sou engenheiro. Engenheiro mecânico por formação, agora especialista em generalidades por conveniência, um prostituto dentro da minha profissão.
- É, sou uma arquiteta, mas agora desempregada. Com o desemprego, voltei de vez para Taubaté, me perdi de meu doce namorado. Quando o procurei algum tempo depois, quando descobri que estava grávida, já não mais consegui achá-lo, também já havia perdido o seu emprego e sumido no mundo.

- Puxa, você acabou ficando grávida e êle nem ficou sabendo?

- Não, nunca mais o vi, também não insisti na procura.

Como Leuci, depois de alguns momentos de descontração, que com boa vontade poderia até ser chamada de quase alegria, voltasse a cair na sua melancolia dos primeiros momentos de nosso encontro, interrompi a sua narrativa e chamei-a para dançar, na pista apertada e escura do Assyrius, naquêle dia porém totalmente vazia. Ela levantou-se e seguiu-me e, como a noite estava fraca e pouco prometendo para mais tarde, o "disk jokey"havia colocado uma rodada de musicas lentas, agradáveis, talvez até para auto satisfação, relaxando o ambiente no meio daquela parafernália de musicas de "discoteque", tão em moda naquêles doces idos anos.
Dançava bem Leuci, mais macia que um pedaço de veludo azul, mais leve do que uma pena branca, tão cheirosa de um perfume doce, mais doce que guaraná antártica, quem não tomava naquela época era bokomoko. Na penumbra senti seu corpo gostoso, subiu-me a tara até a cabeça, descendo rapidamente até o meio de meu corpo onde, alguma coisa, também rapidamente subiu. Ela se afastou instantâneamente, olhou-me com surpresa mas, talvez lembrando-se de onde estava e do que tinha ido ali fazer, sorriu-me um sorriso assim meio triste, de olhos de água, aproximou-se de mim outra vez, encaixou-se corretamente e, imediatamente, desligou-se completamente de seu mundo natural e vestiu sua pele de garota de programa. Em seguida começou a rir-se desbandeiradamente, depois aquietou-se e daí em diante começou a conversar como uma grande profissional daquêle ramo intensamente explorado ali naquela boate do Rio de Janeiro.
- E você, qual é o seu nome, já havia me esquecido de perguntar-lhe.

- Zé.

- Rá! Mais um igual a todos os outros! Você sabia que 90% dos homens com quem saio dizem que se chamam Zé?

- Mas eu realmente me chamo Zé!

- tá bem, acredito. Mas Zé do quê?

- Zé só!

- Zé Só? Primeira vez que ouço. Conheço Zé Carlos, Zé Mané, Zé Antônio, muitos tipos de Zé. Mas Zé Só é a primeira vez. Conheço aí, de ouvir falar no rádio, um tal de João Só, um cantor compositor. Depois de Chico e Caetano, todo compositor está se metendo a cantar. Êsse aí tem até umas musicas bonitinhas, mas como cantor é um excelente carregador de microfone. Mas Zé Só, juro, nunca tinha ouvido falar.

- Não é Zé Só. É apenas José, Zé, um nome simples, não composto. Igual a São José, marido de Maria, a mãe de todos nós, aliás também Maria só. Também raro o nome de Maria só, geralmente é acompanhado, Maria Aparecida, Maria Solange, Maria das Graças...

- Ah, agora entendo. Zé. Só Zé. Acredito sim!

Leuci realmente não acreditara que meu nome era Zé. Muito menos Zé só. Mas a noite estava começando a ficar boa, a alegria profissional de Leuci até começava a parecer expontânea e verdadeira. Tal ilusão esvaiu-se quando ela retomou a conversa, de forma prática e profissional.

- Hoje a boate está de movimento fraco, os caras ficam de olho nas poucas mulheres presentes. Ficar dançando muito tempo não dá lucro para os donos. Os caras ficam insistindo e ameaçando com o olhar. As meninas tem que parar para beber, dar consumo.

- Se você quizer a gente pode ir embora, o que você acha?

- Só depois de cumprir a cota. Tem a cota de sair e voltar e a cota de sair e não mais voltar hoje.

- Como isso funciona?

- Bom, é o seguinte. A gente, quando começa a frequentar esta boate, passa por um treinamento inicial. Se a gente quizer vir todos os dias, para faturar bastante, tem duas maneiras permitidas. Na cota de sair e voltar, a gente tem que ficar aqui um pouco até consumir 2 wiskies, ou equivalente, sair para um programa rápido e voltar para completar a cota da noite, que são 5 wiskies por noite, ou equivalente. Na cota de sair e não mais voltar, tem que cumprir primeiro a cota da noite, ou seja, 5 wiskies ou equivalente. Os caras marcam em cima, e quem sair da linha tem que repor a cota em outra noite. Mas se a garota não consegue cumprir sua cota com muita frequência acaba sendo proibida de frequentar a boate.

- Puxa, ainda tem gente que diz que esta vida é fácil!

- Pois é, no começo até parece que é divertido, mas com o tempo cansa. Na maioria das vezes dar para caras chatos e, sempre, sem nenhuma vontade de dar.

-Mas porque você está me dizendo tudo isto, não seria um segredo profissional? Tem certos caras que, tenho certeza, depois de ouvir o que você já me disse, cairiam fora imediatamente, não concordando em ser explorados assim. Como se não o fossem, de qualquer maneira.

- Fui com a sua cara.

- Ah, é? Então vamos sentar, consumir a cota da noite e depois ir embora para um programa.

- Pressinto que, finalmente, depois de tanto tempo, vou ter uma noite agradável.

Paramos de dançar, sentamos bem juntos no estofado de veludo marrom, que agora já não parecia ser tão pequeno e pedimos 2 wiskies. Com os 2 camparis consumidos anteriormente, a cota da noite já ficava quase completa. Realmente, a perspectiva era de uma noite agradável, talvez uma grande noite.
O garçon chegou todo sorridente e simpático, com dois wiskies já servidos, acompanhados na bandeja por uma garrafa de Cutty Sark, embora o wisky da moda fosse o Buchanas. Muito gelo, para muito pouco wisky, pude verificar logo em seguida e comentei o fato com Leuci.

- Disfarça e troca os copos!

- Hããã?

- Psiu! Disfarça e, quando nenhum dos caras da boate estiver olhando, troca o seu copo pelo meu! Repara como o seu é um pouco mais claro que o meu.

O Cutty Sark, realmente, é um wisky mais claro que os outros o que, além do sabor levemente adocicado, é uma das suas características que mais me atrai. Seu amarelo é bem claro, como a cor de um desmaio e seu sabor adocicado é como um sabor assim de açucar meio picante. Não seria necessário dizer que é a minha bebida preferida. Pelo gosto e pelo meu conhecimento íntimo dessa bebida, o meu era realmente um Cutty Sark 8 anos. Embora um pouco aguado pelo excesso de gelo.
Na primeira oportunidade troquei de copo com Leuci e qual não foi o meu espanto ao provar aquela bebida de um amarelo mais forte, quase marron claro.

- É chá mate. Quando se toma um chá mate sem o cliente perceber, a gente compensa uma dose de uma cota anterior não cumprida. Não serve para cota futura. Quando a garota se descuida e deixa o cliente perceber e o cliente percebendo, sente-se roubado e faz escândalo, a garota é que leva depois. Fica, no mínimo, devendo uma cota de sair para não voltar, ou seja, 5 wiskies. Isto quando não pega um desses caras mais brutos, que lhe dêem umas porradas.

- Mas Leuci, porque me diz tudo isto? Eu poderia me sertir roubado e fazer escandalo!

- Fui com a sua cara. E acho que você também foi com a minha.

- É verdade. Topei bastante você!

- Rá! Rá! Rá! Há anos não ouvia esta expressão: topei você! Meu pai sempre falava isto para mim quando eu era pequena.

Ao falar do pai, Leuci deve ter recordado sua infância feliz, pois uma expressão mista de tristeza e saudade cobriu por alguns momentos seus olhos de água. Mas recuperou-se rápidamente e voltou a sorrir, por incrível que pareça, um sorriso mais alegre, não um sorriso profissional.

- Esta é uma maneira de ganhar dinheiro fácil por aqui. Existem outras mil maneiras. Veja você, passar chá por wisky. No meu caso, hoje, foi eu mesma que sinalizei para o garçon quando você pediu os wiskies. Não estou devendo nada, mas não estou mesmo a fim de beber hoje. Desculpe. Quem sabe mais tarde não lhe dou uma compensação?

É, aquela noite realmente estava prometendo. Como pode o acaso nos trazer surpresas tão agradáveis assim, quando a gente menos espera? E ainda, em um ambiente de prostituição explicita como aquêle? É, as vezes tem-se oportunidade real de se constatar que as putas também são gente, na maioria das vêzes gente boa, que não teve oportunidade, ou coragem, de procurar outra coisa para fazer na vida.
Daquele momento em diante, logo após tomar o wisky-chá e dos comentários que se seguiram, eu e Leuci passamos, de repente assim sem nem saber porque, a conversar como velhos amigos. Sua cultura de universitária aflorou. Naquêle tempo todos universitários, ou quase todos, tinham uma certa cultura, que hoje já não mais se vê. Conversamos animadamente durante muito tempo, quase não vimos a noite passar, a cota daquela noite de Leuci foi largamente ultrapassada, tantos foram os wiskies aguados e chás que o garçon veio trazendo. Depois do terceiro chá. Leuci também passou para o Cutty Sark amarelo-desmaiado-adocicado-picante.Conversamos muito, sôbre tudo, embora Leuci não tenha voltado a falar no seu amor que há pouco havia morrido.
Quando demos por nós a boate estava fechando e, quando saímos para a Rio Branco o dia já estava amanhecendo. Ali, naquele lugar e naqueles idos de 1980, a madrugada do Rio de Janeiro estava linda! Mas tão logo saímos para a rua, Leuci despertou para a realidade, deu-me um leve beijo na face, disse um "até um dia desses" e entrou num taxi dos que estavam parados na porta do Assyrius esperando os últimos fregueses. O motorista entrou pela contramão, percorreu fora da lei um pequeno trecho, contornou o obelisco e sumiu em direção ao Aterro do Flamengo. Só então eu realmente caí em mim e constatei que as perpectivas de uma grande noite tinham terminado na sargeta em frente a Cinelândia, Vitrine do Brasil.

- Puta que pariu! Que noite besta, sô. Zé Só um cacete! Tremendo zé banana é o que eu sou.
Atravessei a Rio Branco em direção ao Passeio Público e, reconhecendo em mim mesmo um grande babaca, peguei o 375 - Estrada de Ferro - Leblon, via Lagoa, que passava vazio e fui embora pra casa. Sentado no ônibus vazio, duro, peguei o "slip" do Credicard que ficara no bolso da camisa, olhei o tamanho do estrago em cruzeiros e quase caí de costas. Assyrius, novamente, não tão cedo, foram-se as reservas de um ano inteiro. E ainda por cima, a troco de nada. E ainda por cima ali, sentado que nem um trouxa, de madrugada, com o pau na mão. Excelente noitada. À puta que o pariu, seu Zé.
Os dias se passavam e Leuci não me saia da cabeça. Resistia ir de novo ao Assyrius, pois a cota do ano fora totalmente gasta naquela noite de exageros etilicos e de gastos sem limites e sem retorno. A vida ali no centro, toda hora passando pela Cinelândia ao anoitecer, quando ia para casa, aumentava a cada dia a tentação.
Duas semanas depois não resisti. Entrei na boate, ainda eram seis horas, ainda era dia. Ali fiquei, encostado a uma parede discreta, de onde podia ver a pista de dança e o corredor que dava para a porta de entrada. Se ela entrasse, não deixaria de vê-la. Oito horas, dez horas, meia noite, nada.
Inquieto, comecei a andar pelas mesas vazias, terça feira, dia fraco, somente as meninas mais feias. Levei duas ou três cantadas, não dei bola, olhei no relogio, uma hora da madrugada! Saí tão discretamente como quando entrara, fui achacado na saída pelo porteiro que queria o seu, não liguei e fui para o Passeio Público esperar o 375, Leblon via Lagoa.
Pelo menos ali tive sorte, depois de 10 minutos o ônibus passou, fui embora. Idiota, pensei comigo no meio do caminho. Ir no Assyrius numa terça feira na procura de uma piranha bonita! Na terça só dá bagulho, tem que ser de quinta a sábado, quando o movimento é sempre bom.
Quinta feira lá estava eu, de novo encostado na estratégica parede. Cheguei às oito, mas mal me continha dentro de minha ansiedade. Às nove Leuci chegou, passou por mim, não me reconheceu ou não me viu, dirigiu-se para seu canto escuro, sentou-se numa mesa e lá ficou a observar o movimento que começava.
Vou ou não vou, perguntava a mim mesmo, mal contendo a ansiedade e o nervosismo. E se vou e ela não me reconhece? E se não vou e outro vai? Grande dilema seu zé banana, nervoso, ansioso, pensando em abordar uma piranha como se fosse uma nova namorada. Lá vou eu, resolvi.

- Posso sentar-me aqui, Leuci?

- Leuci, quem é Leuci, cara? Meu nome é Angélica. Cai fora, cara! Se manda!

Embora espantado, sentei-me. Piranha não recusa freguês no Assyrius. Algo havia acontecido, Leuci estava sentada e agressiva.

- Calma, menina, não se lembra de mim? O Zé. Zé só. Ou zé banana como queira. Nos conhecemos aqui, há uns 15 dias atrás. Você havia perdido seu amor, bebemos e conversamos bastante. Ao raiar do dia você foi embora e me deixou na mão.

- Ah, o Zé, agora me lembro. Assustei-me, pensei que era algum velho conhecido de São Paulo ou de Taubaté. São pessoas das quais sempres fujo, pois minha familia não sabe que levo esta vida.

- Custou a aparecer, estive aqui algumas vezes à sua procura e não te encontrei.

- É, estive viajando. Fiquei fora uns dias. Mas agora estou sem dinheiro, tenho que faturar, não dá para ficar conversando como da outra vez. Vamos fazer um programa? Tem que ser rápido, sair para voltar, pois hoje ainda não bebi nada, acabei de chegar.

- Eu vi, você passou por min e nem me reconheceu.

- Que é, cara? Está com ciúme? Como vou reconhecer todo mundo se toda hora saio com um diferente? Assustei-me quando me chamou pelo meu nome, não me lembrava de tê-lo dito a alguém por aqui. Aqui me chamo Angélica.

- É, eu havia percebido seu susto. Aquêle dia que nos encontramos deve ter sido um dia especial, você quase chegou a sonhar enquanto conversávamos, disse-me até o seu nome.

- Pois é, Zé, mas hoje não dá. Ou a gente sai para um programa rápido ou você vai embora, tenho que faturar.

- Está bem, Leuci. Não vou te amolar mais. Um programa rápido com você não me interessa. Mesmo com putas não gosto de programas rápidos. Tem que pintar um clima e, no meu caso, isto demora. Faço entretanto uma proposta: ficamos aqui um pouco, tomamos um campari e um wisky, o meu vermelho e verdadeiro, o seu apenas chá mate. Enquanto isso conversamos um pouco e logo depois vou-me embora.

- Concordo, mas serão apenas 30 minutos, tenho que faturar!

- Mas eu vou te pagar o programa rápido! Podia ser pelo menos uma hora. Assim dá para tomar 2 camparis e dá um bom tempo de conversa.

- Claro que você vai pagar o programa rápido, seu Zé. Está bem, uma hora, comece a marcar. São nove e quinze. As dez e quinze, tchau!

Chamei o garçon que já começava a impacientar-se e pedi as bebidas. Olhei para Leuci e de novo vi a tristeza debaixo de seus olhos de água. Pensei comigo, se não tomasse cuidado ia mais uma vez apaixonar-me por uma puta. Puta de alto nível, é certo. Mas puta. O garçon chegou com os copos servidos, mais gelo que bebida, mas enfim, o que eu queria era apenas conversar e usufruir a companhia daquela garota de programa.
Foi-se o primeiro campari, Leuci não falava nada, somente olhava fixo para um ponto qualquer atrás de mim O que se passaria naquela cabeça? Um lindo rosto moreno, cabelos pretos compridos, pele lisa, queixo fino. O que pensava Leuci?

- Ei, garota, acorda. O mundo é aqui. Já se foram 20 minutos e o meu campari e você aí, no mundo da Lua.

- Estou apenas tomando chá amargo e pensando no amargo da vida. O que você queria? Você tem lá seu emprego, tem sua família, tem sua profissão. E eu, uma arquiteta desempregada que tem que dar para o primeiro que aparece e, ainda por cima, de vez em quando aguentar uns caras que ainda querem namorar a gente.

- Saquei a direta, Leuci! Vou-me embora, qualquer dia dêsses a gente se encontra para um programa completo.

Chamei o garçon, pedi a conta, paguei a êle e ao programa rápido de Leuci. Beijei-a na face e me surpreendi quando ela agarrou minha cabeça e beijou-me na boca. Recompôs-se rapidamente, disse-me tchau, empurrou-me por entre as mesas, acompanhou-me até o banheiro das meninas, sumiu por aquela porta e escorreu-me mais uma vez pelos vãos dos dedos.
Nos dias que se seguiram o volume de trabalho aumentou, prenunciando mais um daqueles picos estafantes, quando a gente ficava pelas noites adentro para cumprir prazos de entrega de uma proposta de serviços, cujo pedido, invariavelmente ficava dias na mesa do chefe e, na ultima hora, nós os babacas é que tinhamos que fazer hora extra. Profissão engraçada essa de engenheiro, trabalhando no staf de uma firma de prestação de serviços de engenharia. Invariavelmente, os mais diversos clientes solicitavam as mais diversas propostas de prestação de serviços e, normalmente, concediam de 45 a 60 dias para a preparação da referida proposta. O pedido formal chegava e ia direto para a mesa do chefe, onde dormia durante um mínimo de 30 dias. De repente o chefe achava que a proposta devia ser feita, pois era de grande interêsse para a empresa. Aí então o que acontecia? Chamava o babaca do Zé, que agora dispunha de 15 ou 30 dias para fazer toda a pesquisa, estabelecer os preços, redigir a proposta e entregá-la ao cliente! Para isso, pesquisas junto aos subfornecedores de dia, elaboração dos textos técnicos a noite. E então lá se iam três, quatro, seis semanas de noites mal dormidas, chegando em casa quando as crianças se levantavam para ir para a escola.
Daquela vez a barra foi pesadíssima. Proposta para o gerenciamento do Projeto Carajás. Não podia ser perdida. Seis semanas direto, dia e noite sem parar. Alguns companheiros ficavam até 11 horas, meia noite no máximo. Depois era o Zé sózinho, o Zé só, pela madrugada, redigindo textos para as moçoilas secretárias, feias e gordotas, datilografarem no dia seguinte.
Ao final das seis semanas tudo ficou pronto e foi entregue. Na semana seguinte a notícia: minha empresa havia ganho a concorrência, um grande contrato, merecedor de comemorações. Onde ir para comemorar? Alguém sugeriu: boca livre no Assyrius, inclusive as gatas. Então lembrei-me de Leuci. Onde andaria?
Pela seis horas da tarde a turma estacionou no Amarelinho, um chopp antes do Assyrius, que ninguém é de ferro. Os chopes foram descendo, uma linguiça calabreza com cebola aqui, um provolone a milaneza ali, etcoetera e tal, vai se ver , nove horas da noite.

- E a boca livre no Assyrius?

- Eu não vou, hoje não dá, estou muito cansado, alguém disse.Todos concordaram com o babaca geral.

- E eu chefe, a boca livre continua?

- Se você quizer, vá. Tudo será pago pela empresa. Traga a nota. Mas vai sozinho.
Boca livre no Assyrius, cara! Noite inteira, numa boa. E se eu encontrasse a Leuci? Não seria possível! Logo naquele dia, uma quarta feira magra, pouco movimento, só bagulho. Leuci era linda, não iria num dia fraco. Seria muita sorte.
Enfim, se aboca é livre, oque custa tentar, pensei comigo. Atravessei a Rio Branco, desci as escadas da boate, as pernas tremendo, ansiedade, esperança, expectativa, sonho, ilusão. Percorri o corredor de entrada, dirigi-me para o canto escuro. Leuci estaria ali? Estava. Sózinha. Linda.

- Posso me sentar, Leuci?

- Você por aqui, Zé Só? Que coincidência! Estava pensando em você. Na realidade, acho mesmo que estava esperando você. Sente-se, hoje estou alegre, vamos conversar.

- Cutty Sark ou chá, menina? Hoje também estou alegre e feliz. Vamos comemorar.

- Cutty Sark, Zé. Vamos nos divertir e conversar. Hoje, como você queria, será um programa completo. Vamos lá, cara! Divirta-se! Vamos dançar.

Agarrei a leve Leuci e ficamos ali, depois do primeiro wisky, a dançar e dançar, sem parar, nossos corpos bem encaixados, a suave melodia, a boate vazia, ninguém para ficar empurrando. Completada a cota do sair para não voltar, saímos para a Rio Branco. Dei dez pratas ao porteiro que se aproximava para seu costumeiro achaque. Êle se assustou mas, profissional, logo se refez e chamou um taxi.

- Vê se chama um Opala, cara, hoje queremos conforto.

- Hotel Andorinha, ali na Lapa, doutor.

- Doutor e Andorinha um catso, cara! Niemayer, Barra da Tijuca! Motel ...................!

- Hoje é festa, doutor? Não se esqueça do meu.

Era meia noite quando chegamos no....................Leuci pediu champaghe. Tirou a roupa, que belo corpo. Quando o champagne chegou, já tinhamos visitado o Éden pela primeira vez naquela noite. Leuci não fumava e bebemos champagne, conversamos e nos amamos durante toda a noite.Eram dez horas da manhã quando Leuci quiz partir. Voltamos ao Éden mais uma vez, nos vestimos, chamamos um taxi e fomos embora. Leuci ficou num hotel em Copacabana, combinamos que nos encontraríamos a noite no Assyrius.
Cheguei em casa ao meio dia, minha mulher não se espantou, pois já estava acostumada às longas noites sozinha, enquanto eu ficava a fazer propostas. Propostas, seu Zé, propostas! Apenas lhe disse que desta vez haviamos ganho a concorrência e fui dormir. Fui dormir pensando em Leuci. Que noite! Tinha que me cuidar, pois já estava me apaixonando por Leuci. Pensando que tinha que descansar para logo mais a noite, para mais uma noite com Leuci, tratei de dormir, descansar, recuperar as forças.
Quando preparava-me para sair à noite, minha mulher pergunto-me, meia desconfiada:

- Sair de casa a essas horas, Zé? Para trabalhar? Com esta roupa? Vocês já não ganharam a concorrência?

- Sim, bem, ganhamos a concorrência. Por isso mesmo! Hoje tem a comemoração. Todo mundo vai. Não me espere muito cedo.

E lá vamos nós, rumo ao Assyrius, encontro as dez horas da noite, como combinado. Encostado à coluna, discretamente, fiquei ali alegremente a esperar. Dez horas, onze, meia noite, nada. Duas horas, nada de Leuci. Imaginei que estivesse cansada pela longa noite de amor, conformei-me, atravessei a Rio Branco, peguei o 375, Leblon via Lagoa, cheguei em casa as três horas da manhã, fui dormir.
No dia seguinte, mais ansiedade, esperando a noite para encontrar Leuci. Mais uma noite de espera, nada de Leuci. Na quinta noite de espera, não resisti, decidi-me a procurá-la no dia seguinte, no hotel de Copacabana em que havia ficado no dia seguinte àquela inesquecível noite.
Logo de manhã levantei-me cedo e, em vez de ir para o escritório no centro, fui direto para Copacabana. Na portaria do hotel, após procurar em todos os registros por minha insistência, o gerente disse-me que naquele hotel jamais se hospedara nenhuma moça com a descrição que eu lhe dera e muito menos chamada Leuci.
Passei longas noites encostado àquela coluna discreta do Assyrius, de onde dava para ver o corredor de entrada e a pista. Os dias se passaram, desisti.
Nunca mais vi Leuci.


Guima, SP 17/12/95

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