Arquivos*
ARQUIVÓPOLIS: UMA UTOPIA PÓS-MODERNA
A solução para o problema das massas documentais acumuladas, vulgarmente
conhecidas como arquivos mortos, é um dos grandes desafios da arquivística no
Brasil. Trata-se de uma situação que se repete melancolicamente em todo o país.
Qualquer organização pública ou privada, com mais de dois anos de existência,
convive com o dilema do que fazer com os documentos acumulados no decurso de
suas funções. O poder público em suas várias esferas, a área privada e mesmo
pessoas físicas em seus escritórios ou residências são tangidas a guardar cada vez
maior quantidade de documentos.
Projeções possíveis, a partir dos poucos levantamentos realizados, indicam que
somente os órgãos do governo federal guardam, hoje, dispersos nos estados
brasileiros, algo acima de 5.000km de papéis, medidos como se estivessem
armazenados em uma imensa biblioteca. Para se ter uma idéia da magnitude deste
número, pode-se dizer que seriam necessárias construções que somassem o total
de quase 1.000km² para acondicionar estes acervos. Se algum alucinado quisesse
centralizar tudo, em nome da modernidade, teria de mandar edificar um total
aproximado de 5.000 prédios de cinco andares cada um com capacidade para
armazenar, em condições aceitáveis, todo esse material. Não foram computadas as
áreas de serviços destas construções. Igualmente, não foram considerados os
palácios de despachos dos altos dirigentes, os escritórios dos funcionários, as
moradias de luxo e as populares, o comércio normal e os shoppings, os hospitais,
os bancos, as praças, as avenidas, a rodoviária, o aeroporto etc. Ter-se-ia,
portanto, de se levantar uma nova cidade, bem maior que Brasília. Possivelmente,
seria realizado um concurso para definir o seu plano-piloto, com certeza pósmoderno,
e o país debateria o seu nome de batismo. Temos até duas sugestões
preliminares: Arquivópolis e Documentolândia. Não faltariam críticos e ardorosos
defensores.
Outras espécies documentais, mensuráveis por unidade, dentre elas os negativos
e as ampliações fotográficas, os mapas e as plantas, os vídeos, os filmes, os
microfilmes, os disquetes, as fitas magnéticas de som e as de computador etc. vêm
se avolumando em quantidades impressionantes. Estas precisariam também ser
guardadas, em muitos casos, com investimentos adicionais e prédios anexos
especiais. Não esqueçamos que vivemos em plena era da explosão da produção e
da acumulação da informação. A nossa Arquivópolis teria de ser ampliada e dotada
de recursos técnicos compatíveis.
Passados dois anos da inauguração solene de nossa utopia pós-moderna, o
governo, os brasileiros e as brasileiras constatariam estarrecidos: tudo o que foi
previsto não foi suficiente para resolver o problema. Rapidamente, o Congresso
Nacional teria de aprovar um novo imposto para dar ao Estado recursos para
ampliar a nova cidade e seus valorosos serviços. O pior é que tudo isto se repetiria
com um intervalo de tempo cada vez menor. Em prazo recorde, a nossa nova e
progressista cidade, criada para documentos iguais e para simbolizar a nossa
entrada no Primeiro Mundo, seria o maior canteiro de obras urbano da humanidade
e, em dez anos, a maior megalópole do planeta. Obviamente, a sua "população" de
documentos estaria, em cada vez maior quantidade, na periferia ou em teimosas
"invasões". O Poder Judiciário, por exemplo, poderia criar a Judicilândia, as
empresas públicas e inúmeros outros órgãos procurariam encontrar e disputar o
terreno desapropriado para acomodar os seus acervos. Os desdobramentos deste
pesadelo ficam por conta da imaginação do leitor.
Aquele que chegou até este parágrafo deve estar se perguntando: Mas, então,
qual é a solução? Nas cidades brasileiras, em sua maioria de clima úmido e quente,
o tempo vem prestando serviços inestimáveis. Insetos, roedores e microorganismos
deliciam-se nos arquivos mortos, um hábitat inigualável. Tudo isto corroborado pela
incúria administrativa ou pelo peso dos falecidos que determina a escolha de
ambientes paradisíacos para a bicharada: porões, subsolos, galpões, corredores,
banheiros, prédios abandonados, garagens etc. Muitos com problemas de
ventilação, acúmulo de lixo e poeira, sujeitos a inundações ou exposição direta à
luz solar, uso de equipamentos e embalagens inadequadas e, principalmente,
sujeitos a flutuações da temperatura e da umidade relativa do ar.
É fato que existem burocratas piedosos e cristãos convictos de que podem
diminuir o suplício dos atormentados documentos. Estes, simplesmente, não
separam o joio do trigo. Jogam tudo fora, informações vitais e documentos sem
qualquer valor recebem o mesmo tratamento: o lixo. Outros, mais modernos e
racionais, mandam microfilmar tudo, inclusive as cópias e aquelas séries
documentais que podiam já ter sido eliminadas ou em breve o poderão, por não
terem mais interesse administrativo, jurídico ou histórico. Algumas vezes ganham
espaço, eliminando os originais e ficando com os rolos de microfilmes. Em outras
vezes, mantêm ambos sem saber para que ou por quê. Sempre gastam muito
dinheiro e continuam a ter dificuldades em encontrar informações fotografadas em
sua desorganização original. Ainda há os que tentam repetir Sísifo e acreditam que
será possível transferir todos os dados para os computadores, destruindo os
acervos e liberando os depósitos para fins mais nobres. Esquecem-se de que uma
criança de dois anos de idade e até um cão pastor alemão são mais inteligentes do
que o mais avançado dos engenhos contemporâneos, inclusive o AT 386, que
estamos, usando para escrever este artigo. Só perdem na precisão e rapidez de
repetição de dados e das informações que foram depositadas na máquina e nos
seus aplicativos, pela milenar engenhosidade humana.
PROPOSTA DE METODOLOGIA
A solução para o problema das massas documentais acumuladas passa
necessariamente pela mudança de mentalidade dos envolvidos. O tratamento
técnico de arquivos é uma atividade intelectual como qualquer outra. É preciso que
existam profissionais treinados para fazer a avaliação sistemática dos acervos,
aplicando a "teoria das três idades", determinado o que tem valor permanente,
intermediário ou corrente, definindo prazos de guarda, metodologias de trabalho
etc.
É verdade que ainda são poucos os profissionais realmente competentes nessa
área. Mas o seu número vem aumentando, e a bibliografia sobre o assunto em
português, espanhol, francês e inglês vem crescendo. Existem algumas
experiências-piloto e alguns profissionais que realizaram trabalhos efetivos com
resultados comprovados que devem ser acionados. Infelizmente, há também quem
não tem a visão completa do problema e se arrisca a executar trabalhos para os
quais não está preparado. Todavia, não é difícil selecionar pessoas, empresas e
instituições mais eficientes.
A solução definitiva do problema só é possível com o tratamento da doença na
origem: os arquivos correntes. As massas documentais existem, porque os
documentos na fase corrente não foram objeto de tratamento técnico-científico. Um
arquivo ativo que seja organizado de acordo com um plano de classificação de
documentos e que tenha o seu ciclo vital determinado por uma tabela de
temporalidade não gerará uma massa documental acumulada.
As massas documentais acumuladas atualmente existentes jamais poderão ser
organizadas na origem. Trata-se de arquivos semi-ativos e inativos. São acervos
compostos por documentos:
1. destacáveis de imediato, isto é, sem nenhum valor administrativo, legal ou
histórico;
2. de valor intermediário, isto é, poderão ser descartados depois de um prazo
administrativo, legal ou guardados para sempre;
3. de valor permanente, isto é, interessam à pesquisa de fundo histórico.
Não é mais possível tratar os arquivos mortos como se fossem ativos (correntes).
Todavia, alguns elementos da metodologia usada para organização de arquivos
correntes podem e devem ser utilizados. Assim como devem ser pesquisadas
estruturas, funções e as atividades das organizações que acumularam esses
arquivos. Estes estudos, feitos profissionalmente, permitirão que se estabeleçam os
fundos, as séries documentais e, eventualmente, outras subdivisões. Também
ensejarão que se estabeleçam os prazos de guarda, propondo-se o que deve ser
eliminado e o que passará a constituir o arquivo intermediário e o arquivo
permanente. É necessário classificar e avaliar para obter resultados. O nosso
grande desafio é que, quase sempre lidamos com acervos muito volumosos.
Infelizmente, temos sido chamados, muito mais para resolver os problemas
gerados pelas massas documentais acumuladas do que para resolver as questões
que as originam, mas isto está mudando.
Um outro front é vencer a resistência dos mais conservadores que acham que se
deve guardar tudo ou quase tudo. Aqueles que resistem aos fatos de que não é
possível organizar, sem avaliar e descartar. Não é casual que, nos países onde os
arquivos são mais cuidados, os percentuais de descarte sejam muito elevados. Nos
Estados Unidos, chega-se a eliminar 98% dos documentos gerados pelo setor
público, sem perdas substantivas para as questões administrativas e legais ou para
a memória nacional. No Canadá, 95%, na França, 60%. Obviamente que estes
índices são relativos, incluem as mil e uma cópia e as peculiaridades dos serviços
administrativos e técnicos de cada um destes países. Se chegássemos ao
percentual francês, tudo feito com muito critério, já estaríamos, nesta área, com
um pé no primeiro mundo. Para tanto, teríamos de, como lá, poder influir na
produção documental como um todo. Não nos cabe somente classificar e avaliar.
Temos também, a missão de orientar a forma mais econômica e racional de gerar
documentos, influindo, por exemplo, na produção de formulários, correspondências,
relatórios, fotografias, documentos microfílmicos e registros informatizados.
Para enfrentar todos estes desafios, precisaremos investir cada vez mais na
formação profissional de gerentes da informação arquivística, treinados e cultos.
Estes profissionais, arquivistas reciclados, oriundos do ainda precário ensino
brasileiro de graduação e pós-graduação neste domínio e em outros correlatos,
poderão ser os redentores do acúmulo desordenado que leva a perdas irreparáveis,
exemplificado pela existência dos arquivos mortos. Por tudo o que foi exposto, eles
não existem. Entretanto, não há como negar a presença asfixiante das massas
documentais acumuladas.
Não precisamos de utopias pós-modernas. É necessário trabalhar com os pés no
chão, rejeitando soluções miraculosas que esqueçam a imensa significação da
inteligência humana e do uso racional dos recursos tecnológicos, atualmente, ao
nosso dispor.
*Luís Carlos Lopes – Doutor pela Universidade de São Paulo. Membro do Comitê de
Ensino do Conselho Internacional de Arquivos. Professor e coordenador do Curso de
Arquivologia do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da
Universidade de Brasília. Referência: Ci. Inf. Brasília, 22(1): 41-43, jan./abr. 1993. |