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Contos-->Pragmatismo Elevado -- 06/02/2003 - 20:45 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pragmatismo Elevado


O. Henry

Uma das coisas mais sérias desta vida consiste em determinar onde se deve ir beber a sabedoria. Os autores clássicos encontram-se desacreditados. Platão é um prato quotidiano; Aristóteles resulta titubeante; Marco Aurélio provoca náuseas; Esopo foi imitado por Indiana e outros; Salomão deixa transparecer solenidade excessiva e Epiteto não se consegue extrair nem com um palito. A formiga, que durante muitos anos serviu de modelo de inteligência e laboriosidade nos livros de leitura das escolas primárias, acabou por revelar que não passa de um ser perfeitamente idiota dissipador de tempo e energias. As convenções de Chautauqua abandonaram a cultura para adotar o demônio. Os homens de circunspectas barbas grisalhas concedem suas assinaturas idôneas aos vendedores de elixires para cabelo. Existem erros tipográficos nos almanaques publicados por casas editoras de renome. E os professores ginasiais converteram-se em... Adiante.

Se continuarmos assim, as personalidades extinguir-se-ão.

O fato de entrarmos numa aula, mergulharmos numa enciclopédia ou absorvermos conhecimentos do passado não nos tornará mais discretos. Como diz o poeta: Os conhecimentos passam, mas a sabedoria fica.

Sim, porque a sabedoria constitui uma espécie de orvalho o qual, como não ignoramos, nos molha, refresca e desenvolve. O conhecimento é, em contrapartida, uma espécie de corrente de água que nos lançam em cima com uma mangueira. Quando muito, serve para alterar o desenvolvimento das nossas raízes.

Procuremos, por conseguinte, acumular sabedoria. Evidentemente que semelhante acumulação exige também conhecimentos. Se conhecemos uma coisa, muito bem. Mas acontece com frequência que não possuímos discernimento para manifestarmos a sabedoria destinada a...

O melhor será entrarmos na nossa história:


Certa vez, encontrei uma revista no valor de dez centavos no banco de um parque. Pelo menos, foram dez centavos que me pediu por ela o homem que se sentava no banco junto de mim. A publicação estava velha e maltratada e continha algumas descrições estapafúrdias. Achava-me persuadido disso, porque a revista ou fonte de informação não era outra senão o meu companheiro de banco.

Na realidade, revelou-se uma espécie de antologia. Para o pôr à prova, declarei:

— Sou repórter e incumbiram-me de escrever uma série de artigos sobre os infortunados que passam as noites nos bancos dos parques. Posso perguntar-lhe a que se deve a sua?...

Interrompeu-me com uma risada simultaneamente áspera e amarga, circunstância que me fez suspeitar de que era a primeira que dava em muitos dias.

— Os repórteres não falam desse modo — replicou calmamente. — Fingem que são o mesmo que nós e garantem-nos que chegaram à cidade no vagão de carga de um lento trem de São Luís. Identifico um repórter à primeira vista. A vida no parque transformou-me num excelente juiz da natureza humana. Note que passo o dia aqui, vendo passar gente. Consigo classificar as pessoas com um rigor extraordinário.

— Gostaria de saber como me classifica — observei.

Sem um instante de hesitação, o estudante de natureza humana aventurou:

— É possível que trabalhe numa empresa de construções, num estabelecimento comercial ou se dedique a afixar cartazes. Deteve-se no parque para fumar um cigarro e espera obter de mim um pequeno monólogo gratuito. Pode também dar-se o caso de ser um polícial à paisana ou advogado. Como vê, não resulta tão fácil como julgava. Outra coisa: sua mulher não permite que fume em casa. — Verificando que eu franzia o sobrolho, apressou-se a retificar: — Pensando melhor, duvido que seja casado.

— Realmente sou solteiro — confirmei. — Mas asseguro-lhe que só não casarei, se não... — A emoção embargou-me a voz.

O poeirento vagabundo sentenciou com certo pretensiosismo:

— Eu é que adivinho em você uma história para contar. Não se intimide e relate. Pode guardar os seus dez centavos. Interessam-me particularmente os altos e baixos dos infelizes que passam as noites no parque.

Comecei a sentir-me divertido. Contemplei o pobre pária com renovado interesse. Com efeito, eu tinha uma história para contar. Por que não a contar? Não a divulgara a qualquer dos meus amigos. Fora sempre um homem reservado, daqueles que guardam as coisas para si, talvez devido a acanhamento, sensibilidade física ou a ambos os fatores.

— Escute, Jack... — comecei.

— Mack — corrigiu.

— Vou ser franco, Mack.

— Quer que lhe devolva os dez centavos?

Estendi-lhe um dólar e esclareci:

— Os dez centavos eram para ouvir a sua história.

— Tem razão — aquiesceu. — Continue.

Por estranho que pareça a todos os apaixonados do Mundo, que só confiam as suas penas ao vento da noite e à impávida Lua, expus o meu segredo àquele náufrago de tudo quanto se possa conceber relacionado com o amor.

Aludi aos dias, semanas e meses durante os quais adorara Mildred Telfair. Mencionei o meu desespero, as pungentes e intermináveis noites de insônia, as minhas angústias e martírio mental. Cheguei a relatar-lhe a beleza e porte digno da minha amada, a sua larga projeção na sociedade e o fato de que era a filha mais velha de uma família respeitável, cujo orgulho contrabalançava os milhões dos endinheirados da cidade.

— Por que não se casa com ela? — quis saber Mack.

A interrogação fez-me regressar à terra. Expliquei-lhe que a minha confiança era escassa e os meus temores imensos, a ponto de não me atrever a expor o problema à pessoa mais diretamente interessada. Afirmei que, na presença dela, só conseguia corar e tartamudear, enquanto ela me fitava com um sorriso de admiração deslumbrante.

— Move-se, porventura, o alvo do seu afeto no ambiente das classes profissionais? — sugeriu Mack.

— A família Telfair... — principiei com altivez.

— Refiro-me à profissão da beleza — esclareceu.

— Todos admiram Mildred profundamente — admiti cautelosamente.

— Tem irmãs?

— Uma.

— O senhor conhece outras mulheres?

— Várias. Muitas, mesmo.

— E não pode, ou não sabe, manifestar o amor? Por outras palavras: fazer olhos ternos e coisas do gênero. A timidez só o ataca junto da dama em questão, ou beleza profissional, como prefiro chamar-lhe?

— Até certo ponto, acaba de expor a situação com notável exatidão — admiti.

— Supunha isso mesmo. Recorda-me o meu caso. Já agora, vou descrever-lho.

Fiquei indignado, mas dissimulei o que sentia. Que importância podia ter o caso daquele vadio em comparação com o meu? De resto, eu lhe dera um dólar e dez centavos.

— Apalpe os meus músculos — sugeriu, fletindo o bíceps.

Obedeci maquinalmente. Os que praticam ginástica têm esse hábito. Com efeito, o braço dele pareceu-me duro como o ferro fundido.

— Há uns quatro anos, eu era capaz de dominar qualquer homem de Nova Iorque, desde que não se tratasse de profissionais. O seu caso e o meu assemelham-se como duas ervilhas. Procedo dos bairros do Oeste, entre as ruas Treze e Catorze, mas prefiro abster-me de mencionar o local exato. Aos dez anos, já me distinguia pelo vigor extraordinário e, aos vinte, não havia amador na cidade que aguentasse quatro assaltos comigo. Conhece Bill McCarthy?

— Não.

— É o treinador dos aspirantes nos principais clubes desportivos. Pois eu bati todos os adversários que Bill me apresentou. Era um peso-médio, mas podia ascender à categoria dos pesados em caso de necessidade. Pratiquei o pugilismo em todos os locais do Oeste, em festas, espectáculos de beneficência e reuniões privadas, sem jamais conhecer o travo amargo da derrota. No entanto, a primeira vez que medi forças com um profissional, não me portei mais airosamente que uma lagosta em conserva. Não compreendo por quê, mas a verdade é que a audácia me abandonou por completo. Provavelmente, possuo imaginação em excesso. A solenidade e a gravidade do momento atacaram-me os nervos. E assim, nunca venci um combate com um profissional. Sempre que via um na minha frente, sentia-me flácido como um travesseiro mal cheio.

"Fiquei desprestigiado em pouco tempo, sem poder combater com adversários de qualquer espécie. Não obstante, creia que continuava sendo tão bom pugilista como anteriormente. Mas dominava-me sempre aquela sensação estranha perante um profissional. Depois de abandonar a aquela atividade, tive uma época particularmente agitada. Para me sentir seguro de mim mesmo, percorria as cidades surrando os amadores e toda a espécie de gente não profissional. Nas ruas escuras, zurzia os políciais e sempre que podia provocava questões com cocheiros, carroceiros e cobradores de bonde, indiferente à sua corpulência ou noções de pugilismo que possuíssem. E vencia-os sempre. Se me assolasse a mesma presença de espírito no ringue, seria hoje a figura mais importante do país.

"Certa noite, deambulava pela Bowery, entregue às minhas cogitações, quando me deparei com um grupo de pessoas que pareciam vir de uma festa. Eram seis ou sete, com sobrecasacas e chapéus altos reluzentes. Um deles empurrou-me para fora da calçada e eu, que não comia há três dias, apliquei-lhe um murro no nariz. Seguiu-se um burburinho imediato, claro. O tipo lutava tão bem como os que vemos no cinema e, como não havia polícia à vista, pudemos entreter-nos sem interrupções. Apesar de tudo, bastaram-me seis minutos para o derrubar. Os companheiros ajudaram-no a sentar-se à entrada de um prédio e um aproximou-se de mim para me perguntar se sabia o que acabava de fazer.

"Repliquei que lhe aplicara o merecido corretivo e aconselhei-os que o levassem a Yale, a fim de que aprendesse sociologia de um modo diferente daquele que preferira até então. O sujeito olhou-me em silêncio por um momento e acabou por confidenciar que eu acabava de vencer Reddy Burns, o campeão mundial de pesos-médios, que chegara na véspera a Nova Iorque para combater com Jim Jeffries.

"Quando emergi do desmaio, vi-me estendido no solo de uma farmácia, aspirando amoníaco. Se adivinhasse que se tratava de Reddy Burns, toleraria a sua insolência e afastar-me-ia da calçada para não o incomodar. E para o enfrentar numa sessão de pugilismo, teriam de me administrar sais desde o início.

Mack fez uma pausa e concluiu:

— Como vê, a imaginação tem muita força. Repito que os nossos casos se assemelham extraordinariamente. O senhor nunca vencerá. Nada pode contra o profissionalismo. A sua história de amor terminará no banco de um parque público — E soltou uma risada pessimista.

— Não consigo descortinar o paralelismo — retruquei friamente. — Na realidade, conheço pouquíssimo aquela que o senhor considera uma campeã do sexo.

Tocou-me no braço com os dedos para sublinhar a sua parábola.

— Todos nós pousamos, em certos momentos da vida, os olhos em algo que nos parece cobiçável. Para você, essa dama representa aquilo que não se atreve a abordar. Para mim, tratava-se de ganhar combates no ringue. Acabará por sair irremediavelmente derrotado como eu.

— Por que pensa assim? — inquiri.

— Porque receia enfrentar profissionais. Não passa de um mero amador, e mais vale que não entre na peleja.

Levantei-me e consultei o relógio com ansiedade.

— Tenho de o deixar — anunciei.

Acabava de dar duas dezenas de passos quando o homem me chamou.

— Fico-lhe muito grato pelo dólar e os dez centavos. Mas garanto-lhe que não vencerá. É um simples amador.

"Que desaforo!", refleti, indignado. "É bem feito, por dar confiança a um tipo daqueles".

Enquanto me afastava, as palavras de Mack ecoavam-me no cérebro. Por fim fiquei furioso.

— Eu lhe direi! — proferi em voz alta. — Lutarei com Reddy Burns, mesmo sabendo antecipadamente de quem se trata.

Entrei numa cabine telefônica e liguei para casa dos Telfair. Respondeu uma doce voz, e a minha mão segurou o fone com firmeza redobrada.

— É você? — perguntei com a imbecilidade natural de todos os que recorrem a semelhante meio de comunicação.

— Sim — respondeu ela, na inflexão límpida e pausada característica dos Telfair. — Quem é?

— Eu — declarei com laconismo indesculpável. — Queria esclarecer determinados pontos essenciais, agora mesmo.

— Santo Deus! É Arden?

Perguntei a mim mesmo se a moça não falaria com segunda intenção. Mildred possuía o costume de dizer coisas suscetíveis de provocarem o pensamento de outras coisas particularmente excitantes.

— Acho que sim — confirmei com uma ponta de indecisão. — Vamos ao que interessa. Como sabe, amo-a e estou assim por sua causa desde longa data. Como não desejo que esta situação neutra se mantenha, exijo uma resposta instantânea à pergunta que passo a formular: Quer casar comigo ou não? Por favor, não desligue. Sim ou não?

Tratava-se de um golpe baixo, mesmo tendo em conta que o adversário era um Reddy Burns. No entanto, a resposta não se fez esperar:

— Oh, sim, querido Phil! Nunca supus que me... Dissimulou tão bem! Venha imediatamente. Pelo telefone não se pode falar à vontade. Foi tão repentino e inesperado... Não quer vir?

Imaginem! Como não havia de querer?

Quando premi o botão da campainha da residência dos Telfair, uma criada de expressão grave conduziu-me ao salão e pediu-me que aguardasse um momento. Cravei os olhos no teto e refleti:

"Aprende-se sempre qualquer coisa com o nosso semelhante. A filosofia de Mack resultou acertada. Sem me valer da sua experiência, beneficiei-me dela. Quem quiser medir-se com profissionais, deve..."

As minhas reflexões interromperam-se nesse ponto. Alguém descia a escada. As pernas começavam a fraquejar-me. Compreendi a sensação experimentada por Mack em presença de um profissional no ringue. Olhei em volta, procurando imbecilmente uma porta ou janela por onde pudesse escapar-me. Se a moça que se aproximava fosse outra, não hesitaria...

A porta abriu-se para dar passagem a Bess, a irmã mais nova de Mildred. Até então, nunca me parecera um anjo glorificado; ou, pelo menos, jamais tanto como naquela hora. Aproximou-se de mim lentamente.

Só agora pude notar que tinha os olhos e o cabelo maravilhosos.

— Phil — articulou em tom doce e claro — não compreendo por que não me falou antes, Phil. Até há poucos minutos, quando telefonou, eu pensava que você pretendia a minha irmã.

Desconfio que Mack e eu jamais abandonaremos a classe de amadores. Todavia, no meu caso, o fato alegra-me particularmente.


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