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Cartas-->DEPOIMENTO: SOU ANALFABETA! -- 29/11/2002 - 07:02 (ROSAPIA (veja página 2)) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DEPOIMENTO: SOU ANALFABETA!

Estava vendo a TV Cultura, entrevista com o escritor baiano Antonio Torres, e contava ele que fora alfabetizado pela mãe, pois onde nascera e morava não tinha ainda escola. Ouvindo aquela informação singela, a danada da pouca memória que ainda me resta levantou vôo, viajou quase 60 anos passado a dentro.

Eu tinha entre 5 e 6 anos. Certa manhã, entrei na cozinha onde vovó e titia faziam goiabada, os enormes tachos sobre o fogão de lenha, as duas mexendo o doce com grandes pás de madeira. Perguntei, de chofre: “O que é aborto?” Titia, moralista, me olhou feio, aquele olhar que eu tão bem conhecia e com o qual me apavorava: “O que é isto, menina? Isso é pergunta que se faça? Vá já pra dentro. Ora, de onde tirou isso?” Respondi: “Li na Ave-Maria.” Ave-Maria era uma revista religiosa, semanal, que vovó assinava. Titia me mandou sair dali, ainda brava, indignada com minha pergunta inocente. Olhei para vovó, que nada disse, vi seu sinal de que obedecesse e saí. Mas intrigada, o que seria aquela palavra misteriosa que despertara a fúria de titia?

Pouco depois vovó chegou ao quarto e me perguntou docemente: “Diga, Saletinha, que história é essa de ‘eu li’? Você não sabe ler.” “Li, sim, vovó. Na Ave-maria nova que chegou. Tá aqui.” “Então me mostre onde foi que leu”. Abri a revista, fui à página, lembro-me ainda, tinha uma seção que se chamava Consulte o Padre... bem, o nome do padre eu esqueci. Tinha até o retrato do padre, um homão bonito, bem mais bonito que os padres que eu conhecia... Mostrei a palavra para vovó. Ela sentou-se pacientemente e me pediu que lesse o parágrafo todo. Li. Era uma consulta ao padre. Tratava-se de uma senhora que cometera aborto, contava a triste situação que a levara a isso, perguntava ao padre se seu pecado seria perdoado. Minha espantada avozinha pensou logo em milagre, pois eu nunca fora à escola, ninguém tinha me ensinado a ler. Mas eu achava tudo muito natural, pelo menos não me lembro de ter ficado encucada.

Passado bom tempo eu entendi. Vovó gostava de ler para mim e eu adorava ouvi-la ler. Ela se sentava na cama, eu ao lado, acompanhando sua leitura com os olhos. Depois, curiosa que era diante daquele emaranhado de letras que formavam palavras, pegava a revista quando sozinha e ficava tentando lembrar como vovó juntava as letras quando lia. Devo ter sido muito persistente, pois parece que aprendi logo, pelo menos antes que alguém descobrisse o que estava fazendo pelos cantos, sempre com uma revista nas mãos. Depois da bronca da titia, sempre fazia isso às escondidas, pois achava que era algo errado, uma arte que podia acabar em castigo.

Vovó, feliz com sua descoberta, começou a me mostrar outros livros, não mais apenas os de historinhas que eu tinha em casa. Contava para suas amigas a minha proeza e dizia, orgulhosa: "Fui eu que a alfabetizei!". Minha linda avó! Tinha estudado apenas os três primeiros anos. Seu pai achava que mulher só precisava aprender para saber contar dinheiro e ler receitas. Tirou-a cedo da escola e a colocou para trabalhar no balcão de seu comércio. Mas vovó lia muito, interessava-se por qualquer assunto. E era sábia. Vejam só: minha tia se preocupou com o lado moralista de minha questão; vovó não, preocupou-se com o importante do fato: eu aprendera a ler.

Algumas das amigas de vovó não acreditavam e me pediam que lesse alguma coisa. Eu ia logo avisando que tinha que ser letra de forma, igualzinho da revista. Um dia perguntei o que era aquele livro enorme, grosso, quase caindo em pedaços, que ficava na estante e ninguém nunca pegava para ler. Vovó explicou que aquilo se chamava dicionário, um livro que trazia o significado de todas as palavras em português. Fiquei fascinada e, na primeira oportunidade, lá fui eu procurar o significado da palavra aborto. Nunca consegui encontrar e só muito tarde descobri por que: faltavam as primeiras páginas do velho dicionário. E acho que, mesmo com o livro completo, eu não conseguiria achar nada, pois não sabia a ordem alfabética. Apenas sabia ler. Um dia resolvi que iria ler aquele livro inteirinho, até achar a palavra aborto, que aquilo já virava obsessão em minha cabecinha. Mas desisti logo, vendo que levaria muito tempo e até podia ser que nem tivesse a minha palavra nele. Mas, quando sobrava um tempinho, sempre o retirava da estante, abria em qualquer página e ficava lendo, lendo, lendo... Acho que isso também explica a fascinação que tenho por dicionários até hoje.

Não sei bem a seqüência dos fatos. Sei que, quando fui para a escola, fiz um sucesso danado, pois eu lia as palavras do livro escolar antes da professora. As crianças me traziam recortes de revistas para eu ler enquanto elas aprendiam. Como me julgava a própria sabe-tudo, não prestava atenção às aulas. Demorou para eu sentir o prejuízo, pois logo as coleguinhas me passaram a perna, sabiam mais que eu. Fiquei indignada e reclamei com a professora. Ela conversou com a diretora. Fui chamada à Diretoria e aquela senhora diretora que me parecia muito brava, ouviu atenciosamente a história de como aprendi a ler e explicou-me com ternura que o meu problema era ter aprendido a ler “sem método”. Perguntei imediatamente o que era método. Não vou saber o que ela explicou, tão comprida foi a explicação. Quando ela acabou de falar, imediatamente questionei: “A senhora sabe tudo, né? Pois sabe o que quer dizer a palavra aborto?” A diretora fechou a cara, disse que aquilo não era assunto para criança e me dispensou rapidinho, toda embaraçada. Mais uma vez eu saía frustrada. Começava a achar que aquilo, além de ser pecado como dizia a revista, era algum palavrão tão horrível que ninguém nem usava. E, aqui, perco o fio... não sei quando minha curiosidade foi satisfeita. Era um tempo em que as crianças nunca tinham vez...

Hoje, faço um enorme esforço para me lembrar como fui me situando diante da leitura e da escrita. A Diretora fez o diagnóstico, mas não me lembro de ter passado por nenhum tratamento. E, diante do método até hoje em vigor de se ensinar os nomes das letras – o alfabeto - e depois ensinar a juntá-las pronunciando as sílabas, isto é, o famoso “be-a-ba”, fica em mim a grande questão: afinal, sou alfabetizada? Não, disso tenho certeza, nunca ninguém me ensinou que b + a dá bá. Alguém que não foi alfabetizado não é analfabeto? Portanto, a conclusão é lógica: sou analfabeta! Alguém contesta isso? Acho que é por isso que, até hoje, quando alguém me pergunta que faculdade eu fiz, respondo: “eu só tenho diploma de primeira comunhão e não exerço”. Com certeza tenho algum complexo...


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