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Cartas-->DEPOIMENTO: FASCÍNIO PELAS PALAVRAS -- 29/11/2002 - 07:04 (ROSAPIA (veja página 2)) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DEPOIMENTO: FASCÍNIO PELAS PALAVRAS

Em meu depoimento “Sou Analfabeta”, falei do fascínio que os dicionários exerceram sobre mim desde pequenina. Não era para menos. Aquele livrão que ficava na estante e ninguém lia, o Dicionário, era mesmo algo muito estranho. Era enorme, deveria ter uns 10 ou 12 cm de espessura. Muito velho, fora de meu avô e vovó não o substituía por outro, por nada no mundo. E eu entendia isso. Daí talvez o poder mágico que ele tinha de me fazer imaginar o avô que não conheci, sentado em sua poltrona, que vovó também mantinha com cuidado, lendo aquele livrão que ninguém mais lia. As páginas amareladas chegavam a ter um cheiro meio irritante. E eu sempre achando que ele deveria ser lido de cabo a rabo, pois foi assim que me ensinaram a fazer com os livros e era assim que eu pensava que vovô lia. Acho que demorou um pouco para eu perceber que esse livro era diferente. Fui aprendendo aos poucos que era um livro para ser consultado, para ser pesquisado. Então comecei a me apaixonar por consultas e pesquisas...

Aos nove anos, que me lembre, comecei a registrar o que já eram meus poemas e eu não sabia. Antes mesmo de começar a escrever, eu gostava de pegar as músicas simples, populares, que ouvia, retirar-lhes as letras oficiais e colocar nelas as que eu mesma criava. Hoje acho isso muito interessante. Mas não faço mais, eu juro, não me aproprio de música nenhuma, já sei bem sobre direitos autorais... Mas, naquele tempo? Ah, cheguei a cantar minhas letras em público, nas festinhas da escola. Acho que naquela época ninguém nem ouvira falar de direitos autorais. E, aos nove anos, como ia dizendo, registrei meu primeiro poema. Chama-se “Prece a Maria”. Imaginem vocês que me conhecem!!! Está no meu primeiro e único livro impresso como manda o figurino. Ainda vou escrever um Depoimento especial para esse livro que hoje me parece tão estranho.

Nesta altura, eu já sabia manejar bem um dicionário e já me apaixonara pelas palavras. Com o amadurecimento, fui aprendendo a empregar as palavras de forma mais adequada e sentindo quando a união delas não davam sentido, não deixavam claro meu pensamento. A redação, na escola, me ajudou muito nisso. E também me ajudaram os professores de português que eu tive. Ainda peguei, felizmente, uma escola relativamente boa, com professores dedicados e interessados. Quando eles iam percebendo que eu sabia e gostava de escrever, sempre me deram mais atenção e me incentivaram. Minhas redações eram quase sempre lidas em voz alta e comentadas pelo professor, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma. Assim também os erros eram apontados para que a classe inteira aprendesse.

Lembro-me de um fato pitoresco, já na minha adolescência. A tarefa de casa era fazer uma redação sobre o tema: “A felicidade do homem”. Na aula seguinte, o professor mandou que um dos alunos passasse recolhendo as redações, que ele levaria para ler em casa. Entreguei a minha, confesso que tremendo de medo. Sabia bem o que tinha feito. Quando o professor saiu da classe com aquele calhamaço debaixo do braço, vi que não tinha mais como recuar e deixei tudo por conta da sorte... ou do azar... Próxima aula: o professor entrou com o calhamaço de volta... Tremi de novo... Fez a chamada e, quando disse meu nome, olhou de um jeito que achei esquisito, me deu medo. Depois fez uma breve preleção, como era seu costume, sobre o geral dos trabalhos e tomou o calhamaço para entregar as redações aos respectivos donos. Pegou inicialmente a página que reconheci ser a minha. Tremia... Mandou que eu fosse buscá-la e que a lesse. Obedeci. E li: “A felicidade do homem”. Olhei para o professor e seu sorriso me estimulou. Então li, de uma enfiada, a redação inteira. Ei-la: “É a mulher! – Fim.” – A classe explodiu em gargalhadas. Todo mundo esperava uma redação enorme, como era meu costume, prolixa que sempre fui. Claro que provoquei também a malícia de toda a turma. Mas, até aí, eu não sabia ainda o que me esperava por parte do professor. Sei apenas que ele sorria, o que parecia bom sinal. De repente, ele disse: “Essa foi a melhor redação. Nota 10!”. Caí sentada na carteira, aliviada. E ele fez um elogio que não esqueço: um discurso sobre a mulher, essa flor – como ele dizia -, que sabia realmente fazer um homem feliz.

Bem, esses sucessos todos começaram a subir-me à cabeça. Fui ficando vaidosa, sentindo que era melhor que todo o mundo. Eu não tinha ninguém que me alertasse para o perigo daqueles sentimentos que eu não sabia controlar. Minha família nem percebia, é claro, pois todos me endeusavam e me faziam mais convencida e exibida do que já era. Esse problema, como quase todos em minha vida, eu tive que vencer sozinha, num processo difícil de auto-educação.

Cada vez mais convencida e cada vez mais apaixonada por dicionários, eu lia sem parar, livros e mais livros, dicionários e mais dicionários. A gramática? Estudava tanto que, quando o professor ia dar uma nova explicação eu já sabia, tinha avançado, tinha estudado antes do tema ser abordado. Isso era bom, claro, mas tinha também o seu lado negativo: as outras matérias ficavam para trás. Terminava o ano com excelente nota em português, e acabava reprovada em história e geografia...

Voltando aos dicionários. Eu descobria palavras novas. Quando gostava delas, principalmente quando as achava sonoras, ideais para serem ditas em poesias, ficava encantada e não sossegava enquanto não as empregasse. Era muito inspirada, já então. Mas muitas vezes eu bolava um poema só para “exibir” a palavra nova, em geral não conhecida pelos colegas de minha faixa etária. Demorou bom tempo para que eu atinasse com a inutilidade disso, que não passava de uma armadilha de minha vaidade. Quando atinei, tentei me corrigir, mas foi difícil. Eu era tão cuidadosa com meu vocabulário que não me permitia, em hipótese alguma, falar gíria, usar a linguagem descontraída e corrente entre meus amigos. Era uma espécie de perfeccionismo que eu perseguia. E muito sofri com isso. Começava minha luta rumo à simplicidade.

Já adulta, tive um relacionamento com um rapaz muito simples, pouco culto, riquíssimo de sentimentos. O relacionamento era bom, a gente se amava e se curtia. E eu observava. Aliás, observadora fui desde sempre. Um dia estourou em minha cabeça o poema que chamei “Ressurreição”. Fiz o poema para o namorado, mas na verdade ele foi uma descoberta de mim mesma, num momento que se tornou um verdadeiro renascer. Analisei o tempo que tinha perdido entre tantos livros e arquivos empoeirados, estudando, lendo, pesquisando, deixando a vida “rasteira” e gostosa passar, rejeitando pessoas só porque falavam errado, deixando de prestar atenção nelas, de descobrir sua riqueza interior, porque criara uma obsessão pela cultura, pelo falar correto, pela perfeição. Naquele poema dei de cara com minha vaidade desmedida e com o absurdo disso. Eu via meu namorado falar de sentimento e me encantava. Mas ele falava errado, empregava mal as palavras, não sabia nada de concordância, dizia “a gente viemos” com a maior naturalidade... Mas ele sabia da vida, do amor, de muita coisa que tinha realmente importância e eu deixava passar. Eu também sabia muita coisa, era romântica, mas por que tinha que ser uma romântica certinha, sem faltar uma vírgula ou um acento? Foi o que comecei a questionar. O resultado foi a descoberta de mim mesma, atinando para o tempo perdido entre os arquivos. Não os negando, não negando a cultura, não querendo falar errado de propósito ou desaprender o que tinha aprendido, mas assumindo uma simplicidade que não tinha até então. E resolvi tirar as capas todas que me envolviam e me escondiam de mim. Ao me despir, encontrei uma mulher muito melhor do que eu era, luminosa e imperfeita, real, feita de lama e sol. E graças a um garotão simples e pouco culto que era o namorado da hora. Foi realmente uma ressurreição, pois abracei essa mulher que encontrei escondida, nunca mais a larguei, nunca mais vesti as capas inúteis. E nem por isso emburreci, ao contrário, cresci, sei que me tornei melhor.

Essas reflexões me mostraram a importância de escrever com simplicidade. Nada melhor que a linguagem coloquial para nos nortear ao escrever. Hoje, cada vez mais as palavras simples me fascinam. Descubro, e passo isso aqui, que quanto mais simples falamos e escrevemos, mais atingimos as pessoas, sejam elas de que nível cultural forem. E não é esse o objetivo primeiro de qualquer escritor?

Consegui e tive a minha recompensa. Eu fazia um programa semanal de rádio. Com um companheiro profissional, escolhíamos um tema, escrevíamos o script e apresentávamos o programa todos os sábados, das 23 horas até a uma da madrugada. Contávamos com duas linhas telefônicas para que os ouvintes nos contatassem. Levantávamos questões sempre de acordo com temas de boas músicas populares. No mínimo dois ouvintes falavam conosco, mas muitas vezes eles tinham extensão e mais dois entravam no papo. E as discussões se alongavam. Era uma verdadeira mesa-redonda por telefone. Eu tinha um amigo, professor universitário, que, segundo ele próprio, era meu “macaco de auditório”, não perdia um programa. E tinha ouvintes de todas as classes sociais. Um dia, esse amigo disse: “Você conseguiu uma linguagem universal. Você fala de forma que me agrada e eu entendo. Ao mesmo tempo fala de forma que agrada e é entendida por um ouvinte sem instrução nenhuma. Vejo isso pelos papos ao telefone.” Foi o maior elogio que já ouvi e o que mais me gratificou pela luta que empreendi para descer de um trono ilusório que tinha criado para mim mesma. Trono ao qual nunca mais quero alçar.


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