Sono
Estavam no ponto de ónibus, por volta de dez horas da noite. Haviam passado a noite anterior sem pregar os olhos, estavam cansados, com sono.
Tinham frequentado uma daquelas festas em que a bebida era liberada. Noite e dia na gandaia. Os dois gesticulavam muito, conversavam e riam. Às vezes o sono domina o senso de falarmos coisas sensatas. Quando se está com sono, as palavras escapam da boca como água da torneira:
- Puts, esse ónibus não chega! Já passou do horário.
- Dane-se. Quando entrarmos, eu vou arrancar a cabeça do motorista com um machado.
- Que machado rapaz? Você está bêbado ainda?
- É o sono. Já estou falando besteira.
Entraram no circular. Estava lotado, mas havia dois lugares no fundo, próximos a uma senhora com uma criança no colo que, ostentando feliz algumas bexigas coloridas, sorria muito à vontade. A cabeça do motorista ficou intacta. Sentaram-se:
- Puts, ainda bem que tem estes bancos vazios. Estou podre de cansaço.
- Quando eu chegar em casa, vou estuprar a geladeira. Dane-se o pudor, estou babando só de pensar na mandioquinha frita, no macarrãozinho da empregada.
- Para de falar nessas coisas, com o sono que estou, tinha até esquecido que existia comida.Vamos falar de outra coisa, agora eu tenho que parar de pensar com o estómago. Dá uma olhada nesse moleque com essas bexigas. Minhas mãos estão até coçando. Eu não vou aguentar, vou estourar uma delas.
- Tem duas brancas, duas rosas, uma verde, uma azul e uma amarela. Estoura uma branca e uma rosa, pra ficar tudo igual.
- A branca eu não estouro. Branco simboliza paz. Vou estourar a amarela, porque eu odeio essa cor. O que seria do amarelo se não fosse o mau gosto.
- Eu gosto do amarelo.
- Extremo mau gosto.
- A amarela não, eu gostei dela, esta mais cheinha que as outras.
- Então vou estourar uma rosa.
- Isso, rosa é cor de viado.
- Credo, como você é preconceituoso. Vou estourar a azul.
- Não. A azul esta murchinha, isso é preconceito também.
- Preconceito?
- É, com os menos favorecidos.
- Quer saber, vou fechar os olhos e estourar qualquer uma.
- Vai logo então, porque já está na chegando a hora de descer.
- Quer saber, naum vou estourar nada. O moleque vai chorar, e pior que choro de criança, só as duas grandes guerras.
- Vamos descer, chegou nosso ponto.
Os dois desceram do ónibus, um rindo muito. O outro, triste, cabisbaixo, apenas comentou:
- Eu deveria ter estourado a branca.
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