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Contos-->LILI -- 10/02/2003 - 19:21 (Vinícius José Guimarães) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
LILI




Três Corações, ah! Três Corações, da Rua Direita, descendo do Parque Infantil até a ponte atravessando o Rio Verde. Da ESA - Escola de Sargentos das Armas, onde nas manhãs de sábado a turma se reunia para uma pelada de futebol de salão. Do Grupo Escolar Bueno Brandão, escola primária estadual, onde se podia aprender a ler e a escrever, bem, sem pagar nada. Do Hotel Capri onde se comia um bom macarrão e jovens biscates Do seu Plinio da distribuidora, do seu Osvaldo da Bom Retiro, do Salomão Naback do bar da Praça, do seu Durval da Vila Operária, do Zé Gaquinho da Farmácia Santa Rita, do Capitão Jairo marido daquela morena grande, bonita e boa, do seu Hené do açougue, do João Baptista Fabri do velho taxi, do João Baptista Fabri, filho, contador e putanheiro. Ah, Três Corações que lá vai tão longe, perdida no tempo!
Na Rua Direita, bem em frente da Farmacia Santa Rita, do outro lado, havia uma travessa estreita, onde morava Heloisa Helena, Lili. Nem alta nem baixa, nem bonita nem feia, nem sexy nem gostosa, magrinha, loirinha, olhos verdes, não se sabe porque, era atraente. Não muito inteligente, mediana, já tinha tomado uma bomba no ginásio, mas continuara estudando. Não tinha grandes qualidades, mas era atraente e cobiçada por muitos.
Na Rua Pedro Bonésio também vivia um cara comum, moreno, um pouco precoce, mais alto que o normal para a sua idade, José Manoel, o Zeca. Um pouco mais inteligente do que a média, sempre tirava primeiro lugar no ginásio, introvertido, de poucos amigos, jogava bem futebol, tímido, cobiçado por algumas meninas. Não tinha grandes pretensões, muitas garotas lhe davam bola, mas ele nem percebia. Não se sabe porque, a turma de malandros e atrasados no ginásio, Wandinho, Jenerley, Zé Teixeira, Titoca, não haviam ido com a sua cara, desde que chegara na cidade, voltando do colégio interno para fazer a quarta série.
Zeca viu Lili na rua e logo se amarrou. A menina lhe deu bola, conversaram, agora namoravam. No cinema Zeca lhe pegava na mão ela deixava, mas na praça cruzava os braços, arredia, se furtava aos desejados carinhos oferecidos pelo namorado. As dez horas da noite, no máximo, ia para casa, o pai não permitia que ficasse até mais tarde na rua. Bom filho da puta, pensava o Zeca, pensava mas não dizia.
Deixava ela em casa, ia para a praça, de vez em quando ainda encontrava um dos poucos amigos, ficava ali conversando até alta madrugada. Ir no Clube, nem pensar, não era sócio, o filho da mãe do seu Valdermar, o preto baixinho porteiro não deixava.
Lili chegava em casa, ia para o seu quarto, ficava ali deitada, pensando na vida, tão pensativa, ainda tão jovem. Pensava, pensava, até altas horas, apagava a luz e dormia. Pensava no Zeca, por êle de noite se ardia. Mas também era obrigada a pensar no Toninho Peruca, fazendeiro, bem apessoado, mais velho, bom cabelo, daí o apelido, metido a galã, cheio da grana. Mas quando abria a boca só saía batata, um matuto, sem escola, semi analfabeto. Lili, entretanto, com êle sonhava, aliás, com êle tinha pesadelos, durante a noite inteira. Também por causa dêle, de dia , suspirava. Triste.
Zeca de nada sabia, de nada desconfiava, pensava que os suspiros eram por êle. Era corno platônico, mas não era manso,pois não sabia, e nem desconfiava, da recente inclinação de Lili por Toninho Peruca. Quando Zeca encostava um pouco, procurando um sarro, Lili se recolhia arredia, o moço se conformava, pensava: É ainda jovem, ainda não esperimentou o cheiro da brilhantina. Um dia cede, gosta, se acostuma, aproveita.
Mas esse dia não chegou. Lili não resistiu, um dia atravessou o caminho do Peruca, se insinuou. Êste , matuto, se assustou, mas não perdeu a chance. Um matuto da roça, mal sabendo escrever o nome, deixar escapar a lourinha cobiçada, de olhos verdes, que muita gente queria? De noite, um sábado, sem nem mesmo se dar ao trabalho de avisar o Zeca, apareceu na praça de mãos dadas com o novo namorado. Zeca não se conformou ao ver sua namorada com outro, ficou puto mas, introvertido, se recolheu, se calou. Também, o namoro de Lili e Zeca era tão discreto que ninguém reparou que o homem do novo par era outro. O Peruca, todo sorridente, exibia o novo troféu pela praça, mais tarde levou Lili para o Clube, ali ficaram toda a noite do sábado, dançando agarradinho, já no primeiro dia. No fim da noite, no portão da casa da Lili, o Zeca via de longe, escondido, Peruca puxou a menina, beijou-a, ela não resistiu, entregou-se.

- Lili filha da puta, comigo nem pegar na mão podia. Para o filho da puta do Toninho Peruca, vai se entregando aos beijos logo no primeiro dia. Biscatinha, comigo ia já completar três meses e nada! Nem um sarrinho!

Zeca foi mais cedo pra casa naquele sábado, puto da vida, incorformado. Não ia ficar assim, aquela biscatinha um dia ia lhe pagar, não custava esperar. Nada como um dia atrás do outro, esperando depois da curva, agachado atrás do tôco. Um dia a caça se descuida, bobeia, então cráu! Vingança! Sim, vingança, como dizia o poeta, é o prazer dos deuses!
Poucos meses se passaram. O matuto, que nunca comera mel, logo se lambuzara. Caiu pela menina e, como ficava a semana inteira na roça, vindo na cidade só nos fins de semana, assim mesmo só no sabado ou no domingo a noite, acabou por pedir Lili em casamento. Para o Zeca, aquilo era uma loucura, Lili nem ainda completara dezessete anos, o Peruca já ia para mais de vinte e cinco, não ia dar certo. Mas quem era o Zeca para se intrometer? Curtiu de longe o casamento, grande festa, muitos convidados na Igreja e na velha mansão já decadente na praça da mesma Igreja do casamento. O novo casal foi morar na roça, Zeca nunca mais os viu por longo tempo.
Um dia, um domingo,passando distraidamente, depois da missa, em frente a casa dos pais do Peruca, ali mesmo na praça, naquela mansão já decadente, Zeca viu uma figura raquitica na janela, percebeu de longe sua tristeza, mas não a reconheceu. Depois de tanto tempo, agora já moço formado, estudante de engenharia em outra cidade, na Mantiqueira, Zeca se tranformara num rapaz alto, moreno, atlético, bem apanhado. Passou sob a janela da moça, ouviu um suspiro profundo, não se deu por achado, não reconheceu a Lili. Agora, estava tão acostumado a ouvir suspiros por todo lugar que passava, nem deu bola. Não ligou o local, a menina loira raquitica, a velha mansão e a antiga namorada que o corneara a quase quatro anos atrás.
Zeca atravessou a praça da Igreja, desceu a rua, passou em frente ao Cine Zuza, entrou pela Rua Dezoito, chegou na praça, encontrou alguns velhos amigos, ficou ali conversando até altas horas da noite. João Carlos, o João Galinha, que agora trabalhava no Banco do Brasil, esticou também a noite e, no começo da madrugada, levantou-se para ir embora. Assim sem mais nem menos, convidou o Zeca:

- Vou na fazenda do velho amanhã cedo, não quer ir comigo? Fica lá na Lagoinha, uns dez quilometros da cidade, cerca de uma hora de carro pela estrada de terra. Por que não vem? O velho vai gostar de revê-lo.

De férias, sem programa para a segunda feira, Zeca não conversou muito, aceitou. Sairiam ali mesmo da praça, em frente ao Clube, por volta das dez horas. Pelas onze já estariam na fazenda, a tempo de almoçar, quem sabe um franguinho caipira, com angú, arroz vermelho e couve rasgada? Já começava a dar até agua na boca, só de pensar.
Como combinado, João Galinha e Zeca se encontraram em frente ao Clube, boa conversa durante a viagem, relembrando os bons tempos, de cachaça, de diverões e até mesmo, as vezes, de brigas.

- Você se lembra daquela vez, quando você se meteu com a turma do Jenerley e quase apanhou sozinho? Se a gente não chega a tempo você estava fudido!

- É mesmo, cara, mas não fui eu que me meti com êles. Foram êles que me provocaram, eu até que me aguentei bem nos primeiros empurrões e insultos, só não aguentei mesmo quando me chamaram de machadinho, corninho manso, passado pra trás pelo Toninho Peruca.

- Ué, mas a briga foi por causa do Toninho Peruca? Não sabia. Você não disse nada.

- Não foi bem por causa dele, foi por causa da Lili, a mulher dêle. Na verdade nem foi por causa dela, êles queriam arranjar um pretexto para me dar uma surra. Puta merda, seu, quatro contra um, o Jenerley, o Wandinho, o Zé Teixeira e o Titoca. Bando de filhos da puta, covardes, se você e o Walcy não chegassem na hora, eu tinha levado mesmo boas porradas. Começaram a me insultar e eu fui aguentando, com medo. Quando me chamaram de corno da Lili, não aguentei.

Relembrando o fato, Zeca se perdeu nas memórias daquela noite maldita. Como sempre, ficara com os poucos amigos na praça até tarde, lá pelas onze horas, com o João Galinha, o Luiz Paulo, o Tonico Alfaiate, o Joãozinho e o Walcy. Como descolara um convite para um baile no Montese, foi pra casa mais cedo para se arrumar para o baile, quem sabe arranjaria alguma coisa? De fato, arranjou.
Logo que entrou no Montese, Clube dos Sargentos da ESA que ficava na sua rua, uns dois quarteiroões acima de sua casa, percebeu que o Jenerley já estava meio de fogo, enchendo o saco dos outros, que não lhe davam muita bola. Estava acompanhado de sua turma e o Wandinho, logo que viu o Zeca chegando, de terno e gravata foi logo em sua direção, sugerindo que aquela noite não passaria em branco, ia ter porrada.

- Você é um babaca, cara. A Marlene minha irmã disse que você mexeu com ela ontem. Hoje vai pagar por isso. Sou amigo do seu irmão, mas não gosto de você!

- Calma, cara, nem tenho visto a sua irmã, como poderia ter mexido com ela?

- Ela me falou, cara, quer dizer que você está dizendo que ela é mentirosa? Vai ter porrada, cara, vai ter porrada!

A Marlene, na verdade, e todo mundo em Três Corações sabia, era a maior piranha do pedaço. Mas não era carne para o Zeca, que no fundo bem que a cobiçava. Logo o Zeca, duro, pichote, nem tinha ainda dezessete anos, o que a Marlene haveria de querer com êle? Só se enturmava com os mais velhos, que tivessem carro e grana para financiar seus caprichos antes de uma noite de transas. Diziam que era completa, chupetinha, bundinha e tudo o mais que o freguês quizesse e exigisse.

- E então, cara, você é homem, ou não é? Vamos lá pra fora resolver tudo de uma vez!

Nestas alturas o resto da turma já se aproximara, para também tirar sua casquinha no lombo do Zeca, e a platéia, sádica, já fechava a roda esperando o desfecho. Devia ser pouco mais de meia noite e o Zeca, sem alternativa, levantou-se e saiu para a rua, seguido pela raça. Lá consigo mesmo, pensava: na primeira chance, escapo e corro pra casa, fica logo ali embaixo, pra baixo todo santo ajuda. Assim pensando, ficou tranquilo, talvez ficasse só no bate-boca, talvez não chegasse a ser necessário passar o vexame da fuga. Uma turma de quatro, pegar um outro sozinho, para a raça sedenta, não seria covardia. Mas sair correndo da briga seria covardia do fujão. Ai, meu Deus, quem pode entender a razão de uma platéia sádica, louca pra ver o sangue correndo?

- Babaquinha, metido a besta, pensa que pode mexer com a irmã dos outros e ficar por isso mesmo?, insultava o Wandinho.

- Só porque você é bom de bola, pensa que pode fazer o que quizer, cara? Mexer com a irmã dos outros? Vai levar umas porradas para aprender! Era o Titoca, ciumento, reserva do Zeca no juvenil do Atlético, nunca tivera chance para entrar num jogo, Zeca era bom de bola e, ainda por cima, fominha!

- Pau nêle, negada, pouco importa se mexeu ou não com a puta da Marlene. Pau nêle! Era o Jenerley, que de tabela insultava o Wandinho, chingando claramente sua irmã de puta. O outro sacana, um covarde, fingiu que não ouvira, Jenerley era rico, cheio da grana, financiava as noitadas da turma, todos uns duros.

- Isso mesmo, chega de conversa, porrada nêle, Wandinho. Você foi o ofendido, o cara queria comer a puta da sua irmã. Era o Zé Teixeira, um grosso mal educado, analfabeto de pai e mãe.

- Isso mesmo, seu machadinho, corninho da Lili. Vai ser hoje.

Ao ouvir aquilo do Wandinho, Zeca perdeu o medo e o autocontrole. Meteu logo um chute no saco do filho da puta, que já avançava sôbre êle. Wandinho caiu de lado, fora de ação temporariamente, massageando o saco, devia ter acertado em cheio. O resto da turma avançou sôbre o Zeca, agora é que iam ser elas. Mas para o Zeca só ficou o Jenerley, metido a malandro, a dar rasteira, a brigar com os pés. Mas como já estava de fogo, errou a primeira, errou a segunda e, na tentativa da terceira, abriu as pernas, cambaleou, o saco ficou de jeito, Zeca não titubeou, mais um chute no saco, mas um gemendo pelo chão. Quando caiu em si, com o segundo fora de ação, Zeca mal teve tempo de ver o Walcy acertando a cara do Titoca e o João Galinha segurando o Zé Teixeira numa gravata sem saída. Então a platéia que clamava por sangue, vendo que a briga se equilibrava e que os filhinhos de papai iam sair perdendo, transformou-se na turma do deixa disso e a briga, que nem bem começara, acabou.

- Que foi, Zeca, está nas nuvens? Perdido em pensamentos? Acorda, cara, estamos quase chegando. Era o João Galinha que, pilotando seu Aero Willys recém comprado, tirava o Zeca de suas divagações.

- Não foi nada, cara, estava apenas lembrando daquela briga, por causa da Lili do Toninho Peruca.

- Você sabe que o Peruca é vizinho do meu pai? Vamos passar na frente de sua fazenda agora mesmo. Olha ali, já está chegando. Veja!

O casarão da fazenda, ali na beira da estrada de terra, parecia tão decadente quanto a mansão da cidade. Alguém na janela abanou a mão quando o carro passava, não dava pra ver quem era. Zeca pensou consigo, seria a Lili? Olhou para trás, debruçou-se pela janela do carro, estava muito longe, não dava pra ver. Mas teve a sensação de que era a Lili na janela, parecia sentir que ela o olhava por trás, aqueles olhos verdes, aquela voz suave, mais macia do que veludo azul. Bobagem, não podia ser, já fazia tanto tempo, não valia a pena ficar pensando.
Chegaram na fazenda do seu João Carlos, que ficou realmente satisfeito em rever o velho amigo do filho. Já estava na hora do almoço, tinha mesmo frango caipira com angú, só faltava o arroz vermelho, mas tinha feijão, arroz branco e couve rasgada, bem verdinha. Tomaram uma cachaça da amarelinha, seu João Carlos se tratava bem, almoçaram, foram para a cozinha, um café com rapadura, uma conversa fiada, um cigarro de palha com fumo de rolo.
Seu João Carlos ofereceu cama para um cochilo, João Galinha aceitou, ainda era cedo, nem meio dia, tinha tempo para uma boa soneca. Antes de ir para o quarto, Zeca chamou o amigo de lado:

- Não se importa em emprestar-me seu carro? Acho que não vou mesmo dormir, prefiro dar umas voltas por aí.

- Não tem problema, fique a vontade, não tenha pressa, só se preocupe em voltar antes das quatro, tenho que estar na cidade antes das seis horas, marquei encontro com a menina para as sete. Vai, cara, se divirta com as vacas e cabras que encontrar pelo caminho.

João Galinha acertara em cheio, a vaca da Lili não saíra da cabeça do Zeca desde que passara em frente da fazenda do Toninho Peruca, naquela manhã. É pra lá mesmo que eu vou, vamos ver quem era a figura na janela. Vamos ver se ela acena de novo. Não deu outra. Ao passar em frente da porteira da fazenda, lá estava a figura na janela do casarão decadente, acenando com a mão quando o carro passou. Não é possível, pensou, Zeca, não pode ser a vaca da Lili. Foi até a frente, voltou, parou o carro, abriu a porteira, entrou, chegou perto da casa. Não podia ser. De fato, era a Lili na janela, os olhos verdes inconfundíveis, meio abatida, triste.

- Olá, senhora, seu marido está em casa? Queria ver se êle por acaso sabe de algum sítio aqui por perto, pra vender. Estou interessado.

- Meu marido? Ché, aquêle agora só quer saber de beber, não larga a sua garrafa de cachaça. Saiu ontem a tarde, ainda não voltou. O velho é que ainda aguenta o tranco na fazenda, mas hoje depois do almoço selou o cavalo e foi pra cidade. Disse que tinha que ir ao banco. Só volta amanhã, cedinho, para tirar o leite.

A vaca não o reconhecera. A voz continuava doce, macia como veludo azul, estava meio acabada e abatida, mas ainda guardava a sua atração fatal dos velhos tempos. Se ela convidasse, devia ou não entrar? Era costume na roça convidar quem aparecesse para um café, desde que não aparentasse ameaça e êle ali, certamente, de pé no meio do terreiro, não devia estar ameaçador, pelo contrário, devia estar parececendo um corno manso, com cara de babaca!.
- Não quer entrar, moço? Vou mesmo passar um café novo, entra! Assim aproveito para conversar com alguém, aqui é dificil aparecer alguém da cidade. Às vezes vou à cidade, ontem mesmo, domingo, estive lá. Mas é como se estivesse aqui, não tem ninguém da minha idade para conversar, é o tempo inteiro na janela. Não tenho nem coragem de sair para procurar alguém, casei-me cedo, parei de estudar, vim para a roça, fiquei sem as amigas de lá e não arranjei amigas aqui. O Toninho, depois que começou a beber já não é nem mesmo companhia para mim. Vivo na solidão. Entra moço, toma um café.

Zeca resolveu entrar, contornou o pátio, preferia mesmo entrar pela cozinha, como sugerira Lili. Enquanto caminhava para lá, ia pensando consigo mesmo: Não pode ser, não acredito, não pode ter sido essa a vaca que me corneou. Nem me reconheceu. Ou será que me recoheceu e está fingindo?

- Entra, moço, por aqui, como é o seu nome? Vem, vou passar o café, enquanto isso conversamos.

- Pois é, só mesmo aqui na roça ainda se encontra a hospitalidade sem medo. Veja você, uma mulher sózinha, nesses confins, assim tão gentil, dando guarida a um desconhecido. Você não tem medo, minha senhora?

- Aqui, embora pareça, nessa imensidão de mundo, nunca estamos sozinhos, seu moço. Como é mesmo seu nome? Deus está sempre junto com a gente. A gente sente Ele em todo lugar. Na plantação de milho crescendo, no gado pastando ao longe, na vaca de quem se tira o leite todas as manhãs, nos carros que passam pela estrada, esses sempre agito a mão para êles, para que sigam seu caminho com Deus. Como é mesmo seu nome, moço, meu nome é Helena.

Zeca se assustou, pela terceira vez lhe perguntava o nome, dissera mesmo que se chamava Helena. Não seria a Lili? Não podia ser, era ela. Seu nome completo era Heloisa Helena. Era ela mesmo, os mesmos olhos verdes, a mesma voz doce e macia como um veludo azul. Não, não era uma vaca, se o corneara anos atrás, alguma razão havia de ter.

- E o seu marido, Dona Helena? Então êle bebe muito? A senhora parece tão jovem, e já carrega a sua cruz!

- Pois é, seu moço, o Toninho, assim chamo o meu marido Antônio Carlos, não é má pessoa, mas é bem mais velho que eu, nossos genios não combinam, nossos níveis culturais são bem diferentes. Sempre gostei de ler, ele sempre preferiu as lides na roça, o eito, o fim de semana na cidade, as mulheres da Rua Quarenta, lá em Três Corações. Depois que se agarrou à cachaça, degringolou, agora nem mesmo tem vontade para o trabalho, para as farras na cidade nos fins de semana. Nêste aspecto sim, seu moço, estou realmente sozinha, há mais de ano não tenho um homem, é duro, mas nêste ponto eu mereço. Como é mesmo seu nome, moço?

- É, deve ser duro. Mas se nunca combinou com o seu marido, porque se casou com êle? Afinal, vocês devem ter namorado, devem ter se conhecido antes do casamento. Não dava para pressentir antes que o casamento com êle não ia dar certo?

- Pois é, seu moço, aí é que eu lhe digo que mereço. Por que você não diz o seu nome? Minha estória é meia triste, não sei se vale a pena contar. Eu tinha apenas dezesseis anos, estudava no Colégio Estadual lá em Três Corações, era feliz e não sabia. Tinha um namorado, moreno assim como o senhor, tímido, falava pouco. Às vezes queria me agarrar, eu era inocente, queria mas não deixava, minha tia dizia que não devia deixar homem me passar a mão, era pecado. Mas eu gostava dêle, às vezes no cinema deixava ele pegar na minha mão, mas tinha medo. Êle se chamava José Manoel, seus amigos o chamavam de Zeca,eu o amava!

- E porque a senhora o deixou para se casar com o Seu Toninho? Não era melhor ter ficado com o Zeca? Êle também não gostava da senhora?

- É por aí, seu moço, é por isso que eu digo que a culpa é mesmo minha. O Zeca, na certa, também gostava demim, mas nunca disse. Mas não tive forças para resistir à decisão do meu pai. Minha familia era muito pobre, ainda é muito pobre. Quando o Toninho se interessou por mim, meu pai logo decidiu que eu devia me casar com êle. Eu sabia que não ia dar certo, apesar de moço e bonito, Toninho era muito mais velho que eu, eu tinha quase dezessete quando nos casamos, êle já estava para fazer vinte e seis, quase dez anos de diferença. O casamenteo acabou com meus sonhos de adolescente, eu mal deixara de brincar com bonecas, você sabe, seu moço.

É, realmente o Zeca sabia. O que ele não sabia era que a tia dela era uma carola filha da puta. Se não tivesse amedrontado a menina, talvez ela tivesse se soltado, tirado um sarro, provado o sabor do Zeca, talvez assim dele não desistisse. É, o Zeca sabia, Helena.

- Que foi, seu moço? Perdido em lembranças? Eu lhe trouxe alguma recordção distante? Mas, espera um pouco aí, a água já está fervendo, preciso passar o café, é só um instantinho. Passe aqui para a sala, senta aí no sofá. Espera um pouco, já volto.

Para surpresa do Zeca, a sala era extremamente bem cuidada. Na parede comprida, do outro lado da fileira de janelas do decadente casarão antigo, uma reluzente estante cheia de livros tomava conta quase que de toda a sala. Esperando o café, o moço chegou-se até os livros, começou a ler as lombadas. Crime e Castigo, de Dostoievsky; O Morro dos Ventos Uivantes, de Charlote Bronte; Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo; O Lobo das Estepes, de Herman Hesse; Em Busca do Tempo Perdido, de Proust; Por Quem os Sinos Dobram, de Hernest Hemingway; Helena, de Machado de Assis; Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; As Chuvas, de José Lins do Rego; Camilo Mortágua, de Josué Guimarães; As Meninas, de Clarisse Lispector. Pela amostra, só tragédias de amores perdidos. Helena entrou na sala com os cafés.

- Como eu estava lhe dizendo, seu moço. O senhor não vai mesmo dizer-me o seu nome? Como eu estava dizendo, meu pai forçou o casamento, não encontrei forças para resistir. Coitado, êle achava que, por causa do dinheiro do Toninho eu iria ser feliz. Minha tia, pois eu nunca conheci minha mãe, apoiava o velho, eu desconfiava que no fundo, no fundo, ela tinha esperança de que a sua própria vida melhorasse. Todos se decepcionaram. O velho morreu há uns dois anos, antes de ir-se pediu-me perdão por ter roubado a minha juventude. É isso, seu moço, esta é a minha vida. Mas aqui não sinto solidão, sinto a presença de Deus, tenho a companhia dos meus livros. Já li mais de dez vezes Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, tradução de Machado de Assis. Gilliard é o meu maior herói, meu Zeca pode ter sofrido tanto quanto êle quando o abandonei sem a menor satisfação por causa do Toninho. Naquela época, achei que seria melhor assim, um rompimento drástico, sem lágrimas, sem queixas, sem retorno. Tenho ainda a esperança de um dia encontrar o Zeca, pedir-lhe perdão, chorar nos seus braços, entregar-me a êle. Afinal, ainda somos jovens, eu tenho só vinte e um anos, êle hoje deve estar com vinte e dois, não mais que isso, assim como o senhor! Tem ainda o Heatclif, do Morro dos Ventos Uivantes, o Rascolnicov do Crime e Castigo, todos grandes sofredores, todos meus heróis!

- Nossa, Dona Helena, sua conversa estava tão envolvente, quase perco a hora. Já são quase quatro horas, prometi ao João Carlos que estaria lá na casa dele antes das quatro para voltarmos à cidade, ele tem compromisso lá ainda hoje, está reatando com a antiga namorada.

- O Seu João Carlos, da Fazenda Primavera, logo ali na frente? Não sabia que ele estava pensando em se casar de novo. Vai ser bom pra êle, vive por aí sozinho!

- O filho dêle, Dona Helena. O filho dêle. Mas tenho, que ir, já estou atrasado.

- Mais um café, seu moço, como é mesmo o seu nome?

- Tchau, Dona Helena, um dia eu volto para terminar a nossa conversa, prometo!

Zeca saiu pela porta da frente, desceu pela escada maltratada, tropeçou no último degrau, rolou pelo chão, levantou-se, olhou para cima, Helena lhe abanava a mão, entrou no Aero Willys, sumiu pela porteira ainda aberta, no meio da poeira. Chegando na Fazenda Primavera, às quatro em ponto, João Galinha já o esperava aflito, mal teve tempo para despedir-se de Seu João Carlos, caíram de volta na estrada. Quando passaram na frente da fazenda do Toninho Peruca, lá estava a figura na janela, acenando com a mão, Zeca colocou o braço pra fora do carro, também acenou em despedida, o rosto voltado para o vento para que o João não lhe visse as lágimas escorrendo pelas faces.

Como já escurecia, Lili começou a fechar a casa, as últimas lágrimas também lhe escorrendo pelo rosto. O Zeca não me reconheceu, talvez seja melhor assim, não desenterrar as mágoas do passado. Mas, enfim, pude lhe dizer que o amava, que não o deixei porque quiz, que me entregaria a êle se me aparecesse agora. Pegou Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, tradução de Machado de Assis, abriu-o na pirmeira página, fez mais uma marca com a caneta, recontou as marcas. Recomeçava aquela leitura pela décima quarta vez! Era o seu livro predileto!
Por volta das sete, já noite escura, Lili ouviu lhe baterem de leve à porta, ficou com medo, estava sozinha, Toninho já não voltava há duas noites. Seria o seu marido? E se não fosse? O que faria?

- Deus está sempre comigo, hoje .Gilliard, o meu herói maior, também me acompanha. Não tenho medo.

Levantou-se, caminhou lentamente, na porta a leve batida mais uma vez. Não era o Toninho, na certa. Se fosse êle, a porta já teria vindo abaixo pela demora em ser aberta. Aproximou-se, abriu a porta lentamente, assustou-se, recuou.

- Zeca?

- Lili!



GUIMA, ITAJUBÁ, 03/02/96
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