A MUSA MODERNA DE MAHLER
"Embora as harmonias de minhas opiniões nem sempre pudessem vibrar de acordo com seus argumentos – sendo mais jovem tenho o direito de ser diferente, mesmo que essa diferença resulte da imperfeição (...) – há uma coisa que eu deveria ter aceito: a qualidade essencial que emana do que é grande, que senti tão intensamente em sua presença e que é para mim o poder do gênio".
Arnold Shoemberg
Esse texto é uma verdadeira nota de impressão. Junto com a paixão a pretensão, justificadas pela necessidade com que nos cobra a música, como arte, de conferir-lhe sentido. De potencializar os já indiciados na audição. Ouvir música consiste também em refletir sobre ela – este ato de escrita, esse texto, é também audição.
A música de Gustave Mahler ainda não recebeu recepção adequada. Música que, vergando o tempo, impõe-se dentro da memória, traçando-me os tortos caminhos; é, parece-me, uma das mais particulares experiências musicais da modernidade. Música eclipsada por uma personalidade dilacerada, ou por seu talento incontestável de regente arrojado, admirado por todos. A fama de uma família destruída como foi a de Mahler, ou de um maestro genial, que regia Wagner de memória, findaram por marginalizar o que nele se fez mais poderoso – sua criação.
O conjunto sinfônico de sua obra – as nove sinfonias e a décima inacabada – são algo particular na história da música moderna. Obra incompreendida, onde os rótulos pululam ao redor, sem conseguirem sequer aproximar-se de seu verdadeiro valor, para os quais ela se mostra impermeável. Mas se a obra musical de Mahler sempre esteve fechada aos rótulos, rapidamente lhe atribuídos, foi sempre porosa às variadas leituras.
A pluralidade que se concentra em sua estrutura garante-lhe sua modernidade. Na verdade, sua música antecipa recursos – juntamente com uma forma particular de manejá-los – que só se solidificarão numa modernidade mais tardia. Shoemberg, e o dodecafonismo, não se cansariam em assinalar os débitos para com o compositor. A música de Mahler é sombra solar: extinção que, ao mesmo tempo, é uma efusão da forma.
Efusão grandiosa, efusão do detalhe: as estruturas móveis e intercambiáveis de suas sinfonias atestam um princípio essencial de sua música: o atrito que as formas enfrentam em seu interior, combinando-se, fabricando-se. Música em confronto com o mundo e consigo mesma, lendo o que lhe cerca e a si mesma.
É preciso assinalar a expressividade com que o compositor expôs as tensões de sua música. Numa elaboração quase barroca, o sublime e o trágico embatem-se num ludismo violento – o pomposo e o medíocre. Sua música traduz não os dilaceramentos do homem Mahler, mas o dilaceramento das formas musicais.
Não será a dubiedade, no entanto, o signo que melhor traduzirá tal música. As faces de sua música estão em translação constante; em cada volta realizada, uma nova face – a volta é apenas um aparente retorno. Como as colheitas que, mortas ou frutificadas, não podem ser determinadas pela simples passagem das estações. A música de Mahler é, pois, plural. A grandiosidade do fragmento.
Suas sinfonias são como a órbita de saturno: não sabemos se são ruínas de um mundo destroçado, ou fragmentos de um que não chegou a se formar. Semelhante à obra do poeta português Mário de Sá-Carneiro. Queda livre (como na quinta sinfonia) entre os espaços intermitentes das formas.
Não há na obra sinfônica de Mahler a força direcionada e compromissada com o moderno que há em Stravinsky. Nem a superação dos modelos tradicionais realizada pela música de Debussy; pois, o compositor francês via na tonalidade e na atonalidade elementos naturais à composição musical, valendo-se deles na medida em que a música os exigia – influência da música oriental. Nenhuma dessas atitudes parece partilhar, com a música do compositor austríaco, afinidades. Nem parece ser este o sentido de suas sinfonias.
A forma em Mahler é uma forma tensa, impactante, como a fricção das placas tectônicas umas contra as outras, assentando um relevo instável, cheio de acidentes, aclives, montanhas – tensas altitudes.
Como mencionamos, a música de Mahler não é apenas a sensibilidade moderna em confronto com as formas antigas, da tradição; ela é já a realização de preceitos modernos. Basta pensarmos na Oitava Sinfonia, pertencente ao grupo vocal da obra sinfônica. Desde a segunda parte do Fausto de Goethe, até um hino cristão medieval, essa sinfonia é uma grande colagem; não só de temas literários, mas de linhas melódicas, continuamente repropostas dentro de novas estruturas. Cabe, aqui, assinalar a forma pessoal do uso da fuga e do contraponto feito pelo compositor.
As voltas constantes, os revôos que parecem retrocessos – uma música que se mostra, tantas vezes, acuada por suas próprias estruturas – evidencia seus limites. Estes limites, porém, não são a música de Mahler, senão seu prólogo. Como o primeiro movimento da 1ª sinfonia, a Titã. Um senso de construção, elaborado e cuidadoso, compondo os temas de forma paciente. Até a explosão. Sua música é feita de quedas em vazios indescritíveis, como vislumbres diante de uma criação que desafia suas capacidades expressivas.
A música de Mahler é essa confissão e esse jubilamento: a incapacidade de produzir esse “novo” absoluto, e a força de destruir toda a criação, para que ela possa existir realmente.
Daí sua modernidade: a recusa das fórmulas amplamente aceitas, a busca de uma expressão capaz de conter, com mãos de fogo, o ímpeto romântico e o deboche e ascetismo moderno. Encruzilhada, tal música. Onde é preciso aprender a seguir, impor os próprios traços e caminhos. Vias vertiginosas, alçando o infinito, o divino; e percorrendo o medíocre e o caótico. Foi isso, talvez, o que Mahler propôs com sua música; algo semelhante ao poeta francês Rimbaud: anotar o inexprimível, fixar vertigens.
Olinda, 07 de dezembro de 2001
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