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Contos-->A praça -- 18/02/2003 - 10:52 (Eduardo Borges Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A praça
Eduardo Borges

- I -

“Naquela tarde quente e úmida, compreendi que não podia mais continuar. Estava sentado num banco de uma praça já fazia algumas horas. Na verdade, não sei dizer quanto tempo fiquei ali, parado. A cidade expunha aos observadores os seus movimentos. Em mim, somente o tédio da inércia. Na frente da praça, carros passavam em alta velocidade, paravam em sinais, se moviam, enquanto centenas de pessoas, ao que tudo indica apressadas, atravessavam as ruas. Elas aparentemente estavam vivas. Pelo menos mais que eu. Algumas caminhavam com uma displicência impressionante, como se estivessem vivendo a repetição a cada instante. Outras pareciam objetivas demais para um dia quente como aquele. Demasiadamente objetivas para a vida. Sei lá. Mas eu não me importava com ninguém. Nem comigo mesmo. Quer saber? Aquela senhora na minha frente, que como eu estava sentada na praça, dando de comer aos pombos, de aspecto normal e até saudável. Eu poderia correr em sua direção e saquear-lhe a bolsa, ou mesmo ferir-lhe alguma parte do corpo. Os olhos, por exemplo. Não que eu precisasse roubar, ou mesmo quisesse. Não que tivesse qualquer anseio de machucar aquela amável e simpática senhora. Na verdade, ela até me gerava uma doce lembrança do passado, talvez dos meus pais, um certo altruísmo, como que fascinado pela aparente inocência da velhice. O problema estava na possibilidade de fazê-lo. De repente percebi, racionalizei, o que tanto me amedrontava: o possível, o acaso. ‘- Tudo é possível, dentro do nosso limite de ação’, deduzi em pânico. Tive medo do que podia fazer, levado por um impulso incontrolável. Era um sentimento novo, quente e penetrante como uma adaga inesperada. Eu sabia que era possível, naquele momento, ficar parado, ou então praticar o pior dos crimes; podia levantar e ser gentil, discreto; mas seria plausível também ser considerado um exemplo de perversão. Bastava uma atitude, uma deliberação, um descontrole. Sentia algo pressionando o meu cérebro. Tinha que ficar atento. Tinha que olhar em volta com os sentido dos loucos. Em certo momento, ali, do banco em que estava, percebi um rapaz bem trajado e de pasta na mão. Ele parou na calçada, e, por um instante, fez um gesto como se fosse atravessar a rua, justamente quando o sinal estava para abrir. Suas pernas vacilaram, e seu corpo foi para frente, como que movido por um impulso abrupto. Então, inesperadamente, desistiu, e, meio envergonhado, se recolheu com rapidez. O sinal se tornou verde e os carros avançaram. Se tivesse insistido teria tido problemas. Mas não. Foi um bom cidadão. Isso era a possibilidade! A noite caíra. Levantei, com desdém de tudo, e voltei ao meu apartamento, a passos largos, sempre vigilante, sempre optando pelo caminho menos perigoso, para mim e para as outras pessoas. Cheguei na portaria do prédio, peguei algumas correspondências, e subi a escada. Ao chegar na sala do apartamento, deitei no tapete da sala, e não me lembro de mais nada.” 14 de outubro de 1984.


- II -

Leon acabara de escrever as últimas letras em seu diário. De alguns meses para cá, adquiriu o hábito de resumir seus dias em palavras. Mais que uma mania, era uma maneira de existir. Tinha levantado há pouco, movido por um profundo enjôo. Sentado frente a uma escrivaninha, da janela de sua quitinete observava a rua. Era preciso viver. No apartamento nada se movia e o ar quente dormia em sua existência invisível. Não tinha sequer forças para levantar, dar dois passos, e ligar o ventilador. “- Melhor assim”, pensou. Desviou o olhar para seu corpo, e não se reconheceu. Só então notara que estava mais magro e com uma palidez assustadora. Observou atentamente suas mãos, esticou o braço e pegou um copo d’água, que parecia estar na mesa há dias. Num ato mecânico, apertou o copo como se quisesse quebrá-lo, e ingeriu lentamente o líquido, amarelado e sem gosto. Leon ergueu-se e caminhou em direção à pequena sacada do lado esquerdo do apartamento, que dava para uma rua menos movimentada. O dia estava claro e denso. Podia-se sentir um mormaço em meio aos carros. Encostado na parede do prédio, um casal desafiava o movimentado cenário urbano, abraçado logo em baixo da sacada do apartamento. Leon encostou-se no parapeito e fitou o casal. De repente a idéia do possível voltou à sua mente. Isso foi como um choque, que o fez tremer, inundando seu corpo de suor. “E se eu soltar o copo?” “E se eu deixar cair este pedaço de vidro na cabeça de um dos dois?” A idéia veio como um terremoto. Era um absurdo pensar nisso. Não exista uma razão sequer para fazê-lo! Mas o incrível estava em imaginar que a cada momento infinitas possibilidades se abriam. A todo momento, um desafio de controle, uma oportunidade para testar seu grau de sociabilidade. Então virou-se bruscamente, deixando cair o copo no chão, junto aos seus pés. Definitivamente, não estava bem. A vida tornara-se um risco, e agora as decisões pareciam ter que serem tomadas a cada minuto. O problema estava em saber até quando optaria pelo caminho que aprendeu a chamar de bom, de correto. Indagava-se assustado, se havia opção ou se de fato o homem estava à mercê das compulsões. Voltou para a mesa, e procurou não pensar mais em nada. Porém sua mente sofria de uma dor desesperada, inquietante, estaticamente intensa, imbuída de múltiplos pensamentos fixos. A idéia de sequer controlar o que pensava fazia o corpo de Leon tremer, e um gemido quase surdo emergia, sem que ninguém pudesse ouvir. Tentou direcionar sua disposição para algo concreto, alguma coisa que o fizesse sentir-se vivo. Nisso Leon sempre foi péssimo. Não fora criado para a vida. Mesmo sem conforto, acostumara-se a uma timidez permitida, consentida e tolerada pelos que estavam próximos. “Uma espécie de preguiça”, conceituavam alguns. Nunca manteve um emprego por muito tempo. Passou pela Universidade como quem monta sem compromisso um quebra-cabeça. “- Trabalho”, disse Leon em voz baixa, lembrando de mais um dos empecilhos para que fizesse parte do social. Sabia que precisava trabalhar, mas esta consciência passava ao largo de qualquer ânimo, vontade ou atitude. O desejo é um espinho nos olhos de quem se sente inútil. Desde a morte de seus pais, há dois anos, vinha sobrevivendo do dinheiro deixado por herança. Durante este tempo todo, fez render a quantia como pôde. Era o suficiente para viver por mais alguns anos. Alimentava-se uma vez por dia e fazia poucos gastos consigo. Algumas vezes ia ao cinema. Assistia a três, quatro sessões seguidas, para não voltar para casa cedo. A casa era solidão, e a solidão, quarto dos pensamentos. Em outras oportunidades, ia aos parques da cidade. Misturava-se às centenas de pessoas que, no seu entender, esbanjavam vida, e, sobretudo, controle. “É isso aí, controle” – repetia para si mesmo sem confiança. Ali, ele se achava normal. Andava displicente, sorrindo para aqueles que como ele ignoravam as horas. Naqueles lugares a vida não era um capítulo particular. No parque cada um era parte do coletivo, compondo um cenário invejável para os que sofriam. Todos desfilavam com algum símbolo de normalidade. Aliás, “- Só os normais passeiam”, pensava. Uns corriam, outros desfilavam com a família, como que protegidos de todo o mundo externo, de todo perigo. Havia senhoras, de rostos pintados, seguindo em grupos com seus cachorros, mais bem cuidados do que ele próprio. Esta era uma ocasião especial. Leon deslizava no parque. Em alguns momentos acenava para pessoas que passavam ao seu lado, e sempre obtinha uma resposta, um olhar ou sorriso, ainda que artificial. Às vezes, balançava as mãos como se não tivesse lugar para elas e chegava mesmo a curvar levemente o corpo ao se aproximar de algumas pessoas. Em certa ocasião, encontrou um conhecido, da época da Universidade. Seu nome era Carlos, pelo menos imaginava Leon, numa incerteza inquietante. Um cumprimento forte marcou o encontro, embora tudo parecesse irreal. O homem falava de seu sucesso no ramo imobiliário e destilava uma série de lembranças da vida universitária, sem entender que Leon esteve lá apenas como espectador, que não se envolveu em grupos e que sentia um desdém pelas piadas dos encontros sociais, classificados por ele como prova das mediocridades humanas. Naquela conversa, a face de Leon, sorridente, como quem está feliz pelo diálogo, se contrastava com a turbulência nervosa de seus pensamentos, e um frio lhe percorria a espinha, fazendo-o incapaz de responder palavra significativa, a não ser expressões monossilábicas. Queria ter aquela segurança. Queria ter o que falar por tanto tempo. Sabia que ao terminar a conversa continuaria só, em risco, em descontrole, sem futuro. Quanto ao seu interlocutor, ah! este certamente encontraria a paz no seu fim de dia. De repente, talvez pelos gestos e olhares distorcidos a que assistia, o homem despediu-se, iniciando exercícios de alongamento, mostrando ao mundo uma forma física invejável. Logo depois sumiria em velocidade. “Besteira, tudo o que ouvi, tudo o que vejo e sinto” praguejou Leon ao mudar o sentido de sua caminhada, agora cabisbaixo em sua magreza espadaúda, como se a máscara tivesse caído por completo. Quase sempre os passeios no parque terminavam em frustração. Apenas terminavam, melhor dizendo. E, ao cair da tarde, após uma refeição em lugares iguais, em mesas distantes das outras, só, Leon traçava planos, estratégias de como vencer o medo de si mesmo, de sua força humana, com uma consciência longínqua – mas fiel como um anjo da guarda – de não querer machucar ninguém. Aliás, não queria nada e, ao mesmo tempo, não entendia como deixar o tempo fluir. A noite vinha, e era um manto negro e impiedoso. Caminhava, então, para seu apartamento, e fazia o de sempre: encolhia-se no canto de sua cama malcheirosa e lutava até a exaustão contra inimigos imaginários, para depois dormir um sono pesado. E não havia um “Boa noite”, tão-só um corpo misturado a pedaços de pano e vida.



- III -


Escrever ainda era o móvel de Leon. Pelo menos nas palavras podia ser livre. Seu diário continha sua vida, coisas que ninguém saberia. Situações que não desejava falar sequer a um analista, o qual conceituava como alguém dolosamente voltado a dizer o que um doente tem que ouvir, numa relação em que dois falam ao vento e os resultado são estímulos efêmeros. O diário era também sua fuga, um mundo à parte, papéis que continham o código de seu inconsciente. Numa tarde, caneta a postos, em que o sol mais um vez inundava o seu cubículo de calor e umidade, Leon pegou aquele caderno, com palpitações exageradas, e lançou-se ao mar revolto e profundo: “Hoje voltei à praça. E aconteceu o mesmo. Acredite quem quiser, ansiei que fosse diferente. Desejo não existir, e sinto nojo do meu corpo. Tinha prometido não me pôr mais à prova. Mas esta é uma promessa impossível de cumprir. Acho que nenhum de nós sabe conviver bem com a dúvida, mesmo quando ela é seu destino. Sei que estas palavras não têm nexo, mas e daí? Escrevo porque é a hora. Deixei o apartamento pela manhã pegando a Presidente Dutra, caminhando rápido e com as mãos nos bolsos. Escondia minhas garras! Olhei o policial da esquina como uma ameaça, e, sem motivo, verguei a cabeça, como um criminoso. Por quê? Não sei. Agora pouco importa. Começo a não diferenciar o abstrato do concreto, e o solo que piso parece feito de lodo espesso. Ao sair na Santos Dumont avistei a praça, de tantos tédios, visões e descobertas, tais como meu novo desafio: o controle de mim mesmo. E uma vontade louca me subiu à cabeça, queria voltar para este meu canto, para estas paredes falantes e ver o dia passar até a inanição, até a morte, à espera do fim da vingança de Deus. Entretanto, um impulso e a enxurrada de gente que vinha atrás me fez caminhar, deambular cambaleante, como um bêbado, um ébrio sem motivo, um louco às escondidas, um fugitivo. Passei pelo portão da praça inconsciente, e, com uma monotonia tensa, sentei no banco que já tinha minha marca. Talvez só ele sinta minha falta. Somos um bloco de madeira e carne, inquebrável de tão banais. Abaixei a cabeça um pouco, apenas para relaxar. Ao lado, o centenário tronco da árvore me remetia à vontade de morrer rapidamente. Logo ele que viu gerações calado. Pensei que hoje deve ser, tem de ser, meu último dia neste lugar, neste mundo. É estranho, racionalmente, pensar isso. Mas o desejo do fim lameia meu corpo, e um abraço forte da solução suicida esquenta meus pés, aliviando a pressão craniana da angústia. Olhei a primeira vez para os lados querendo ver as pessoas de uma forma diferente. Sentir algo além de um desprezo vazio. Lembrei-me da senhora que dava de comer aos pombos, naquele dia em que escapei por pouco. O meu gatilho de dor. A outra parte do jogo no qual perdi mais um pouco de sanidade. Ela não estava lá. Saiu ilesa de tantas possibilidades, livre de mim, como nem mesmo eu me encontrava. Acho que ninguém estava lá, naquela esteira de cimento. Só eu. Os outros apenas passavam, tramavam suas vidas. Neste ponto, pelo menos neste, me sinto melhor, afinal luto contra as tramas, contra o nada repleto de desespero (seco, desprovido de pai, de segurança, de expectativas, um desespero de emoções embutidas, estabilizado, incurável, escuro como as longas noites que passei em branco). Estava, como agora, vestido por farrapos e meu coração apenas pulsava mecanicamente, por baixo do algodão sujo que cobre meu peito. Desprezei meu corpo. Desprezo a vida. Sinto-me decepcionado. Fui à praça, confesso, pensando em sentir a mesma intenção inconsciente, aquele estranho monstro na alma, que me levaria ao confronto, ao limite da escolha entre o domínio de meus braços, pernas e mente e os valores morais pelos quais morreria voluntariosamente. Todavia, não me passou nada. Não quis nada e sequer tive ânimo para realmente considerar os outros. Uma onda de tremores voltou a percorrer minha epiderme e os nervos se entrechocaram criando espasmos musculares. Um pânico tomou conta de mim, e por alguns minutos fui incapaz de abrir os olhos e ver o mundo. Medo de tudo, da vida e de continuar em vão. Minha mente viajou pelos desertos e entoou cânticos vibrantes como um zumbido de insetos. Voltei, então, e estou aqui, sem palavras e sem sentido. Estou neste canto da cama, onde o tudo sou eu e meus olhares. Não pretendo mais levantar, e já sinto que a fraqueza de dias será minha companhia, e o sol lá fora é meu tormento...”


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